Crise e asselvajamento do patriarcado no Brasil:
as mulheres dos escombros no capitalismo periférico(1)
Ana Elisa Cruz Corrêa
Scheilla Nunes Gonçalves
Por que aumenta a violência contra as mulheres no Brasil?
Em 8 de março de 2024, mais uma vez, as manifestações de mulheres coloriram de roxo as ruas principais de muitas capitais e grandes cidades do Brasil. (2) Nem gigantescas nem irrisórias, as marchas trazem reivindicações por aborto legal, acesso à serviços públicos, o fim de violência contra a mulher e o feminicídio, entre outras. Estas demandas parecem se repetir mundo afora, expressando-se nos cartazes captados nas imagens dos atos do dia internacional da mulher em diversos países. (3)
“Nenhuma a menos” é um lema que clama pela necessidade de manter vivas as mulheres, cada uma delas. Entretanto, o Brasil chama atenção pelos números e a gravidade dos atos contra mulheres. Os altos índices de violência tem piorado ano a ano, a despeito da recente transição do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro (2018-2021) para o governo do histórico membro da esquerda Luís Inácio Lula da Silva (2022 - 2025).
O ano de 2022 registrou o tenebroso recorde de casos de feminicídio no país desde que a “lei do feminicídio” entrou em vigor em 2015. Com um aumento de 5% em relação à 2021, foram mortas 1,4 mil mulheres no último ano. (4) O Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de feminicídio, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. No Brasil, 48 vezes mais mulheres são mortas que no Reino Unido, 24 vezes mais que na Dinamarca e 16 vezes mais que no Japão ou na Escócia.
De acordo com o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 8 em cada 10 crimes de feminicídio são cometidos pelo parceiro ou ex-parceiro da vítima e a grande maioria dos atos de violência ocorrem no espaço doméstico.
É fato que houve uma considerável redução de recursos estatais destinados ao combate a violência durante o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro (2018-2021). Entretanto, esse dado nos parece insuficiente para explicar um problema crônico da sociedade brasileira e que claramente vem piorando nas últimas décadas.
Durante os governos do Partido dos Trabalhadores ao longo dos anos 2000, de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2006 / 2007 - 2010) e de Dilma Rousseff (2011-2014 / 2015 - 2016), foram implementadas diversas políticas em defesa das mulheres: em 2003 foi criada a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM); a partir de 2004 a implementação do Programa Bolsa Família (PBF) – que objetiva combater a pobreza no país e se consolidou como o maior programa de transferência de renda do mundo – elegeu as mulheres como as representantes das famílias beneficiárias; em 2006 ocorreu a promulgação da Lei 11.340, a Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher; em 2009 houve importantes mudanças na lei de estupro; em 2015 surgiu a Lei 13.104 que transforma em crime hediondo os assassinatos por motivo de gênero, definindo o feminicídio como um homicídio qualificado. E mais recentemente em 2018 foi aprovada a lei de importunação sexual. (5)
A despeito dos recursos e investidas dedicados pelo poder público, não ocorreu a redução da violência e da pobreza extrema das mulheres brasileiras nos anos subsequentes. Muito pelo contrário. Os números de violência doméstica, estupros e outras formas de violência contra a mulher mantém-se aterradores, (6) mesmo com a ampliação de um arcabouço legal de combate à violência de gênero ao longo dos últimos anos. Como explicar esse quadro regressivo em que, ao mesmo tempo que a questão de gênero toma o debate público e novas regulações de proteção à mulher são criadas, os índices de violência vão às alturas?
