O trabalho abstracto e o carácter ideológico da arquitectura funcionalista moderna
Bruno Lamas
Nota prévia: o presente texto constitui, com ligeiras modificações, a versão escrita de uma apresentação efectuada em Lisboa, a 9 de Março de 2013, no debate «Niemeyer, Brasília e a cidade moderna», organizado pela Unipop e a revista Imprópria, na Casa da Achada.
Funcional, aqui e agora, seria apenas o que é na sociedade presente.
Mas a essa são essenciais as irracionalidades.
Theodor Adorno, Funcionalismo Hoje (1965)
É sabido que a arquitectura moderna desde cedo procurou distinguir-se do passado pré-moderno reivindicando o título de «funcionalista», mas não deixa de ser paradoxal que esse processo de afirmação histórica tenha sido acompanhado por uma imensa ambiguidade quanto ao verdadeiro estatuto da categoria «função». À primeira vista, funcional é o edifício que cumpre com o mínimo de atritos a finalidade que lhe foi previamente e especificamente atribuída. Deste modo, a «função» seria na arquitectura moderna algo semelhante ao que em Vitrúvio aparecia como utilitas; uma abstracção meramente mental dos inúmeros fins específicos de outros tantos edifícios possíveis. Uma arquitectura funcionalista seria simplesmente aquela que dá prioridade ou exacerba os aspectos instrumentais de um edifício em detrimento da sua aparência estética ou considerando mesmo essa eficiência justamente a sua beleza. É desse modo que é geralmente compreendida a fórmula de Louis Sullivan, fixada no final do século XIX, de que «a forma segue a função». Mas, na realidade, o funcionalismo na arquitectura moderna está longe de ser apenas um exagero tecnicista expresso em edifícios isolados.
A questão é evidente logo no ensaio «O edifício de escritórios em altura, considerado de um ponto de vista artístico», onde Sullivan (2010) fixou a sua fórmula ambígua. Não é de todo claro se o verbo «segue» significa que a forma surge posteriormente à função ou se é determinada pela função. A primeira hipótese favorece uma leitura de «função» como propósito ou intenção subjectiva, onde a forma de um objecto criado é o resultado necessariamente posterior, entre inúmeros possíveis, de uma finalidade previamente escolhida; se assim é, a fórmula de Sullivan é um verdadeiro truísmo. Se, por outro lado, a relação é interpretada como de determinação, se a função determina a forma, então o que determina a função? Evidentemente que a resposta a esta pergunta não pode ser encontrada no campo interno da arquitectura, e a posição de Sullivan neste aspecto é absolutamente paradigmática: «os arquitectos deste país e desta geração vêem-se actualmente confrontados com algo de novo sob o sol - neste caso, a evolução e a integração das condições sociais e o seu singular reagrupamento que se traduzem na necessidade de construir edifícios de escritórios de grande altura. Não é meu propósito discutir aqui as condições sociais; aceito-as como factos e afirmo que a concepção de um edifício de escritórios de grande altura deverá prontamente ser reconhecido como um problema a resolver, problema vital, reclamando uma efectiva resolução [...] [O edifício moderno de escritórios] veio satisfazer uma exigência, porquanto nele uma nova forma de organização social encontrou um abrigo e um nome [...] É minha crença que é da própria essência de cada problema conter e sugerir a sua própria solução. Creio ser essa uma lei natural.» Neste trecho é possível verificar que Sullivan reconhece, num primeiro momento, que a necessidade de construção de edifícios em altura é um problema desencadeado por condições históricas e sociais específicas, «exigências» de uma «nova forma de organização social»; em seguida, apressa-se a excluir qualquer discussão sobre essas condições sociais, apresentando-as como «factos» e meros dados de um problema de arquitectura. Sullivan refugia-se assim na divisão de trabalho e na especialização do saber arquitectónico para não ter de prestar contas sobre as consequências e os pressupostos sociais desse mesmo saber. Nesse processo, a essência de um problema que se sabe ser verdadeiramente social vai sendo progressivamente reduzido a um problema técnico, até ao momento em que a relação com a solução se apresenta como a «lei natural» de que «a forma segue sempre a função». As condições sociais capitalistas são vistas como geradoras de problemas formais, mas elas próprias são assumidas como funcionalmente não problemáticas. Mas, nesta abordagem, a arquitectura está longe de estar sozinha.
