Andreas Urban

Curso intensivo de apologia da medicina moderna

Impressões de uma visita à "Torre dos Loucos" de Viena

Recentemente tive o prazer de visitar pela primeira vez a chamada "Narrenturm" (Torre dos Loucos) em Viena. É um edifício em forma de torre do Antigo Hospital Geral (assim chamado simplesmente pelos vienenses), no qual está a maior colecção de preparados de anatomia patológica do mundo. Integra actualmente cerca de 45.000 objectos tanto preparações húmidas (órgãos conservados em formaldeído) e preparações secas (principalmente ossos e esqueletos), como também as chamadas moldagens (figuras fiéis na forma e na cor de partes do corpo doente, em cera ou parafina, que nos cursos de medicina serviam como material visual, antes da fotografia). Esta colecção anatómica é decididamente merecedora de ser vista, e sobretudo não se deve dispensar uma visita guiada, pois aí como a seguir se verá a pessoa é confrontada com uma continuidade maciça e quase ininterrupta dos mais antigos e cruéis ideologemas que a medicina moderna e a ciência como um todo servem, como base de legitimação social, desde o seu nascimento na fase inicial da modernidade capitalista, e que marcaram duradouramente o auto-entendimento de gerações de médicos (1). Um verdadeiro curso intensivo de apologia da medicina moderna é o que se oferece na "Torre dos Loucos"

I.

O guia da minha visita ao museu de anatomia patológica (provavelmente igual aos outros) (2) foi um jovem estudante de medicina do sexto semestre, que demonstrou de modo profundamente chocante como a propagação dos mitos sobre a história e o "progresso" da medicina moderna continua, ainda hoje, a fazer parte da formação básica do pessoal médico praticamente nada perturbada com as descobertas das pesquisas históricas das últimas décadas sobre a história e os fundamentos da ciência moderna, como as de Michel Foucault ou vários outros, especialmente cientistas feministas. Começou logo com um resumo introdutório sobre a história da "Torre dos Loucos", que já dava a entender como seria o resto da visita (3). A "Narrenturm", assim começou o jovem estudante de medicina a sua exposição, foi concluída em 1784, no reinado de José II filho da famosa arquiduquesa Maria Teresa,  imperador do Sacro Império Romano-Germânico de 1765 a 1790 e um dos reformadores mais populares da história da Áustria e seria a primeira instituição na Europa a ser estabelecida exclusivamente para o tratamento de doentes mentais (depois disso, serviu principalmente como residência de pessoal médico, antes de o museu ter sido finalmente estabelecido na década de 1970). A "Torre dos Loucos" (daí, provavelmente, o nome) também representou uma das primeiras, se não a primeira, psiquiatria no mundo um desenvolvimento que, de acordo com o guia, marcou um importante ponto de viragem histórico, no sentido de que os doentes mentais teriam deixado de ser considerados possuídos pelos demónios ou pelo diabo, como antes, e teriam sido reconhecidos, pela primeira vez, como "doentes" necessitados de tratamento; uma conquista da ciência moderna emergente, que teria acabado com a exclusão e estigmatização dos doentes mentais, há muito predominante.

Ora já há mais de cinquenta anos que tais mitos de progresso grosseiramente parciais sobre o surgimento da psiquiatria foram reduzidos de forma bastante impressionante e materialmente rica à sua falsidade histórica por cientistas sociais como o famoso filósofo e sociólogo francês Michel Foucault. Mas isso, obviamente, não altera o facto de esses mitos poderem continuar a reproduzir-se, como se nunca tivessem existido trabalhos como os de Foucault especial e justamente nas disciplinas científicas com as quais estas análises críticas estavam primeiramente relacionadas, e que até hoje se têm revelado francamente resistentes contra pontos de vista alternativos, ou apenas algo mais reflectidos, sobre o seu campo de actividade. Em Foucault, por exemplo, o acto histórico fundador da psiquiatria não é de modo nenhum o descobrimento da doença mental, como sofrimento a necessitar de ser tratado, ou seja, a percepção de que os "doentes mentais" são pessoas a sofrer, que precisam de tratamento médico, mas sim a "invenção" da "doença mental", que representou ao mesmo tempo a produção histórica e o tiro de partida da psiquiatria moderna. Simplificando: antes da psiquiatria, também não havia "doença mental". O que havia era, por exemplo, a possessão mencionada pelo guia, mas essa caracterizava-se pelo facto de não ser (ainda) considerada uma "doença mental". O "ponto zero da história da loucura" (Foucault 2005a: 7) não está, portanto, na sua descoberta pela psiquiatria, mas na separação entre "loucos" e "normais". E, segundo Foucault, este é o produto de uma social "estrutura da experiência da loucura" (Foucault 2013/1961: 13), que emerge apenas na era pré-moderna e constitui a loucura como doença, apenas ela tornando possível "a doença mental nos significados que hoje lhe damos" "(ibid.: 528). O desenvolvimento deste novo discurso da "doença mental", com o qual a psiquiatria moderna começou, coincide historicamente, não por acaso, com o "nascimento da clínica" (Foucault 1973/1963), que Foucault examinou noutro lugar como paradigma da medicina moderna em geral, e que, do mesmo modo que no caso da "doença mental", se baseia num entendimento completamente novo da doença, desenvolvido mais ou menos ao mesmo tempo, no final do século XVIII. Se a doença até então quase tinha o estatuto de uma grandeza ontológica, que existe independentemente da pessoa afectada e pode ser reconhecida abstraindo desta, a partir desse ponto entram no campo de visão o organismo humano e o seu desvio doentio da norma. Assim, a "medicina das doenças" clássica (ibid.: 204) cede à moderna "medicina dos órgãos doentes" (ibid., 203) a doença era agora "o próprio corpo tornado doente" (ibid.: 150). Foucault também identifica a anatomia, igualmente estabelecida neste momento, como essencial para a nova ordem médica do conhecimento e do olhar, com a qual pode agora ser entendido o fundamento histórico de toda uma colecção de anatomia patológica como a da "Torre dos Loucos". Em vez de observar de fora, e assim identificar, ordenar e classificar as doenças, a visão médica penetra agora no corpo, no sentido mais verdadeiro da palavra. A anatomia possibilitou, pela primeira vez, olhar para dentro do corpo, para obter uma imagem do interior do ser humano e localizar as doenças em mudanças anormais dos órgãos. O estudo do corpo humano morto tornou-se assim a base do conhecimento médico moderno, que é paradoxalmente baseado no exacto oposto daquilo para que ele está direcionado, como pretendem sobretudo os/as médicos/as ou seja, não é baseado na vida, nem na sua manutenção e segurança, mas na sua adversária absoluta: a morte. "Durante séculos, a medicina procurou as relações exactas entre doença e vida. Apenas a intervenção de um terceiro poderia dar forma ao seu encontro, à sua coexistência, às suas interferências, que correspondesse tanto à possibilidade conceptual como à plenitude do percebido; esse terceiro é a morte "(ibid., 172). De acordo com Foucault (ibid., 159s.), o "conhecimento da vida" tem a sua origem na destruição da vida, na sua antítese extrema." Só assim o corpo humano se tornou realmente acessível ao olhar médico e pôde ser por ele analisado. Portanto, a base da psiquiatria é, em princípio, a mesma da medicina moderna como um todo: Se o "novo espírito de medicina" consistia na "reorganização epistemológica da doença" (ibid.), que agora descrevia o desvio patológico de um corpo em relação a uma norma definida, também no caso da psiquiatria a reorganização da "demência" localizou esta como uma "doença mental" no próprio paciente, que exigia intervenção médica. (4)

