Claus Peter Ortlieb

 

O Ritmo do Absoluto

 

"Ao compasso do dinheiro", de Eske Bockelmann

 

Para nós, sujeitos modernos, divididos em "cabeça" e "estômago", quase nada parece pertencer tão claramente a este último, isto é, enraizado na nossa própria corporeidade, como o nosso sentido do ritmo. O que é rítmico e o que não é pode ser difícil de pôr em palavras de uma forma geralmente aceite, mas, no entanto, sabemos o que é assim que o ouvimos. Faz sentido considerar uma sensação tão elementar como natural, como parte do nosso equipamento biológico básico, e assim também acontece quando o sentido do ritmo está ligado ao batimento cardíaco ou ao ritmo do caminhar (de duas pernas). Mas não é assim. Como tantas coisas que o pensamento iluminista considera erroneamente como "universalmente humanas", ou mesmo fundadas na biologia, o nosso ritmo, nomeadamente o ritmo do compasso, é também historicamente específico. Ele apareceu pela primeira vez no início do século XVII, e somente na Europa Ocidental; ele não existiu em nenhum outro lugar antes da sociedade burguesa, pertence a ela e somente a ela.

Esta descoberta constitui o prelúdio do livro de quinhentas páginas de Eske Bockelmann: "Im Takt des Geldes. Zur génese modernen Denkens” [Ao compasso do dinheiro. A génese do pensamento moderno]. A descoberta em si está meticulosamente exposta em mais de cem páginas. Não diz que não havia ritmo fora da sociedade burguesa, mas não era o mesmo que para nós. Na Antiguidade e na Idade Média, bem como nas sociedades não europeias, a música e a poesia consistem em elementos de "tempo completo", cuja duração é em proporções inteiras entre si. O ritmo de quantidade associado é criado pela alternância de secções longas e curtas e não é mais percebido por nós como rítmico (na leitura tradicional). O ritmo do compasso moderno, por sua vez, consiste em preencher uma grelha de intervalos de tempo igualmente longos, os compassos inicialmente vazios, com elementos que seguem um após o outro, de acordo com o esquema de acentuados, não acentuados, um esquema, aliás, que nós mesmos colocamos nos sons através da nossa forma de ouvir, ouvindo de acordo com esse padrão mesmo uma torneira que pinga uniformemente. A referência aos estilos modernos de música e de poesia que não seguem esta regularidade não é capturada aqui: não são por nós vivenciadas como rítmicos. Na Europa Ocidental, no início do século XVII, esta mudança no sentido do ritmo ocorreu quase abruptamente, e não pode ser atribuída a mudanças na música e na poesia, antes pelo contrário. Bockelmann (p. 119) deixa isso exemplarmente claro no "Buch von der deutschen Poeterey" [Livro da poesia alemã] de Martin Opitz, do ano 1624, no qual ele é o primeiro a exigir que os versos sejam escritos como versos com acento, ou seja, de acordo com o esquema acentuado e não acentuado, razão pela qual o próprio Opitz percebe seus versos anteriores como insuficientes e os reescreve de acordo com as novas regras. Obviamente, neste momento, é implantado nos sujeitos um reflexo que desde então nos obriga a seguir o ritmo do compasso e a sentir tudo o que não faz parte dele como não rítmico, como fez Opitz com seus próprios versos mais antigos, que, perante o novo ritmo, aparecem apenas como versos macarrónicos.

De onde vem esta compulsão? Bockelmann vai à procura e encontra a sua causa no dinheiro, mais precisamente na socialização mediada pelo dinheiro, que é depois, à medida que o livro avança, encontrada como a razão para mais dois fenómenos, que estão ligados à sociedade burguesa e só a ela do mesmo modo que o ritmo do compasso, nomeadamente as ciências naturais (matemáticas) e a filosofia moderna. As últimas conexões não são novas, mas assim são apresentadas no livro. Eske Bockelmann parece ser um lutador solitário, pelo menos é assim que ele se sente, quando revela a génese de todo o pensamento moderno que para ele permaneceu oculta até agora. No que diz respeito ao mainstream positivista, essa afirmação é certamente correcta. Bockelmann, no entanto, não recebeu Marx, nem Sohn-Rethel, nem a Teoria Crítica, nem as abordagens mais recentes de crítica do iluminismo, do sujeito e do conhecimento, vindas da crítica do valor e da crítica da dissociação-valor. Seus destinatários são leitores comprometidos com o pensamento iluminista, como se não houvesse outros. Isso torna a leitura do livro irritante em certas passagens, mas só posso recomendar a continuação da leitura, pois vale a pena. Bockelmann reinventa a roda de várias maneiras, mas no final não é só a roda antiga que surge. A sua ignorância ou não-consideração das abordagens existentes em relação à ligação entre "dinheiro e espírito" permite-lhe seguir o seu próprio caminho, do qual outras abordagens poderão também beneficiar. Só falta juntá-las.

