Bernd Czorny

 

O ENTENDIMENTO DO TEMPO NA PRÉ-MODERNIDADE E NA MODERNIDADE COM REFERÊNCIA A POSTONE

 

Bernd Czorny investiga no seu ensaio a história das ideias de tempo. As concepções pré-modernas de tempo são caracterizadas por uma forma cíclica, indissoluvelmente ligada a actividades ou eventos concretos. Na modernidade, no entanto, o conceito de tempo sofre uma abstracção através do dinheiro; perde-se a ligação directa da actividade ou do evento ao tempo. Moishe Postone constata, na modernidade, uma dialéctica de tempo abstracto e tempo histórico concreto, derivada da dialéctica de trabalho abstracto e trabalho concreto, de riqueza abstracta e riqueza material. Aqui, o tempo abstracto é a medida e determinação da riqueza abstracta. Com o aumento da produtividade, a respectiva unidade de tempo no que diz respeito à produção de riqueza material é cada vez mais reduzida, de modo que a determinação do trabalho socialmente necessário é deslocada ao longo do eixo do tempo abstracto, o que constitui um paradoxo, no sentido de que o período de tempo abstracto permanece constante enquanto é substancialmente redefinido. A totalidade do capitalismo só é completamente percebida quando a relação de dissociação sexual é tida em conta. A dissociação diz respeito, designadamente, a actividades de reprodução, como a atenção, assistência e cuidado com as pessoas, até ao erotismo, sexualidade e amor, que estão associados ao sexo feminino. Roswitha Scholz, com base em Frigga Haug, determina aqui duas lógicas de tempo: a lógica de poupar tempo, que obedece às leis do mercado e do lucro, e a lógica de gastar tempo, para o domínio da reprodução. Como resultado abre-se um novo plano de observação do tempo que também tem de ser tido em conta. (Apresentação do texto na revista exit! nº 14)

 

Introdução * Concepções de tempo em sociedades arcaicas e antigas * Concepções de tempo na Idade Média * Concepção de tempo na Modernidade * A dialéctica de tempo abstracto e histórico em Postone * Conclusão

 

Introdução

Desde que percebem conscientemente o seu ambiente, os seres humanos vivenciam as mudanças em si mesmos: nascimento, adolescência, velhice e, finalmente, morte. Por outro lado, também observam no ambiente mudanças que determinam decisivamente as suas vidas e os processos nas suas vidas. Os ritmos de sono e despertar orientam-se pelo nascer e pôr do Sol desde os primeiros tempos. Durante e após o Neolítico, o curso cíclico das estações ganha maior importância do que nunca para a vida das pessoas, pois uma boa colheita, por exemplo, e com ela a segurança da base alimentar, eram essencialmente determinadas pelas condições climáticas, mas também por atempadas sementeiras e colheitas, determinadas com a informação sobre a posição do Sol.

Assim, a partir do Neolítico, as pessoas orientavam as suas actividades produtivas pelo Sol e pelas estrelas. Se as acções e o pensamento das pessoas de então já se baseiam num entendimento do tempo como tal ou não, as opiniões podem divergir. Mas, se se assume um entendimento do tempo já então existente, esse entendimento pré-moderno do tempo difere fundamentalmente do actual entendimento moderno do tempo.

 

Concepções de tempo em sociedades arcaicas e antigas

Os desenvolvimentos e processos condicionados pela natureza e por ela causados na vida humana foram determinados com base nos fenómenos celestes observados, no curso do zénite do Sol ao longo das estações do ano, nas fases da Lua ou na modificação do céu estrelado. Levaram naturalmente a uma ideia cíclica de tempo.

Uma visão cíclica do tempo significa que a vida humana consiste em ciclos eternamente repetitivos, por exemplo, o ciclo da natureza, com as estações chuvosas e secas, os ciclos diurnos, bem como o movimento cíclico do Sol, da Lua e das estrelas. (Götze, 2004, 200)

Nessa época, as pessoas processavam a sua entrega existencial à natureza e ao seu curso temporal de um modo profundamente religioso, primeiramente suplicando aos espíritos ou a um totem e oferecendo-lhes sacrifícios. O mundo dos deuses desenvolveu-se a partir de espíritos e totens. A certos representantes desse panteão foi atribuído o movimento do Sol, da Lua ou de outros corpos celestes e, assim, a criação e o movimento do tempo.

O seu questionamento era tanto quanto possível excluído na sociedade. Trata-se aqui da independência das aberrações do pensamento social inconsciente, em que as relações sociais não são dominadas pelo ser humano, mas são relações sociais bem reais. ( Kurz, 2014, 61ss.)

Encontramos tais ideias entre os germanos, para os quais uma giganta chamada "Dia" e seu filho "Noite", concebido com seu último marido, percorrem o mundo uma vez em cada 24 horas numa carruagem puxada por cavalos, e do mesmo modo o filho e a filha de Mundilfari, "Lua" e "Sol", percorrem o firmamento numa carruagem divina, perseguidos pelos dois cães Skoll e Hatt. (Duncan a, 1997, 119ss.) De acordo com as ideias dos sumérios e dos babilónios, o panteão consistia nos deuses An – para os sumérios Anu – (céu) e Ki (Terra) e, é claro, outros deuses. Na visão dos sumérios, Ninlil (deusa do grão) foi engravidada por Enlil (deus da vegetação e do ar) e deu à luz a Lua. Obviamente, portanto, a Lua, representada pelo deus Sin, determina o calendário dos babilónios. (Duncan c, 1997, 36) Para os antigos egípcios, o tempo era uma sequência das três estações de "inundação" (achet), "sementeira" (peret) e "colheita" (schemu). O deus Sol Amun-Re era considerado o criador do tempo, ele criou dia e noite, horas, meses, estações e anos. De acordo com a observação da cheia do Nilo, os antigos egípcios consideravam o tempo como uma criação que se repete constantemente. Assim, o nascimento diário do Sol no Oriente e a morte diária do Sol no Ocidente deram origem ao deus Sol Re, que nasce como uma criança Chepri pela manhã, está no zênite como um adulto Re ao meio-dia e morre como um idoso Atum à noite. O medo da paralisação da barca do Sol e, portanto, do tempo era muito grande entre os antigos egípcios (de Agostini, 1999, 10).

Na China antiga acreditava-se originalmente que a Terra era quadrada e imóvel, rodeada de mares nos quatro lados. Esta Terra quadrada era abobadada por um céu redondo e rotativo. De uma massa caótica foram separados no princípio os elementos Yin e Yang, Terra e Céu, pelo deus Pan Gu. Yin está associado com as qualidades femininas, corresponde à passividade, à escuridão, ou seja, à Lua. Yang, por outro lado, corresponde às propriedades penetrantes do homem, à actividade, ao brilho e, portanto, ao Sol. De acordo com as ideias chinesas da época, dez sóis radiantes (Yang) viviam no vale da luz. Lá eles eram carinhosamente cuidados pela sua mãe, pois cada Sol, sempre que era a sua vez, era banhado num lago adjacente à Terra, a leste da Terra, e então enviado na sua jornada diária. As doze Luas existentes (Yin), cada uma durante um mês, viviam num lago a oeste da Terra. Eles também se revezavam guiando uma carruagem através do firmamento. (Duncan d, 1997, 34ss.)

Para os gregos antigos, vários deuses incorporavam as várias formas de tempo:

Aion representava o tempo sem começo nem fim, a eternidade, repetindo-se e mantendo-se.

Cronos era o deus do princípio e do fim, encarnando o decurso e a duração do tempo. Cronos também simboliza a passagem do tempo, o tempo de vida. O termo Cronos forneceu a raiz para os termos actuais "cronologia", "crónica" e "cronológico".

Kairos simbolizava o momento certo, por exemplo, uma decisão que nunca retorna, mas também o espírito do tempo ou o sentido do tempo.

As Horas são as deusas das estações, mas também das horas do dia, de modo que podem ser interpretadas como expressão de um entendimento cíclico do tempo.

 

 

Concepções de tempo na Idade Média

 

As visões filosóficas medievais começam possivelmente com o pensador da Antiguidade tardia Agostinho de Hipona. Ele escreveu seu livro mais conhecido e de maior impacto, Confissões, por volta de 400 d. C.

