Daniel Späth
Teoria da alienação e pós-modernidade tardia
O "pesadelo das gerações" e o seu regresso zombie em tempos de desintegração social
O renascimento da teoria da alienação e o início da era pós-marxista * Crítica da dissociação-valor e "duplo Marx" * A recepção marxista em contradição – a luta pelo "verdadeiro Marx" e os seus pressupostos burgueses * O "Marx exotérico" da crítica da alienação * O contexto condicional social real da crítica da alienação: A pós-modernidade tardia e a naturalização do sujeito em desintegração do estado de necessidade * A redução da crítica da identidade de Marx na lógica da identidade e o fundo tácito da forma androcêntrica da teoria * "Crítica categorial" ou barbárie
O renascimento da teoria da alienação e o início da era pós-marxista
A verdade de qualquer movimento de crítica social reside no facto de reflectir criticamente sobre as várias fases do seu desenvolvimento, a fim poder ultrapassar o estado vigente de socialização fetichista em sua concreção histórica. Tal como a forma da dissociação-valor em si, também a "crítica categorial" (Robert Kurz) que visa ultrapassá-la é uma questão em si dinâmica. Ao contrário do entendimento comum da elaboração teórica, a substância da crítica social radical não é coisa que se guarde no bolso de uma vez por todas, para em seguida levar às pessoas; ela própria constitui um processo aberto, que tem de ser determinado na dinâmica do "patriarcado produtor de mercadorias" objectivado e, portanto, está permanentemente exposto à força de gravidade das conjunturas do espírito do tempo.
Como é sabido, também a crítica radical teve necessidade de continuar o desenvolvimento em auto-correção, o que lhe foi francamente imposto face às mudanças históricas. Pois como não só o pensamento empurra para a objectividade social, mas a relação fetichista por sua vez também empurra para a reflexão, a crítica do valor objectivista forçou a ruptura com o velho marxismo do movimento operário, cuja pretensão crítica foi posta em questão na história real pelo colapso da União Soviética. Também não foi por acaso que a "ruptura categorial" com a forma da teoria burguesa, conseguida por Roswitha Scholz com a crítica da dissociação-valor em luta dentro da crítica do valor androcentricamente redutora, começou num momento em que o "asselvajamento do patriarcado na pós-modernidade" (Roswitha Scholz) levou a uma nova luta dos sexos sob supremacia androcêntrica, mesmo nos centros ocidentais.
Neste sentido, não é só a história realmente fetichista da socialização do patriarcado produtor de mercadorias que é irreversível, também a história da teoria com ela relacionada tem o seu próprio carácter processual. O facto de o contexto de socialização abrangente apresentar em si mesmo uma dinâmica fundada na dialéctica negativa de valor e dissociação permite à crítica radical introduzir nos estágios passados da sua elaboração teórica a autocorrecção indispensável, de modo a poder precisar, à luz das novas circunstâncias, constelações contraditórias antes obscuras, e eliminar resíduos burgueses face à realidade social modificada.
Aplicado à efectividade em última análise também prática da teoria crítica, este condicionamento social do processo histórico da teoria também significa, em sentido inverso, que a ausência de actualização da própria tradição de crítica social tem de bloquear a possibilidade de criticar a socialização capitalista num sentido relevante. A crítica da actual constituição social não pode ser esboçada num acto de pensar por si mesmo imediatista, antes dela existe um processo secular de execução teórica de correntes de crítica social, cujos questionamentos e pontos de vista não podem ser negados abstractamente nem assumidos ingenuamente. Desde o seu início, faz-se sentir aqui o "pesadelo das gerações" (Marx) sobre a crítica social, razão pela qual a crítica de Marx já pelos seus contemporâneos foi submetida a uma deformação interpretativa, que foi continuada de modo ainda mais acentuado com a consolidação do marxismo do movimento operário. Esta carga foi tanto mais opressiva quanto mais consequentemente as abordagens de Marx se mostravam aptas a uma crítica radical das ideologias burguesas dominantes.
Crítica da dissociação-valor e "duplo Marx"
Pode parecer estranho, neste contexto, que se manifeste uma nova necessidade da crítica de Marx, já desde a década de 2000 e mais focada desde a crise financeira de 2008. O espectro da "Crítica da Economia Política", afinal, não vai morrer enquanto o capitalismo continuar a existir, com as suas distorções sociais. No entanto, o recente ressurgimento da teoria de Marx é tudo menos indício de uma reflexão séria da crítica social; o "pesadelo das gerações" pesa sobre ele de um modo especial, uma vez que a 'ortodoxia' marxista dos séculos XIX e XX, na sua interpretação estritamente tendenciosa, deixou de fora elementos-chave da teoria de Marx.
Mas seria uma simplificação demasiado primária pretender imputar o aburguesamento da teoria de Marx, de que o movimento operário foi portador, apenas à sua postura na recepção. A orientação afirmativa, na sua interpretação tendenciosa, bem que deparou com uma referência no objecto, referência que entretanto tomou para si, assim aplanando, em favor de um "verdadeiro Marx", o carácter contraditório da sua obra. Esta vertente da obra de Marx isolada pelo movimento operário, como se sabe, é resumida pela crítica da dissociação-valor sob o título de "Marx exotérico", que ainda permaneceu um ideólogo da modernização: Para realizar a transição para o socialismo, por meio do Estado ocupado pelo proletariado, ele falava da integração dos trabalhadores na socialização fetichista, por via do seu reconhecimento como sujeitos jurídicos e políticos. Uma linha de argumentação que foi transformada numa versão popularizada da ideologia burguesa do progresso, especialmente em Engels.
