Carsten
Weber
FORTALEZA
HOMEM-BRANCO-OCIDENTAL
A
“salvação de si mesmo do sujeito masculino" como refúgio ideológico
de crise
da
descendência regressiva da classe média de esquerda
"O sujeito é mentira porque, em virtude da incondicionalidade da própria dominação, ele nega as determinações objectivas de si mesmo"
Adorno, Negative Dialektik 274 [Dialética Negativa, p. 232]
A crítica social não cai do céu nem se articula por si mesma. É o produto, rico de pressupostos intelectuais, de indivíduos que desenvolvem uma consciência crítica em disputa dolorosa e conflituosa com a sociedade e são impulsionados, em última instância pelos próprios objectos, a formular a sua crítica. Não há garantias de que esta posição cansativa e ingrata seja sustentável. Hans Magnus Enzensberger, que dá ele próprio um exemplo notável, encontrou quase há 50 anos as palavras próprias, com a maior concisão: "A lei da reflexão crescente é inexorável. Quem tentar escapar-lhe termina nas vendas da indústria da consciência." (Enzensberger 172)
Um exemplo recente desse declínio é um ensaio de Martin Dornis, na primeira edição da revista de Leipzig outside the box de dezembro de 2009, sob o título "A dialéctica negativa do sujeito masculino". Esta obra mal atamancada, cuja confusão conceptual e terminológica, insuficiência de conteúdo, contraditoriedade imanente, fé quase fanática no Iluminismo e total impossibilidade de demonstração das suas mensagens-chave, em associação com um gestus pseudogenial, dificultam enormemente uma discussão crítica séria – tal obra constitui um documento patético da alienação do seu autor do paradigma de crítica social que caracterizara o seu desenvolvimento intelectual e o seu trabalho como redactor e editor da EXIT! por muitos anos e a que agora "renuncia" publicamente com alvoroçados ciúmes: a saber, a crítica da dissociação e do valor e a crítica da ideologia do Iluminismo burguês que lhe está necessariamente ligada.
Dornis começa logo o ensaio com uma distorção fundamental. Diz ele: "Este texto evidencia, na argumentação que se segue, a dialéctica negativa do sujeito masculino, no quadro de uma crítica materialista das relações de género." (P.20) É precisamente isso que ele não faz. Todo o texto carece completamente de qualquer abordagem materialista e das investigações para tal necessárias; em vez disso, está cheio de dogmas e de más construções idealistas, sobre as quais sou forçado a debruçar-me, para minha tristeza. Em primeiro lugar, esta: "O sujeito submete a natureza interna e externa, fundamentando assim, ao mesmo tempo, tanto a possibilidade de liberdade, como as formas modernas objectivadas de dominação e subjugação, ou seja, mediação económica na base do valor e mediação política na base da vontade geral. Na forma de sujeito o indivíduo submete o seu instinto de auto-domínio e funda-se como ente idêntico, individualiza-se finalmente pela primeira vez, define-se como ser uniforme e único que persiste no tempo." (p. 20; itálico de Dornis) Estas frases não passam de ideologia regressiva, são uma bofetada na cara da crítica social séria, mas particularmente da historicização das formações sociais e da racionalidade capitalistas, desmentindo a intenção crítica afirmada pelo autor. Dornis procede, com ar sério, como se as pessoas que viveram antes da ascensão sangrenta da forma de sujeito capitalista fossem animais de rebanho, fixados no instinto e completamente presos à natureza, sem qualquer individualidade, tal como o afirmaram os ideólogos assertivos da formação social capitalista, nas manifestações mais extremas da sua metafísica do progresso. Ele ignora completamente que os indivíduos e as organizações sociais na pré-modernidade estavam ligados entre si por intermédio da mediação fetichista da religião e que as condições constituíram os indivíduos como máscaras de carácter feudais. (vd. Weber, Zwischen Hammer und Amboss [Entre o martelo e a bigorna]). O capitalismo, por sua vez, não acabou com as constituições de fetiche pré-modernas, mas desenvolveu-se historicamente como uma nova formação social fetichista a partir da mais antiga, sem que isso tenha resultado de acções conscientes dos indivíduos envolvidos.