Nestas Confissões, Agostinho lidou com os problemas do tempo no livro XI. Aqui Agostinho fornece o verdadeiro texto chave para o conceito de tempo, sobre o qual Husserl acredita que a Idade Moderna, orgulhosa da ciência, não progrediu muito mais do que Agostinho. (Husserl, 2002, 1ª ed. 1936, 80)

Partindo da história da criação do Génesis, Agostinho escreve: "Em teu Verbo os fizeste (Céu e Terra, Cz)". (Agostinho, 2008, 105) Com a criação do mundo, Deus também fez o tempo. Aqui podemos ver uma separação entre Deus e o tempo. O tempo não é mais um deus, a personificação metafísica do tempo característica do politeísmo foi abolida no monoteísmo. E continua: "Sabemos, Senhor, sabemos que na medida em que cada coisa não é o que era e passa a ser o que não era, nessa mesma medida morre e nasce. Nada, pois, do teu Verbo, antecede e sucede, porque ele é verdadeiramente imortal e eterno. E, por isso, no Verbo, que é co-eterno contigo, dizes simultânea e sempiternamente todas as coisas que dizes". (Agostinho, 2008, 106) Agostinho primeiro repete a história bíblica da criação, só para depois continuar a confrontar o conceito de eternidade: "No que é eterno, nada é passado, mas tudo é presente, enquanto nenhum tempo é todo ele presente” (Agostinho, 2008, 109). Finalmente, ele se pergunta: se Deus fez todos os tempos e se houve algum tempo antes de fazer o Céu e a Terra, como alguém poderia dizer que Deus tinha hesitado com sua obra, pois, segundo Agostinho, Deus fez exactamente esse tempo anterior. Consequentemente, Agostinho conclui, argumentando contra outros cépticos: "Os tempos não puderam passar, antes de tu fazeres os tempos. Se, no entanto, não existia nenhum tempo antes do Céu e da Terra, por que razão se pergunta o que fazias então? Na realidade, não havia ‘então’, quando não havia tempo." (Agostinho, 2008, 110/1) e culmina: "Os teus anos não vão nem vêm: os nossos vão e vêm, para que todos venham. Os teus anos existem todos ao mesmo tempo... Os teus anos são um só dia, e o teu dia não é todos os dias, mas um ‘hoje’, porque o teu dia de hoje não antecede o de amanhã; pois não sucede ao de ontem. O teu hoje é a eternidade." (Agostinho, 2008, 111) Aqui encontramos nós cunhado o conceito de eternidade, que é expresso na famosa fórmula "Deus foi, Deus é e Deus será". Agostinho contrapõe a eternidade de Deus, seu carácter sobretemporal, à passagem, ao tempo que passa.

Com a conclusão de que não havia tempo antes de ser feito por Deus, Agostinho volta-se para o tema actual do tempo. À questão colocada "Então, o que é o tempo?", Agostinho responde, antes de mais, "Se ninguém mo pergunta, sei o que é; mas se quero explicá-lo a quem mo pergunta, não sei.” (Agostinho, 2008, 111) Pois ele coloca-se uma questão que do seu ponto de vista considera que obviamente não tem resposta: "Se nada passasse, não existiria o tempo passado, e, se nada adviesse, não existiria o tempo futuro, e, se nada existisse, não existiria o tempo presente. De que modo existem, pois, esses dois tempos, o passado e o futuro, uma vez que, por um lado, o passado já não existe, por outro, o futuro ainda não existe?" (Agostinho, 2008, 112) Pois se o presente não passar, ele permanecerá sempre presente, será eternidade e nenhum tempo. E, no entanto, chamamos o tempo de " curto" ou "longo", mas apenas no passado ou no futuro. Mas Agostinho pergunta: "Mas como é que é longo ou breve aquilo que não existe? Com efeito, o passado já não existe e o futuro ainda não existe." (Agostinho, 2008, 112) Aqui revela-se um entendimento concreto do "tempo", ou seja, um conceito de tempo inseparavelmente ligado a um acontecimento ou a uma actividade que hoje perdemos completamente. É precisamente este problema que reencontramos quando Agostinho se volta para a medição do tempo, porque o que já não é, ou seja, o passado, ou o que ainda não é, ou seja, o futuro, não pode, na sua opinião, ser medido. Portanto, só pode ser medido no presente e exactamente aqui Agostinho encontra novamente as contradições conhecidas, quando tenta responder à pergunta se cem anos podem estar presentes. "Se, com efeito, está a decorrer o primeiro desses anos, esse mesmo está presente e os outros noventa e nove estão para vir e, por isso, não existem: mas, se decorre o segundo ano, um já passou, outro está presente, e os restantes estão para vir." (Agostinho, 2008, 113) Assim ele analisa o que depois repete também nas unidades menores de tempo, com base em um mês, um dia e uma hora, e reconhece a fugacidade do presente, porque o tempo que voou passou, e o que ainda está pendente é o futuro, tudo voa tão rapidamente do futuro para o passado: "Se se puder conceber algum tempo que não seja susceptível de ser subdividido em nenhuma fracção de tempo, ainda que a mais minúscula, esse é o único a que se pode chamar presente.” (Agostinho, 2008, 114) Agostinho nota isso desesperadamente. Mas: "E, contudo, Senhor, apercebemo-nos dos intervalos dos tempos, e comparamo-los entre si, e dizemos que uns são mais longos e outros mais breves. Medimos também quanto um tempo é mais longo ou mais breve do que outro, e afirmamos que este é o dobro ou o triplo, e aquele a unidade, ou que um é tanto como outro… No entanto, quem pode medir os tempos passados, que já não existem, ou os futuros, que ainda não existem?" (Agostinho, 2008, 114) Agostinho procura uma saída dizendo que as coisas ou acontecimentos passados não são trazidos de memória, mas através de palavras que vêm à ideia, que se enterraram firmemente na mente enquanto passavam no caminho da percepção. Se, porém, há uma razão correspondente para prever o futuro, se já temos imagens do que ainda não é, ele não sabe, como ele admite diante de Deus. Mas ele tem a certeza de que estamos pensando no futuro, em acções futuras e, acima de tudo, que esse pensamento está presente, mas as acções que estamos pensando estão no futuro. Só com o agir efectivo é que elas se tornam então reais, ou seja, presentes. (Agostinho, 2008, 115/6) Então Agostinho conclui: "Há três tempos, o presente respeitante às coisas passadas, o presente respeitante às coisas presentes, o presente respeitante às coisas futuras.” (Agostinho, 2008, 117) Alguns interpretam estas declarações de Agostinho como banindo o tempo para o reino da imaginação.

"No que se refere ao tempo presente, como é que o medimos, uma vez que ele não tem extensão?" (Agostinho, 2008, 118) Aqui encontramos o mesmo entendimento representativo do tempo que já foi mostrado acima. Agostinho conclui: "Medimo-lo, portanto, quando passa, mas quando tiver passado, não se mede; pois não haverá nada para ser medido." (Agostinho, 2008, 118), para enfrentar imediatamente novas contradições: "Mas donde vem ele, por onde e para onde passa, quando se mede? Donde vem senão do futuro? Por onde passa senão pelo presente? Para onde se dirige senão para o passado? Logo, vem daquilo que não existe, passa por aquilo que não tem extensão e dirige-se para aquilo que já não existe. Mas que medimos nós senão tempo em alguma extensão?" (Agostinho, 2008, 118) Pois o presente não tem extensão, mas nós medimos algo com extensão, como ele teve de reconhecer acima. Assim, Agostinho permanece completamente preso no entendimento objectivo do tempo. E outra coisa se destaca: "Será que medimos, com um tempo mais breve, um tempo mais longo, tal como medimos o comprimento de uma trave com o comprimento de um côvado? Na verdade, é assim que parece que medimos a duração de uma sílaba longa com a duração de uma sílaba breve e dizemos que é o dobro. Assim, medimos a extensão de um poema pelo número dos versos, a extensão dos versos pela duração dos pés, a duração dos pés pela duração das sílabas, a duração das sílabas longas pela duração das breves". (Agostinho, 2008, 123) Ou: "Imagina que outra voz começa a soar e ainda soa, numa vibração contínua sem interrupção: meçamo-la, enquanto soa; pois, logo que tiver cessado de soar… Meçamo-la com precisão e digamos qual a sua medida... Por isso, a voz que ainda não cessou não pode ser medida, de modo a que se possa dizer em que medida é longa ou breve, nem se pode dizer que seja igual a outra, ou que tenha com ela uma relação simples, ou dupla, ou qualquer outra coisa." (Agostinho, 2008, 124) Aqui percebe-se que em cada caso apenas o mesmo foi comparado com o mesmo em termos de conteúdo, palavra com sílaba, poemas com versos e estes com pés métricos tal como o comprimento de sons com o comprimento de outros sons.

