Claus Peter Ortlieb

 

DUMPING SALARIAL, ALTA TECNOLOGIA E CRISE

 

O suposto "sucesso" alemão é devido à redução dos custos por unidade de trabalho, mas o aumento geral da produtividade do trabalho leva à crise do capitalismo, e não só na zona do euro

 

Na opinião geral, uma das razões por que "a Alemanha sobreviveu à crise melhor do que os outros", se tornou de novo "competitiva" e " hoje se apresenta numa posição economicamente tão brilhante" está na Agenda 2010 da coligação vermelha-verde do chanceler Schröder e na "reestruturação do Estado social" a que ela obrigou. [1]

 

 

O que isso poderá querer dizer é o que podem mostrar os seguintes dados, publicados em Novembro de 2011 por duas vezes na Spiegel Online, em 09.11 sob o título "Queda dos salários reais: os alemães com cada vez menos poder de compra", e de novo em 23.11com o título "Subida dos salários reais: os empregadores estão com mais dinheiro no bolso". Enquanto em 09.11 se focava o desenvolvimento dos últimos 10 anos, em 23.11 tratava-se de música futurista de certos "peritos económicos" que afirmam que os salários por hora vão aumentar 2,7% em 2012, enquanto a inflação no próximo ano chegará a 1,9%. Mas quem é que vai acreditar nisso?

 

Média do rendimento real bruto mensal do trabalho, por decil

 

2000

2005

2010

Variação

2000-2005

Variação

2000-2010

1º. Décimo

320 €

289 €

259 €

-9,7%

-19,1%

2º. Décimo

798 €

636 €

614 €

-20,3%

-23,1%

3º. Décimo

1290 €

1120 €

1048 €

-13,2%

-18,8%

4º. Décimo

1658 €

1520 €

1440 €

-8,3%

-13,1%

5º. Décimo

1958 €

1902 €

1798 €

-2,9%

-8,2%

6º. Décimo

2253 €

2245 €

2162 €

-0,4%

-4,0%

7º. Décimo

2554 €

2573 €

2485 €

0,7%

-2,7%

8º. Décimo

2865 €

2967 €

2845 €

3,6%

-0,7%

9º. Décimo

3434 €

3543 €

3440 €

3,2%

0,2%

10º. Décimo

5368 €

5340 €

5481 €

-0,5%

2,1%

 

Média

2229 €

2201 €

2136 €

-1,3%

-4,2%

 

Mediana

2096 €

2087 €

1941 €

-0,4%

-7,4%

 

Fonte: SOEP v27. Valores a preços de 2005. SPIEGEL-Online 9.11.11

 

A Agenda 2010 não só reduziu descaradamente as transferências sociais por amor da "viabilidade financeira do Estado social" (Hartz IV), mas foi também a autorização parlamentar para o dumping salarial. Como tal tem sido aparentemente muito bem sucedida, como se pode ver aqui a partir do Painel Económico-Social (SOEP) da DIW Berlin. A tabela mostra o salário mensal bruto para os anos 2000, 2005 e 2010 a preços de 2005, ou seja, abstraindo da inflação, e dividida em dez partes de acordo com o nível salarial. Em média, portanto, os salários reais na Alemanha diminuíram 4,2% entre 2000 e 2010, mas com um corte mais forte à custa dos que já antes ganhavam menos:

 Nos primeiros 10% de empregados marginais pode ver-se que quanto menor é o salário maior é a perda de salário real.

 Para os 70% inferiores os salários reais caíram em média 9,5% até 2010.

 Também os salários dos trabalhadores qualificados (indústrias exportadores, nas décimas 6 a 8) diminuíram em termos reais

 Enquanto os 60% de baixo já no ano 2005 sofriam perdas de salário real, os outros só perderam na segunda metade da década. Os salários reais foram portanto devorados de baixo para cima ao longo da estrutura salarial. A única excepção é nos 10% superiores, que desempenham um papel especial, por razões que não podem ser aqui examinadas.