A afirmação de que o sujeito, por sua vez, através da subordinação da natureza interna e externa, constituiria tanto a possibilidade de liberdade como também as formas modernas objectivadas de dominação e submissão pode parecer à primeira vista uma tentativa de o autor expor a alegada dialéctica do sujeito masculino. No entanto, não se trata no caso de uma dialéctica negativa, que deveria incluir a ruptura com esse sujeito, como ele anuncia, mas, na melhor das hipóteses, de uma dialéctica positiva, que pretende salvar a essência do sujeito masculino-branco-ocidental (MBO), "contra a sua tendência para a barbárie, contra a sua dissolução na identidade compulsiva" (p. 23), nas suas palavras. Com isto ele refere-se não à horrível realidade actual, mas exclusivamente à ameaça do passado, projectada no futuro, da agudização renovada do horror de um Estado nacional alemão não liberal, autoritário e idêntico consigo mesmo. Para esta nova construção ideológica, Dornis precisa de uma deturpação histórica grosseira, dividindo arbitrariamente o curso da história de meio milénio da modernidade capitalista em três fases, a saber: uma pré-história "má", marcada pela caça às bruxas e pela violenta acumulação primitiva, uma época "boa” de Iluminismo e de liberalismo burguês, com possibilidades positivas de superação e, finalmente, mais uma vez uma "má" história de decadência dos séculos XIX e XX, em que alegadamente teriam sido deixadas cair a "Wealth of nations... e a pursuit of happiness… tal como a organização racional do mundo". (p. 22 sg.).
Esta potencialidade supostamente "boa" do sujeito masculino-branco-ocidental em sua fase liberal, que Dornis situa no século XVIII, ele atribui-a ao estabelecimento da possibilidade de felicidade (p. 21), retirando completamente do seu contexto o conceito de pursuit of happiness, usado como mero slogan. O preâmbulo da Declaração da Independência Americana, donde Dornis realmente rouba o conceito, fala do direito de cada indivíduo a buscar a sua própria felicidade - e de facto sendo a priori pressuposta a concorrência, a qual já era bem conhecida como paradigma do capitalismo para os autores da Declaração de Independência. Ao esconder isso, Dornis ideologiza o conceito de felicidade até à irreconhecibilidade e redu-lo a um desiderato, pois: "Sem a concorrência não se pode entender absolutamente nada do comportamento social das pessoas no capitalismo. Esta concorrência, desde logo, não é qualquer ‘atitude’ pessoal subjectiva, ou ‘estilo de comportamento’ feio, que se pudesse eliminar com boa vontade, mas, por assim dizer, o facto social mais objectivista e incontornável que há no capitalismo. [...] Os indivíduos, na medida em que colidem entre si no contexto de relações de concorrência económica, são forçados a realizar o seu valor de troca, a impedir o sucesso do acto de troca alheio, a passar por cima dele e a prejudicá-lo, de modo que ele fique pelo caminho. [...] Em condições de concorrência capitalista, a maior capacidade de outro ser humano não é desde logo algo com que eu me possa alegrar, por também me beneficiar como parte das actividades de cooperação, mas principalmente algo que me provoca medo do fracasso e medo de me tornar supérfluo. [...] A percepção de uma maior eficiência dos outros deve desencadear em mim o impulso para eliminar esse desempenho, a fim de melhorar as minhas próprias oportunidades no mercado." (1) (Ottomeyer 80 sg.) É claro que há uma diferença decisiva entre um indivíduo entregar-se a este imperativo fetichista de acção, ou reflectir criticamente sobre ele e procurar resistir-lhe, numa dissidência diária e penosa.