Antes de mais, não podemos esquecer que o funcionalismo não foi uma «invenção» da arquitectura, mas antes um paradigma que a partir de meados do século XIX começou a atravessar vários domínios do conhecimento, e que, apesar dos ritmos diferenciados desse desenvolvimento, tendiam para uma direcção ideológica comum de naturalização da sociedade capitalista. Com raízes na biologia, o funcionalismo foi importado pelo pensamento sociológico positivista de Auguste Comte e Herbert Spencer, que através de analogias biológicas procuraram observar todas as sociedades como quem observa a natureza ou o corpo humano; desse modo claramente ideológico, a concorrência capitalista aparece como selecção natural, as classes sociais como órgãos, os indivíduos como células, etc. E sabemos hoje que foi justamente através da leitura assídua de Spencer que Sullivan chegou à sua fórmula funcionalista. Esta naturalização da vida social constituiu também a base teórica do posterior estruturalismo funcionalista e está na génese da sociologia urbana, de forma ambígua em Simmel e explicitamente na chamada Escola de Chicago, esta última contemporânea dos primeiros Congressos Internacionais da Arquitectura Moderna (CIAM), que por sua vez procuraram fundamentar biologicamente as funções urbanas.
Esta identidade entre sociologia positivista e arquitectura reflecte no entanto determinadas condições sociais, o que também significa que, enquanto ideologia, o funcionalismo não pode deixar de conter um «momento de verdade» (Adorno). Se o funcionalismo sociológico procurou mostrar a existência de um sistema geral padronizado de interdependência social, fê-lo contudo deixando fora de reflexão o carácter histórico e social da constituição dessas mesmas relações funcionais, apresentando-as antes como factos eternos e naturais. Na realidade, apenas a sociedade moderna se constituiu como uma forma de «socialização funcional» (Alfred Sohn-Rethel) tendencialmente universal, essencialmente baseada no que Marx chamou «trabalho abstracto» e na sua representação fantasmagórica na forma da mercadoria e na forma do dinheiro, e só essas condições histórico-sociais específicas tornaram concebível algo como uma racionalidade funcionalista. O carácter ideológico do funcionalismo revela-se na equiparação entre a «primeira natureza» dos sistemas biológicos e a «segunda natureza» do sistema de interdependência social especificamente moderno, que apesar da sua regularidade e aparente naturalidade não pode deixar de ser uma objectividade socialmente constituída, que precisa de atravessar as consciências dos seres humanos mas que é, no entanto, também mais do que somatório das suas intenções subjectivas. Foi justamente este carácter inconsciente da forma de consciência social moderna que Marx tinha em mente quando afirmava «eles não o sabem, mas fazem-no», e é isso que está na base do que chamou criticamente o «fetiche da mercadoria» (Marx, 1996). Aquilo que desde logo distingue a teoria crítica de Marx da sociologia positivista é que ele não cai na equiparação entre «primeira» e «segunda natureza» e mantém como princípio a possibilidade de abolição consciente das leis pseudonaturais da sociedade capitalista (cf. Kurz ,1993).