A vantagem de Bockelmann é ter de explicar com o reflexo do ritmo do compasso algo que surgiu muito precisamente no início da era moderna e não tem nenhum precursor. Ao contrário de Sohn-Rethel, e até certo ponto de Adorno/Horkheimer (na "Dialéctica do Iluminismo"), ele não se deixa tentar a projectar as condições modernas na antiguidade grega e a buscar ali as conexões procuradas. Ele rejeita justificadamente tais solicitações do Iluminismo em todos os planos considerados (dinheiro, ciência, filosofia). Por outro lado, uma tentativa de compreender a essência do capitalismo plenamente desenvolvido e as suas repercussões sobre os sujeitos burgueses também seria mais um obstáculo ao seu questionamento. Por conseguinte, Bockelmann concentra-se na definição do nível de socialização monetária alcançado no início do século XVII com a maior precisão possível e na explicação das outros domínios a partir daí. Se isso for bem sucedido, então também deve ser possível relacionar desenvolvimentos posteriores do pensamento com o status de socialização capitalista alcançado em cada caso, como a "revolução científica" no início do século XX, um problema que, segundo o meu conhecimento, ainda está para ser resolvido.

Com Bockelmann, o início do século XVII pode ser caracterizado como o momento histórico em que o dinheiro, nos centros burgueses da Europa Ocidental, começa a tornar-se independente das (outras) mercadorias, uma vez que o seu valor de uso, independentemente do material e de todos os conteúdos concretos, consiste apenas em ser um portador de valor, pelo qual todas as outras mercadorias podem ser compradas.

"O valor desliga-se [do conteúdo] no momento histórico em que o dinheiro se torna a universalidade determinante: quando historicamente se pode dizer pela primeira vez "all things came to be valued with money, and money the value of all things". É então que o dinheiro – neste sentido conciso para nós – começa a ser dinheiro, na medida em que funciona apenas como dinheiro. A existência firme, que até então só existia no material pensado como valioso, torna-se então a firme universalidade da referência de todas as coisas ao valor monetário – e assim a existência firme deste é tomada por si mesma. Quando os actos de compra e venda atingem uma universalidade determinante para o abastecimento, existe uma necessidade geral de manter o mercado, que tem de surgir como rede destes actos de compra, muito simplesmente para que o abastecimento que dele depende não se interrompa. A necessidade generalizada de ter dinheiro traduz-se assim na universalidade com que a função do dinheiro continua a ser necessária; e assim traduz-se na firmeza desta função como uma unidade existente por si própria.

O contexto social das transacções monetárias, o mercado, permite assim que o valor se desprenda do material, torna-o um valor não material, não relacionado com o conteúdo e, nessa medida – segure-se brevemente a respiração –, um valor concebido como absoluto. ... Não é o metal da moeda, não é o papel de uma nota que é valioso para nós, não é a sua impressão talvez artística que é o seu valor para nós, mas o facto de este valor poder ser realizado numa transacção monetária e de poder ser realizado com confiança... (Nós) não pensamos este valor na matéria do pedaço de papel, mas apenas no facto de nos garantir a sua utilização como valor. É de valor para nós apenas neste uso que nos é garantido, seja qual for o material ou seja qual for a forma. Pensamos como valor, na forma de uma unidade quantificável existente por si mesma, precisamente este uso, a função do dinheiro.