Se um indivíduo não obtém sucesso na pursuit of happiness dominada pelo princípio da concorrência universal, a culpa é dele; esta convicção constitui porventura a essência da mentalidade norte-americana. (2) O que poderia também explicar a raiva desvairada, à mistura com pathos constitucional, do movimento ultra-conservador tea party contra a reforma dos cuidados de saúde de Obama, condenando este projecto ao mesmo tempo como comunista e hitleriano-fascista. Para a zona do centro da Europa, em particular, a extrema obstinação no dever de Immanuel Kant e dos calvinistas constitui a mais forte prova da inconsistência tanto de uma “promessa de felicidade burguesa" como também da afirmação de uma diferença qualitativa entre as formas de sujeito dos séculos XVIII e XIX, como estabelece Martin Dornis. Segundo Kant, a felicidade/sorte "não pode ser atingida pelo agente, pois para isso este precisaria da omnisciência, a fim de ser capaz de avaliar todas as vastas consequências e repercussões das suas acções. Este objectivo só pode ser alcançado pela própria natureza." (Historisches Wörterbuch der Philosophie: Glück, Glückseligkeit [Dicionário Histórico da Filosofia: sorte, felicidade]. HWPh vol 3, p. 703) Além disso, é um disparate pretender “salvar” a “profundidade do passado" (Adorno, Minima Moralia, 212) contra a "invocação de 1789" (ibid.) de ontem. Proclamar as perucas do século XVIII como farol do século XXI seria mesmo a mais absurda revolução conceptual.
A “promessa de felicidade burguesa" também para Dornis é mera aparência, mas ele defende teimosamente essa aparência como uma "oportunidade" que ainda estaria por realizar. Dornis enobrece como possibilidade de libertação a ilusão fetichista e portanto delirante de felicidade que o capitalismo oferece aos seus sujeitos; ele opta aqui pela ilusão contra a verdade. Esta enviesada figura de pensamento ocorre-lhe relativamente tanto à “promessa de felicidade burguesa" como ao "amor romântico": "É com base na possibilidade de individualidade do indivíduo que se torna possível amar este ser humano e não qualquer outro, ceder à aparência de que para cada uma ou cada um existe apenas um ou uma, sem reservas e contra toda a realidade." (p. 20) Esta apologia da aparência, no entanto, torna-se maligna, quando Dornis defende com ela até o horror da caça às bruxas como a condição de existência da "possibilidade de emancipação da natureza, de vencer a morte... e de obter a individualidade e a liberdade" e difama a crítica radical feita a esta loucura como a promoção da barbárie. (p. 21) Também a esta atrocidade ainda terei de voltar.
A divisão em três fases, com que Dornis cobre a história decorrida da modernidade capitalista, não passa de pura mentira. A dinâmica capitalista, incluindo as suas ideologias de base, constitui um continuum histórico que não se pode separar em uma parte "boa" e duas "ruins", como num livro infantil. Já no período liberal o trabalho abstracto foi imposto à força, contra as rebeliões (ver Kurz, Schwarzbuch [Livro negro] p. 101 sg.) e foi precisamente a filosofia do Iluminismo desta época que colocou as bases ideológicas para o sexismo, o racismo e o anti-semitismo (ver Kurz, Blutige Vernunft [Razão sangrenta], p. 62 sg.) e não uma “história de decadência” posterior. Dornis, porém, necessita destas falsificações violentas da história para manter o seu constructo ideológico afirmativo contra o seu melhor conhecimento anterior, caindo assim, como todos os convertidos, numa grelha de avaliação particularmente sinistra e vil. Quão cínica é de facto a apologia de Dornis da formação social liberal ocidental, que funciona como um fio condutor através de todo o texto, é o que ele mostra abertamente na página 22: "A era liberal é o ponto culminante do sujeito da sociedade capitalista. Aqui vem à ribalta a sua dialéctica totalmente desenvolvida. No contexto da história de tortura e violência em que o sujeito masculino