Com a sua fundamentação biologista das funções, os primeiros CIAM tendiam justamente na direcção contrária. Partindo explicitamente do princípio abstracto de que todos os seres humanos em todas as épocas têm as mesmas necessidades, escapa aos CIAM que «a necessidade é uma categoria social» (Adorno, 1997, p. 392) e que qualquer função fisiológica humana é sempre socialmente mediada e não pode ser isolada das relações sociais (a respeito da arquitectura, cf. Kapp, 2005). Escamoteando isso, a arquitectura funcionalista dilui desde logo a «segunda natureza» na «primeira» e, tal como na sociologia positivista, as necessidades sociais específicas da sociedade capitalista são assim consideradas naturais e eternas. Mas ao contrário da sociologia positivista, que supostamente pretende apenas interpretar a estrutura social, a arquitectura funcionalista tem a pretensão paradoxal de ser uma espécie de estruturalismo conscientemente aplicado, em que leis funcionais supostamente eternas, objectivas e abstractas previamente interpretadas precisam afinal de ser subjectivamente expressas em novas formas arquitectónicas concretas. O desafio arquitectónico funcionalista revela-se assim uma progressiva pesquisa das formas materiais adequadas às exigências funcionais da reprodução social capitalista assumidas aprioristicamente. Desse modo, verdadeiramente «funcional» não é um edifício que dá resposta às necessidades específicas dos seus utilizadores (como no conceito de utilitas de Vitrúvio), mas aquele que acima de tudo garante a funcionalidade da totalidade social moderna.
Ora, como afirmou Hannah Arendt (1998) na década de 1950, e como tem sido teoricamente aprofundado nos últimos anos pela chamada «crítica do valor» (Krisis, 2003), a sociedade moderna é uma sociedade do trabalho. Esta determinação serve tanto para a sociedade capitalista como para a sociedade soviética. Trabalhar é em ambas uma condição de integração social. Mas é irrelevante que actividade concreta se realize, é necessário é que se receba dinheiro por ela. Neste sentido, o «trabalho abstracto» de Marx, ou seja, o «trabalho humano indiferenciado», o «dispêndio de força de trabalho humana sem atender à forma do seu dispêndio», apenas o puro «dispêndio de cérebro, nervos, músculos, órgãos do sentido, etc.», constitui efectivamente o núcleo fundamental da sociedade moderna. Não existe qualquer termo equivalente nas sociedades pré-modernas para o que nós hoje irreflectidamente designamos por «trabalho»; por isso, Marx também afirma que «o “trabalho” é uma categoria tão moderna quanto as relações que geram essa simples abstracção» (Marx, 2011, p. 57). O capitalismo distingue-se por uma nova forma de interdependência social, inconsciente, na qual o trabalho na sua generalidade abstracta desempenha a função social única de constituição de uma forma de riqueza social abstracta medida temporalmente - o valor.
Neste sentido, o trabalho está longe de ser uma função fisiológica auto-evidente, como os CIAM sempre assumem. Também não é por acaso que os precedentes da arquitectura funcionalista se encontram nas fábricas e complexos industriais do século XIX e que, desde o início, a abstracção funcional «trabalho» tenha desempenhado um papel absolutamente determinante na ideologia do movimento moderno, sobretudo na metafísica do trabalho de Le Corbusier. Ainda antes dos CIAM, já Le Corbusier abria o seu livro O Urbanismo com a seguinte afirmação: «A cidade é um instrumento de trabalho. As cidades já não cumprem normalmente essa função» (Corbusier, 1992, p. vii). Assumindo o trabalho como uma função biológica, o desafio urbanístico passa a ser o desajustamento entre a forma histórica negativa da cidade industrial e a função supostamente transhistórica e positiva do trabalho. Por isso, Le Corbusier também estabeleceu que o objectivo do planeamento urbano deveria ser «ajudar no nascimento da alegria do trabalho» (Corbusier, 1995, p. 68). Na sua proposta utópica da chamada «cidade contemporânea», Le Corbusier propõe que a cidade se estruture em torno de três grandes grupos do seguinte modo: «Os urbanos, aqueles do centro, que aí trabalham e residem na cidade. Os suburbanos, aqueles que trabalham na periferia, na zona fabril, e não vêm à cidade; residem na cidade-jardim. Os mistos, aqueles que fornecem seu trabalho no centro dos negócios, mas criam a