A esta vertente "exotérica" da teoria de Marx, portanto, também foram comprovadas as premissas burguesas por parte da crítica da dissociação-valor. A ideologia, que aparentemente ia dar ao socialismo, de integração da classe operária como sujeito colectivo jurídico e político virou-se na ontologização do trabalho, razão pela qual o "sujeito revolucionário", como instância de criação de valor, estava predestinado à revolução iminente. Esta ontologia do trabalho foi incorporada, no mesmo fôlego, numa teoria do progresso de ideologia iluminista, cuja contradição entre forças produtivas e relações de produção foi transferida para toda a história da humanidade, em que, ao nível da sociedade burguesa, apenas a classe operária estaria agora "sintonizada" para ajudar o curso objectivo do mundo. Ontologia do trabalho, teoria objectivista do progresso e ilusão jurídico-sociológica de uma "classe revolucionária", esta tríade do "Marx exotérico" entrou na consciência colectiva da modernidade como "materialismo histórico".
No entanto, o corpus dos textos de Marx em si não dá suficientemente azo a este trabalho de recepção, nem quantitativa nem qualitativamente. Pelo contrário, a redução afirmativa da obra de Marx deve-se à situação social do século XIX, que influenciou decisivamente esta leitura: afinal os trabalhadores maciçamente atormentados pela industrialização não tinham nenhum estatuto de sujeito, de modo que o reconhecimento no terreno do "trabalho abstracto" (Marx) não deixava de ter imediatamente uma certa atractividade, para obter os direitos burgueses. Com isso, no entanto, foi aceite a confinação ao modo de vida e de produção burguês: Com a integração do movimento operário ocidental como sujeito jurídico no Estado no século XIX, e com o reconhecimento da "modernização atrasada" feita através do Estado como sujeito nacional independente no mercado mundial no decurso do século XX, paradoxalmente, foi precisamente o movimento operário que accionou, para grande parte da população mundial, a internalização decisiva da coerção burguesa ao trabalho.
Em vez disso, a teoria crítica da dissociação-valor seleccionou aqueles fermentos da crítica de Marx que visam a constituição geral da socialização capitalista, e não são compatíveis com os seus esforços de integração burguesa. Não uma ontologia do trabalho, mas crítica do "trabalho abstracto", como "substância do capital" (Marx) especificamente histórica; não um "sujeito revolucionário", mas crítica comum às classes das formas fetichistas, dentro das quais também a classe operária não passa de um suporte funcional; em vez do "materialismo histórico", uma teoria crítica da história, que reconstrói o processo histórico como uma "história de relações fetichistas" (Robert Kurz) em si fragmentada.
Com o evidenciar deste "Marx esotérico" e dos seus elementos de crítica do fetiche, a crítica da dissociação-valor, ao contrário do marxismo do movimento operário, desde o início reflectiu sobre a dimensão histórica do capitalismo de crise, para a fundamentação da "crítica categorial". O facto de, em vez disso, a esquerda agora pós-modernizada ter insistido originalmente apenas no "Marx exotérico" levou a que não tivesse mais nada a contribuir para a análise dos processos sociais actuais. Daí que a crítica de Marx como tal tenha perdido pouco a pouco a relevância.
Também a “ortodoxia” marxista se acolheu na sua dicção a-histórica da pós-modernização, pelo que mesmo os e as marxistas e pós-marxistas instruídos em O Capital a partir de agora deixaram de ter em consideração qualquer teoria da acumulação ou da crise. O marxismo residual de todas as cores transformou-se num "pós-marxismo", e assim ampliou a recusa resoluta de começar sequer a reflectir sobre a "crise categorial" (Robert Kurz). Com a crescente dinâmica da desvalorização, as categorias de Marx escaparam por entre os dedos ao pós-marxismo, desesperadamente agarrado a noções marxistas tradicionais, para fachadas fantasmagóricas a-historicamente desrealizadas, "ultrapassadas", que apenas estavam à espera de ser finalmente deixadas nos montes de escombros da história. O “pós-marxismo” foi-se assemelhando cada vez mais a um ajuntamento de zombies, cuja percepção os actuais processos de crise trasladavam directamente para constelações mentais de um passado há muito ultrapassado.
A recepção marxista em contradição – a luta pelo "verdadeiro Marx" e os seus pressupostos burgueses
Ora como se explica, neste contexto, o recente renascimento de Marx, que é particularmente visível desde 2008, na crítica social e também na esfera pública mediática burguesa? À primeira vista, parece óbvio que será precisamente aquele "Marx exotérico" do "materialismo histórico" que reforça os ganhos de atenção, na esteira da "viragem imanente pós-moderna". O caso, contudo, é muito diferente quanto ao renascimento da teoria de Marx.
Embora, após o colapso da União Soviética e a marcha triunfal do neoliberalismo na década de 1990, a conversa sobre a luta de classes tenha ficado então calada também entre a esquerda, o "materialismo histórico" continuou ainda à disposição, como ponto de referência fundamental do pós-marxismo na crítica social. O que foi de preferência invocado como "luta de classes" pela ideologia anti-imperialista e pela "ortodoxia" residual de formato pós-moderno, no entanto, revelou-se regularmente como uma ideologia de classe média, porque o desenvolvimento social desde a pós-modernidade de modo nenhum pode ser coberto com os conceitos de "capitalista" e "trabalhador". Nessa medida, o aumento do sussurro da luta de classes de uma classe média de esquerda é parcialmente responsável pelo recente renascimento de Marx, mas não marca a sua especificidade.
Resulta desde logo deste asselvajamento pós-marxista da crítica social que muito menos é o "Marx esotérico" da crítica do fetiche a impor-se na consciência pública, na sequência de uma "revolução imanente pós-moderna". A ignorância abrangente para lidar seriamente com o fim de uma época que foi o colapso do capitalismo de Estado, percebido em termos meramente fenomenológicos, paga-se sob o signo da pressão agravada de desvalorização da administração do estado de necessidade da pós-modernidade tardia: A viragem para a crítica de Marx cai tão bem à esquerda desarmada pelo desconstrucionismo precisamente porque ela já há muito deitou pela borda fora as suas abordagens viradas para o futuro.
