Daniel Späth

 

Adornitas encasacados e masculinidade sensível

 

 

O prazo de validade das conjunturas sociais reduz-se quase exponencialmente na era da crise fundamental. O que antes durava séculos inteiros, nomeadamente a luta da modernização pelo reconhecimento na forma da dissociação-valor entre a classe capitalista e a classe trabalhadora, está desde os anos oitenta do século XX reduzido ao horizonte temporal de uma geração. Se a história do processo de acumulação e de submissão dos seres humanos ao fim em si fetichista, pelo menos medida pelo sofrimento universal da subjectivação burguesa, se apresenta como insuportavelmente longa, em contrapartida tanto mais bruscamente o “limite interno" (Marx) do capital mundial volta a expulsar o "material humano" tornado disfuncional, na sequência do processo de desmoronamento.

 

Quanto mais o último prazo histórico da socialização de crise se comprime, tanto mais a consciência burguesa se torna esquecida da história neste processo. É assim que a pós-modernidade neoliberal já acabou, deixando para trás o campo de destroços de uma geração que não conhece nada mais do que a captura imediata pelo mercado mundial universal, historicamente sem precedentes, dos sujeitos da decadência coercivamente individualizados, de que o "asselvajamento do patriarcado na pós-modernidade" (Roswitha Scholz) representou o reverso e a condição igualmente original, situação em que o conteúdo basicamente repressivo da família burguesa é mobilizado mais uma vez justamente na e através da sua decadência. A metamorfose do "princípio da forma psíquica" ou da "matriz sócio-psíquica" (Elisabeth Böttcher) associada a este asselvajamento do patriarcado, até uma constituição do sujeito pré-edipiana, deixou atrás de si um carácter social narcisista, cujos destinos pulsionais dessexuados, na sua mania da imediatidade, sofrem uma dissolução completa.

 

A supremacia androcêntrica, quase a explodir no processo de decomposição da forma da dissociação-valor, deixou atrás de si, na nova geração das classes médias ocidentais, um tipo de homem que desde o início não escapou à observação da “crítica categorial” ​​(Robert Kurz) como bonzinho [Softie] pós-moderno. Pois a masculinidade de classe média requintadamente soft não ganhou hegemonia só dentro da classe média neoliberal, mas expandiu-se também na esquerda radical degenerada em cena. Por muitas formas que possa assumir, tem sempre uma coisa em comum: fugir do sentimentalismo, que é vertido sem mais sobre a primeira pessoa que apareça e meta conversa casual e confiadamente.

 

Se o bonzinho pós-moderno anda geralmente a vaguear por queer parties, organiza workshops transexuais ou desconstrói a sua virilidade em plenários, representando a variante suave da masculinidade em geral da esquerda do movimento, o androcentrismo narcisista além disso já penetrou há muito no campo da crítica social teórica, dentro do qual se refere principalmente à "teoria crítica" de Adorno; por vezes com demarcação superficial face ao estruturalismo. De preferência, ele comporta-se aqui como "crítico da cena compatível com a cena", ou "teórico ateórico", assim caindo em solo fértil no pântano de hostilidade à teoria da esquerda do movimento, sendo a "teoria crítica" aqui utilizada exclusivamente para divertimento individual. Ele ganha com a vantagem da distinção em questões de "crítica teórica" ​​sem nunca correr o risco de confrontar o eu decadente de esquerda com a sua compulsão identitária.

 

O adornita sensível representa um tipo de "teórico crítico" que andou de facto na escola dos velhos quadros anti-alemães, mas, ao contrário destes últimos, participou plenamente na socialização pós-moderna. Ele adoptou daqueles a afirmação contundente da subjetividade masculina branca ocidental, mas a partir do estado de crise agudizada da "masculinidade transformada em dona de casa" (Claudia von Werlhof), pelo que o seu sentimento delicado evita a denúncia aberta de proveniência anti-alemã, denúncia que, portanto, é mais constrangida e apenas raramente se destaca no confronto directo. O terrorismo da simpatia promovido pela incapacidade de conflito do carácter social narcisista deixou a sua marca ao passar justamente também pela geração mais jovem da polícia da razão anti-alemã, pelo que os adornitas oscilam realmente algures entre o pós-estruturalista e o antinacional. Este adornitismo acentuadamente sensível às vezes até pode ser identificado de modo puramente exterior, pelo vestuário de casaco preto, eventualmente decorado com a "bolsa da Bahamas" debaixo do braço.

 

O facto de os adornitas encasacados se referirem agora justamente a Adorno por amor do ganho de distinção teórica é tudo menos um acto arbitrário. E isto desde logo em dois aspectos: Por um lado, eles farejam na dicção de Adorno, de que na modernidade tardia não será mais possível uma grande teoria, a sua própria aversão à abstracção reflexiva, de modo que imaginam redescobrir nestes aforismos a consagração do teórico individual que consegue explicar o mundo de forma em grande parte associativa, mas extremamente erudita, no estilo de intervenções líricas. Adorno como literatura devocional, por assim dizer para teóricos declarados do pequeno; enquanto os momentos de crítica da razão da "Dialética do Iluminismo", expurgados de reflexões abrangentes de teoria da história e de crítica social, levam uma existência na sombra.