II.

Além dessa imagem simplesmente imprecisa e grosseiramente distorcida das origens históricas e dos fundamentos da psiquiatria (e da medicina em geral), que o jovem guia estudante traça na sua exposição através da colecção anatómica, agora também e por maioria de razão há a equiparação irreflectida e unilateral do surgimento da psiquiatria com um progresso social, no sentido de um tratamento mais humano das "doenças mentais", que no fundo só pode ser conseguida com uma distorção grosseiramente negligente dos factos históricos. Vendo com isenção, é exactamente o oposto que é historicamente verdadeiro: o "nascimento" da psiquiatria significou, em primeiro lugar, uma repressão, antes inteiramente desconhecida, das pessoas identificadas como doentes mentais". Não que o tratamento social dos possessos ou outros "loucos" tenha sido amável nos tempos pré-modernos, mas, como mostra Foucault (2013/1961: 72), até ao Renascimento limitava-se simplesmente a afastar  essas pessoas das cidades. Na era moderna emergente, e com o surgimento dos manicómios e dos psiquiatras, pelo contrário, os "loucos" e os "doentes mentais" deveriam ser internados. De início, o internamento não ocorreu isoladamente de outros "improdutivos" e "supérfluos", que o capitalismo inicial produziu em grande número na sua fase de implantação os desempregados, os pobres, os vagabundos, os prisioneiros, os idosos, etc. e todos juntos foram submetidos a um regime de disciplinamento físico e moral, em casas de trabalho, reformatórios e similares. O propósito do internamento dos "doentes mentais" não era de modo nenhum o tratamento médico, mas um tratamento de educação moral. "O internamento", escreve Foucault, "é destinado à melhoria, e se lhe é colocado um objectivo, não é a cura, mas sim uma espécie de arrependimento" (ibid.: 105). Isso mudou apenas no decurso do século XVIII (ou seja, no tempo da construção da Narrenturm), quando os loucos foram isolados de outros internados e "a doença foi separada da pobreza e de todas essas figuras miseráveis" (ibid.: 434) ). (5) Só aqui está o limiar histórico entre "loucura" e "doença mental" e só neste contexto o espaço de internamento se torna finalmente um lugar de "terapia". Esta terapia consiste por sua vez, como diz Foucault em suas aulas sobre "O Poder Psiquiátrico" (Foucault 2005b), em primeira linha, numa densa rede de práticas de controle, normalização e disciplinamento, destinadas a curar os internados. Isso foi até à brutal submissão a equipamentos semelhantes aos instrumentos medievais de tortura, à administração de drogas e a várias formas de punição. A lógica que Foucault evidencia em sua análise e que determinou decisivamente a prática psiquiátrica em particular (mas não só) (6) nos seus começos, corresponde, portanto, a um regime da razão ou da não-loucura sobre a loucura. Para ser curado, o louco deve ser disciplinado, até que a loucura seja banida do seu corpo e ele/ela esteja pronto/a para reconhecer a realidade representada pelo médico. O conhecimento médico ou patológico, observa também Foucault, praticamente não foi usado neste tratamento de "doentes mentais", foi-o apenas para a determinação da doença mental e para a separação entre "loucos" e "não loucos". "[A] atividade psiquiátrica", sintetiza Foucault (ibid:. 387), "não [requer] nenhum diagnóstico diferencial, excepto como justificação de segundo grau, que é de certo modo redundante." (7)

III.