A este respeito, convém ao “radicalismo de esquerda” em expansão, na sua ingenuidade, que a tradição de recepção do marxismo do movimento operário e não só tenha operado o assassinato intelectual da crítica do fetiche de Marx. Com a publicação dos "Manuscritos Económico-Filosóficos", em 1932, surgiu nomeadamente uma oposição intra-marxista à "ortodoxia", que por sua vez tentou incorporar o novo escrito de imediato no horizonte da ideologia burguesa. Embora esta fracção se tenha voltado contra o conteúdo objectivista do "materialismo histórico", ela não só conservou o estatuto revolucionário da classe operária, mas praticou a actividade necrófila de uma maneira muito própria.
Esta ala no interior do marxismo apresentou-se desde então como "marxismo humanista". Encabeçada por Erich Fromm, o arquétipo de todos os marxistas pequeno-burgueses, e flanqueada por Ernst Bloch e Herbert Marcuse, cristalizou-se uma leitura dos "Manuscritos Económico-Filosóficos" que certamente se destacou da interpretação ortodoxa de Marx. Embora a "luta de classes" repetidamente viesse à tona nos textos deste "marxismo humanista", no entanto ele acentuava no mesmo fôlego as qualidades próprias da subjectividade e da individualidade, que eram negligenciadas pelo "marxismo ortodoxo" na sua tendência para a subjectividade colectiva. Ele afastou-se assim da unilateralidade sociológica de um ponto de vista de classe, para se referir ao ser humano por excelência, em sua essência antropológica. (1) Este ponto de vista da humanidade abstracta estava tão condicionado pela sociedade real como o do movimento operário, e manifestou ideologicamente o que já se tinha consumado no primeiro terço do século XX: A passagem da socialização das classes para a socialização de classe média fordista.
Com isto já não estava primeiramente em debate a "exploração" pela classe capitalista, mas a "alienação" do sujeito de si mesmo e da natureza pela sociedade burguesa. A profunda divergência destas duas correntes marxistas foi, consequentemente, de imediato reflectida num debate polémico, principalmente relacionado com a avaliação do jovem Marx. Nesta "batalha pelo jovem Marx", como o marxista soviético Oiserman designou a controvérsia entre "ortodoxia" e "marxismo humanista" (2) , constituíram-se duas avaliações diametralmente opostas dos "primeiros escritos" de Marx: Enquanto o "marxismo ortodoxo" declarou o Marx maduro, começando naturalmente com o "Manifesto Comunista" de 1848, como o "verdadeiro Marx" do "materialismo histórico", considerando os escritos iniciais ainda cheios de restos burgueses e, portanto, quando muito com valor de museu, o "marxismo humanista", pelo contrário, viu nos "Manuscritos Económico-Filosóficos" a verdadeira essência do marxismo, que só seria continuada no seu trabalho posterior, sem nunca abandonar a base epistemológica da teoria da alienação.
Seria necessário um desenvolvimento em separado para verificar em detalhe a validade destes dois modos de recepção. No entanto, logo quanto ao entendimento básico da teoria de ambas as posições se anuncia uma exigência completamente na lógica da identidade. Por muito contraditoriamente que se refiram ao texto de Marx, concordam no entanto na sua definição formal do “Marx autêntico”: Se, para o marxismo do movimento operário, o "socialismo científico" está de certo modo "pronto" em cima da mesa com o "materialismo histórico", e o "marxismo humanista" vê na teoria da alienação uma elaboração completa da crítica de Marx, com isso o texto de Marx ganhou o estatuto de uma Bíblia, em que residiria o "verdadeiro Marx", como situação de facto, sem mediação, que se trataria finalmente de reconhecer; com a implicação de que seria necessário de seguida assumir este "verdadeiro Marx" e transferi-lo para a realidade vigente.
Ao que é preciso contrapor, no plano fundamental da formação e desenvolvimento de uma teoria, que mesmo a crítica mais experiente tem de permanecer sempre inacabada, enquanto continuar a existir o seu objecto, o contexto de socialização capitalista. Isto aplica-se, naturalmente, também à "crítica categorial", porque o seu processo, e com ele ela própria, só acaba quando a "totalidade concreta" (Roswitha Scholz) tiver sido ultrapassada na prática através de um contramovimento transnacional. Dentro da "totalidade concreta" não pode haver nenhuma teoria "acabada", dado que a constituição fetichista objectivada ela própria está em processo em si, e, na sua dinâmica, não pode deixar a reflexão crítica parar; uma circunstância que tem de ser tida em conta pela crítica social radical, historicizando consciente e negativamente, sem que esta contingência histórica contrarie a pretensão à verdade negativa na explicação da crise actual.
A ideia de uma teoria "acabada" na lógica da identidade, pelo contrário, ela própria tem muitas vezes razões extrateóricas, ou seja, o desejo quase irresistível de metê-la no bolso, para agitar a consciência quotidiana burguesa, fresca e divertidamente. Bem ao contrário da história da recepção marxista, portanto, é preciso constatar que se inicia uma inevitável tensão com a pretensão de ultrapassar a constituição social fetichista, que no entanto encontra simultaneamente o seu movens negativo na existência continuada dela. Esta tensão, que somente pode ser ultrapassada com a abolição da socialização fetichista, traduz-se já sempre, na sua contraditoriedade, numa dimensão subjectiva dos/as teóricos/as críticos/as, pois afinal as pessoas são socializados num ambiente burguês, juntamente com os sedimentos da ideologia do quotidiano nele depositados.