 

Já em 2008 a Fundação Hans Böckler tinha publicado um estudo segundo o qual aparentemente com base em outros dados e/ou metodologia [2] os salários reais na Alemanha desceram 0,8% de 2000 a 2008, enquanto em todos os outros países da UE aumentaram:

Aumento dos salários reais de 2000 a 2008

Alemanha

-0,8%

Holanda

12,4%

Eslovénia

40,3%

Áustria

2,9%

Chipre

12,8%

Eslováquia

48,1%

Portugal

3,3%

Suécia

17,9%

República Checa

49,1%

Espanha

4,6%

Finlândia

18,9%

Bulgária

51,9%

Bélgica

7,2%

Polónia

19,0%

Hungria

66,7%

Itália

7,5%

Dinamarca

19,0%

Lituânia

104,4%

Malta

7,9%

Grã-Bretanha

26,1%

Estónia

132,5%

Luxemburgo

8,1%

Grécia

39,6%

Letónia

188,5%

França

9,6%

Irlanda

30,3%

Roménia

331,7%

 

Fonte: Böcklerimpuls 14/2008

 

Mais um dado empírico: Segundo os Serviços Federais de Estatística, na Alemanha o valor acrescentado bruto por hora trabalhada na produção industrial excluindo a construção civil, valor particularmente relevante para a exportação – calculado a preços de 2000, deduzindo a inflação – aumentou de € 36,64/hora em 2000 para € 45,77/hora em 2008, crescendo portanto neste período 24,9% em termos reais.

 

O "modelo de sucesso" alemão, com o qual foi supostamente recuperada na última década a anterior "competitividade internacional" perdida é, em suma, uma combinação de alta tecnologia e dumping salarial. Os elevados aumentos da produtividade já não são transmitidos aos empregados assalariados, ao contrário do que acontecia no fordismo e do que ainda continua em todos os outros países da UE. Acresce ainda que a quota da produção industrial no produto interno bruto da Alemanha é significativamente maior do que nos outros países e que, justamente por causa de custos mais baixos do trabalho, essa relação vira-se cada vez mais em favor da indústria alemã, porque – por exemplo – as indústrias do sul da Europa nestas condições são cada vez menos competitivas.

 

As linhas de fractura especiais, para além da crise económica mundial, na zona euro – até ao seu colapso entretanto já considerado possível – cujos países já não podem proteger-se entre si pela desvalorização da moeda, têm a sua causa justamente no facto de que a economia maior e ao mesmo tempo um dos países com maior produtividade do trabalho pratica dumping salarial.

 

Há muito tempo que isso vem sendo apontado, por exemplo, pela Comissão Europeia e pela anterior ministra das Finanças francesa e actual directora-geral do FMI, Christine Lagarde, que convidaram os alemães a aumentar os salários e a conter sua actividade de exportação, claro que sem qualquer resposta do lado alemão. Quem pode realmente gostar de quebrar o seu modelo de sucesso? Em vez disso surge a recomendação para o resto da Europa seguir o modelo alemão: "Nós fizemos o nosso trabalho de casa" Obviamente esquece-se ou ignora-se que este modelo assenta numa assimetria e portanto só pode funcionar enquanto não for seguido por todos os outros também. É tão banal como aparentemente difícil de fazer compreender que nem todos podem ter saldos comerciais positivos, porque a soma destes é necessariamente igual a zero.

 

Assim, impõe-se aos “países em crise” do sul da Europa um plano de cortes perante o qual "as reformas de Hartz IV são como umas férias com SPA no Sri Lanka", como diz Georg Diez no Spiegel-Online de 02.12.2011. Mas com que resultado? É claro, o BCE, a fim de evitar um crash do euro, terá de comprar crédito público mal parado numa escala cada vez maior, o que tendencialmente provoca a inflação, no mínimo. Simultaneamente, toda a UE caminha para a depressão, e naturalmente também a Alemanha: Mais de 60% das exportações alemãs (578 do total de 957 milhares de milhões de euros) vão para a UE-27, sendo que em 2010 constituíram cerca de 23% do Produto Interno Bruto alemão [3] e sendo que as exportações para o resto do mundo também estão em última análise numa situação delicada.