veio ao mundo, a sociedade capitalista surgia ela própria no século XVIII/XIX ciente da vitória como esclarecida. Ela pode esquecer confiantemente o banho de sangue em que se baseia." (itálico meu) Isto não significa condenação sarcástica, mas concordância. Dornis lamenta que se tenha chegado a este massacre, mas festeja a transformação histórica e social obtida na sua sequência, transformação que, de acordo com Marx, "equivale àquele ídolo pagão hediondo que queria beber o néctar apenas no crânio dos mortos" (MEW vol. 9, p. 226). Os fins justificam os meios; o principal é que o sacrifício vale a pena, e Martin Heidegger manda cumprimentos encorajadores: "O obscurecimento do mundo não alcança nunca a luz do seer". (citado em: Adorno, Negative Dialektik 73 (Dialética Negativa, p. 62)) Este puro cinismo do sucesso, tal como o raciocínio ordinariamente democrático de apoio ao Estado, que de resto também refuta estridentemente o título da revista que publica esta vergonhosa composição, também está na base da sua abordagem dos assassínios em massa das mulheres, no processo histórico de caça às bruxas. Dornis chega ao ponto de afirmar, na página 21: "Toda a visão moderna do homem e da natureza seria impensável sem a caça às bruxas – e as fogueiras da caça às bruxas foram a acendalha da tocha do Iluminismo. O sujeito mais tarde burguês forjou nesse período a sua liberdade e autonomia." (Itálico de Dornis) Também aqui, como provam as considerações posteriores de Dornis, não há qualquer grão de sarcasmo ou de raiva. Realmente incrível o quanto de auto-sacrifício das mulheres naquele tempo contribuiu para a liberdade do homem moderno. Talvez Horst Köhler devesse dar-lhes a Cruz Federal de Mérito, mesmo postumamente...
Neste contexto, tem de ser bem visto com que surpreendente ausência de mediação e de fundamentação Dornis, por um lado, põe de lado a teoria da dissociação e do valor de Roswitha Scholz, por ele defendida com veemência (3) enquanto foi autor da EXIT!, por outro lado, no entanto, com idêntica ausência de mediação e de modo muito confuso, espalha no seu texto aforismos inspirados na crítica da dissociação e do valor. Isso mostra quão incoerente e contraditório é todo o ensaio e a confusão em que labora o seu autor. Primeiro, sem justificar minimamente o curso do seu pensamento, ele regride a um nível muito superficial na análise da relação de género capitalista, e gasta aquele relevante aparelho conceptual com capacidade de análise crítica num jargão bastante desleixado e relaxado, a que Adorno chamou "nadar na corrente familiar das palavras" (Minima Moralia 112). Diz Dornis: "A subjugação moderna das mulheres não é um produto do discurso, que se possa combater recorrendo ao pluralismo, nem uma forma principal ou opcional: contradição secundária que de algum modo pudesse ser pensada juntamente com a discriminação político-económica ou racista." (p. 20, itálico meu) E, em conclusão, escreve: "A crítica materialista das relações de género deve opor-se fortemente às teorias da fusão entre sociedade capitalista e patriarcado." (pág. 25) Por outro lado, em total contradição com isso, elogia Charles Fourier como "mais radical que Marx", porque "Fourier vai além de Marx, na medida em que reconhece a opressão das mulheres como a base da dominação e da exploração capitalistas e, portanto, formula a necessidade de eliminá-la, para chegar à emancipação real." (p. 22, itálico de Dornis) E formula assim a primeira tese do seu resumo: "As categorias de base da sociedade capitalista não são concebíveis nem praticáveis sem a subjugação das mulheres." (p. 24)