Regressando ao desenvolvimento da crítica de Marx, isto significa em primeira linha que Marx foi socializado num campo teórico-ideológico que mudou durante a sua vida e incluiu diferentes áreas temáticas. O jovem Marx concentrou a sua crítica principalmente sobre os temas do hegelianismo de esquerda alemão na década de 1840: a crítica do idealismo, a crítica da religião e a crítica do Estado. Com os "Manuscritos Económico-Filosóficos" de 1844, esta primeira fase acabou e começou a viragem para materialismo de Feuerbach. O Marx maduro, por sua vez, já se tinha virado para outros temas, principalmente, claro, a "economia política" inglesa e os economistas nacionais franceses.
Ora o aguilhão da crítica de Marx está precisamente no facto de a socialização no campo teórico da ideologia burguesa lhe ter dado simultaneamente o estímulo para lutar consistentemente a partir dele. Em termos de história da teoria, essa atitude de recusa pré-teórica do modo de produção e de vida capitalista traduziu-se, no seu trabalho, numa completa não-identidade que caracteriza a luta de toda a vida do "Marx esotérico" com a sociedade burguesa e com as suas formas de pensar. Em vez de, na lógica de identidade, implementar um "verdadeiro Marx", na sua obra inicial ou na tardia, a conceptualização da crítica da dissociação-valor de um "duplo Marx" tem em vista desde o início que se trata de duas linhas na obra de Marx, que revelam uma superfície de atrito constante e no entanto estão entrelaçadas. O "Marx esotérico" está em conflito permanente com as suas premissas burguesas, que ele primeiro teve de tomar forçosamente de cada um dos teóricos burgueses (Hegel, Feuerbach, Adam Smith). Mas isso também tem por consequência que as suas abordagens de crítica radical não podem ser simplesmente obtidas numa parte isolada do seu trabalho; os fermentos da crítica do fetiche do "Marx esotérico" são os fragmentos de uma luta ao longo de toda a vida e, por conseguinte, cobrem todo o corpus do seu texto.
O campo de debate aberto pela conceptualização da crítica da dissociação-valor de um "duplo Marx" chega assim a um critério dos seus momentos de crítica radical que se atravessa à frente da tradição teórica marxista. A norma teórica de recepção da obra de Marx, em vez recorrer a um "verdadeiro Marx" postulado como uma unidade no conjunto do seu corpus textual, terá de orientar-se para compreender a não-identidade que se abre necessariamente entre a adaptação das formas burguesas de pensamento e o esforço para a sua transcendência crítica. A demonstração da crítica da dissociação-valor de uma vertente crítica do fetiche-“esotérica” e de uma vertente burguesa-“exotérica” na obra de Marx não se baseia em dois substratos invariáveis, mas percebe por baixo deles categorias dinâmicas que na obra de Marx experimentam uma metamorfose continuada com o desenvolvimento da sua crítica.
A título indicativo, referimos pelo menos as várias fases do "Marx exotérico": O jovem Marx, até à "Crítica do Direito do Estado de Hegel", move-se ainda num "idealismo crítico", que reproduz o posicionamento hegeliano através da sua crítica; os "Manuscritos Económico-Filosóficos", por sua vez, trouxeram já a transição para o materialismo, que aparece ainda como "naturalismo humanista", à maneira de Feuerbach; o Marx maduro, finalmente, desenvolveu no seu "materialismo histórico" a variante científica do materialismo, que agora se aplica na demonstração objectivista de uma contradição de classe trans-histórica. Os elementos de crítica do fetiche na obra de Marx estão sempre em contradição com esses clichés burgueses de um "idealismo crítico" e de um "materialismo histórico", e modificam-se ao longo dos conteúdos especificamente criticados: Os escritos do jovem Marx promovem sobretudo uma crítica do fetiche da política, ao passo que o Marx maduro se dedica principalmente à crítica do fetiche do capital.
O "Marx exotérico" da crítica da alienação
A abordagem na lógica da identidade da tradição teórica marxista e a confusão da história da recepção que lhe seguiu na peugada, no entanto, foram apenas o efeito secundário da limitação do marxismo quanto aos conteúdos categoriais. O conflito contínuo do Marx crítico do fetiche com as formações ideológicas socialmente criadas inflama-se na discrepância basilar entre o indivíduo somático e a forma de sujeito burguesa; a dissolução desta tensão pela recepção teórica marxista também teve de se reflectir em suas epistemologias ideológicas.
A identificação inscrita no conteúdo da forma da teoria burguesa entre corporeidade individual e forma de sujeito socialmente constituída pode agora assumir várias formas de desenvolvimento. Um atestado de tal operação na lógica da identidade era já sempre a ideologia naturalista, que faz desaparecer no indivíduo biológico a determinação da forma social, para fazer desaparecer do relacionamento social com a natureza a sua mediação capitalista. Mas assim ela perde-se em contradições insolúveis, insusceptíveis de serem reflectidas na mediação, porque a incompatibilidade dos momentos natural e social agora já só pode ser pensada sob premissas da lógica da identidade, o que, todavia, corresponde à quadratura do círculo.
No quadro da lógica da identidade burguesa, a ideologia naturalista pode desenvolver-se basicamente em duas vias. Uma foi prosseguida pelo "marxismo ortodoxo". Pondo de parte a crítica inflamada à relação social fetichista, espalhada por toda a obra de Marx, ficou-lhe agora obstruído o conhecimento de uma constituição objectivada e em si dinâmica pela forma do capital. Mas uma objectividade privada da sua processualidade perde o conteúdo social; enquanto não-social, o poder do excedente fetichista só pode ser entendido como um processo natural, que deve ser teorizado tão objectivamente como qualquer outro objecto da ciência natural. Foi principalmente Engels que fez gala destas reminiscências objectivistas na obra de Marx, para assim lhe conferir uma legitimação científica. O curso do mundo como determinismo da ideologia da modernização (contradição a-histórica entre forças produtivas e relações de produção, com os seus antagonismos de classe), de par com a ontologização do trabalho e com o estatuto objectivo da revolução proletária, como coroamento do "materialismo histórico" – a tríade ideológica do movimento operário desembocou finalmente numa rude naturalização da constituição social fetichista que, afinal, fez coincidir a "lei do valor" com a "lei natural".