As análises que buscam avaliar os resultados destas ações costumam reivindicar o maior rigor das mesmas na medida em que não reconhecem as barreiras estruturais que as limitam e a sua relação com o contexto processual-estrutural da sociedade capitalista contemporânea. Em geral, elas se destinam a pensar estratégias que possam lhes garantir maior efetividade e abrangência, alegando, por exemplo, problemas de gestão pública, a permanência da impunidade e a necessidade de aperfeiçoar os instrumentos legais e penais punitivos. É evidente que o surgimento destes aparatos legais é parte do reconhecimento da gravidade da realidade de violência contra a mulher e sua vigência permitiu a inúmeras mulheres a possibilidade de se enxergar como vítima e ter a quem recorrer. Porém, questionar os limites com os quais eles se defrontam não significa negar sua importância. Ora, se a reflexão a respeito da permanência do fenômeno fica restrita a reafirmação de instrumentos do direito – portanto, circunscrita à formalidade do capitalismo – não é possível sua crítica negativa, tampouco projetar horizontes emancipatórios.
Atualmente, com o recente retorno de Lula ao governo, após a gestão de extrema direita de Bolsonaro, parece se repor no imaginário das esquerdas no Brasil uma expectativa de realização por meio da ação estatal de um suposto processo civilizador atrelado ao desenvolvimento e às garantias democráticas. A ideia de um Estado-nação capitalista que precisa se completar enquanto tal segue assombrando o pensamento crítico e ocultando as determinações fundamentais de nossa partilhada desgraça cotidiana.
Nos efervescentes debates atuais do feminismo é comum encontrar expressões de assombro com a atualidade do patriarcado: “Como é possível tal fato em pleno século XXI?” Parece que numa esquina do progresso deu-se de cara com uma imensa névoa de conflitos atávicos, e na penumbra apareceram imagens misóginas de pura regressão. Pensar o quadro em que vivemos exige romper tanto com os ideais de desenvolvimento que giraram em falso no patriarcado capitalista quanto com o próprio. O absurdo e a vantagem do aprofundamento da crise atual se concentram justamente neste ponto nevrálgico: quanto mais difícil parece ser enxergar em meio a tantas sombras, mais evidente se torna a conjunção de fatores que atestam os limites de um colapso mundial. Mesmo sendo um processo de dimensão e temporalidade imprevisíveis, já nos aproxima de fronteiras concretas imediatas, como a falta mais generalizada de emprego para as novas gerações, o esgotamento dos recursos naturais, e o exacerbado caos das grandes e falidas metrópoles. A brutalidade da crise do patriarcado capitalista parece reconstituir a feminilidade como matéria-prima, evocando os sacrifícios através dos quais esta forma social foi instituída.
As análises em torno das condições em que vivem as mulheres – e a violência a que estão submetidas – no Brasil contemporâneo, em geral, não aprofundam dois pontos fundamentais para tatearmos a complexidade da realidade na qual as questões que envolvem a temática do sexismo se inserem: 1) os elementos constitutivos e, portanto, específicos da determinação patriarcal no capitalismo periférico; e 2) sua atual crise estrutural. Sem o aprofundamento destes dois pontos corre-se o risco de embarcar mais uma vez em análises desenvolvimentistas, punitivistas e inócuas. A crítica prática e teórica no amplo espectro da esquerda parece insistir na ideia de superação dos “atrasos” históricos da sociedade brasileira, como quem crê num horizonte mais democrático, mais plural e menos violento, de um porvir “civilizatório” sempre adiado, quando na verdade o que se apresenta aos nossos olhos é o sombrio desmoronamento de uma forma social que nada mais pode oferecer – e não é só no território brasileiro.
As expectativas da teoria e prática feministas parecem se manter, mediante a eleição de Lula, no âmbito da ampliação de recursos públicos que poderiam compensar financeiramente as mulheres pelos sofrimentos produzidos pela desigualdade de gênero, que as incluam de forma igualitária em um mercado de trabalho em decadência galopante e que fortaleçam as ações estatais de caráter fortemente punitivista. A emergência do concreto imediato se torna a justificativa perene para sobrepor a resposta de inclusão a uma sociedade que desmorona à necessidade (urgentíssima) de uma crítica radical que abarque a totalidade concreta em um período de colapso do patriarcado produtor de mercadorias.