 

O "gigantesco pacote de estímulo económico financiado a crédito"

A coincidência esperada de depressão e inflação e o consequente surto de empobrecimento deverão conduzir provavelmente já no curto prazo a revoltas sociais, não só por toda a Europa, mas por todo o mundo, as quais naturalmente têm que permanecer impotentes enquanto – como ainda acontece com todos os movimentos relevantes – se agarrarem ao meio dinheiro e apenas exigirem a sua distribuição equitativa.

 

Perante a produtividade do trabalho entretanto atingida – de facto, desde os anos de 1980 – na agricultura e na produção industrial, e que continua a aumentar, basta uma fracção cada vez menor da força de trabalho global para produzir para todos. Este desenvolvimento, induzido por si mesmo, colocou o modo de produção capitalista – e com ele o funcionamento da humanidade dele dependente – numa situação de aperto para a qual não há solução dentro do capitalismo. Aqui reside a razão mais profunda para a crise actual que surge como crise de endividamento cada vez maior.

 

Quem por si não produz – no nível de produtividade alcançado, que é o caso da grande maioria – mas não quer baixar o nível de vida, tem que comprar a crédito, portanto contrair dívidas, o que é mais fácil junto dos produtores, que ficam felizes por poderem produzir mais uma vez. Foi apenas este mecanismo que manteve a economia mundial ainda em andamento nos últimos 30 anos. Em retrospectiva, o neo-liberalismo revela-se assim – bem ao contrário da sua própria ideologia – como "o mais gigantesco programa de estímulo económico financiado a crédito de sempre" (Meinhard Miegel). Mas em algum momento a festa acaba e esse momento parece que chegou agora.

 

A fim de esclarecer mais uma vez a questão na UE: mesmo se, ao contrário das expectativas e somente com sacrifícios consideravelmente maiores, como é o caso já dos gregos, portugueses e espanhóis, se conseguisse pôr em forma a União Europeia ou mesmo apenas a zona euro segundo o modelo alemão, tornando-a novamente "internacionalmente competitiva", por outras palavras, reduzindo a UE ao nível chinês, mesmo no que respeita às condições de vida e de trabalho – nesse caso, onde estariam os consumidores para comprar todos os produtos maravilhosos que poderíamos então produzir ainda mais barato?

 

De resto, não é apenas o consumo de massas e o padrão de vida correspondente que são afectados pela espiral descendente iminente, mas também a própria finalidade da economia capitalista, ou seja, a obtenção dos lucros. No nível actual de produtividade, não é possível a acumulação de capital sem consumo de massas, mas este não é possível sem assumir novas dívidas. O modo de produção capitalista já não tem qualquer luz ao fundo do túnel para oferecer, nem sequer para si próprio.

 

 

NOTAS

 

[1] As formulações correspondentes em todos os principais média e representantes políticos, dos vermelhos-verdes aos negros-amarelos, podem-se encontrar em qualquer quantidade, embora com ênfase diferente sobre os méritos particulares do então chanceler. Estes têm origem em Peer Steinbrück no texto de apresentação da candidatura a chanceler publicado juntamente com Helmut Schmidt, Zug um Zug [Passo a passo], Hamburgo 2011, p. 250, bem como no jornal ZEIT de 1.12.11, p. 10. Uma vez que aqui, obviamente, todos parecem copiar-se uns aos outros, a citação exacta torna-se obsoleta.

 

[2] Um problema fundamental em estudos empíricos é que, embora publicados os resultados, nem a base de dados subjacentes, nem a abordagem metodológica são divulgadas para o grande público. Os -0,8% da Fundação Böckler e os -4, 4% do SOEP não se podem harmonizar imediatamente sem mais, ou seja, sem questionar o procedimento específico de cada um. Os valores numéricos em cada caso publicados devem portanto ser lidos com algum cepticismo, o que no entanto não põe em causa as tendências expressas nos estudos.

 

[3] http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/external_trade/data/main_tables

 

Original LOHNDUMPING, HIGHTECH UND KRISE via www.exit-online.org. Publicado em Telepolis, 13.12.2011

http://obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/