Parece que perturba Dornis o facto de a crítica da dissociação entender a socialização da dissociação e do valor como uma relação capitalista de género, o que não se coaduna com o seu murmúrio moralizador sobre a opressão e a subjugação das mulheres. A supressão de uma relação social não pode ser imaginada como libertação heróica de princesas em cativeiro. Além disso, para regredir até à ideologia do Iluminismo, ele precisa de renegar sem fundamento – porque sem possibilidade de fundamentação – os seus conhecimentos anteriores, ou seja, a teoria da dissociação, uma vez que esta localiza a relação de dissociação no mesmo nível de abstracção que o trabalho abstracto e a forma do valor, reconhecendo-a, portanto, como essencial para o esforço teórico da crítica radical da filosofia iluminista burguesa, a mesma que Dornis pretende salvar incondicionalmente. A dissociação é a condição equiprimordial do valor e, portanto, é incompatível com a propaganda de um “conteúdo emancipatório" do MBO e da sua “razão ". Dornis quer impingir à emancipação das mulheres, por ele invocada em alta voz, precisamente a razão do sujeito homem-branco-ocidental, como se fosse a única possibilidade própria delas, razão através da qual ao mesmo tempo desmente conceptualmente aquela emancipação. Isso prova, portanto, que o "abolir" do sujeito masculino burguês, por ele declamado sem mediação, que em perspectiva deve ser o mesmo que salvá-lo (p. 23), e que continua a ser apresentado apenas como "MBO depois do MBO", surge, por assim dizer, como a sua eternização.
A alegada “dialéctica negativa do sujeito masculino" de Dornis revela-se, assim, como rabulice da ideologia iluminista, quase como uma paranóia “teórica” e ideológica do Iluminismo, pois os massacres do passado são defendidos em nome do liberalismo ocidental, contra o ameaçador horror alemão iliberal do futuro, que se seguiria precisamente à crítica radical do MBO. Uma vez que esta é a muleta ideológica da sua defesa contra a crítica da dissociação e do valor por si antes defendida firmemente, para poder exorcizar tal crítica ele tem de demonizar os seus portadores e portadoras mais expostos. A acusação difamatória, não fundamentada por Dornis e sem suporte em qualquer conteúdo, de que Robert Kurz, na sua crítica do sujeito, consumaria "explicitamente o caminho do sujeito para a barbárie nazi" (4) (p. 23), é a expressão gritante da impotência argumentativa, que assenta na insuficiência de conteúdo teórico da sua ideologia da História e do Iluminismo, assim como da crença fanática no poder emancipatório da razão do MBO, que substitui uma discussão teórica com a crítica do Iluminismo pela denúncia retórica, a qual, aliás, também é dirigida contra a teoria da dissociação, em que se baseia efectivamente a crítica fundamental do sujeito homem-branco-ocidental, e contra a sua expoente Roswitha Scholz. É-lhe mesmo imputada a acusação de apologia do nacional-socialismo.
A crítica social radical tem necessidade da força da negação radical das relações sociais de dominação e da forma de sujeito que lhes serve de suporte. Dornis, no entanto, difama a negação radical como sendo tão totalitária como a totalidade social em si, ele cai por assim dizer nos braços e perde-se na afirmação centrista das relações dominantes. Isto corresponde, obviamente, à ideologia dos interesses da classe média na crise, cujo impulso básico consiste em não revelar a “barbárie” como a base da própria sociedade capitalista e da sua ideologia iluminista, mas em externalizá-la para a periferia, ou para as regiões em colapso do mercado mundial, para de seguida propagandear a "salvação" da "civilização” capitalista, que se revela como ânsia de poder prosseguir as suas próprias ambições (teóricas) burguesas, sem ser molestado pelos "bárbaros" e de preferência com a ajuda da máquina militar ocidental, mantendo os interesses de classe média sob os auspícios do Estado de bem-estar social remanescente nos centros. Nos centros, por sua vez, a ideologia dos interesses da classe média demarca-se dos "feios, porcos e maus", a fim de conseguir um ganho diferencial residual na crise e conquistar a pole position na luta cada vez maior pela distribuição, sob o signo da administração repressiva da carência artificial.