Assim – e simplesmente assim – pensamos o valor como absoluto, como a unidade quantificável da função do dinheiro. Mas o que, se absoluto, é então esta unidade "valor", em que consiste, como o quê a movemos em nossas mentes, que estão preocupadas com ela incessantemente, a cada hora, diariamente, ao longo das nossas vidas? A referência universal às mercadorias como valores, que realizamos com o dinheiro, parece-nos existir no valor monetário como coisa própria, como ser intangivelmente imaterial e sem qualidades, como a mais sólida existência, mas sem qualquer conteúdo e, mais ainda e mais precisamente, para além de qualquer conteúdo, precisamente porque representa essa referência universal aos próprios conteúdos e separada deles. No entanto está necessariamente referida a conteúdos, sendo assim o contrário do absoluto; ao mesmo tempo, porém, é independente de quais conteúdos são referidos em cada caso, e, na medida em que representa apenas essa referência, ou seja, sem ser conteúdo nem sequer abstratamente vazio – como seria o valor de uma peça de ouro, por exemplo – existe por si mesma como essa referência aos conteúdos, separada dos conteúdos; mas nisso absoluta. A unidade, como pensamos o valor, é portanto a mera referência tomada como unidade, pura determinação de relação e, neste sentido, afinal, pura unidade" (p. 225ss., destaque no original).

Toda a construção do livro depende em certa medida desta caracterização da abstracção valor, o resto resulta quase por si só. O conceito de valor que aqui se desenvolve – embora não seja subjectivo – está apenas relacionado com a esfera da distribuição, passa sem "substância de valor", pelo que não há qualquer menção do trabalho, razão pela qual não seria possível derivar deste uma quantidade de valor. Mas não é disso que se trata para Bockelmann. Só lhe interessa o que o dinheiro faz aos sujeitos que socializa, como os constitui. No entanto, seria apropriado, neste ponto, estabelecer uma ligação com o conceito de fetiche de Marx, o que daria um carácter ainda mais persuasivo à apresentação de Bockelmann.

Ela já existe. Embora Bockelmann não use este termo, ele descreve aqui uma abstração real por excelência. Não está – como acontece com Sohn-Rethel – já na troca directa, mas sim na universalidade determinante do dinheiro e, por conseguinte, pertence inequivocamente apenas à idade moderna. Exige aos participantes no mercado um esforço de abstracção, que eles têm de realizar sem ser um esforço mental consciente: "Eles não sabem, mas fazem-no" (Marx), ou têm de o fazer. Por causa da sua capacidade de sobrevivência, têm de a constituir como um reflexo que, a partir de agora determina, como uma compulsão não consciente para eles, não só as acções monetárias, mas o seu acesso ao mundo em geral:

"Esta é a forma em que nenhum ser humano teve de pensar até então, nem poderia ter pensado, o esforço de síntese condicionado pela idade moderna que os seres humanos têm assim de realizar: duas unidades relacionadas com conteúdos, mas elas próprias sem conteúdo, na pura relação de determinado contra não-determinado. Esta síntese torna-se para o pensamento assim condicionado necessidade e coerção.

Esta síntese tem o seu domínio genuíno no lidar com o dinheiro, e aí as pessoas têm de a aplicar a tudo, sejam quais forem os conteúdos, têm de relacionar a pura unidade "valor" com qualquer conteúdo. ... Ao esforço mais antigo e também de síntese da forma de pensar material, nomeadamente pensar valor nas coisas e relacioná-las umas com as outras de acordo com este valor inerentemente pensado, sobrepõe-se o esforço novo e funcional de dar-lhes forma em unidades sem conteúdo.

O processo de percepção do ritmo corresponde perfeitamente a isto. Até então, exercia-se também um esforço de síntese mais antigo, segundo o qual as pessoas relacionavam as unidades de som como unidades de tempo completo proporcionalmente umas às outras, de acordo com as determinações de conteúdo e, portanto, por outro lado materiais. Se agora a síntese funcional se torna efectiva no dinheiro e, graças à sua génese, não conhece nenhuma restrição quanto ao tipo de unidades a que tem de se estender, ela necessariamente se estende sobre as outras unidades de síntese, que encontra no "pensar" onde funciona, e que acima de tudo podem muito bem ceder ao seu tipo de acesso: ela agora formata e conecta as unidades de tempo completas de acordo com as determinações funcionais, e assim as cria como as unidades de tempo vazias do batimento do compasso, diferenciadas como determinadas contra não determinadas" (p. 229ss., destaque no original).

Apesar do título do livro, a explicação dada para a percepção moderna do ritmo a partir da socialização do dinheiro não é seu verdadeiro tema, que vai muito além disso. No entanto, este prelúdio também desempenha um papel na continuação da discussão. Com ele, Bockelmann pode explicar o movimento do seu próprio do pensamento, e isso provavelmente também é necessário em vista da sua tese de que toda ciência e filosofia modernas, já que não sabem da sua própria génese, estão em erro, até agora.