O absurdo e a crueldade (também do ponto de vista inerente à medicina) de muitos dos métodos de tratamento psiquiátrico utilizados naquela época são certamente discutidos durante a visita guiada à "Torre dos Loucos", mas servem afinal apenas como ponto de demarcação para uma história médica de progresso desde então. Aqui, por assim dizer, é utilizada uma estratégia para lidar com os factos históricos, que Howard Zinn (2007: 15) considera, com bastante razão, em relação à historiografia académica, ser em princípio a mais desonesta de todas (mesmo pior do que uma posição afirmativa aberta): As atrocidades sociais encontradas não são simplesmente varridas para debaixo do tapete, mas admitidas e mencionadas. No entanto, não devem mudar o quadro geral no seu conjunto, que deve ser classificado como positivo. Em vez disso, devem ser consideradas como erros lamentáveis, ou mesmo etapas necessárias do progresso civilizatório. Por exemplo, o guia diz-nos que a teoria prevalecente na psiquiatria da época, e que determina o tratamento, foi a chamada teoria dos quatro humores. (8) Supunha-se que o ser humano consiste principalmente em quatro humores que, numa pessoa saudável, se encontram numa relação equilibrada: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra. Em pessoas tristes e deprimidas, por exemplo, foi admitido um excesso de bílis negra, contra o qual foram prescritas terapias de vómito (os pacientes deveriam como que vomitar a bílis negra). No caso de pessoas agressivas, no entanto, suspeitava-se que tivessem demasiado sangue. Isso seria combatido com uma sangria. Na época, tais estratégias de tratamento poderiam ter reivindicado uma certa evidência empírica. Assim, por exemplo, ocorria imediatamente uma melhoria no estado e no comportamento, após o/a paciente ter sido submetido/a a uma sangria, mas isso devia-se à fadiga e exaustão causadas pela perda de sangue, o que, no entanto, foi confundido pelos médicos com a eficácia do tratamento e, portanto, com a cura da doença. Como resultado, os pacientes muitas vezes recaíam logo após o tratamento "bem sucedido" e o abandono do asilo, depois de os seus níveis de sangue se restabelecerem passado algum tempo e o seu temperamento voltar ao que era anteriormente. Os pacientes geralmente não sobreviviam aos tratamentos repetidos, por um lado, devido ao risco muito elevado de infecção e ás grandes dificuldades práticas para interromper a sangria no tempo, por outro lado, e sobretudo, também devido a uma "teoria" então prevalecente, segundo a qual o corpo humano conteria cerca de 24 litros de sangue (cerca de quatro vezes a quantidade real). Por conseguinte, os pacientes iam sangrando generosamente em tal procedimento, até cinco ou seis litros, com o efeito de muitos deles de facto morrerem de hemorragia (a menos que tivessem morrido, de qualquer modo, de outras complicações do tratamento, como as mencionadas acima). De facto, um verdadeiro passo em frente no tratamento médico "humano" de "doentes mentais" quase a matança negligente de pacientes, como estratégia de tratamento preferencial. (9) Mas é justamente este "tratamento" desumano e negligente do/a paciente que é agora revirado pelo jovem representante da corporação médica, de repente e sem pestanejar, como sendo a base necessária dos padrões médicos "progressistas" de hoje. Naquela época, a medicina simplesmente ainda não estava muito avançada e sabia muito pouco sobre o corpo humano. E, justamente nesses primeiros dias da medicina, cujas práticas podem parecer-nos hoje medievais e muitas vezes bárbaras ou anti-éticas, foi elaborada uma enorme quantidade de conhecimentos, sem os quais o progresso da medicina de que hoje desfrutamos não teria sido possível, ou só teria sido possível muito mais tarde. Para os/as pacientes de então foi certamente mau, mas nesse tempo simplesmente não havia quaisquer possibilidades médicas melhores. A estupidez e a ignorância habituais do sujeito capitalista burguês, nos seus hinos de louvor ao progresso social, deliberadamente escondem as inúmeras vítimas em vidas humanas que esse "progresso" custou e custa até hoje, ou estão inclinadas a considerá-las um preço necessário e relativamente baixo. Quase apetece perguntar ao jovem médico qual a sua posição sobre os crimes do Dr. Mengele e de outros médicos nazis, que são considerados hoje na ciência e na sociedade como o absolutamente mau, ou como cientistas iludidos por uma ideologia desumana, embora eles não tenham feito nada no fundo essencialmente diferente de todos os pioneiros da medicina moderna antes deles, que, no entanto, são geralmente celebrados pelas mesmas pessoas como grandes homens da ciência: a saber, fazer experiências num material humano que lhes foi entregue, no interesse de um objectivo científico e social mais elevado, sem consideração pela vida humana ou por outros danos causados, que foram considerados aceitáveis. As descobertas de Foucault sobre a lógica interna da medicina moderna podem ser perfeitamente tomadas ao pé da letra, e aplicam-se aos fundadores da medicina, não menos do que aos médicos nazis banidos do panteão da medicina moderna: A origem do "conhecimento da vida" da medicina reside na sua destruição, o que significa em linguagem simples: a morte de pessoas é sempre a necessária parte integrante e base do progresso médico possivelmente pelas mãos dos próprios médicos. E isso provavelmente continuará a ser assim mesmo que apenas como ultima ratio enquanto esse "progresso" for tanto um fim em si como o "progresso social" de uma sociedade acorrentada ao movimento de fim em si do capital.

IV.