No início da Idade Média, o entendimento geral do tempo, assim como o do dinheiro, era determinado como sagrado. Este entendimento do tempo distingue entre tempo natural – tempo astronómico e físico – e tempo social. No tempo social, mais uma vez as concepções de tempo do camponês e da Igreja se interpenetram. O tempo do camponês é um tempo cíclico determinado pela mudança de estações, que se caracteriza menos pela sua duração do que por acções e conteúdos. O tempo do camponês é percebido antropomorficamente, ou seja, está intimamente relacionado com mitos, rituais, celebrações e festivais. O tempo tempo da Igreja, por outro lado, é determinado pelo calendário cristão, que tem seus pontos de referência nas histórias de salvação repetidas anualmente. A este respeito o tempo da Igreja é apenas parcialmente cíclico, ele também corre linearmente desde a criação do mundo até ao Juízo Final e está embutido na eternidade de Deus. Aqui as datas do tempo do camponês foram integradas no calendário da Igreja, o céu e a Terra estavam desta maneira, por assim dizer, ligados. (Buhlmann, 2007, 2) Assim, períodos diários de luz e escuridão eram divididos igualmente em doze “horas” que variavam de comprimento conforme as estações do ano. (Postone, 2014, 234) Portanto, no tempo medieval existem dois níveis de tempo em paralelo, o tempo cronológico da Terra (tempus) e o tempo sagrado eterno (aeternitas). Na aeternitas por sua vez o passado, o presente e o futuro estão presentes (Deus foi, é e será). Entre os dois está o aevum, o tempo dos anjos e dos santos. "O aevum colmatava a lacuna entre a eternidade intemporal e o tempo finito. Se Deus em sua eternidade (aeternitas) era o imutável sem tempo e além do tempo, mas o homem em sua temporalidade era a mutabilidade de um tempo finito mutável e alternante, então os anjos eram o imutável em um aevum alternante, embora infinito". (Kantorowicz, 1990, 1ª ed. 1967, 286)

Os conceitos de tempo da Idade Média parecem, portanto, ser mais complexos do que o tempo abstracto de hoje, que é linearmente determinado apenas por variáveis de tempo independentes, definidas como segundos, minutos, horas, dias, meses e anos.

 

Pode concluir-se resumidamente o seguinte a partir do exposto acima:

 

- Especialmente nas Confissões de Agostinho mantém-se a origem divina do tempo e, portanto, do calendário, mas este acto da criação é agora atribuído ao Deus único (Javé, Eloim) segundo o Génesis. A Ele também era atribuído o poder de abolir o tempo a qualquer momento, de acordo com a sua vontade. O fetiche transcendente que dominou a sociedade manteve a sua plena validade também na Idade Média. Mas porque no cristianismo o mundo inteiro, incluindo o tempo, foi criado por um Deus omnipotente, não encontramos mais aqui a personificação metafísica do tempo num deus.

 

- Assim, o conceito de tempo estava ligado a certas tarefas ou actividades, bem como a certos eventos ciclicamente recorrentes do dia ou do ano, como 1986, pôr-do-Sol, crepúsculo, noite, amanhecer ou cantar do galo, etc. A ideia de tempo na pré-modernidade é, portanto, baseada em uma certa visão cíclica, que foi retida na Idade Média.

 

- Também na Idade Média o entendimento do tempo se baseia numa objectividade que se tornou particularmente evidente nas explicações sobre a medição do tempo de Agostinho. Também aqui o tempo ou período específico estava inextricavelmente ligado a um evento ou actividade.

 

- Na Idade Média sobrepõem-se duas camadas de entendimento do tempo: aeternitas – o sagrado, o tempo eterno; tempus – o tempo cronológico da Terra e o aevum – que preenche a lacuna entre o tempo eterno e o tempo terrestre. Uma certa ordem de precedência é reconhecível aqui, enquanto o tempus era uma expressão da transitoriedade, da fragilidade do mundo e, portanto, de menor grau, a aeternitas simbolizava a eternidade de Deus e era, portanto, de grau superior.

 

- O calendário moderno é dado pela rotação da Terra em torno do Sol, que determina os 365 dias do ano e um dia adicional, o 29 de Fevereiro em cada ano bissexto. No entanto, elementos de um calendário lunar foram preservados, como é o caso da Páscoa, que sempre cai no fim de semana depois da primeira Lua Cheia da Primavera.

 

- A ideia de eternidade não só foi retida, mas também seu componente escatológico foi ainda mais fortalecido. Estas ideias, provavelmente tomadas da antiga tradição egípcia da ideia de eternidade, tornaram-se agora parte integrante da liturgia do mundo judaico e cristão.

 

 

Concepção de tempo na Modernidade

 

O entendimento moderno do tempo começa com Isaac Newton (1642 a 1726). Para Newton, o tempo deve ser entendido como uma sequência de todos os eventos, que são fixados com antecedência, de modo que, desde o início, ele parece ser planeado, assim apontando para um Criador. O presente e o futuro já estão fixados; o que define a visão determinista de Newton do mundo. Por outro lado, Newton deriva um continuum temporal da física clássica que por ele fundada. Newton distingue entre tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por um lado, e tempo relativo, aparente e ordinário, por outro. O tempo aparente e ordinário é definido por Newton como uma medida perceptível e externa das coisas, nós o medimos como a hora de um dia ou mês de um ano. O tempo verdadeiro e matemático, por outro lado, "flui por si mesmo e pela sua natureza pode fluir uniformemente e sem relação com qualquer objecto externo" (Newton, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural,1687). A física de Newton tem como base um continuum numérico, e com isso um continuum de tempo que consiste numa grelha cada vez mais fina de unidades de tempo menores.

Para Newton espaço e tempo tornam-se um recipiente no qual todos os eventos acontecem, espaço absoluto e tempo absoluto existem independentemente de todos os corpos.

Se Newton viu o tempo como absoluto e contínuo, estas duas determinações foram abaladas ou ultrapassadas no decorrer do século XX. Primeiro, Einstein mostrou que o tempo não é de modo nenhum absoluto, mas relativo. Isto significa que o tempo não decorre quase como pano de fundo e os objectos deste mundo "à sua frente" dele participam, mas cada objecto deve ser alocado ao seu próprio tempo. Além disso, de acordo com a Teoria da Relatividade Especial (1905), o espaço e o tempo já não podem ser considerados como separados, mas sim como espaço-tempo. No final do século passado, Abhay Ashtekhar e outros apresentaram a tese de que o espaço-tempo seria agora "quantizado". Como na teoria da relatividade geral, o espaço e o tempo não são assim separados, mas formam uma "unidade" que é chamada de espaço-tempo. A gravitação quântica em laços é uma tentativa de unir a teoria quântica com a relatividade geral, ou de tornar quântica a relatividade geral. Além disso, discute-se hoje se na "escala de Planck", ou seja, nas magnitudes de 10-35 m e 10-43 s, onde os quanta de espaço e tempo teriam presumivelmente de residir, deve-se falar de (espaço e) tempo.

Gottfried Wühelm Leibniz (1646 a 1716), adversário de Newton, lidou com o conceito de tempo em sua teodiceia. "Leibniz caracteriza o espaço empírico como a 'sequência do ordenamento' dos fenómenos ou como a relação da sua justaposição; ele descreve o espaço abstracto dos matemáticos como a ordem de possíveis relações de justaposição. O tempo empírico é a ordem da sucessão, da sucessão de fenómenos sensualmente perceptíveis ou sua relação subsequente; o tempo abstracto representa a ordem de possíveis relações subsequentes. Os predicados espaciais são usados para caracterizar eventos que não pertencem à cadeia de sequências, mas existem 'agora' juntos. Os predicados de tempo são usados para caracterizar eventos que não existem 'agora' juntos, mas estão unidos como fenómenos do passado, do presente e do futuro". (Narskij, 1977, 90)

Assim, espaço e tempo são referidos ao domínio dos fenómenos e, segundo Leibniz, coloca-se a questão de saber até que ponto eles são reais. Para Leibniz, a corrente do tempo forma a abstracção do fluxo real das coisas que se cria na consciência. Neste sentido, Leibniz vê o tempo e o espaço como construções meramente mentais para descrever a sucessão e justaposição de acontecimentos. (Narski, 1977, 90s.)