família nas cidades-jardins» (Corbusier, 1992, p. 157). É evidente que se propõe aqui uma segregação espacial tendo como base as classes sociais, mas esta evidência não nos pode ofuscar que Le Corbusier o faz a partir do critério único do trabalho abstracto. Na verdade, a utopia de Le Corbusier não passa de um exemplo urbanístico daquilo a que o filósofo alemão Jurgen Habermas (2002), noutro contexto, chamou «utopia da sociedade do trabalho». Não podemos por isso pensar que a metafísica do trabalho de Le Corbusier seja apenas um exercício de retórica protestante sem qualquer relação com as formas urbanas propostas; na verdade, em Le Corbusier a metafísica do trabalho surge como justificação de grande parte das propostas que o tornaram famoso. Afirma que é necessário «criar tipos de ruas que sejam equipadas como é equipada uma fábrica» (Corbusier, 1992, p. 124), ruas que terão de ser rectas, porque só «a rua recta é uma rua de trabalho» (p. 196). Se a cidade é um instrumento de trabalho, então a concentração de força de trabalho é o centro da cidade; por isso, Le Cobusier define-o simplesmente como «vinte e quatro arranha-céus podendo conter de 10.000 a 50.000 empregados cada um» (p. 161); e a célebre praça central é, segundo o próprio Le Corbusier, «tão vasta que cada qual se dirige sem estorvo para o local de trabalho» (p. 170). Le Corbusier expressa talvez de um modo mais explícito aquilo que desde início está subjacente na generalidade das propostas do urbanismo moderno, tanto no capitalismo ocidental como no capitalismo de Estado soviético: o trabalho abstracto como princípio estrutural de produção e organização da cidade moderna. Não é de todo mero acaso que a Internacional Situacionista, ainda na década de 1950, tenha sido uma das primeiras vozes críticas tanto do urbanismo do movimento moderno como do trabalho abstracto.
Mas dizer que o trabalho abstracto é um princípio estrutural de organização do espaço urbano moderno não significa obviamente que no espaço urbano moderno somente se trabalhe, mas sim que o trabalho abstracto é o a priori social de percepção, reflexão e intervenção no espaço urbano. É sabido que logo no seu primeiro congresso (1928), os CIAM fixaram três funções-chave do urbanismo moderno: habitação, trabalho e lazer (às quais adicionaram posteriormente a circulação). Que a separação funcional destas três funções tenha sido historicamente constituída pelo desenvolvimento da sociedade capitalista e que esteja longe de ser um fenómeno transhistórico é algo simplesmente ignorado. Na verdade, esta formulação dos CIAM não é outra coisa senão a mera tradução funcional e espacial da clássica reivindicação do movimento operário de «oito horas de trabalho, oito horas de sono e oito horas de lazer». Entretanto, nesta listagem de funções dos CIAM, tantas vezes lembrada, há uma aparência de equivalência que teima em não ser desmascarada. Na verdade, nas reflexões ideológicas dos CIAM, o «trabalho» é sempre a função determinante e um pressuposto das restantes. Na sociedade capitalista nem pode ser de outro modo; o carácter ideológico dos CIAM está justamente em esforçar-se em naturalizar essas condições sociais específicas.
Os ensaios apresentados no segundo congresso CIAM, realizado em 1929, e dedicado ao tema da «habitação de existência mínima», procuraram determinar novos padrões de habitabilidade a partir da determinação biológica das necessidades humanas em termos de área, luz e ar. Le Corbusier, por exemplo, abre o seu texto com a afirmação de que «a habitação é um fenómeno distintamente biológico» (Corbusier, 1929); para Walter Gropius (1929), por sua vez, embora parta de uma discussão da relatividade histórica e social dos padrões mínimos da habitação, o seu objectivo final é justamente eliminar essa relatividade com uma fundamentação biológica, considerada finalmente objectiva. Mas apesar de todas as considerações sobre as necessidades biológicas, que pretensamente se aplicam a todos os seres humanos, Gropius termina o seu ensaio restringindo acriticamente o direito à «habitação racionada» como um «requisito mínimo de cada pessoa com emprego remunerado». Gropius considera assim algo perfeitamente natural que o direito à habitação tenha como pressuposto ser-se trabalhador. Mas, na verdade, ser-se trabalhador não é condição suficiente; é preciso ser-se rentável.