A apologia da medicina moderna sob a forma de justificação de práticas negligentes ou abertamente desumanas na fase inicial da medicina, como base do "progresso" médico atravessa como um fio condutor toda a visita ao museu de anatomia patológica da "Torre dos Loucos". Assim, por exemplo, o grupo faz uma paragem na frente de uma vitrine com instrumentos médicos antigos. O guia apresenta instrumentos anteriormente utilizados na operação às cataratas. A catarata é uma opacidade da lente do olho, que afecta praticamente todas as pessoas durante a vida, desde que vivam o tempo suficiente. O olho humano, explica o jovem guia, não foi feito para uma vida tão longa como é possível hoje. Até há não muito tempo, no final do século XIX, a expectativa de vida média ainda era de cerca de 40 anos. Assim, com a expectativa de vida enormemente aumentada, todo ser humano, quando envelhece, é afectado por essa nebulosidade da lente, que, se não tratada, poderá praticamente levar à cegueira. Correspondentemente, a cirurgia das cataratas é das operações mais comuns hoje. A base para a operação já foi estabelecida muito cedo, através da remoção da lente. (10) No processo, uma agulha era introduzida no globo ocular e a lente nublada empurrada para o vítreo, para que o/a paciente pudesse ver melhor. Um grande problema com este método de tratamento, porém, era que ele estava frequentemente associado a complicações, especialmente infecções, que teriam matado cerca de 95 por cento dos pacientes. No entanto, como o guia também informou, isso obviamente não impediu gerações de médicos, pela ganância do lucro, e conhecendo o elevado risco da operação, de continuarem por todo o país um grande número de intervenções na população desavisada. Os médicos que faziam a intervenção desapareciam sempre rapidamente, para não serem apanhados quando, depois de uma melhoria temporária da vista, a maioria dos seus pacientes morriam com infecções. (11)

O que aqui poderia lançar um lampejo de desconfiança sobre a prática dos médicos desde o início da modernidade até hoje (porque, até hoje, a medicina é uma coisa acima de tudo: um negócio) mais uma vez serve agora, na palestra do jovem estudante de medicina, para justificar tais práticas no interesse do progresso médico. Pois o princípio da actual cirurgia das cataratas, que agora praticamente não será perigosa, é no essencial exactamente o mesmo que era, a saber, a remoção da lente turva. O que agora é amplamente utilizado, já não constituindo um problema médico, teria sido então como que preparado, e se não fosse o método desse tempo com todos os problemas que lhe estavam associados (e todas as vidas humanas que custou) talvez não pudesse ter sido desenvolvido o método cirúrgico que é tão bem sucedido hoje, ou talvez pudesse sê-lo apenas muito mais tarde. Em geral, dizem-nos, o progresso médico depende da maneira de ver: podemos achar o referido método hoje incrivelmente antiquado, e talvez até brutal e anti-ético, em vista do resultado muitas vezes fatal, mas possivelmente as gerações posteriores poderão dizer o mesmo sobre os procedimentos médicos usados hoje. Aqui, por assim dizer, a ignorância da história combina com o relativismo pós-moderno, em que se pretende que a matança de pessoas, na verdade quase deliberada, por médicos sem escrúpulos, como no caso do referido método, seria uma questão de ponto de vista. (12)

V.

Não admira que tal glorificação da medicina moderna e do seu progresso não seja abalada nem mesmo pela potencial visão crítica de que essa medicina, na verdade, desde que existe, tem mais a ver em grande parte com o tratamento de doenças directamente condicionadas pela forma capitalista da sociedade e pelos seus desaforos que afectam as pessoas. Por exemplo, podem ser vistos na "Torre dos Loucos" os esqueletos das pessoas raquíticas do século XIX e início do século XX. O raquitismo é uma doença causada pela deficiência crónica de vitamina D, devida especialmente à falta de luz solar. A vitamina D é importante para o corpo produzir cálcio e fosfato, que por sua vez são responsáveis pelo crescimento e estabilidade dos ossos. As consequências do raquitismo são, portanto, deformações dos ossos e do sistema locomotor. Como se sabe, o raquitismo também foi anteriormente designado por "doença inglesa", porque apareceu pela primeira vez na Inglaterra no início da industrialização. Naquela época, tinham sido desenvolvidas em larga escala minas de carvão e outras, onde as pessoas tinham que trabalhar quase sempre no subsolo. As crianças eram particularmente solicitadas, por causa do seu pequeno tamanho, mas eram particularmente sensíveis à deficiência crónica de sol, porque ainda estavam em crescimento, e por isso desenvolviam deformidades graves. Muitos pais, continua o guia estudante, escondiam então os filhos deformados na cave por vergonha, o que ainda agravava a doença, pois as crianças continuavam expostos à causa de seu sofrimento, justamente a falta de luz solar (as deformações poderiam regredir, pelo menos parcialmente, dependendo da gravidade do raquitismo, com a exposição à luz solar). Ao indivíduo crítico da sociedade, perante tais factos históricos, pode certamente pôr-se a questão de saber como é que realmente constitui um "progresso" médico o tratamento, sem dúvida sempre melhor e que hoje cada vez mais é também a prevenção (dentro de limites estreitos), de doenças e sofrimentos, que talvez não existissem nesta forma ou nesta extensão, se a estrutura social subjacente à medicina moderna fosse outra. Não seria preciso sequer pensar em doenças tão especiais como o raquitismo (só o menciono aqui com tanto destaque porque o guia  o citou) (13), mas teria de se colocar também, num plano muito mais geral, a problemática das epidemias que afectam toda a população, criada pelo capitalismo, especialmente durante a industrialização, através de uma urbanização progressiva e da simultânea redução à miséria de grandes partes da população, epidemias cujo controle ainda hoje é uma das maiores conquistas que a medicina reivindica. Foucault, em sua história da medicina moderna, assinala com razão que, no contexto da luta e pesquisa de epidemias como resultado das devastadoras condições sociais dos séculos XVIII e XIX, a medicina tornou-se rapidamente uma espécie de polícia da saúde, numa quase individualização do problema, de forma crescente e agora quase de assédio, com conselhos obrigatórios sobre "estilo de vida saudável" e como se fosse "professora para as relações físicas e morais entre o indivíduo e a sua sociedade" (Foucault 1973/1963: 52) . Sob as premissas de uma forma de sociedade e de vida maciçamente prejudicial para a maioria da população mundial, que, além disso, dependendo do clima económico geral, tende repetidamente (como é o caso actualmente) a lançar na miséria regiões mundiais inteiras, a despejar em favelas milhões de pessoas das cidades cada vez mais a rebentar pelas costuras (ver Davis, 2007), e assim, por si só, a dar origem ao risco de epidemias e pandemias, a medicina, no interesse da "saúde pública", tem de tornar-se uma "tarefa nacional" (Foucault 1973/1963: 37) e um instrumento central da política de assistência pública. Não em último lugar, isso também explica por que a crença no progresso da medicina moderna é tão inabalável até hoje, pois a medicina está fundamentalmente sujeita à mesma fetichização que a própria forma social capitalista. Se o papel e a função da medicina, perante os potenciais destrutivos do capitalismo, é tão importante e indispensável na imanência do sistema, tanto individualmente como no plano da "saúde pública", porque esses potenciais destrutivos não podem ser fundamental e criticamente questionados, sendo, na melhor das hipóteses, (14) predominantemente naturalizados como fatídicos ou como catástrofes vindas do exterior como há-de então este papel social da medicina poder ser questionado criticamente? Quem se atrever tem de parecer francamente louco.