Na Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant (1724 a 1804) encontramos na segunda secção da "Estética transcendental" um excurso "Sobre o tempo". Kant divide a discussão dos problemas do tempo em "Discussão metafísica do conceito de tempo" e "Discussão transcendental do conceito de tempo". Na primeira parte, ou seja, a discussão metafísica, Kant define tempo como a representação necessária que constitui o fundamento de todas as intuições. (Kant, 2018, 1ª ed. 1790, 96) O tempo é, pois, dado a priori, somente nele é possível toda a realidade dos fenómenos. (Kant, 2018, 1ª ed. 1790, 96/7) A afirmação de que o tempo tem apenas uma dimensão parece aqui essencial. (Kant, 2018, 1ª ed. 1790, 97) Esta unidimensionalidade no conceito de tempo é essencial para a versão do conceito de tempo como um conceito abstracto. Na modernidade, o tempo é agora medido e exibido apenas em segundos, minutos, horas, etc. Na parte da explicação transcendental do conceito de tempo, Kant formula que o conceito de tempo oferece a possibilidade de realização de uma teoria geral do movimento. (Kant, 2018, 1ª ed. 1790, 98) Nesta teoria geral do movimento, o movimento é considerado como um quantum puro sem qualquer qualidade, pois o movimento é visto como pertencente à qualidade da matéria. Kant admite ao tempo uma idealidade transcendental que, no entanto, "nada é, se abstrairmos das condições subjectivas da intuição sensível". (Kant, 2018, 1ª ed. 1790, 100) Pois o tempo é a forma real da nossa intuição interior. Portanto, tem realidade subjectiva considerando as nossas experiências. (Kant, 2018, 1ª ed. 1790, 101) "As nossas afirmações ensinam, pois, a realidade empírica do tempo, isto é, a sua validade objectiva em relação a todos os objectos que possam apresentar-se aos nossos sentidos". (Kant, 2018, 1ª ed. 1790, 100) O tempo torna-se assim consciente para o ser humano através da experiência do tempo, de modo que, para tornar isso possível, o tempo deve ser dado a priori. De acordo com Kant, tempo e espaço são, portanto, duas fontes de conhecimento, "das quais se podem extrair a priori diversos conhecimentos sintéticos, do que nos dá brilhante exemplo, sobretudo, a matemática pura, no que se refere ao conhecimento do espaço e das suas relações. Tomados conjuntamente são formas puras de toda a intuição sensível, possibilitando assim proposições sintéticas a priori". (Kant, 2018, 1ª ed. 1790, 102)

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) trata do conceito de tempo na Enciclopédia das ciências filosóficas em epítome na segunda parte da Filosofia Natural.

Hegel, como Leibniz e Kant, entende o tempo – assim como o espaço – como uma forma de intuição sensível. (Hegel, 1986, 1ª ed. 1830, HW 9, 41) De acordo com Hegel, a determinação da natureza é a generalidade abstracta de seu ser fora de si. O espaço e o tempo são aqui a indiferença sem mediação. (Hegel, 1986, 1ª ed. 1830, HW 9, 41)

O espaço como justaposição ideal é absolutamente contínuo. Como quantidade pura, é uma mera forma, ou seja, uma abstracção. A superfície é a negação superada do espaço, a linha a negação superada da superfície e finalmente o ponto a negação superada da linha. (Hegel, 1986, 1ª ed. 1830, HW 9, 44)

O tempo, por sua vez, é a unidade negativa do ser fora de si, é também uma coisa abstracta. "É o ser que, ao ser, não é, e ao não ser, é; o tornar-se contemplado, isto é, que as diferenças, que são momentâneas por excelência, isto é, que são imediatamente superadas, são determinadas como externas, isto é, são externas a si mesmas. (HW 9, 48) O tempo é, como o espaço, contínuo. De acordo com Hegel, o tempo em si é o "se tornando, levantando e passando, o abstrair existente, o Kronos dando nascimento a tudo e destruindo seus nascimentos". (Hegel, 1986, 1ª ed. 1830, HW 9, 49) As dimensões do tempo são presente, futuro e passado. (Hegel, 1986, 1ª ed. 1830, HW 9, 51)

"As dimensões do tempo tornam completo o determinado da intuição, estabelecendo o conceito de tempo, que é o tornar-se, para a intuição na sua totalidade ou realidade, que consiste no facto de que os momentos abstractos da unidade, que é o tornar-se, são cada um posto individualmente como o todo, mas sob determinações opostas. (Hegel, 1986, 1ª ed. 1830, HW 9, 54)

 

 

O conceito de tempo da modernidade pode ser resumido como segue:

 

- Newton imagina o tempo como um recipiente no qual tudo acontece. Todos os outros entendem o tempo como uma ideia subjacente a todas as outras intuições (Kant). É dado a priori de acordo com Kant. O tempo torna-se consciente para o ser humano através da experiência do tempo. Com este conceito de tempo, é dada a possibilidade de conhecimento de uma teoria geral do movimento.

 

- O tempo consiste essencialmente num continuum de tempo.

 

- A natureza é uma abstracção ou a generalidade abstracta do seu ser fora si, o tempo é aqui a indiferença sem mediação. (Hegel) De acordo com Kant, tempo e espaço são duas fontes de conhecimento do qual a priori diferentes conhecimentos sintéticos são criados. (Kant) Ou: De acordo com Hegel, espaço abstracto e tempo abstracto tornam possível o tornar-se, visto em sua totalidade ou realidade. Assim, o entendimento do tempo foi separado do evento ou actividade, a objectividade do entendimento do tempo desapareceu.

 

- O espaço descreve a ordem de justaposição, enquanto o tempo descreve a ordem de sucessão.

 

A diferença entre as concepções de tempo da pré-modernidade e da modernidade é imediatamente óbvia. A ideia de que os deuses são os criadores do tempo e que os seres humanos estão assim à mercê da sua determinação do tempo, à qual têm de submeter-se incondicionalmente, transformou-se no ponto de vista de que o tempo é meramente uma ideia que subjaz a todas as intuições. Dado que, segundo Kant, o tempo tem uma realidade empírica, ocorre uma objectivação do conceito de tempo. De acordo com Kant, as pessoas tornam-se conscientes do tempo através da experiência do tempo.

Simultaneamente, o conceito de tempo experimenta uma abstracção, dado que o tempo é entendido como uma sucessão ideal contínua. Assim se dissolve a conexão antes inseparável da actividade ou evento com um ponto no tempo ou período de tempo, o que caracteriza a mudança fundamental no entendimento do tempo. O espaço e o tempo são assim concebidos como uma unidade abstracta, agora separada de todas as relações com coisas e eventos concretos, uma ideia que não existia assim na pré-modernidade.

Segundo Adorno, esta abstracção do conceito de tempo expressa a perda sofrida por aquilo que é subsumido no processo de abstracção, pois o tempo puro como abstracção é dispensado de todas as representações temporais realizáveis, é dispensado de todas as formas de intuição do tempo. (Adorno, 2009, 210ss.) Assim como o valor e o trabalho abstracto, o tempo abstracto também está livre de todo o conteúdo. Consequentemente, o tempo que, de acordo com Kant, é apriorizado como forma pura de intuição e condição de possibilidade de todo o temporal, é destacado do tempo. De acordo com Adorno, isso significa, em última análise, a destemporização do tempo. (Adorno, 2009, 210ss.)

Os diferentes níveis de tempo aeternitas, aevum e tempus se dissolveram numa única dimensão abstracta de tempo, embora o conceito de eternidade ainda seja tematizado por Hegel. (Hegel, 1986 1ª ed. 1830, HW 9, 50)

Entre outras coisas, esta mudança no conceito de tempo caracteriza a ruptura cultural radical na consciência das pessoas que ocorreu no século XVII, no início da modernidade.

No seu livro Im Takt des Geldes ("Ao ritmo do dinheiro"), Bockelmann demonstra convincentemente que, através do trato com o dinheiro – na manifestação moderna do dinheiro – a que todas as pessoas na Europa Ocidental foram e são forçadas desde o século XVII se querem participar na sociedade, elas são inconscientemente obrigadas a um trabalho de síntese. Por meio da formulação cativante de que qualquer coisa custa algo (Bockelmann, 2004, 177), Bockelmann mostra que a unidade de valor é pensada, sintetizada e, ao mesmo tempo, estritamente separada em dinheiro e mercadoria. Conteúdos são assim relacionados com não conteúdos. (Bockelmann, 2004, 179ss.) Isto teve e tem consequências: A partir do século XVII, surgiram todas as ciências naturais modernas. O que foi caracterizado por uma transformação fundamental no método de pensar. Nas ciências naturais modernas são procuradas as leis da natureza como leis do desenvolvimento, o que era impensável nos tempos pré-modernos. Estas leis, reconhecidas ou a serem reconhecidas, foram conquistadas ou apoiadas por meio da experiência. No se conjunto, este ganho utilitário em conhecimento, baseado no domínio da natureza, foi considerado como progresso. O novo método de pensar é caracterizado pela matematização da visão de mundo desse tempo e, sobretudo, das ciências naturais. Bockelmann atribui a causa desta matematização das ciências naturais à síntese do dinheiro. (Bockelmann, 2004, 268) No entanto, este processo de matematização de toda a imagem de mundo e das ciências naturais pressupôs a transformação da própria matemática, como ciência fundamental para o novo entendimento da natureza. Na antiguidade, a matemática e os números serviam para interpretar o conteúdo de um mundo ordenado; a matemática era considerada como o epítome do mundo. (Bockelmann, 2004, 293ss.) Exactamente isso inverteu-se no século XVII; o mundo tornou-se o epítome da matemática. "Se até agora valia que: O número é a unidade, Stevin contrapõe: A unidade é o número." (Bockelmann, 2004, 299), Bockelmann cita um contemporâneo do século XVII. Nós agora pensamos que os números são sem conteúdo, continuamente divisíveis, cada número é um ponto não expandido, amarrados juntos eles resultam num continuum de números, uma recta numérica. A recta numérica assim formada transforma não-magnitudes em determinações quantitativas, simplesmente relacionando-as, como uma relação de puramente relacionado e puro relacionar (Bockelmann, 2004, 304), como um estabelecer puramente abstracto de relações.