"Como é possível que tudo isto não tenha sido reconhecido há tanto tempo? Por uns bons quatro séculos, esse constituinte de toda a era moderna teria trabalhado em segredo? E os espíritos mais perspicazes e a sua reflexão mais exacta sobre isso teriam ficado cegos? Teriam pensado com e de acordo com ele, mas não estavam conscientes do que estavam a fazer? Sim, tem de ser, e não admira. Nenhum filósofo, não importa o quão penetrantemente ele olha para seus objectos, poderia nem pode obter um vislumbre do que já determina o seu olhar, o olhar através do qual ele vê seus objectos. Ninguém seria capaz de reconhecer a coloração dos óculos, através dos quais o mundo se lhe mostra tão colorido, só a olhar para este mundo. Nenhum filósofo, nenhum grande cientista nem ninguém poderia chegar a uma conclusão diferente desta forma: em toda a extensão, nada pode ser visto sem coloração! Nenhum conceito e nenhuma reflexão chega atrás do que está antes de toda a reflexão e antes de todos os conceitos e que, portanto, sempre os forma.

Chegar lá só poderia ter êxito onde este formativo se revelasse tão incompreensível e irrefletido no seu efeito como ele é em si. Mas o único lugar de tal efeito é o ritmo da modernidade, o ritmo do compasso" (p. 487ss.)

Esta explicação, que é bastante conclusiva no contexto do livro, parece-me, no entanto, insuficiente: Por um lado, Bockelmann não foi o primeiro a descobrir o ritmo do compasso como historicamente específico para a sociedade burguesa, este facto é conhecido há bastante tempo, no entanto ele associou-o com a sociedade do dinheiro, um esforço que não deve ser subestimado, mas que não é a mesma coisa. E, por outro lado, já o disse: Bockelmann não é tão solitário como pensa que é. Desde a publicação tardia das obras de Sohn-Rethel, no início dos anos 70, a discussão sobre a ligação entre a forma social e a forma de conhecimento não foi interrompida, embora a própria abordagem de Sohn-Rethel ainda não tenha sido capaz de provar realmente essa ligação. Uma vez que, pelo menos desde então, é pensável o que Bockelmann erroneamente assumiu ser o primeiro a ter pensado por si, será antes de procurar outra causa, mais profunda, como será o facto de que a forma de pensamento em questão chega ao fim tanto quanto a forma de mercadoria em que se baseia.

Num outro aspecto é interessante a descoberta de que a socialização do dinheiro determina não apenas o pensamento consciente, mas também os reflexos pré-conscientes, pois lança uma luz significativa sobre a constituição do sujeito moderno:

"Eu quero repensar isto no popular modelo que Freud estabeleceu, mas que só usou relutantemente, seguindo o modelo de Id, Ego e Superego. Por causa da sua presença involuntária, o sentido do ritmo deve sem dúvida pertencer ao reino do Id, assim como certamente devem pertencer ao reino do Superego as exigências através das quais o Ego se vê posto pelo dinheiro para cima e para baixo, em seus melhores e em seus mais grosseiros padrões de comportamento social. O Ego modelo teria então que mediar entre as duas áreas e consolidar-se nesta mediação. Mas se agora a síntese do dinheiro é directamente idêntica ao ritmo do compasso, então esse Superego também aparece directa e abruptamente já no Id, devendo ter chegado lá através do Ego. Portanto, o Id não permanece, como se pensava, o domínio das pulsões originais, que seriam modeladas no Ego apenas na direção do Superego, mas ainda carrega dentro dele a abstração extrema que só pode vir do Superego. O Superego já está aqui mesmo no Id, a estrutura do dinheiro já está no reflexo natural das pulsões. O equilíbrio que o Ego teria de atingir entre o Id e o Superego não é equilíbrio nenhum, pois já existe há muito tempo. O Ego não elabora nenhum equilíbrio, mas é curto-circuitado entre os polos que se equilibraram antecipadamente, que são iguais entre si, e dos quais o Ego não encontra mais força ou razão para diferir. Assim, a epítome de exterior, o dinheiro, torna-se um máximo de interior – inescapável, abrangente, em toda parte: no Id, no Ego no Superego" (p. 239ss., destaque no original).