VI.

A visita guiada à "Torre dos Loucos" revelou até agora alguns dos mais centrais mitos e ideologias de justificação da medicina moderna, que obviamente persistiram até hoje: acima de tudo, a crença inabalável no progresso social que o desenvolvimento da medicina moderna fundamentalmente significaria, além da suposição profundamente cínica de que até mesmo as práticas mais desumanas e cruéis na fase de formação da medicina moderna com todas as críticas devidas representam a base necessária dos métodos e padrões médicos actualmente existentes. É claro que a continuidade quase ininterrupta desses mitos não pode realmente ser uma surpresa: enquanto o "progresso social" for concebido tão à maneira de um fim em si mesmo como a dinâmica de valorização do capital que lhe subjaz, e enquanto for mais ou menos auto-evidente que esse progresso sempre exige também sacrifícios (especialmente em vidas humanas, mas que, para satisfação da própria consciência, são o mais possível mantidos em silêncio ou então externalizados), enquanto assim for, também terá de continuar a apologia da medicina moderna, cuja base de conhecimento consiste, em última instância, na destruição da vida humana.

O que falta na série de mitos e ideologias médicas presentes na "Torre dos Loucos" é a demarcação da disciplina médica relativamente à caça às bruxas. Mas também essa falta pode ser suprida: o passeio pela "Torre dos Loucos" pára na frente de uma vitrine que contém, entre outros, uma estrutura semelhante a um balão. Os visitantes devem primeiro adivinhar do que se trata. Acontece que a estrutura é um enorme quisto dum ovário (uma bolsa cheia de líquido no ovário). O guia explica que a maioria das mulheres tem um quisto no ovário pelo menos uma vez na vida, mas estes geralmente não passam de alguns centímetros e acabarão por se desfazer. Em casos excepcionais, no entanto, um quisto, como o que está em exibição, também pode assumir dimensões maiores, desde que não tenha sido removido cirurgicamente de antemão (neste caso concreto supostamente 30 quilos). Antes de a medicina estar tão desenvolvida como hoje, um quisto tão grande poderia facilmente ser confundido com uma gravidez. No entanto, este diagnóstico era sustentável no máximo nove meses. Depois disso, podia acontecer que as mulheres afectadas e agora vem a coisa fossem estigmatizadas como bruxas, devido à então prevalecente falta de melhores explicações científicas, dado que porque eram bruxas poderiam estar mais de nove meses grávidas. Também aqui o padrão é o habitual: tal como a repressão dos "doentes mentais" e a matança negligente de pacientes, a caça às bruxas é simples e habilmente deslocada para um passado remoto, obscuro e bárbaro, embora na verdade, como há muito foi demonstrado por cientistas e teóricas feministas como Silvia Bovenschen (1977), Roswitha Scholz (1992) ou Silvia Federici (2012/2004), ela seja inseparável da história da ciência moderna e da própria medicina. Como é sabido, a caça às bruxas pode ser interpretada, com Roswitha Scholz, essencialmente como "crime fundador do patriarcado produtor de mercadorias" (Bareuther 2014: 36), através do qual, no início do capitalismo, as mulheres foram domesticadas e relegadas a uma existência tacanha, no outro lado, obscuro e marginalizado, da forma do valor. Então, justamente na figura de bruxas e em contraste gritante com a Idade Média, elas foram menosprezadas como seres naturais, oprimidas e perseguidas, porque, nas palavras de Scholz, a mulher manteria "uma relação 'simpática' com a natureza; de certo modo, ela fazia as vezes de natureza. Para que a racionalidade do homem moderno pudesse impor-se, na esteira do legado antigo e para além dele, era necessário portanto literalmente eliminar a mulher e tudo o que ela representava (o sensível, o difuso, o incalculável, o contingente, etc.)." (Scholz 1992 ). A caça às bruxas, portanto, não consistiu apenas em que o conhecimento médico empírico que as mulheres há muito tempo tinham tradicionalmente, como curandeiras, parteiras, etc., "tivesse de ser brutalmente expropriado pelos homens, pelo contrário, o que estava em jogo era um projecto fundamentalmente diferente de relacionamento com a natureza" ( ibid.). Este novo relacionamento com a natureza, especificamente moderno, posto em marcha designadamente pela caça às bruxas, reflectiu-se especialmente nas ciências naturais emergentes, numa lógica androcêntrica, ainda hoje válida, de subjugação e dominação da natureza, que se estende até à imagem social e à estrutura de personalidade do "cientista" moderno (o cientista deve afastar de si, por exemplo na experimentação científica, praticamente todas as características e particularidades individuais conotadas como "femininas" e disciplinar-se como investigador frio, racional e imparcial, quase como um "homem"; ver também Ortlieb 1998). (15) A caça às bruxas não pode, portanto, ser deslocada para a "obscura Idade Média", que finalmente teria sido ultrapassada pela ciência moderna, pelo contrário, ela marcou o fundamento histórico sobre o qual a ciência moderna em geral pôde tomar forma e começar a sua marcha triunfal na sociedade. Com o apagar da caça às bruxas da sua própria história, a apologia da medicina moderna está praticamente completa.