Quem são as mulheres dos escombros?
Ao pensarmos a história constitutiva do capitalismo periférico brasileiro como a história do patriarcado produtor de mercadorias como propõe Roswitha Scholz, passa-se a olhar para elementos essenciais da realidade atual. De forma que reivindicações por desenvolvimento, aparatos punitivos ou mais democracia perdem toda e qualquer sustentação como resposta efetiva.
Apreender o atual aprofundamento da violência misógina na chave histórica de um problema que decorre apenas da exclusão das mulheres dos espaços de poder tradicionais, tal como considerar que se pode solucionar a pauperização que se generaliza apenas com a reivindicação de empregos e desenvolvimento, significa investir energia justamente no motor desta forma social que mais do que nunca atua como uma “máquina de moer gente”. Significa, sobretudo, não levar a sério os resultados objetivos de experiências históricas que levaram ao limite determinadas expectativas de progresso nos termos das categorias da forma-valor, como são os casos emblemáticos da União Soviética e também do Estado industrializado europeu, tanto no que se refere às possibilidades emancipatórias do desenvolvimento das forças produtivas quanto ao intento de igualdade jurídica entre homens e mulheres.
No âmbito das formulações da crítica do valor, partindo da crítica ao trabalho abstrato e da teoria da crise, Scholz, ao observar estas questões sob a lente de preocupações da teoria feminista trazidas desde maio de 1968 – e, dentre outras coisas, da caça às bruxas –, pensa a formulação de “o valor é o homem” e se dá conta da importância de estabelecer uma relação destas elaborações com a “Dialética do Iluminismo” e a lógica da identidade de Adorno, propondo um modo de entender o nexo que une domínio da natureza, opressão da mulher e racismo.
Neste sentido, pensar a crise brasileira é pensar o aprofundamento da crise civilizacional e da violência sexista, efetivamente desde a periferia do capitalismo, território no qual a constituição e o desenvolvimento do capitalismo representaram uma constante acumulação de escombros. Desde o marco temporal do fim do bloco soviético, Marildo Menegat pensa a barbárie e a crise da modernidade a partir da apreensão a respeito da constituição do capitalismo no Brasil. Assim, desenvolve um balanço da tradição crítica brasileira, estabelecendo um vínculo entre uma “crítica da economia política da barbárie” e a particularidade periférica. Nessa perspectiva, é fundamental identificar como fios condutores histórico-processuais a colonização e a escravidão. Sobretudo no contexto brasileiro, a relação violenta entre desenvolvimento das forças produtivas, direitos e punição determinou sobre quem recairia o reverso obscuro da forma valor e da sua aparência civilizatória. No Brasil, a condição da mulher negra é a que sintetiza de modo emblemático este quadro de sobrecarga e violência.
As mulheres negras são as principais vítimas desse asselvajamento em diversos âmbitos: menor inserção no mercado de trabalho formal, menor remuneração, menor escolaridade, maiores taxas de desemprego e, principalmente, principais alvos da violência de gênero no Brasil - de todos os dados sempre o mais impactante. Mesmo quando houve um momentâneo recuo nos números de violência, este se restringiu às mulheres brancas. Segundo o Mapa da Violência de 2015, o número de homicídios de mulheres brancas caiu em 10 anos, passando de 1.747 vítimas em 2003 para 1.576 em 2013. Isso representou uma queda de 9,8% no total de homicídios do período. Contudo, os homicídios de mulheres negras no mesmo período aumentaram 54,2%, passando de 1.864 para 2.875 vítimas. (7)
Esse quadro permanece inalterado até a data atual. Em publicação recente no site do Ministério da Mulher observamos que durante uma campanha de denúncia da violência contra a mulher realizada de janeiro a outubro de 2023, do total de denúncias recebidas pelo “Ligue 180”, 51.941 foram realizadas pela própria mulher em situação de violência, sendo que, dessas, as mulheres negras são as principais vítimas somando 31.931 das denúncias. Os principais tipos de denúncias identificadas nos números totais foram: a violência psicológica (72.993); seguida pela violência física (55.524); violência patrimonial (12.744), violência sexual (6.669); cárcere privado (2.338); violência moral (2.156) e tráfico de pessoas (41). (8)
As mulheres dos escombros são no Brasil, especialmente, as mulheres negras, pobres, vulneráveis. Estas também passam a ser identificadas como as necessárias administradoras do caos, como sobreviventes e garantidoras da sobrevivência dos demais nas periferias em colapso. (SCHOLZ, 2017, p. 13)
No domínio do construto lógico da teoria crítica, não é possível apontar saídas para uma forma sistêmica que ao mesmo tempo em que desmorona se mantém apoiada em complexos mecanismos de dominação e destruição. Nem seria papel de uma reflexão teórica projetar soluções ou conclusões para os dilemas da humanidade. Contudo, destacamos a importância de adquirirmos recursos que nos permitam, no mínimo, discernir o que é urgente negar.