Nesta medida, a ideologia iluminista anti-alemã é complementar do quadro idílico – por si aparentemente combatido – da alternativa pequeno-burguesa com o rótulo de “crítica do valor” mas crassamente truncada, que procura descobrir, sob o signo ideológico de um ruim conceito de apropriação abstracta, mil embriões do comunismo no aqui e agora capitalista, logo reduzidos com um encolher de ombros compassivo: "O dinheiro dá possibilidades… O dinheiro não dá felicidade! Mas onde ele governa nada se pode fazer sem dinheiro. É preciso tê-lo". (Peter Pott, citado em: Kurz, Seelenverkäufer [Vendedores de almas]) A ambas as ideologias de esquerda de classe média, tanto à ideologia do Iluminismo anti-alemã como à ideologia da apropriação da "crítica do valor" truncada, se aplica o que Robert Kurz dirigiu contra esta última: "Não querem contrariar a concorrência de aniquilação social através do confronto social com administração da crise..., mas apenas mantê-la fora dos próprios pavilhões. [...] Portanto, indirectamente também é válido um impulso de exclusão social, que repele tudo o que não ficar absorvido neste aprontar de forças de pseudo-emancipação da nova pequena burguesia. Para a massa das novas classes inferiores, a qual é a priori incompatível com este constructo habitual (sem que por isso sejam pessoas melhores; também contra este “diferente” entendimento do quotidiano se emprega a crítica da ideologia), resta, perante o idílio pequeno-burguês da ideologia da alternativa imaginária, a tabuleta à porta da loja: "Infelizmente temos de ficar fora." (Kurz, Seelenverkäufer [Vendedores de almas])
Esta ideologia dos interesses, que assenta na classe média por direito próprio, como expressão agudizada do princípio da concorrência capitalista, obviamente que não se detém de modo nenhum perante os sujeitos da classe média. Se o “pertencer” habitual já é o paradigma da exclusão das classes mais baixas, no interior da classe média ele constitui a "cotação" com que se mede cada “ser aceite” individual dos sujeitos de classe média em seu ambiente. Especialmente nos círculos esquerdistas, como entre os filhos dos burgueses anti-alemães de Leipzig, a questão é provar pertencer ao mesmo redil e assumir a respectiva ideologia. Aqui há uns anos, Martin Dornis, que reside em Leipzig, quando virou temporariamente as costas à ideologia iluminista e se mudou para a crítica da dissociação e do valor, teve de passar pela experiência de ser punido por isso com o desprezo da sua clique. Designei acima a posição da crítica social radical de ingrata e desgastante; e isso é assim porque na sociedade fetichista ela tem de estar preparada para a ameaça de isolamento. O senso comum está sempre pronto para o conformismo e considera o crítico não conformado não só com desconfiança e hostilidade mas também com malicioso olhar concorrencial: uma vez isolado, já não será um concorrente eficaz. As consequências desumanas são apresentadas por Horkheimer e Adorno, com grande discernimento: "O comportamento do indivíduo com relação ao crime organizado – seja nos negócios, na profissão ou no partido, seja antes ou depois da admissão – a gesticulação do Führer diante da massa, do homem enamorado diante da mulher cortejada, assumem traços peculiarmente masoquistas. A postura que todos são forçados a assumir, para comprovar continuamente sua aptidão moral a integrar essa sociedade, faz lembrar aqueles rapazinhos que, ao serem recebidos na tribo sob as pancadas dos sacerdotes, movem-se em círculos com um sorriso estereotipado nos lábios. A vida no capitalismo tardio é um contínuo rito de iniciação... Todos podem ser como a sociedade todo-poderosa, todos podem se tornar felizes, desde que se entreguem de corpo e alma, desde que renunciem à pretensão de felicidade. Na fraqueza deles, a sociedade reconhece sua própria força e lhes confere uma parte dela. Seu desamparo qualifica-os como pessoas de confiança.” (Horkheimer e Adorno, Dialektik der Aufklärung 162) [Dialética do Esclarecimento, p. 143/144]
Portanto, agora Martin Dornis voltou com balidos de arrependimento ao seu rebanho de origem. Não é o primeiro e provavelmente não será o último. Há uns anos, quando ele tinha acabado o ensaio "Von der Harmoniesucht zum Vernichtungswahn [Da mania de harmonia ao delírio de aniquilação]" para a EXIT! nº 3, já outro ex-crítico do valor de Leipzig tinha sido tomado pelo arrependimento; este distanciara-se naquele momento com um fervor tão confessional da crítica da dissociação e do valor que me vieram ao pensamento aterrorizadoras analogias históricas. Martin Dornis abanou a cabeça surpreendido com esse comportamento. Talvez lhe fizesse bem se voltasse a abaná-la outra vez, agora com mais força.