Exactamente o mesmo aconteceu com o entendimento do tempo, como aliás também com o entendimento do espaço. O tempo era entendido em termos de conteúdo na pré-modernidade. Por exemplo, a noite era dividida em conceitos como crepúsculo, anoitecer, acender das velas, noite escura, noite tardia, amanhecer e cantar do galo. (de Padova, 2013, 306). Esses eram conceitos que preenchiam o conceito de tempo com conteúdo, e que agora estão completamente extintos, pois hoje apenas o tempo abstracto é válido, a referência ao tempo em termos de conteúdo foi perdida. Tal como o número, o tempo tornou-se um ponto não expandido, cuja sequência resulta num contínuo de tempo, num fluxo de tempo. Do mesmo modo, aqui também as não magnitudes são quantitativamente relacionadas entre si. Como a mesma coisa aconteceu no espaço, um entendimento abstracto do espaço-tempo poderia se desenvolver e levar a um universo completamente preenchido, como Descartes o viu. É precisamente este continuum espaço-tempo abstracto que permite relacionar quantitativamente quantidades qualitativamente diferentes umas com as outras, por exemplo, para calcular a velocidade de um corpo dividimos a distância percorrida num determinado tempo precisamente por este tempo, do mesmo modo que relacionamos quantitativa e abstractamente mercadorias qualitativamente diferentes umas com as outras como mercadorias por meio do dinheiro. (Bockelmann, 2004, 331)

 

 

A dialéctica de tempo abstracto e histórico em Postone

 

Postone, no livro Tempo, Trabalho e Dominação Social que aqui vamos discutir, recapitula a afirmação de Marx de que o valor, como quantidade de trabalho realizado, é determinado pela duração deste (tempo de trabalho socialmente necessário). O tempo de trabalho socialmente necessário, de acordo com Marx, "é o tempo de trabalho necessário para produzir algum valor de uso nas condições socialmente normais de produção existentes e com o grau social médio de habilidade e intensidade de trabalho". (Marx, MEW 23, 53) A partir deste tempo de trabalho socialmente necessário, o tempo abstracto é derivado como uma categoria da totalidade capitalista. (Postone, 2014, 233ss.) Postone também enfatiza, com referência à natureza dual do trabalho – por um lado trabalho abstracto, que é fonte de valor, por outro trabalho concreto, que produz riqueza material – que a medida e determinação da riqueza abstracta é completamente diferente da da riqueza material. O valor, no entanto, constitui uma quase-objectiva medida geral da riqueza, independentemente do carácter específico do produto. É o gasto socialmente necessário de tempo de trabalho humano, que se constitui como uma mediação social objectiva. O ponto de referência aqui é a sociedade na sua totalidade. O tempo de trabalho social humano gasto adquire, assim, o carácter de uma norma temporal geral. (Postone, 2014, 230ss.) Esta é a base sobre a qual o tempo abstracto teve de se afirmar objectivamente como uma forma social de pensamento no capitalismo.

Como já foi mostrado acima, encontramos um entendimento completamente diferente do tempo na pré-modernidade relativamente à modernidade. A temporalidade estava ligada a acontecimentos ou fenómenos com conteúdo, em que se baseava a determinação do tempo. Era o tempo objectivo da vida quotidiana, o tempo "para algo" ou "de algo", ou seja, a ideia de tempo relacionada com tarefas e eventos. (Kurz, 2004, 123) Portanto, para reiterar este ponto, a duração física de uma hora podia variar de acordo com a diferente duração da luz do dia. (Postone, 2014, 244) Com a implementação da forma de produção capitalista, inicialmente nas manufacturas como forma inicial da relação entre trabalho assalariado e capital, o tempo de trabalho socialmente necessário prevaleceu como norma e, portanto, como tempo abstracto. Isto tornou-se evidente pelo facto de a hora constante ter gradualmente substituído a hora variável. O empresário precisava de determinar quanto tempo o trabalhador tinha de trabalhar para o seu salário e quando ele começava a trabalhar para o lucro da empresa. Também por razões tecnológicas e por razões de disciplina na manufatura, exigia-se o tempo físico constante como manifestação do tempo abstracto. Por isso surgiu um sistema de horas constantes, primeiro nas cidades e depois por todo o país. A temporalidade como medida para as actividades é naturalmente diferente da temporalidade medida pelos acontecimentos. (Postone, 2014, 249ss.) Nesta derivação, porém, Postone permanece no individualismo metodológico, pois os tempos de produção usados nas empresas, ou seja, nos capitais individuais, não são relacionados em sua mediação com o tempo abstracto como categoria da totalidade social. Postone permanece, por assim dizer, no nível dos capitais individuais; ele não tentou alcançar o nível superior de abstracção e formular que o próprio tempo abstracto é uma categoria real da totalidade do capitalismo. Uma vez que as categorias reais de valor, trabalho abstracto e capital, como categorias da totalidade global, são pressuposto a priori, as mercadorias ou capitais individuais são manifestações empiricamente não deriváveis dessa totalidade. (Kurz, 2014, 148ss.) O valor, por sua vez, é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário como tempo abstracto. Assim, o tempo abstracto em si mesmo é também uma categoria da sociedade como um todo; Postone, como disse, não formulou precisamente este entendimento. Pois se os capitais individuais apenas realizam aquela parte da massa de valor, agregada na sociedade como um todo, que eles conseguem atrair e apropriar na concorrência, também os tempos de trabalho gastos nos capitais individuais são apenas aquela parte de tempo abstracto que eles conseguem atrair e apropriar como tempos de trabalho socialmente necessários. No entanto, este tempo socialmente necessário não pode ser empiricamente relacionado com o tempo real gasto para a produção de mercadorias nos capitais individuais. Contudo, nas costas dos envolvidos, o tempo de trabalho socialmente necessário impõe-se repetidamente de forma mediada.

Da interacção dialéctica entre a dimensão de valor do trabalho abstracto e a dimensão de valor de uso do trabalho concreto, que deles gera uma dinâmica histórica, Postone deriva uma dialéctica de tempo abstracto, que é a medida do trabalho abstracto, e de tempo concreto, que ele define como tempo histórico. Isto requer uma redefinição substancial do tempo abstracto para além do próprio tempo abstracto, pois a dialéctica do desenvolvimento capitalista, vista num plano lógico, constitui duas formas de tempo – uma do tempo abstracto e outra do tempo histórico. (Postone, 2014, 336) A determinação do tempo histórico concreto em oposição ao tempo abstracto na forma de tempo capitalista é um dos méritos duradouros da Postone. Na visão de Kurz, o tempo abstracto é um espaço-tempo abstracto, homogéneo e sem história da economia empresarial, caracterizado pela indiferença e abstracção do conteúdo, por "trabalho" e valor. O tempo histórico concreto, por outro lado, é caracterizado pelo desenvolvimento em termos de conteúdo material provocado pelo próprio processo de valorização. (Kurz, 2004, 123s.)

Postone começa por afirmar que, com o aumento da produtividade, as unidades de tempo tornam-se cada vez mais densas na produção de riqueza material. A mudança na produtividade move assim a determinação do tempo de trabalho socialmente necessário ao longo de um eixo de tempo abstracto. Postone descreve como paradoxo que o quadro do tempo abstracto permaneça constante, embora seja substancialmente redefinido. Isso se refere a outro tipo superior de tempo que ele identificou como tempo histórico. Uma vez que esse movimento resultante da redefinição substancial do tempo abstracto não pode ser expresso em termos de tempo abstracto, isso requer um quadro de referência diferente que, segundo Postone, pode ser representado como um modo de tempo concreto. Um traço essencial do capitalismo reside, assim, num modo de tempo (concreto) que expressa o movimento (abstracto). Por conseguinte, Postone parte do princípio que cada novo nível de produtividade é redefinido "retroactivamente" como nível de base e, por conseguinte, atinge a mesma taxa de valor. (Postone, 2014, 336s.)