VII.

Assim, a visita à "Torre dos Loucos" de Viena foi extremamente esclarecedora, especialmente em termos de crítica da ideologia. Os mitos mais antigos e mais grosseiros da medicina moderna, servidos forma tão concentrada e tão quentinhos, numa visita realmente curta de menos de 45 minutos, é bastante impressionante, mesmo para críticos sociais já habituados a tudo. A crítica da apologia da medicina moderna apresentada aqui, de resto, o que talvez deva ser enfatizado neste ponto, a concluir, para não deixar dúvidas não deve ser mal interpretada como uma mera crítica da medicina convencional, defendendo em vez dela formas de medicina alternativa, que possivelmente considerassem os seres humanos de maneira "holística" e, portanto, pudessem ser consideradas uma melhor alternativa à actual medicina high-tech, com a sua história questionável. Não em último lugar, os inúmeros e frequentemente esotéricos métodos de tratamento alternativo surgidos nas últimas décadas pertencem ao mesmo continuum histórico que a moderna medicina (convencional) criticada neste texto. A medicina alternativa, portanto, constitui na melhor das hipóteses a outra face da mesma medalha, e está explicitamente incluída na crítica. (16)

Tão pouco decorre da crítica do "progresso" médico que todos os métodos de tratamento que a medicina moderna inventou devam ser descartados em bloco, juntamente com o capitalismo em que ela se desenvolveu. Muitos deles devem, sem dúvida, ser considerados como um avanço essencial e irrenunciável sobre as sociedades pré-modernas seja no que respeita ao diagnóstico e tratamento de doenças, ou às possibilidades da cirurgia moderna, das próteses (17), etc. embora não no sentido de uma ontologia do progresso burguesa. Uma medicina que consegue realmente curar a doença deverá ser sempre considerada melhor do que aquela cujo tratamento não só é ineficaz, mas também mata o paciente com alta probabilidade. (18) No caso de certas conquistas da medicina moderna, portanto, pretenderemos renunciar tão pouco a elas numa sociedade pós-capitalista como a algumas outras tecnologias desenvolvidas no capitalismo e até agora presas no destrutivo movimento de fim em si do capital (seja o motor de combustão interna ou a Internet). A alternativa a isso seria voltar a morrer no futuro com uma inflamação do apêndice e regressar a uma expectativa de vida de não mais que 30 ou 40 anos (uma perspectiva que, de resto, nos ameaça, se a superação emancipatória do capitalismo de crise cada vez maior não for conseguida no futuro previsível). É claro que não se pode prever hoje como vai ser a medicina do futuro pós-capitalista. Mas a mudança pode ser mais abrangente do que actualmente podemos imaginar. Pois, sem dúvida, com o capitalismo também serão ultrapassadas as concepções de "doença" constitutivamente subjacentes à medicina moderna  em certo sentido, a "forma de pensamento" da medicina moderna e com elas o seu entendimento do corpo, que provavelmente serão responsáveis por muitas das implicações negativas da medicina moderna criticadas neste texto. Assim, por exemplo, a abstração tacanha das causas sociais de muitas doenças e sofrimentos que a medicina moderna tem de tratar, provavelmente só é possível com um entendimento da doença que a concebe como "o próprio corpo tornado doente" (Foucault). Pois isso, no fundo, só é possível se a "doença" significar o desvio de um corpo da norma. Somente com tal concepção de "doença", que é uma conquista histórica da modernidade capitalista e completamente diferente da anterior definição de doença, se abre a porta para a individualização das doenças socialmente causadas. Provavelmente mas isso ainda teria de ser primeiro objecto de uma análise separada, mais detalhada é também aí que se apoia directamente a ilusão de viabilidade da biomedicina, hoje francamente levada ao extremo, porque só quando o corpo é o verdadeiro problema surge também a possibilidade de pensar em resolver o "problema" prioritariamente no corpo, e fazer do corpo (individual) o objecto da configuração e da optimização médicas (19), ou então como recentemente os fanáticos do transumanismo pretender como que abandoná-lo completamente e quase renunciar à existência corporal (ver Meyer 2016). Algumas biomedicinas, enquanto isso, até a morte assumem eliminar medicamente do mundo (por exemplo, Shostak 2002). Deste ponto de vista, não está excluído que alguns métodos e tecnologias de tratamento médico não sobrevivam à abolição do capitalismo por exemplo, a engenharia genética, que a meu ver incorpora como nenhuma outra esse fetiche da viabilidade biomédica. Mas isso, como eu disse, tem de ser o futuro a mostrar, e não pode ser determinado de antemão.