Ao contrário dos textos afirmativos de Le Corbusier e Gropius, o arquitecto Ernst May, que há muito coordenava dezenas de projectos de habitação social para o município de Frankfurt, parte das possibilidades de negação da miséria social realmente existente na Alemanha entre guerras, procurando, ao nível do projecto e da estandardização das técnicas e materiais de construção, estabelecer padrões mínimos de habitabilidade que respondessem tanto a «necessidades biológicas» como às condições sociais existentes, designadamente que a renda da habitação não fosse superior a um quarto do salário de um operário, uma condição que May afirmava ser cada vez mais difícil de garantir e que estava à beira de piorar: é que o segundo congresso dos CIAM abriu no exacto dia em que se deu o crash da bolsa de Nova Iorque e que marca o início da Grande Depressão. Nos anos que se seguiram, ao mesmo tempo que a exposição dos projectos de habitação de existência mínima circulava pela Europa, seduzindo arquitectos e estudantes, desfaziam-se as condições sociais mínimas pressupostas pelos próprios projectos. Em Frankfurt, as rápidas subidas das taxas de juro suspenderam vários projectos de expansão urbana, restringiram a construção e a compra de habitação, as rendas passaram de um quarto para mais de metade dos salários, ao mesmo tempo que o desemprego crescia exponencialmente e os despejos se tornavam inevitáveis (cf. Mumford, 2002, pp. 30,42). O que aqui se torna finalmente claro é o seguinte: não basta apenas que os residentes da habitação de existência mínima estejam empregados, como afirmava Gropius, é preciso também que eles estejam empregados de forma rentável. Num contexto de reprodução social capitalista, quaisquer propostas de habitação de existência mínima não podem deixar de pressupor a rentabilidade mínima da própria existência dos seus habitantes; rentabilidade essa que não se decide no espaço habitacional mas é determinada pelo contexto social total da reprodução capitalista. Isto é algo que em momentos de prosperidade económica parece não ser problemático para a maior parte dos indivíduos, até ao momento em que uma crise de valorização expõe a monstruosidade do pressuposto com o sofrimento geral que se conhece, e hoje não menos do que ontem.
Aparentemente, o princípio do trabalho abstracto e o pressuposto de valorização da força de trabalho aplicam-se a todos os indivíduos. Contudo, tal princípio possui desde o início uma conotação sexual. Como mostrou Roswitha Scholz (1992), apesar da dominação patriarcal e da divisão sexual do trabalho ser anterior à sociedade capitalista, apenas nesta se verifica uma «determinação patriarcal das relações sociais por meio do trabalho abstracto e do valor», e no correspondente processo histórico de socialização do capitalismo «todo o conteúdo sensível que não é absorvido na forma abstracta do valor, a despeito de permanecer como pressuposto da reprodução social, é delegado à mulher». Assim, todas as actividades quotidianas que não são passíveis de ser integradas no processo de valorização do capital (criação dos filhos, administração do lar, preparação das refeições, etc.) vêem-se remetidas para a esfera feminina, e são elas próprias feminizadas. Ora, estas actividades são também estruturalmente desempenhadas no espaço residencial, que no movimento moderno adquiriu um estatuto simbólico de «reduto» gerido pelas mulheres contra o «lado negro» dos imperativos do trabalho abstracto expressos na generalidade do espaço urbano. Esta problemática já foi realçada algumas vezes pelas críticas feministas do movimento moderno, sem no entanto serem levadas a sério. No entanto, é facilmente verificável que na arquitectura e urbanismo funcionalista a feminização do espaço residencial privado surge como um pressuposto da masculinização do espaço de trabalho