Assim, todo o eixo temporal se move a cada aumento geral da produtividade social, um movimento que, no entanto, não pode ser expresso em termos de tempo abstracto. Sobre isso diz Postone: "Uma característica do capitalismo é um modo de tempo (concreto) que expressa o movimento do tempo (abstracto)” (Postone, 2014, 337) A dialéctica das duas dimensões do trabalho pode assim ser entendida como uma dialéctica das duas formas do tempo; produz uma dinâmica interna que, segundo Postone, é caracterizada por um peculiar padrão de moinho de degraus. "Uma vez que cada novo nível de produtividade é definido como um novo nível de base, esta dinâmica tende a ser permanente e caracteriza-se por níveis de produção em constante aumento. Do ponto de vista temporal, pertence a esta dinâmica interna do capital com o seu padrão de moinho de degraus um movimento direccional contínuo do tempo, um 'fluxo da história'" (Postone, 2014, 338).

O que Postone chama tempo histórico deve ser entendido como movimento do tempo em contraste com o movimento no tempo do tempo abstracto. Pois o tempo abstracto constitui um quadro aparentemente absoluto de movimento que é constantemente reconstituído. O movimento do próprio quadro não se reflecte no conceito de valor. (Postone, 2014, 338) "O tempo histórico no capitalismo, então, pode ser considerado uma forma de tempo concreto constituído socialmente e que expressa uma contínua transformação qualitativa do trabalho e da produção, da vida social em geral e de formas de consciência, valores e necessidades. Ao contrário do “fluxo” de tempo abstracto, esse movimento do tempo não é uniforme, mas se altera e pode até mesmo acelerar." (Postone, 2014, 339) Aqui, porém, Postone pára a meio caminho, porque Postone liga a transformação à reconstituição de tal modo que o valor é preservado. Postone está assim a bloquear o caminho para uma teoria da crise. O que fica particularmente claro no capítulo "A Dialéctica da Transformação e Reconstituição" (Postone, 2014, 344ss.) A preservação do valor no processo de reconstituição significa para Postone que cada novo nível de produtividade "tanto redetermina a hora de trabalho social como, por sua vez, é redeterminado pelo período de tempo abstracto como um nível de produtividade. Causadas pelo aumento da produtividade, as alterações no tempo concreto são mediadas pela totalidade social, de modo a transformá-las em novas normas de tempo abstracto (tempo de trabalho socialmente necessário) que, por sua vez, redeterminam a hora constante de trabalho social." (Postone, 2014, 345) Segundo Postone, este desenvolvimento é simultaneamente dinâmico e estático. "Ele implica níveis crescentes de produtividade, mas o quadro de valor se reconstitui perpetuamente." (Postone, 2014, 345)

Kurz contraria isso dizendo que "o capitalismo, de facto, é, por um lado, o regresso do sempre igual, o tempo abstracto sem história do continuum económico-empresarial desvinculado; por outro lado, porém, é um processo histórico concreto cego, uma história irreversível de constituição, imposição e crise, que se manifesta em estádios de desenvolvimento qualitativamente diferentes". (Kurz, 2004, 123) Numa entrevista, Robert Kurz foi confrontado com a seguinte pergunta sobre essa diferença:"Para você o valor colapsa, enquanto para Postone o valor se expande incessantemente, para em seguida retornar ao seu ponto de partida. Daí a pergunta: isto não destrói a plausibilidade da crítica do valor? Ou deve-se ver aqui um momento provisório?" Robert Kurz responde:"O ponto em comum com Postone é a crítica do conceito de trabalho do marxismo tradicional. O entendimento tradicional transformou o conceito de trabalho abstracto, em Marx puramente negativo, crítico e histórico, numa definição positivista, reinterpretando-o como condição eterna da humanidade. Em Postone, no entanto, falta a dimensão da teoria da crise na crítica do trabalho abstracto; nesta questão ele próprio permanece tradicional." (Kurz, 2013, 23) No seguimento da entrevista, Kurz explica novamente o limite interno do capital e afirma: "A hora de trabalho, como unidade básica de trabalho abstracto, é sempre a mesma, como tal não pode de modo nenhum ter diferentes ‘níveis’. O padrão novo e mais elevado de produtividade, no entanto, obriga a que sejam necessárias menos destas horas sempre iguais de trabalho abstracto para uma massa crescente de produtos.” (Kurz, 2013, 24)

É exactamente isso que marca a diferença entre os dois: Enquanto Postone, na "dialéctica de transformação e reconstituição" por ele postulada, adere à preservação do valor através da repetida redefinição da hora de trabalho social, e assim da transformação em novas normas de tempo abstracto a cada novo nível de produtividade, deste modo se fechando a uma teoria da crise, Kurz, com a definição do tempo histórico concreto como um "um processo histórico concreto cego, uma história irreversível de constituição, imposição e crise, que se manifesta em estádios de desenvolvimento qualitativamente diferentes", chega uma teoria da crise.

A dinâmica da totalidade, o desenvolvimento contínuo da produtividade distingue o capitalismo de todas as sociedades anteriores. "Isso envolve contínuas mudanças na natureza do trabalho, da produção, da tecnologia e da acumulação de formas de conhecimento relacionadas. Assim, o movimento histórico da totalidade social implica grandes e contínuas transformações no modo da vida social da maioria da população – em padrões sociais de trabalho e de vida, na estrutura e na distribuição das classes, na natureza do Estado e da política, na forma da família, na natureza da aprendizagem e da educação, nos meios de transporte e comunicação, e assim por diante (MEW 23, 309ss., 416ss., 416ss., 470ss.). Além disso, o processo dialéctico no cerne da dinâmica imanente do capitalismo implica a constituição, difusão e transformação contínua de formas historicamente determinadas de subjectividade, interacção e valores sociais. O tempo histórico no capitalismo, então, pode ser considerado uma forma de tempo concreto constituído socialmente e que expressa uma contínua transformação qualitativa do trabalho e da produção, da vida social em geral e de formas de consciência, valores e necessidades. Ao contrário do ‘fluxo’ de tempo abstracto, esse movimento do tempo não é uniforme, mas se altera e pode até mesmo acelerar." (Postone, 2014, 339)

O tempo abstracto e homogéneo sem história como medida do valor, por um lado, está em contradição dialéctica com, por outro lado, o tempo histórico concreto do desenvolvimento cego caracterizado pelo valor de uso. A dinâmica daí resultante mudou literalmente a face do nosso planeta, não apenas em termos técnicos, da carruagem puxada a cavalos à ferrovia, do automóvel ao foguetão, mas as estruturas sociais foram repetidamente remodeladas, da sociedade estamental do feudalismo tardio, passando pelo proletariado industrial concentrado e fortemente organizado, predominantemente homogéneo, até uma força de trabalho amplamente descentralizada e socialmente diversificada – de empregados da indústria de limpeza, passando por trabalhadores qualificados e especializados, até engenheiros altamente qualificados em áreas de pesquisa e desenvolvimento; do trabalhador em condições precárias e no sector dos baixos salários, até ao ainda bem pago engenheiro ou gestor – cujos processos processos de trabalho e de vida, no entanto, estão realmente subsumidos ao capital, ao qual todos estão incondicionalmente entregues. Esta é também a história da relação de dissociação sexual que se desenvolveu no capitalismo. Esta refere-se a actividades que, por um lado, são absolutamente necessárias para a reprodução social, mas que, por outro lado, não podem ser registadas em termos de valor, como o afecto humano, a assistência, o cuidar, até ao erotismo, à sexualidade, ao amor. Aqui se incluem sentimentos, emoções e atitudes que escapam à racionalidade económica. Estas actividades são normalmente atribuídas ao sexo feminino. (Scholz, 2000, 21s.) Seguindo a teoria de Frigga Haugs, que Roswitha Scholz considera pelo menos interessante para a teoria da dissociação-valor, diferentes lógicas de tempo são atribuídas às duas áreas. A lógica de poupar tempo obedece às leis do mercado e do lucro. Por sua vez, a lógica de gastar tempo aplica-se à área da reprodução. (Scholz, 2000, 100s.) A relação entre as duas lógicas de tempo e as actividades correspondentes é regulada político-juridicamente no capitalismo, na medida em que as actividades que não podem seguir a "lógica de poupar tempo" não apenas são realizadas fora do sistema económico oficial e, portanto, fora da forma do salário em dinheiro, mas também são realizadas por "desiguais", em contraste com a "igualdade" política dos cidadãos. (Scholz, 2000, 101) "A separação destas actividades cria a impressão social geral de que toda a sociedade é regulada de acordo com princípios 'iguais' de 'liberdade' e 'desempenho', com base no mercado, no lucro e na 'lógica de poupar tempo'. Afinal o capitalismo precisa de pessoas em actividade fora dos princípios, de acordo com outras lógicas de tempo e fora do salário em dinheiro". (Scholz, 2000, 101s.) Assim, as pessoas, na sua maioria mulheres, em actividade nestas áreas estão expostas a uma situação ambivalente e contraditória, por um lado, actuando no geralmente válido "sistema de legitimação garantido em termos de valor", por outro lado, porém, actuando numa área que está localizada fora da lógica de mercado, para cuja cobertura são válidas as disposições legais correspondentes. Na primeira área, "a interpretação dos valores prevalecentes como universalmente válidos deve ser considerada, de facto, uma má interpretação". (Scholz, 2000, 102) "O modelo capitalista de civilização está assim dependente da opressão das mulheres e da degradação das mulheres à 'natureza'. Deste modo, o homem pode definir-se como conquistador da natureza e assim também considerar a sua própria natureza como controlável, o que se expressa, por exemplo, no dispêndio de energia humana no processo do 'trabalho abstracto'. Na produção do fim-em-si capitalista e no pensamento do lucro, tanto as mulheres como a natureza são vistas como meros recursos a explorar". (Scholz, 2000, 102) Tal como as relações de género podem ser entendidas como uma espécie de trabalho em rede que não tem lugar definido (Scholz, 2000, 103), também isso pode ser assumido para as duas lógicas de tempo.