 

Mas, por outro lado, a "Teoria Crítica" é particularmente adequada para o narcisismo dos sensíveis adornitas encasacados, porque os seus tratados estéticos atraem pelos vistos os artistas da sobrevivência como a merda atrai as moscas. O adornita sensível é em primeira linha um esteta, pelo que para ele teoria e estética também coincidem. Por isso, ele pode ser profissionalmente filósofo, designer gráfico ou artesão criativo que o seu ímpeto de auto-realização estética não se reduz certamente ao quotidiano profissional, mas é estendido nas suas próprias quatro paredes que estão revestidas com a imagem ideal da peculiar obra de arte total. O que aos adornitas encasacados parece sublimação artística é, na verdade, a coerção de pureza pré-formada pela dessexuação narcisista, que parece ter cortado completamente qualquer sublimação. A auto-estetização, que ficou literalmente sem objecto, é sem dúvida um momento de afirmação da supremacia androcêntrica no processo de decadência do "asselvajamento do patriarcado na pós-modernidade".

 

Por mais que os adornitas encasacados se esforcem por embelezar a sua auto-encenação estética através de uma referência teórica identitária, a sua compreensão teórica encontra uma interrupção abrupta o mais tardar quando a crítica transcende a forma androcêntrica da teoria. É verdade que eles, nas suas relações essencialmente de associação masculina, apreciam uma ou outra mulher, desde que sirva como objeto de reflexão das almas delicadas dos homens; pois a coerção fetichista da sua sensibilidade de longo alcance corresponde na verdade à tentativa da masculinidade "transformada em dona de casa" de ocupar machistamente a feminilidade, justamente na área que lhe é atribuída, e reintegrá-la plenamente no universo androcêntrico da masculinidade de classe média em decomposição. O que, pelo contrário, não lhes pode parecer de todo sublime é a crítica feminista, especialmente se ela não se apresenta assim tão sensível. Afinal os artistas adornitas gostariam de ser ao mesmo tempo as adornitas mais sensíveis; pelo que a sua sensibilidade é permanentemente posta à prova, o mais tardar neste ponto.

 

Se as almas sensíveis dos "teóricos ateóricos" se julgam superiores ao feminismo pós-estruturalista, a crítica radical da dissociação-valor, entretanto, não lhes agrada nada já num plano afectivo pré-teórico.  Com toda a sua ignorância da história da teoria feminista, não puderam evitar ter de se encontrar alguma vez com o “teorema da dissociação”, com o qual Roswitha Scholz desenvolveu para a "Teoria Crítica" uma direcção de ataque completamente diferente, para lá da sua referência a Adorno. Uma vez que ela se afiou face aos teóricos, cujos momentos de crítica do androcentrismo foram deixados para trás pelos adornitas encasacados no culto da sensibilidade das sofridas almas masculinas, a crítica da dissociação-valor transformou-se numa teoria completa e nada pequena: a demonstração de um fraccionamento categorial de valor e dissociação ao mais alto nível da abstração real social, que atravessa todos os escalões da "totalidade concreta", radicalizou o momento não idêntico da "dialéctica negativa", na medida em que modificou o seu estatuto de particularista em Adorno para uma crítica categorial do fetichismo androcêntrico do modo de produção e de vida capitalista. A concomitante crítica radical do iluminismo e do sujeito masculino branco ocidental, de resto, leva-os a considerar a "crítica categorial" tudo menos sensível.

 

A própria emoção, acrescentada ao que se sabe por ouvir dizer, é plenamente suficiente para pôr um fim abrupto à compreensão da teoria pelos adornitas encasacados. No fundo é-lhes simplesmente repugnante que a crítica da dissociação-valor se lhes oponha justamente naquele campo de elaboração teórica que eles procuram ocupar enquanto ganho de distinção, como teóricos doidos pelo pequeno; e que ela, portanto, também não possa ser repreendida tão facilmente como o feminismo pós-estruturalista. Se por acaso vão por si dar a uma sessão da crítica da dissociação-valor, esta afecta os seus sentidos sensíveis a tal ponto que eles sofrem instantaneamente uma mutação para o mais vulgar proleta terra-a-terra: Para eles corresponde às boas maneiras da convivência culta maltratar em seguida o conferencista pela noite fora com ataques contra a teoria da dissociação, que já não escondem a sua origem exclusiva nas almas “atormentadas” da depravada masculinidade de crise. Já entendido, simplesmente não queremos saber disso para nada. Pelo menos depois de tal incidente pode-se constatar, sem dúvida: perante os adornitas soft, até o mais autoritário estalinista de partido parece um lutador resistente quase feminista.

 

É simplesmente inevitável que no decurso de um encontro com adornitas encasacados assim imperturbavelmente sensíveis ocorra a lembrança daquela sentença de filme de um western clássico: "Já vi três casacos desses (...) Dentro dos casacos, havia três homens. Dentro dos homens, três balas". Bem, agora é realmente brutal para sentimentos delicados; desculpem. Também é perfeitamente suficiente tocar para os adornitas encasacados a sua própria melodia, sem ser preciso tocar também a música da sua morte – de qualquer modo eles, no sentido da muito improvável suplantação da constituição fetichista "do patriarcado produtor de mercadorias", já passaram de moda há bastante tempo.

 

Por amor da sensibilidade, portanto, outra proposta de boa vontade: Que tal juntarem-se algures em Berlim ou Hamburgo e estabelecerem um espaço no fino espírito de adornitas encasacados (a Rote Flora poderia servir)? Um verdadeiro oásis de sensualidade androcêntrica, bem estetizada, e escolhido para cuidar das almas feridas, através do consolo poético da leitura das "Minima Moralia"; suportado por uma configuração do quotidiano sexualmente adequada, entenda-se. Mas com isso deixa-se cair a pretensão de "teoria crítica", pois disso também há algo em todos os lados. Desta maneira a transição para o colapso dos centros ocidentais pode afinal ser ainda configurada de forma adequadamente sensível. E ouvindo-se em fundo a música dodecafónica...

 

 

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