 

Para quem o mero confronto com a apologia da medicina moderna ainda é pouco: também os/as fãs da criminologia e os/as criminologistas amadores/as vêm à "Torre dos Loucos" por sua conta. Numa zona estão guardados crânios, um dos quais está coberto de furos bem à vista. Os/as visitantes podem pôr à prova o apuramento dos seus dotes de criminalista e adivinhar o que aconteceu com o ex-portador do crânio. A solução: o pobre homem foi atingido no crânio pelo seu companheiro de montanha, com uma picareta de gelo. Na verdade, é provável que tenha sido um crime passional, porque o crânio tem um total de 14 buracos e fendas, o que permite concluir que o assassino golpeou com grande emoção a sua vítima, de tal modo que, com o tempo, também terá perdido a força, pois alguns dos golpes já não penetraram completamente no crânio.

E claro que também não se pode esquecer uma coisa: com uma visita guiada à colecção anatómica também ficamos, afinal, a saber que a "Torre dos Loucos" dado o "conhecimento" médico que aí é divulgado ainda hoje faz plena justiça ao nome que tem.

 

 

Bibliografia

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Zegers, Richard H. C. (2005): The eyes of Johann Sebastian Bach [O olhos de Johann Sebastian Bach]. In: Archives of Ophthalmology 123(10), p. 1427-1430.

Zinn, Howard (2007): Eine Geschichte des amerikanischen Volkes [História do  povo americano]. Berlin: Schwarzerfreitag.

 

 

 

(1) Se, de seguida, o género gramatical masculino é usado mais frequentemente, isso não aponta para um uso inconsistente da ortografia sensível ao género, mas simplesmente reflecte o facto de a história da medicina moderna e da ciência como um todo ter sido principalmente protagonizada e promovida por homens. O androcentrismo da medicina moderna será discutido no decurso do texto.

(2) A apresentação do guia produziu uma impressão muito bem ensaiada. É provável que os elementos essenciais da visita guiada ao museu sejam dados previamente, tendo o guia mais ou menos liberdade para os glosar com os visitantes. Em qualquer caso, deve assumir-se que o guia da visita à colecção anatómica não foi uma "anomalia" particularmente impressionante, mas sim um caso representativo.

(3) A história da "Narrenturm" e a da colecção de anatomia patológica podem ser lidas com mais detalhe no site do Museu de História Natural, ver http://www.nhm-wien.ac.at/forschung/anthropologie/pathologisch-anatomische_sammlung_im_narrenturm.

(4) A obra de Foucault no seu conjunto, incluindo neste contexto o seu mais famoso estudo "Vigiar e punir" (Foucault 1994/1975), pode ser entendida como a reconstrução de um processo histórico especificamente moderno, em que o corpo humano se transforma sucessivamente num objecto do ajustamento, normalização e disciplinamento social. O corpo é, por assim dizer, descoberto num determinado momento como objecto social e científico em que, como Foucault descreve mais detalhadamente numa sua obra posterior sobre o chamado "biopoder", recai a regulação optimizadora do "corpo da sociedade" (Foucault 1983/1976: 167) para a agenda social, e que agora precisa de "mecanismos contínuos, reguladores e correctivos" (ibid.: 171), através dos quais os sujeitos ou os seus corpos são, por assim dizer, ordenados em torno de uma norma social, para os "organizar num domínio de valor e utilidade" (ibid., 171s.). Do ponto de vista da crítica da dissociação-valor, seria naturalmente necessário juntar o que Foucault nunca tomou em consideração sistematicamente, a saber, que este "corpo social" é a formação social capitalista que está a desenvolver-se nesse momento, e a "norma", em torno da qual os corpos são "ordenados", é a "norma" do capital e do trabalho abstracto. A esta luz, no entanto, parece-me ainda mais claramente que o fundamento da medicina moderna também deve ser visto numa concepção historicamente nova de "doença", nascida com o capitalismo, que consiste principalmente no desvio de um corpo da norma. Tal como foi demonstrado por Claus Peter Ortlieb (1998) no exemplo das ciências naturais (matemáticas) e por Eske Bockelmann (2004) no nosso sentido do ritmo, também aqui teremos possivelmente de lidar com uma nova "forma de pensamento" muito específica, que mudou fundamentalmente o significado da "medicina" com a imposição do capitalismo.

(5) Isso também se enquadra na imagem que nos foi transmitida pelo guia sobre o passado histórico da "Narrenturm", dado que os edifícios em que o Hospital Geral foi fundado tinham sido anteriormente utilizados como albergue para pobres.

(6) Vejam-se, por exemplo, filmes como o lendário "Voando sobre um ninho de cucos", com Jack Nicholson, que ilustra impressionantemente como tais formas repressivas de controle e disciplina estavam na agenda psiquiátrica até bem dentro do século XX.

(7) Foucault julga ainda mais arrasadoramente a psiquiatria forense, que emerge mais tarde, no final do século XIX (ver Foucault, 2003). Segundo ele, esta apenas estava preocupada em inventar sempre novas anomalias de carácter, usando um vocabulário pseudocientífico, para estigmatizar os delinquentes como particularmente desviantes ou perversos.

(8) A teoria dos quatro humores tem as suas raízes na antiguidade (em particular, Hipócrates e Galeno, ver Mayer 2003).

(9) Admito aqui generosamente as condições em que os pacientes psiquiátricos eram "mantidos" na "Torre dos Loucos", sobre as quais o guia também fornece informações. De acordo com o guia, os excrementos dos internados eram recolhidos em grandes baldes na enfermaria, que eram esvaziados todos os dias, mas que espalhavam um cheiro insuportável, especialmente nos meses de verão, de modo que na planta da Narrenturm já estavam previstas janelas em todas as salas, para assegurar uma ventilação adequada. Contudo, isso, por sua vez, levou a um frio gelado na sala durante o inverno, que causava graves constipações e infecções pulmonares, de que um grande número de pacientes terão sido vítimas. Consequentemente, sempre houve um alto grau de rotatividade de pacientes na "Torre dos Loucos". Não será arriscado concluir, a partir dessas observações, que o internamento em psiquiatria era então praticamente equivalente a uma sentença de morte.