Isto está escrito no álbum de poesia de todos aqueles que consideram o seu apelo ao "estômago", à imediatidade ou à "vida real" já como um acto de resistência contra o geral abstracto.

A segunda metade do livro trata do pensamento moderno no sentido mais restrito, na forma das ciências naturais modernas e da filosofia moderna constituída pelo "problema do conhecimento", também determinadas pela compulsão da "síntese funcional" do dinheiro. No que diz respeito às ciências naturais, há muitas semelhanças com abordagens existentes, que não podem ser discutidas aqui com mais detalhe (ver http://www.exit-online.org/html/schwerpunkte.php, Schwerpunkt Wissenschafts- und Erkenntniskritik): A suposição, cegamente decorrente da forma de lei da sociedade das mercadorias, mas portanto pré-teórica, de que a natureza obedece às leis matemáticas, e a caracterização do experimento como um evento com o propósito de produzir (e não meramente observar) leis:

"O experimento é o meio para transformar a natureza em função. A visão dos dados empíricos modificada na idade moderna não é mais contemplação, mas penetra neles para neles encontrar o que tem de pressupor, o comportamento de acordo com leis." (p. 354, destaque no original).

Bockelmann explica também a falta de consciência das próprias acções por parte dos que trabalham nas ciências naturais:

"Mundo e natureza são pensados funcionalmente: isto é, enquanto a génese da forma funcional do pensamento permanecer não reconhecida, eles são pensados como se o funcionalmente concebido fosse a sua forma real. De acordo com isto, as leis da natureza têm realmente de existir como nós as pensamos e pressupomos, realmente nesta forma de funcional ausência de conteúdo" (p. 358, destaque no original).

Neste ponto, seria de interesse uma discussão explícita com Kant, o que é omitido no livro. Kant, que como quase ninguém antes ou depois dele propagou a forma funcional do pensamento como razão por excelência, não sabendo nada sobre a sua génese na forma do valor, sabia no entanto que a conformidade com leis não é uma característica da natureza, mas pertence aos princípios da razão que temos de trazer aos objectos do conhecimento; ele também estava familiarizado com a conexa compulsão, que conscientemente afirmava.

Ainda que a abordagem de Bockelmann capture muito mais precisamente a síntese funcional do que tem sido o caso até à data, certas características relevantes das ciências naturais permanecem escondidas no seu trabalho, nomeadamente aquelas que só são acessíveis a uma aprofundada crítica do sujeito e com uma simultânea crítica da dissociação e do valor: Por exemplo, a conotação sexual – em Bacon muito clara – do conhecimento da natureza, bem como a dupla dissociação no processo do conhecimento científico, a dissociação não só do objecto, que Bockelmann pelo menos sugere, mas também do sujeito do conhecimento, o qual tem de se livrar de todas as características individuais e em grande parte da sua própria corporeidade, a fim de chegar ao conhecimento objectivo. Neste ponto, como provavelmente em outros, valeria a pena juntar as diferentes abordagens.

Em seu exame da filosofia moderna, usando Descartes, Spinoza e Leibniz como exemplos, Bockelmann mostra como a compulsão de pensar tudo "na forma exclusiva da unidade pura e da unidade puramente referida" (p. ex.: Bockelmann p. 377), sob a qual o mundo como um todo não pode ser compreendido, tem de terminar em contradições lógicas (Descartes) ou no sistema de loucura (Leibniz), com o que a monadologia de Leibniz é descrita de forma bastante adequada, mesmo que muito mais tarde lhe tenha sido certificado que previu as condições da sociedade capitalista tardia, coisa que o próprio Leibniz, porém, nunca pensou nem poderia ter pensado:

"Os seres humanos, monadicamente cada um por si, sem janelas e sem conexão com os outros, banidos em seu interesse individual, que eles perseguem como se existisse apenas cada um deles no mundo, mas exactamente nisso concordando com todos os outros e, portanto, na busca cega de cada um do que é seu, encaixam-se no universo das relações de mercado e da sociedade de mercado como um todo: é isso que Leibniz parece ter significado com as mónadas e nisso ele parece ter acertado em cheio. ...

O grande monadólogo pensou nisso quando filosofou? Ele cunhou as suas mónadas nestas relações? Ele quis dizer estas relações?