A outra direcção da ofensiva de naturalização burguesa comporta-se especularmente a esse objectivismo naturalista. Aqui surgiu o "marxismo humanista". Este resolveu a "relação social com a natureza" não no objecto, mas no pólo complementar da epistemologia burguesa: A teoria da alienação, sobretudo de Erich Fromm, despoja o indivíduo da sua abstractificação real inerente à forma burguesa de sujeito, de modo que fica como entidade residual uma "natureza humana", cuja versão indefinida não podia ser escondida pelas qualidades próprias, falsamente atribuídas de modo concretista, de um ser humano ontológico. Esta naturalização consumada pelo "marxismo humanista" do sujeito como "natureza humana ( ) em geral ( )" (3) (Fromm) não podia dar-se por satisfeita com um determinismo histórico objectivista ( "lei do valor", como "lei natural"), pelo contrário, recorria a peculiaridades aparentemente ontológicas da natureza humana, entre as quais a "liberdade humana" assumia uma importância preferencial, e não só em Fromm. (4)
A naturalização da constituição fetichista, fosse com carga objectiva ou subjectiva, tornou-se assim o conteúdo prefigurado na lógica da identidade da epistemologia burguesa, que se vê obrigada a receber permanentemente de volta os seus próprios posicionamentos cegos de raiva no decurso do desenvolvimento do pensamento. Manteve-se um paradoxo insolúvel saber porque terá precisamente o “acto livre” do "sujeito revolucionário" de executar o objectivismo quase-naturalista, razão por que o "marxismo ortodoxo" contrariava francamente a própria acção revolucionária, pois a revolução seria de facto objectivamente "a seguir", e, portanto, na realidade predefinida por determinado curso do mundo. Já a ausência da prevista revolução proletária de 1848 deu muitas dores de cabeça teóricas a Marx.
Complementarmente a isso, o "marxismo humanista" percebeu o pólo da objectividade social apenas através das lentes do sujeito naturalizado. Consequentemente, o critério da transição para o socialismo não poderia consistir no curso quase-determinista do mundo, mas apenas no sujeito naturalizado, que no seu esforço antropológico pela liberdade estaria a ser minado pela sociedade alienada. Mas a objectividade pouco visível não pode ser simplesmente escondida, ela acaba por entrar em cena como categoria abstracta: uma vez que o critério da crítica da alienação é apenas o sujeito naturalizado, resulta daí um conceito de objectividade completamente abstracto, que se coloca externamente a este cerne ontológico, como sociedade alienada. Separada da natureza do sujeito e apenas perifericamente tomando posse dele, o conceito de sociedade congela-se num resíduo superficial, cujo carácter artificial perverte a natureza humana; o conceito de objecto da teoria da alienação é tão indeterminado como o conceito de "acto livre" da "ortodoxia". Porque não configuraram ainda os seres humanos, até hoje, o mundo de acordo com a sua liberdade antropológica é questão que tem de permanecer tão sem resposta como a questão de saber porque precisamente a natureza é que há-de constituir a base da liberdade humana. O entendimento do socialismo do "marxismo humanista" foi, assim, não menos afirmativo que o da "ortodoxia", e envolveu-se nos mesmos paradoxos de liberdade e natureza, de autonomia e determinismo.
Contra esta naturalização da subjectividade ou da objectividade, a dialéctica crítica do fetiche não desiste do momento corporal e natural da socialização capitalista, no qual a abstracção real se executa forçosamente; no entanto, como momento não-idêntico, que não pode ser apreendido como um substracto existente em si. A "relação social com a natureza" é realmente uma constelação contraditória irredutível, em que o momento social e o natural ganham independência, mas esta não pode ser posta novamente independente da sua mediação. Portanto, o momento natural nem assume a determinação da forma social, nem pode ser reificado como elemento específico para além dela, só pode ser trazido à ideia em termos de dialéctica negativa, na sua mediação e na sua autonomia. Não há identidade de "lei do valor" e "lei natural", mas contradição entre a valorização objectivada do "trabalho abstracto" e o "processo de metabolismo com a natureza" (Marx); não há nenhum cerne natural do sujeito fora da socialização, mas sim a contradição entre o indivíduo vivo e a "determinação da existência" social (Marx).
Se relacionarmos estas considerações epistemológicas e sobre a história da recepção com o "duplo Marx" da teoria crítica da dissociação-valor, uma clarificação é obviamente necessária neste contexto. É principalmente o naturalismo objectivista do movimento operário que está explicitamente envolvido até aqui no "Marx exotérico", o qual foi reformulado como "materialismo histórico" numa filosofia burguesa do progresso. Perante o contexto condicional até aqui desenvolvido, é preciso juntar-lhe também a crítica da alienação do "Marx humanista", que conserva em seu "naturalismo humanista" uma epistemologia centrada no sujeito, e elimina a não-identidade basilar entre indivíduo físico-social e forma de sujeito, a partir de uma matriz de teoria da alienação. Desde a publicação dos "Manuscritos Económico-Filosóficos" em 1932 e a subsequente "luta pelo jovem Marx", entrou em cena o pesadelo das gerações marxistas, como uma praga com faces de Jano, cujas cabeças miravam sem vida, tanto uma como a outra.
Note-se aqui, de passagem, que também a matriz epistemológica da crítica da alienação baseada na naturalização do sujeito não se alimenta simplesmente a partir de uma interpretação incorrecta dos textos de Marx. Os "Manuscritos" estão de facto repletos de naturalização e ontologização, que têm aqui um lugar de destaque, capaz de servir de exemplo. Recorrendo a Feuerbach, Marx concebeu um conceito de socialismo que ele mesmo descreveu como "humanismo naturalista": "Este comunismo é humanismo como naturalismo totalmente desenvolvido…" (5) Foi principalmente este escrito de Marx sobre a alienação que foi canibalizado afirmativamente para a nova classe média do século XX.