Ademais, no âmbito da realidade periférica, a experiência já se encontra profundamente marcada pela necessidade de serem pensadas formas de sobrevivência que não dependam das expectativas no desenvolvimento capitalista, mas que, ao contrário, se coloquem contra este. Não se trata de tornar virtude o que é necessidade, mas de reconhecer que no lugar de nos voltarmos contra o cuidado para buscarmos os espaços destrutivos de poder, talvez seja mais razoável considerar a possibilidade de redimensioná-lo. O que não significa aceitar passivamente a instrumentalização estatal, que atribui às mulheres a tarefa de administradoras bem adequadas do colapso, e sim pensar esta condição no sentido de romper com as aspirações idealistas que giraram em falso na modernidade – nos termos da identidade com esta forma social e dos seus mecanismos de destruição – e assim, quem sabe, limpar o campo de visão, de forma a abrir caminho para que possam ser ao menos experimentados novos campos de resistências, preocupados em tornar o cuidado com a vida um critério horizontal.
REFERÊNCIAS
CORRÊA, Ana Elisa; ANDRADE, Ana Carolina Marra. O trabalho doméstico feminino no patriarcado produtor de mercadorias: aproximações e distanciamentos entre Silvia Federici e Roswitha Scholz. IN: CORREA, A. E; SILVA, L. H; REDONDO, M. (Orgs.) Prosas feministas em tempos de pandemia (ebook). Uberlândia,MG: Coleção marxismo21, 2023.Disponível em: https://marxismo21.org/prosas-feministas-em-tempos-de-pandemia/
MENEGAT, Marildo. A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe: o giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto. Rio de Janeiro: Editora Consequência, 2019.
MIES, Maria.; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1993.
NUNES, Scheilla. Mulheres dos Escombros: a condição das mulheres periféricas em tempos de catástrofes. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2019.
SCHOLZ, Roswitha. O valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos. Novos Estudos – CEBRAP, n 45, pp. 15-36, jul.1996.
_________________. Escisión del valor, género y crisis del capitalismo. Entrevista com Roswitha Scholz, [Entrevista cedida a] Clara Navarro Ruiz. Constelaciones, revista de teoria crítica, Madrid, n 8/9, pp. 475-502, 2017.
Notas
(3) O levantamento faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do g1 com o Núcleo de Estudos da violência da USP (NEV-USP) e o FBSP. Nesta quarta (8), é celebrado o Dia Internacional da Mulher. https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2023/03/08/brasil-bate-recorde-de-feminicidios-em-2022-com-uma-mulher-morta-a-cada-6-horas.ghtml
(6) 3 a cada 10 brasileiras já sofreram violência doméstica / Fonte: Agência Senado
(8) Há uma versão em alemão deste texto com pequenas alterações e adaptações publicada aqui: https://www.iz3w.org/artikel/patriarchale-gewalt-geschlechtergerechtigkeit-reformen-wirtschaft