Seja como for, ele acertou nelas. Mas ele não escreveu sobre elas, não pensou nelas, não virou nenhum pensamento para elas. Se Leibniz tivesse reconhecido as relações sociais como as experimentou, ou como talvez só as tivesse começado a prever para o futuro nesta constituição monádica, nada o teria impedido de o dizer. Ele, que não deixou de mostrar todos os horrores desta forma, que preocupação teria ele tido em dizer aqui o que viu – se o tivesse visto? Mas ele não viu nada aqui. E ainda assim ele encontrou alguma coisa. Se nos admiramos ao descobrir em tempos muito posteriores que Leibniz já tinha descrito no século XVII a forma segundo a qual as relações humanas agora tão obviamente se modelam, este acordo não se deve a nenhum conhecimento adequado do pensador precoce. Leibniz não pensou sobre estas relações, pensou de acordo com elas. São elas que lhe predeterminam essa forma, não porém como objecto, mas como modo de conhecimento. São elas que, ao mesmo tempo, formam essa sociedade exterior – que então começou a formar-se e continuou a fazê-lo até hoje – e que, com ela, como sabemos, predeterminam esse modo do conhecimento. São as relações monetárias que se reflectem na nossa sociedade monadicamente constituída, e que a determinam de acordo com a mesma forma, que exigem e descrevem o pensamento através desta mesma configuração da sociedade. Esta é a realidade histórica de uma harmonia pré-estabelecida. Ao não fazer mais do que pensar o mundo através da abstracção funcional do dinheiro, Leibniz atinge a formação de uma sociedade que se organiza de acordo com essa mesma abstracção: seguindo-a cegamente sem reconhecer nada dela. É assim que ele retrata a sociedade. E assim – mais uma vez – este pensamento se manifesta no mais íntimo como determinado pelo dinheiro" (p. 480ss., destaque no original)

Aqui, o dinheiro, por assim dizer, pensou pessoalmente no seu futuro, mas teve de fazer uso de uma das cabeças filosóficas que constituía.

Por último, gostaria de me referir mais uma vez à construção geral do livro: O ponto de partida intelectual de Bockelmann é a constituição dos sujeitos pelo mercado e as acções monetárias que este lhes impõe no momento histórico em que o dinheiro atinge uma universalidade determinante. A constituição dos sujeitos através do trabalho e da dissociação-valor, no entanto, permanece oculta. Bockelmann extraiu o que pode ser extraído do aspecto parcial da socialização do valor por ele considerado para a explicação da génese do pensamento moderno, mas, ainda assim, um aspecto parcial permanece na superfície da socialização do valor. A referência apenas a este poderá revelar-se insuficiente, pelo menos para estudos por ele já anunciados sobre a teoria quântica, cujos objectos estão localizados na sociedade capitalista desenvolvida. Outra objecção diz respeito ao carácter do livro. Trata-se de algo que se tornou raro, nomeadamente a teoria num sentido muito clássico, e como tal sujeita à forma funcional do pensamento, que pode ser facilmente estabelecida no presente caso: Bockelmann determina o ritmo do compasso, as ciências naturais, a filosofia moderna em função de uma obrigação de pensar que entrou na sociedade através do dinheiro. A objecção é, portanto, justificada, contudo não é realmente uma objecção, mas refere-se apenas ao facto de que a teoria só pode ser significativa, na sociedade das mercadorias que está a chegar ao fim, se contribuir para esta se libertar da sua própria forma de pensar. E este é certamente o sentido do livro.

Deixo a palavra final a Eske Bockelmann, no último parágrafo do seu livro (p. 489):

"Foram as pessoas que estabeleceram (a coerção do dinheiro), não estão vinculadas a ela por nada senão por si mesmas. Mas elas estabeleceram-na como aquilo que mantém o seu mundo unido no mais íntimo; e agora, duplamente compelidas – por aquele que elas estabeleceram e por aquele que elas já carregam firmemente dentro de si –, acreditam que já não teriam de decidir mais sobre ele, mas apenas ele é que teria de decidir sobre elas. E quase me parece que aquilo que mais as irrita é tudo o que as adverte para o facto estarem enganadas."

 

 

Eske Bockelmann: Im Takt des Geldes. Zur génese modernen Denkens [Ao compasso do dinheiro. A génese do pensamento moderno], zu Klampen, Springe 2004

 

Original Der Rhythmus des Absoluten. Eske Bockelmanns "Im Takt des Geldes" in: www.exit-online.org, 05.04.2004. Tradução de Boaventura Antunes (03.2020)

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