e da vida pública, e o mesmo inversamente. Não é por acaso que o livro de arquitectura mais vendido em todo o mundo, o Neufert, após centenas de edições ainda hoje ilustra as medidas supostamente universais dos espaços públicos e de trabalho com figuras masculinas e reserve as femininas para os espaços residenciais e a secção da cozinha; e também não é por acaso que as célebres cozinhas de Frankfurt foram atribuídas a uma das raras arquitectas do início do movimento moderno, Margarete Lihotzky. Mas esse pressuposto também se encontra em Le Corbusier, não só no seu famoso arquétipo Modulor, que é explicitamente masculino, mas quando afirma candidamente que numa civilização mecanizada «a mulher parece poder perfeitamente reencontrar o seu papel essencial, que é o de ser animadora do lar. Por isso, ela deixará de trabalhar na fábrica e, no campo, o seu papel será também, pela ordenação do equipamento de exploração rural, nitidamente ligado ao lar» (Corbusier, 1995, p. 191).
Não conheço suficientemente Brasília para aí poder identificar as diversas problemáticas aqui referidas. Mas alguns aspectos não são difíceis de encontrar. A Constituição da República Brasileira, no final do século XIX, inscreveu na sua bandeira o lema «Ordem e Progresso», não por acaso inspirando-se explicitamente numa afirmação do sociólogo positivista August Comte, ao mesmo tempo que estabeleceu o desígnio de fundação da uma nova cidade capital no interior, o que só viria a acontecer mais de meio século depois e à luz dos princípios da arquitectura e urbanismo funcionalistas.
Neste âmbito, é já evidente que a arquitectura funcionalista começava a desempenhar ela própria o papel de representação nacional da modernização social, na qual as próprias formas arquitectónicas assumem uma função simbólica, um aspecto sempre presente nas pesquisas do movimento moderno mas nunca conscientemente reflectido. Por outro lado, procurava-se de certo modo testar o postulado da arquitectura moderna de estabilização social através das formas arquitectónicas (algo que é explicitamente afirmado no relatório do plano). As funções são assumidas aprioristicamente, como não pode deixar de ser, e, de acordo com os princípios do zonamento do 4º CIAM, inteiramente separadas por sectores, fundamentalmente organizados em dois eixos: um eixo de habitação e um eixo de trabalho, que é o também chamado Eixo Monumental, ou seja, de representação estatal com os diversos ministérios. As investigações antropológicas de James Holston (1989) mostraram entretanto alguns aspectos que mereceriam um maior aprofundamento à luz das problemáticas aqui levantadas, designadamente: que a organização inicial liderada pelo governo federal distribuía os alojamentos com base em critérios laborais; que as identidades colectivas dos residentes são ainda hoje profundamente marcadas pela identidade laboral, e que Brasília é desde há décadas a cidade brasileira com o maior ratio de população activa.
Seria absurdo ver nesta apresentação a defesa de uma espécie de cumplicidade consciente do movimento moderno com a trajectória histórica do capitalismo. Trata-se antes de o definir como uma ideologia, entendida como um processamento afirmativo das contradições sociais do capitalismo, contradições que procura naturalizar e resolver naturalizando, o que nunca dá certo. Se a arquitectura tem de dar resposta às necessidades, e portanto também às funções, da sociedade existente, não pode com isso esquecer que a sociedade também pode ser essencialmente de outro modo, e neste sentido também com outras funções conscientemente escolhidas, e não simplesmente por causa da arquitectura.
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In Imprópria. Política e Pensamento Crítico #03, 1º Semestre 2013, ISSN: 2182-3367, Unipop e Tinta da China Edições, pp. 99-107