Notas:
(1) A história do contexto da crítica da dissociação e do valor, actualmente representada pelo círculo da EXIT!, pode apresentar um testemunho fiável de que também as relações entre grupos de esquerda não estão imunes a isso, especialmente no decurso golpe interno da Krisis na primavera de 2004 e da cisão da Krisis daí resultante. Em que medida a regressão de Martin Dornis, de crítico do valor e da dissociação para ideólogo do Iluminismo, tem a ver com isso não pode ser decidido aqui.
(2) De facto, essa mentalidade em sentido universal, como é entendida em os E.U.A., espalhou-se, por exemplo no continente europeu, apenas em minoria, como ideologia liberal ou neo-liberal decididamente distinta; embora ocupe um espaço cada vez maior, especialmente na Alemanha, como ideologia de demarcação das classes médias, em particular contra os desempregados de longa duração. Historicamente, isso tem a ver principalmente com o facto de que os operários desempregados ou descontentes terem tido, na fase de expansão dos Estados Unidos, uma oportunidade sem igual de se deslocarem para oeste e estabelecerem uma vida independente como agricultores, garimpeiros, caçadores ou aventureiros, sendo que os bem sucedidos foram sempre claramente uma minoria, enquanto a maioria levou uma existência precária, tal como hoje os empresários de miséria nos nichos da terceira revolução industrial.
(3) Em seu notável ensaio " Von der Harmoniesucht zum Vernichtungswahn [Da mania de harmonia ao delírio de aniquilação]", publicado na EXIT! nº 3 em 2006, observou ele ainda "que o capitalismo baseia-se numa relação de género patriarcal" (p. 151), e muito justamente designou “o capitalismo como patriarcado produtor de mercadorias”. (p. 152) Com expressa remissão para Roswitha Scholz e em síntese de uma curta passagem teórica através da essência da forma moderna de socialização por ele criticamente analisada, escreveu: "A sociedade capitalista, se quisermos realmente entendê-la, tem de ser percebida como uma socialização de dissociação e valor." (p. 121)
(4)
Particularmente disparatado é quando Dornis, no mesmo local, como base desta
acusação e a fim de reforçar a sua ideologia afirmativa do sujeito, constrói
“um contraste flagrante com a teoria do MBO", insistindo que o sujeito não
é racista, sexista, etc., porque do
sexo masculino e branco, mas que se torna
racista, sexista, etc., porque do sexo masculino e branco. No contexto da crítica
da dissociação e do valor simplesmente não vale a pena frisar a explicação
de que a configuração MBO ainda não penetrou no genoma humano. Que Dornis
insista nisso com veemência artificial só fala contra ele.
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Verblendungszusammenhänge [Entre o martelo e a bigorna. As relações
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101-184
Original
Festung
MBO
in www.exit-online.org
(25.05.2010)