Neste ponto, surge inevitavelmente a questão de como estas duas lógicas de tempo, analisadas por Roswitha Scholz com referência a Frigga Haug – a lógica de poupar tempo e a lógica de gastar tempo –, se relacionam com as duas dimensões de tempo, o tempo abstracto e o tempo histórico concreto.

À partida, são dois níveis completamente diferentes de contemplação do tempo.

Enquanto as duas dimensões, tempo abstracto e tempo histórico concreto, são definidas como momentos de tempo no capitalismo, a lógica de poupar tempo e a lógica de gastar tempo são duas lógicas de tempo, sendo a lógica de poupar tempo "aquela notoriamente infame ‘lógica de exploração da economia empresarial’ (Robert Kurz), do tempo abstracto do trabalho abstracto, enquanto a lógica de gastar tempo se refere aos momentos dissociados do ‘trabalho de relacionamento’ e do ‘trabalho de amor’ sociais, e às funções psicossociais de mediação e de amortecedor social, em ambos os casos historicamente delegados nas mulheres e que não é possível dissolver no tempo linear do trabalho abstracto com objectivos racionais." (Scholz, 2011, 234). Isto significa que, por um lado, a "lógica de poupar tempo" deve ser atribuída ao tempo abstracto, enquanto, por outro lado, "o vazio tempo do valor, como momento de certo modo estático, e o tempo processual do desenvolvimento histórico concreto da totalidade social são simultaneamente mediados pela lógica de ‘gastar tempo’ (Frigga Haug) no domínio feminino da reprodução." (Scholz, 2009, 73). "Somente a dialéctica da forma vazia da economia empresarial, por um lado, a que corresponde uma ‘lógica de poupar tempo’, e a ‘lógica de gastar tempo’ no domínio da reprodução, por outro, (e não simplesmente o valor) constituem a dissociação-valor como princípio base da sociedade capitalista. Por conseguinte, é a dissociação-valor, no sentido de uma lógica sobrejacente, que constitui também o duplo carácter do trabalho, como trabalho abstracto e trabalho concreto, e, por inerência, o tempo concreto, que exprime o modo do tempo abstracto, bem como constitui a dinâmica daí resultante.” (Scholz, 2009, 73) Isso deixa claro que a lógica de gastar tempo tem uma qualidade diferente do tempo abstracto da economia empresarial. O desenvolvimento material e, portanto, o desenvolvimento da tecnologia vai de mãos dadas com a dissociação do feminino e do sensual, como momento estrutural da tecnologia, das ciências técnicas e, portanto, do desenvolvimento das forças produtivas, porque a formação do sujeito masculino autónomo não pode ser explicada sem a dissociação do valor do feminino, porque o valor e a dissociação do valor se formaram co-originariamente em sua própria base com a formação do capitalismo e ganharam a sua dinâmica própria. A este respeito, o tempo histórico concreto não deve ser pensado apenas na esfera da produção, como foi o caso de Postone, mas diz respeito à esfera do valor e à esfera da dissociação do valor. Só assim se pode apreender a lógica de gastar tempo na sua relação com o tempo histórico concreto, mas também como "vazio tempo do valor" (Roswitha Scholz).

A este respeito, Roswitha Scholz caracteriza a lógica de gastar tempo da actividade dissociada de cuidar, por assim dizer o tempo da dissociação em cruzamento com o tempo abstracto, como um momento central da crise actual na desintegração do patriarcado capitalista. De facto, é necessário aprofundar ainda mais qual o papel desempenhado pelo tempo da dissociação em ligação com o tempo histórico concreto do capitalismo – o tempo do processo, por assim dizer. Uma crítica da dissociação-valor, que não ocorre de todo em Postone, pressupõe a ultrapassagem do individualismo metodológico, porque o acesso ao nível global da crítica da dissociação-valor é impossível ao nível da mercadoria individual, e por conseguinte da vinculação permanente ao individualismo metodológico.

Globalmente, de acordo com Postone, o capitalismo revela-se uma sociedade caracterizada por uma dualidade temporal (tempo abstracto e tempo histórico), por um lado, um fluxo contínuo e em aceleração da história e, por outro lado, a manutenção da transformação contínua deste movimento do tempo num presente constante. “Os produtores não só são obrigados a produzir de acordo com uma norma temporal abstracta, mas devem fazê-lo de forma historicamente adequada: eles são obrigados a ‘se manterem actualizados’." (Postone, 2014, 347)

 

Postone diferencia três formas de interacções dialécticas:

 

a) A dialéctica da constituição reflexiva através da objectivação, ou seja, as pessoas que mudam o mundo também se mudam a si mesmas.

b) Interacção dialéctica da constituição mútua de certas formas de práxis e de estrutura sociais

c) Dialéctica baseada na dupla natureza das formas sociais subjacentes

 

As duas primeiras dialécticas são "direccionalmente dinâmicas porque estão embutidas e interligadas a uma estrutura intrinsecamente dinâmica de relações sociais objectivadas". (Postone, 2014, 352) Neste ponto, vale a pena comparar a concepção de tempo da pré-modernidade, especialmente da Idade Média – moldada por Agostinho – com o tempo histórico concreto do capitalismo.

A concepção do tempo da pré-modernidade era moldada pela justificação religiosa e portanto transcendente do tempo, Deus é o tempo (no politeísmo pré-moderno) ou Deus criou o tempo (no monoteísmo); ele também poderia suspendê-lo à vontade. Assim, ele determinava essencialmente o ritmo de tempo produtivo das pessoas, ou seja, a sementeira e a colheita. Deste modo, na pré-modernidade Deus também determinava o rendimento da colheita e, com ele, as condições da existência humana.

A ideia de tempo na Idade Média também se caracterizava pelo facto de o seu conteúdo estar marcado por actividades produtivas concretas ou eventos, como a sementeira e a colheita, ou os períodos do dia, como o crepúsculo, o amanhecer, o cantar do galo, etc. Era essencialmente um conceito cíclico de tempo. As Confissões de Agostinho também provam a objectividade da ideia de tempo.

A concepção do tempo histórico concreto não é basicamente uma concepção cíclica do tempo, porque não está orientada para os períodos do dia nem para as estações do ano. Pelo contrário, ela caracteriza o "nível material concreto de desenvolvimento das forças produtivas e destrutivas" (Kurz), ou seja, o tempo histórico concreto de um processo de desenvolvimento dinâmico e irreversível, na medida em que descreve a cega história concretamente histórica da irreversível constituição, imposição e crise do capitalismo (Kurz), que se apresenta em estágios qualitativamente diferentes de desenvolvimento. Assim, a ideia de tempo do tempo histórico concreto de certo modo – como também o trabalho concreto – é igualmente uma abstracção, essencialmente diferente da ideia de tempo da pré-modernidade.

A concepção moderna do tempo, como dialéctica do tempo abstracto e do tempo histórico concreto, é determinada pela valorização do valor, ligada ao "sujeito automático"; é, portanto, de natureza transcendental e essencialmente diferente da concepção transcendente de tempo na Idade Média.