Se o "marxismo humanista" se agarrou a tais passagens para estilizar os "Manuscritos" como o "verdadeiro Marx", que neles teria escrito as suas bases teóricas finais, enquanto o "marxismo ortodoxo" lhe contrapôs que o "verdadeiro Marx" ainda está muito "inacabado" aqui, ambos recusaram a integração dos "Manuscritos Económico-Filosóficos" no conjunto da obra de Marx. Ora, na crítica marxiana ("Marx esotérico"), a negação não é um acto isolado, mas sim a negação concreta das contradições decorrentes da sua própria história teórica, e já por isso dinâmica em si mesma; e também a afirmação marxiana ("Marx exotérico") não é sem pressupostos, também ela muda com os respectivos objectos e teóricos, cujos escórias positivas Marx carrega consigo.
O impacto "exotérico" na teoria da alienação de Marx, portanto, para a teoria crítica da dissociação-valor, não é simplesmente uma circunstância a constatar; pelo contrário, resulta da posição concreta do jovem Marx perante o campo ideológico por ele encontrado, e dos consequentes problemas colocados. Os primeiros escritos de Marx ainda estão bem à luz do debate com o idealismo hegeliano, que ele repudiou como "misticismo lógico", o que já aponta a direcção da ofensiva da crítica: A sua crítica de Hegel foi dirigida principalmente contra a independência idealista do espírito, que Marx procurou ligar à terra, por assim dizer à "realidade real". Esta reintrodução do espírito hipostasiado numa base material, como que tangível, apresenta nessa fase da sua elaboração teórica uma certa ambivalência. Assim, por exemplo, na "Crítica da Filosofia do Direito de Hegel" Marx permaneceu ainda perfeitamente no terreno do idealismo, uma vez que tentou descobrir os segredos de Hegel com o "verdadeiro espírito empírico do Estado", assim movendo a sua crítica completamente ainda no quadro do objecto criticado. Mesmo aqui, no entanto, torna-se clara a necessidade de Marx, ao mesmo tempo, elaborar uma base materialista para a crítica do Estado, de modo que a crítica do "misticismo lógico" de Hegel oscila entre estes dois pólos de "idealismo crítico" e "materialismo crítico".
Os "Manuscritos Económico-Filosóficos" já ultrapassaram essa tensão, pois Marx, com a transição para Feuerbach, diz ter determinado agora uma base material. Marx encontrou esta reintrodução das formas de pensamento independentes numa base materialista com Feuerbach, em seguida, na constituição ontológica da subjectividade naturalizada: na naturalidade dos seres humanos Marx viu uma nova charneira epistemológica para a sua crítica da hipostasiação idealista do espírito, que agora poderia ser combatida em nome de uma objectualidade tangível. A naturalização do sujeito está relacionada com a determinação materialista da sociedade, cujo carácter por assim dizer artificial não retorna mais como "misticismo lógico", mas como "mística da propriedade," situação em que o "exotérico" do materialismo inicial de Marx ainda salienta mais a ilusão jurídica de um poder de disposição privado, como origem da "alienação" capitalista.
A necessidade de uma fundação materialista da sua crítica está, portanto, na linha da sua concepção idealista original, por isso ele coloca a "realidade real", agora entendida de modo naturalista, tão de repente contra o espírito como antes colocava o "espírito empírico do Estado" contra o espírito abstracto de Hegel. A transformação do "Marx exotérico", do idealismo de outrora para o materialismo de Feuerbach, resulta deste desenvolvimento em si dinâmico do "Marx exotérico" e do consequente aumento da necessidade de reconduzir o espírito independente a uma realidade posta imediatamente.
No entanto, é devido à crítica radical do pensamento de Marx que ele começou logo de início a ultrapassar tanto a visão idealista da "Crítica do Direito Constitucional de Hegel" como também o fundamento materialista dos "Manuscritos". A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel transcende a forma de pensamento do "idealismo crítico", e apresenta uma formulação crítica do fetichismo da forma política que de modo nenhum se limita ao plano intelectual e ideológico. E também nos "Manuscritos" Marx ultrapassa a naturalização do sujeito inerente à teoria da alienação e toma como alvo a constituição social em sua constituição realmente abstracta.
Robert Kurz tematizou em seu "Trabalho morto", que ficou em fragmento, este cliché muito pouco exposto de crítica radical nos "Manuscritos Económico-Filosóficos": "As primeiras considerações fundamentais de Marx sobre a categoria trabalho encontram-se nos "Manuscritos de Paris" de 1844. Esta primeira tentativa de uma crítica imanente da economia política com base nos seus representantes contemporâneos leva imediatamente a colocar em questão o 'trabalho', como pressuposto aparentemente não problemático; e já aqui emerge o conceito de 'trabalho abstracto'', que pouco é objecto de reflexão: ´Que sentido tem, no desenvolvimento da humanidade, esta redução da maior parte da humanidade ao trabalho abstracto?', (Marx 1968/1844, 16). Esta questão está subjacente à premissa de 'se elevar acima do nível da economia nacional' (ibidem). É neste contexto que Marx também formula a definição da 'alienação' do trabalho perante a pessoa que trabalha, já em relação com a forma de mercadoria como forma de existência da 'valorização'…" (6) A classificação da crítica da alienação de Marx na vertente do “Marx exotérico” equivale, assim, tão somente ao esclarecimento de uma factualidade latente, e não a nenhuma expansão de reajustamento da definição do "duplo Marx". Assim como Marx na "Crítica do Direito Constitucional de Hegel" ultrapassa o seu "idealismo crítico" com base numa crítica do fetiche da política, e na sua obra tardia ultrapassa o "materialismo histórico" através da crítica do fetiche do "sujeito automático", ele também transcendeu nos "Manuscritos Económico-Filosóficos" a crítica da alienação naturalista através dos primeiros começos de uma crítica do "trabalho abstracto".