(10) Pode-se ver na história da medicina que o método de remoção da catarata já era aplicado na antiguidade (ver Eckart 1990: 19s.).

(11) Uma vítima proeminente dos operadores às cataratas foi Johann Sebastian Bach. Terá morrido quatro meses após duas operações às cataratas num curto espaço de tempo, sem ter recuperado das intervenções. Nos últimos tempos de vida deverá ter ficado completamente cego (ver Zegers 2005). Deste ponto de vista, a operação, para Bach, foi mesmo um duplo fiasco.

(12) Perante uma atitude assim afirmativa em relação ao "progresso" médico dado o número incontável de pessoas por este abandonadas, como que mortas à beira da estrada, ao longo do seu percurso histórico é, naturalmente, necessária também uma demarcação rigorosa das condições anteriormente prevalecentes, mesmo e justamente quando entendidas como estádio de passagem necessário para um presente melhor. Esta delimitação falha tanto mais, quanto mais negligente é a abordagem de épocas históricas que são definidas pelo seu próprio critério de tal modo seja deliberadamente ou simplesmente por estupidez que as práticas médicas problemáticas possam aparecer o mais possível longe da actualidade, quando às vezes ainda existiam há um par de séculos. Assim, o estudante de medicina apresentou com toda a seriedade os instrumentos para a referida operação às cataratas como "instrumentos medievais", quando foram usados "há 200 a 300 anos".

(13) Nem é preciso escavar no passado mais ou menos distante, com todas as chamadas "doenças da civilização" que o capitalismo hoje traz à humanidade, e cada vez mais desde viciações, obesidade patológica e diabetes, até depressões e burnout (para citar apenas algumas das que, imediatamente e com boa consciência, podem ser identificadas directamente com o modo de vida capitalista sem contar com os inúmeros feridos e mutilados permanentes em acidentes de automóvel; em relação a certos tipos de cancro particularmente frequentes, especialmente cancro do pulmão (causado pelo tabagismo, poluição por partículas, poluição atmosférica), cancro do cólon (entre outras coisas devido a má alimentação crónica e falta de exercício), eventualmente também cancro da mama (possivelmente favorecido por anos de tomada de contraceptivos hormonais), mas também outras doenças como demência (pelo menos em parte provocada por décadas de trabalho fastidioso e uma insatisfação francamente sistemática com a indústria cultural), mantém-se, em minha opinião, pelo menos a necessidade de discussão). Mas, mesmo restringindo-nos ao passado capitalista, haverá muitas ocasiões na "Torre dos Loucos" para reflectir sobre os efeitos insalubres do capitalismo no material humano a ele submetido, que a medicina moderna deveria posteriormente tratar e curar. Assim, além dos esqueletos raquíticos mencionados, na "Torre dos Loucos" também há, por exemplo, objectos (sobretudo na forma de moldagens) que ilustram muito impressionantemente os efeitos devastadores do pó de carvão nos órgãos respiratórios dos mineiros da época.

(14) Esta crítica superficial constitui o ponto de partida de programas de prevenção e promoção da saúde em políticas de saúde, que não apenas estão no essencial condenados ao fracasso, uma vez que as causas sócio-estruturais do problema permanecem intocadas, mas, além disso, também individualizam um problema socialmente condicionado, e impõem aos indivíduos isolados uma responsabilidade por algo em relação ao qual pouco podem fazer como indivíduos.

 

(15) Este androcentrismo da ciência moderna também se aplica a Foucault, amplamente citado acima. Por exemplo, em sua "História da Loucura", Foucault negligencia elaborar a tradição misógina das modernas ciências humanas emergentes, que toma figura no século XIX, , por exemplo, na histeria, considerada uma forma de loucura especificamente feminina (Honegger, 1991). De facto, em seu posterior tratado sobre a sexualidade (Foucault 1983/1976), ele dedica-se muito extensivamente à "histerização do corpo feminino". Aqui, no entanto, negligencia mais uma vez tematizar o corpo sexual masculino, conotado como "normal", apenas em relação ao qual o corpo feminino poderia ser construído como desviante. Também a dissimulação da norma no sentido de uma "hipostasiação do masculino como o humano em geral" (Georg Simmel) é um dos elementos básicos do pensamento androcêntrico.

(16) Com isto não de diz nada sobre a eficácia de algumas dessas formas de tratamento (como a acupuntura, por exemplo). Algumas delas como alguns/algumas de nós podem já ter experimentado no próprio corpo parecem de facto funcionar, mas a medicina convencional também.

(17) Aqui, mais uma vez, as próteses representam um eficaz exemplo padrão, para a dialéctica do "progresso" médico dentro da socialização fetichista irracional do capitalismo. Pois não foi por acaso que a técnica das próteses experimentou o seu maior desenvolvimento após a Primeira Guerra Mundial, como uma das numerosas "catástrofes naturais" sociais que esta forma de sociedade produz regularmente.

(18) Muitos dos acima mencionados métodos de tratamento da medicina do início da modernidade, como a flebotomia ou a operação às cataratas, já foram usados na antiguidade. E o sucesso do seu tratamento na antiguidade provavelmente já foi tão modesto quanto na fase de desenvolvimento da medicina moderna.

(19) Esta é outra razão pela qual a medicina alternativa não pode ser excluída da crítica. Pois é justamente ela que hoje serve para o cuidado de si e a auto-optimização do sujeito pós-moderno, apenas preocupado consigo mesmo, que assim espera ter uma vantagem distintiva em termos de estilo de vida, além de permanecer mais saudável e viver mais tempo do que os outros.

 

 

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