Consequentemente, as noções de tempo da pré-modernidade – e assim também as da Idade Média – e do tempo histórico concreto do capitalismo movem-se em esferas fundamentalmente diferentes; elas não são comparáveis nem podem ser equiparadas. Pelo contrário, as presentes considerações pretendem provar que a ruptura no entendimento do tempo entre a pré-modernidade e o capitalismo é parte integrante da enorme ruptura cultural causada pela emergência e pela necessidade que se foi impondo no início da modernidade do uso generalizado do dinheiro como expressão da riqueza abstracta, cuja abstracção real e síntese no dinheiro, por exemplo, revolucionou o entendimento do ritmo e provocou toda a transformação fundamental do pensamento até dentro da psique e, em última análise, também trouxe as ciências naturais modernas e a filosofia moderna.

A ultrapassagem da sociedade fetichizada, seja de natureza transcendente ou transcendental, requer, por um lado, uma crítica radical e categorial da sociedade existente; mas também uma perspectiva social emancipatória.

"Daí que a emancipação social, em consequência, só pode consistir em conseguir o controlo social sobre o tempo histórico concreto, de modo que o espaço-tempo desvinculado da economia empresarial seja conscientemente destruído, suprimido e com isso suplantada a lógica da valorização do valor. Só a inclusão da reprodução no mundo da vida, a dissolução do trabalho abstracto e com ele da dissociação sexual pode pôr fim também à dissociação e à cada vez maior indiferença aos conteúdos materiais do processo de produção. Seria o fim da separação entre vida e produção, conteúdo e forma, produção e circulação, economia e política. Assim sendo, o processo capitalista de destruição do mundo só será detido quando se conseguir uma integração social, em que pela primeira vez na história os membros da sociedade organizem conscientemente o emprego dos seus recursos comuns (por exemplo, numa organização de conselhos escalonada e abrangente) e deste modo também pela primeira vez definam o seu próprio tempo histórico concreto – o desenvolvimento social deixa assim de ser um cego processo de fatalidade." ( Kurz, 2004, 126)

No mesmo artigo da primeira edição da EXIT!, Kurz critica com razão Postone pelo facto de ele permitir uma ontologização do conceito de trabalho, pelo menos admitindo que o trabalho concreto exista na pré-modernidade e, especialmente, numa sociedade pós-capitalista. "Postone aceita, portanto, sem qualquer exame adicional, a remissão para uma ‘relevância do trabalho’ supostamente ‘evidente’ para a vida social em geral, mas não quer dar-se por satisfeito com este estado de coisas, realçando o papel específico do trabalho como princípio de síntese social unicamente existente no capitalismo. Nem sequer começa a colocar a si mesmo a questão de se um conceito geral e abstracto de trabalho ainda faz sentido fora desta constituição moderna e se existiu historicamente." (Kurz, 2004, 85) Kurz cita Postone em vários lugares aqui: "Vários tipos do que ele poderia considerar trabalho existem em todas as sociedades.” (Postone, 2014, 176) ou "Essa determinação inicial do duplo carácter do trabalho no capitalismo não deve ser entendida fora de contexto como implicando simplesmente que todas as diversas formas de trabalho concreto são formas de trabalho em geral." (Postone, 2014, 178) Torna-se revelador em Postone quando ele faz declarações sobre uma "economia de tempo" alegadamente trans-histórica. Pois a abolição do trabalho, do trabalho abstracto e concreto, é claro, proíbe falar sobre a "economia de tempo" que permanece "significativa". (Kurz, 2004, 88) Kurz torna-se claro aqui: "Deste modo, Postone a este respeito recai no jargão do velho movimento operário, ainda que com uma expressão paradoxal: ‘A emancipação do trabalho requer a emancipação face ao trabalho (alienado)’” ( Kurz, 2004, 89)

Por outro lado, Postone deriva o tempo abstracto e o tempo histórico concreto da dialéctica do trabalho abstracto e concreto, bem como da dialéctica da riqueza abstracta e material. Nisso, Kurz e Postone concordam! Se, no entanto, a dialéctica do trabalho e, portanto, a da riqueza são abolidas pelo facto de que nem o trabalho abstracto nem o trabalho concreto, nem a riqueza abstracta nem a riqueza material continuam a existir numa sociedade pós-capitalista, então nem o tempo abstracto nem o tempo histórico concreto podem continuar a existir numa sociedade pós-capitalista. Porque se tanto o tempo abstracto como o tempo histórico concreto são formas categoriais de movimento no sistema produtor de mercadorias na sua totalidade e só ali, e são estas que fundamentam a dialéctica do tempo capitalista, então a emancipação social significa a abolição do tempo capitalista enquanto tal, ou seja, a abolição do tempo abstracto e do tempo histórico concreto, bem como do tempo dissociado.

Postone fala em vários lugares do seu livro que o tempo histórico é uma forma de tempo concreto, o que pode implicar que possa haver outras formas de tempo concreto numa sociedade pós-capitalista, mas na minha opinião o tempo histórico é a única forma de tempo concreto. Acima já foram apontadas as diferenças essenciais entre o tempo concreto na pré-modernidade e o tempo histórico concreto no capitalismo. Mas voltemos agora a Kurz, no artigo mencionado acima, novamente citado aqui: "Daí que a emancipação social só pode consistir em conseguir o controlo social sobre o tempo histórico concreto, de modo que o espaço-tempo desvinculado da economia empresarial seja conscientemente destruído, suprimido e com isso suplantada a lógica da valorização do valor. Só a inclusão da reprodução no mundo da vida, a dissolução do trabalho abstracto e com ele da dissociação sexual pode pôr fim também à dissociação e à cada vez maior indiferença aos conteúdos materiais do processo de produção.“ (Kurz, 2004, 126) Robert Kurz também deve provavelmente ser criticado neste contexto, porque com o postulado de conseguir o controlo sobre o tempo histórico concreto Kurz permite que ele continue a existir, mas, na minha opinião, a questão não pode ser conseguir o controlo conjunto sobre o tempo histórico concreto, mas sim abolir esta dialéctica do tempo abstracto e do tempo histórico concreto como um todo. Também não pode tratar-se de acabar com a dissociação e com a indiferença aos conteúdos materiais do processo de produção através da inclusão da reprodução no mundo da vida, da dissolução do trabalho abstracto e, com ele, da dissociação sexual. (Kurz, 2004, 126) Pelo contrário, só pode tratar-se de estabelecer uma forma completamente nova de produzir, para além do actual modo de produção industrial, que desde o início integre a produção na vida, na qual o antagonismo entre trabalho abstracto e trabalho concreto, riqueza abstracta e riqueza material e, portanto, entre tempo abstracto e tempo histórico concreto, também é ultrapassado, na medida em que trabalho, riqueza e tempo são à partida abolidos.

 

 

Conclusão

 

O que se pretendia aqui mostrar, em suma, é que o tempo, em sua dialéctica de tempo abstracto e tempo histórico concreto, assim como tempo dissociado, é uma categoria real historicamente determinada do capitalismo, tal como o trabalho, o valor e o capital. A ultrapassagem do capitalismo significa a abolição desta dialéctica e, portanto, a ultrapassagem de ambas as formas de tempo, tempo abstracto e tempo histórico concreto, bem como tempo dissociado. O entendimento do tempo – pode-se mesmo dizer – só pode ser moldado pela ultrapassagem de ambas as formas de fetiche – a transcendente e a transcendental. Será provavelmente uma ideia de tempo orientada para eventos e tarefas, mas será caracterizada pelo uso e aplicação consciente dos recursos e, portanto, pela configuração consciente da passagem do tempo e da organização do tempo orientada para as necessidades da vida das pessoas, ou, numa formulação diferente: "as pessoas aprenderem a realizar conscientemente o seu próprio ‘processo de metabolismo com a natureza’ e os seus relacionamentos mútuos, em função do seu verdadeiro conteúdo e das necessidades reais, em vez de obedecerem aos ditames de um sistema de regras cego, autonomizado, alheio ao conteúdo e metafísico-real.” (Kurz, 2014, 64) Ou, para recorrer a Marx e ao seu prefácio à crítica da economia política, que com esta ordem social a pré-história da humanidade se completa e a história só começa com uma sociedade conscientemente organizada. A configuração consciente da sociedade requer o uso consciente do tempo!

 

 

 

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Original Das Verständnis von Zeit in der Vormoderne und in der Moderne unter Bezugnahme auf Postonein: Revista exit! nº 14, 4.2017, Pag. 213-238. (www.exit-online.org) Tradução de Boaventura Antunes

 

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