O contexto condicional social real da crítica da alienação: A pós-modernidade tardia e a naturalização do sujeito em desintegração do estado de necessidade
Após este excurso à história da recepção e à crítica da ideologia, voltemos à circunstância notável de um renascimento de Marx nos tempos mais recentes. Dada a figura com faces de Jano da tradição teórica marxista, é óbvio que, ao lado do paradigma da luta de classes da classe média de esquerda, é a teoria da alienação de Marx que subjaz a este recente boom. E, de facto, a "alienação" transformou-se numa palavra-chave central da ideologia pós-moderna do estado de necessidade. O neofascismo já trouxe essa metamorfose atrás de si, razão pela qual Ken Jebsen, em sua naturalização do sujeito "humanista", já consegue trazer a terreiro Erich Fromm, apoiando-o. Naturalmente que Fromm tem de ser defendido contra isso, pois, mesmo como rude ontólogo do marxismo, de modo nenhum ele é compatível com o fascismo.
O surgimento de uma teoria da alienação associada a Marx e levada, para além do "marxismo humanista", também para a esfera pública burguesa não pode, no entanto, ser explicado apenas por meio de reflexões sobre a recepção e a crítica da ideologia. Se assim fosse, o novo boom de Marx teria, pelo menos dentro da crítica social, de se alongar sobre os fundamentos exegéticos baseados no conceito de alienação prevalecente nos "Manuscritos", e de posicionar-se de algum modo na batalha de fantasmas em torno do "Marx exotérico". Com toda a ilimitada propensão da esquerda pós-modernizada para o oportunismo, isso seria pedir demais. Assim, o sussurro crescente sobre a "alienação", que diz dar-se bem com Marx sem uma ligação que vá além de um sentimento vago, aponta para outras forças propulsoras, que movem a ultrapassada consciência de esquerda sem qualquer esforço teórico maçador.
A crítica da ideologia, no entanto, também não ergue a sua pretensão de verdade negativa apenas através de estudos de exegese e da história da recepção. A elaboração teórica da crítica da dissociação-valor de boa vontade deixa à "Nova Leitura de Marx", também para o futuro, o isolamento de questões de pura história da teoria, cuja "reconstrução" depois circula no espaço vazio, pois na melhor das hipóteses daí nada pode sair; na realidade, foi Michael Heinrich que se esforçou por eliminar todos os aspectos críticos da obra de Marx. (7) Em vez disso a "crítica categorial" (Robert Kurz) abrange a unidade em si fragmentada de objectividade em processo da constituição social fetichista e reacção ideológica dos indivíduos forçados à forma de sujeito, ganhando o seu critério negativo de crítica apenas com recurso à processualidade objectivada da socialização fetichista.
Entretanto, quanto maior era o esforço do pós-marxismo para renunciar a uma análise da dinâmica social com base na teoria da acumulação e da crise, após o colapso da União Soviética, tanto mais rasteira era a crítica social desarmada, década após década. Foi assim que ganhou nome, já nos anos 90 do século XX, o notório tagarela da alienação Axel Honneth, como representante da mais jovem geração da "teoria crítica". Pois também a "ponta de lança" do marxismo ocidental na academia alemã virou logo caricatura sem vida da "dialéctica negativa", que de facto já não tem necessidade de criticar a sua própria tradição, porque caiu muito para trás dela. No olho do cu não há visibilidade nenhuma e assim, neste caso, o "pesadelo das gerações" sobrecarrega o progresso na operação universitária. O peso da "dialéctica negativa" onera muito fortemente o apêndice pós-modernizado "teoria crítica", pois este gostaria apenas de uma coisa: reconhecimento, reconhecimento, reconhecimento! E assim estamos de volta, mais uma vez, ao marxismo do movimento operário, só que este, pelo menos, ainda não queria integrar-se numa sociedade mundial em desintegração.
Embora o centramento no sujeito do "marxismo humanista" parecesse, à primeira vista, ter uma maior área de sobreposição com a individualização compulsiva pós-moderna do que o marxismo objectivista da "ortodoxia", mesmo o abandono da reavaliação crítica da sua própria tradição e o abandono completo de qualquer reflexão sobre a dinâmica em si histórica da constituição fetichista objectivada não conseguiram garantir, por agora, a compatibilidade sem atritos com a administração da crise neoliberal. Pois a negação da crise pela pós-modernidade inicial estimulou, em seu hábito brincalhão e irónico, um culto da inautenticidade que se esquivava a qualquer essencialidade ou apego à natureza, para se refugiar depois com performatividades desmaterializadas no universo virtual do discurso idealista.
Toda a vontade de reconhecimento do escasso remanescente histórico da crítica marxista da alienação não poderia evitar, portanto, que a antropologia baseada na naturalização do sujeito gostasse de se encaixar, não muito apropriadamente, precisamente no espírito do tempo neoliberal: A sua naturalização, bem como a insistência numa relação com o objecto concebida abstractamente, cuja alienação deveria ser recebida de volta no sujeito, não era compatível com a extirpação pela pós-modernidade inicial de qualquer elemento objectivo. Embora, na esquerda degradada em cena, os estilos de vida de filosofia vitalista, existencialistas e esotéricos há muito tempo desfrutassem de uma certa aceitação, eles permaneceram bastante rudimentares, como variedades da compulsão identitária em vigor na fase inicial da pós-modernidade.
Que o desconstrucionismo neoliberal e a crítica naturalista da alienação não constituem, ainda assim, nenhuma oposição é o que se mostra desde logo pelo facto de o idealismo desconstrucionista, na sua "redução ao discurso" das relações sociais, não operar menos na lógica da identidade do que a naturalização do sujeito da teoria da alienação. Não é só a derivação reducionista da "relação social com a natureza" que conhece o modus da naturalização, a formação na lógica da identidade também permite, inversamente, autonomizar o elemento social, a fim de transformar qualquer substrato natural numa qualidade do "espírito" ou do "discurso". E, de facto, ambas as figuras de pensamento na lógica da identidade surgiram com a ideologia iluminista do século XVIII: "naturalização do social" e "socialização da natureza" implicam-se mutuamente em cada teoria burguesa, estabilizam-se na sua constituição na lógica da identidade como polaridades abstractas e, portanto, mudando entre si, sendo que as suas conjunturas sociais são condicionadas pela processualidade concreta da socialização fetichista capitalista, e assim ocorrem historicamente com diferente peso de cada vez.
Esta relação é de importância central para o desenvolvimento ideológico da crítica social, porque a esquerda pós-marxista, na sua “desconstrução”, se equipou de tal modo com a marca "feminismo" que rejeitou como ideologia naturalista qualquer designação do condicionamento natural da individualidade. Desconsiderar o momento natural em si socialmente mediado como tal em nome da "crítica do sexismo", no entanto, não só expressa um erro teórico, mas correspondeu a um reconhecimento, em sintonia com a conjuntura do espírito do tempo, da masculinidade e da feminilidade pós-modernas de crise no patriarcado capitalista em desintegração; vista assim, a desconstrução total de qualquer contexto de sentido das necessidades foi realmente para encenar de algum modo como "progressista" o próprio asselvajamento da crise: "Atrás de Butler não há como recuar", com este slogan o pós-feminismo retirou o aguilhão à crítica radical da razão, provando ser tão ignorante relativamente aos clichés críticos da sua própria tradição teórica como a sua alma gémea pós-marxista.
Entretanto, também esta terrível dança macabra, de uma esquerda de classe média que deixou de ter limites com o pós-feminismo, já passou novamente à história. O sujeito de crise ocidental da pós-modernidade inicial viveu acima das condições do sistema; o movimento zombie de uma virtualização ultrapassada pelo desenvolvimento histórico conseguiu, ainda assim, dentro da criação sem substância de "capital fictício" (Marx), garantir mesmo um relativo espaço de manobra nos centros ocidentais, no interior da espiral de desvalorização global, mas que acabou por estourar com a crise financeira de 2008. A negação desconstrucionista da crise tornou-se insustentável, porque a naturalização da ideologia pós-moderna tardia do estado de necessidade se dedica à coerção de desvalorização com uma vontade fetichista de a atravessar até ao fim amargo, para uma acumulação que volte a arrancar; um fim que, no entanto, nunca mais poderá chegar. De acordo com o desejo paradoxal de desvalorização da sua própria subjectividade como colectividade, o sujeito de crise reduz-se a pura natureza, que tem de recusar, como super-exigência artificial e luxuosa, qualquer impulso para além da "capacidade de valorização" da respectiva "capacidade de desvalorização". A viragem da desnaturalização do desconstrucionismo pós-moderno inicial para o naturalismo pós-moderno tardio da subjectividade do estado de necessidade manifesta a dinâmica de crise ideologicamente agudizada, na sua redução da existência humana à "vida nua" (Agamben).
Ora a ascensão pós-moderna tardia da teoria da alienação está relacionada com esta naturalização da subjectividade burguesa em desintegração, resultante da situação de crise agravada. A crise negada caiu-lhe em cima de tal maneira que ela se vê obrigada a integrar o abominado objecto na matriz ideológica, a fim de poder manter a negação da crise, doravante como dedicação à desvalorização iminente. Mas a pretensão que a acompanha, de um fundamento "factual" e relacionado com o objecto, leva ela própria ao absurdo; a naturalização do sujeito do estado de necessidade constrói, tanto em termos ideológicos como em termos sociais reais, sobre o impulso inautêntico da pós-modernidade inicial, razão pela qual o conteúdo agora imediatamente postulado não é menos arbitrário do que a sua negação desconstrucionista. A exterioridade do conceito de objecto, que vai de par com a reintegração forçada do objecto, corresponde à constelação da percepção da teoria da alienação, de modo que pode servir para praticamente tudo, mas nunca seguramente para a crítica da dinâmica em si objectivada da socialização fetichista. (8)
A incompatibilidade relativa entre o estrondoso palavreado da autenticidade da crítica da alienação pós-moderna tardia e a festa da inautenticidade pós-moderna inicial foi, portanto, historicamente limitada, o que se torna evidente na sua concordância quanto à ideologia do sujeito e não só. A dissolução da relação social com a natureza na lógica da identidade, além disso, em ambos os casos agarra a filosofia ontológica, pois também o pós-estruturalismo francês foi embebido desde o início por uma "autenticidade" latente, justamente a "autenticidade da inautenticidade". Que nem tudo é como parece, este princípio orientador não foi incorporado numa crítica da ideologia ontológica; com a adição de que tudo pode ser "autenticamente" completamente diferente, Heidegger já estava sempre presente, na forma de uma, por assim dizer, ontologia flexibilizada. A heideggerização do marxismo, já fortemente prosseguida na pós-modernidade inicial, com a necessidade induzida pela crise de reintegrar o domínio do objecto, no decurso da administração do estado de necessidade da pós-modernidade tardia, apenas pode revelar-se apropriadamente como crítica da alienação.
Esta indefinição do conceito de objecto, inerente à teoria da alienação e à administração pós-moderna tardia do estado de necessidade, é francamente adequada à fabricação de conceitos em pânico pela classe média nos países ocidentais: com a "crítica dos juros", com a "economia de subsistência" e a "economia física", a vontade fetichista da desvalorização gosta de monopolizar um marxismo ontologicamente deturpado, mas apenas para assim finalmente poder acabar completamente com ele. Para as fantasias cooperativas regionais de classe média em desintegração, não é necessário acrescentar nenhum Karl Marx às estratégias de frente transversal; o sussurro neofascista está na linha da Primavera Gesell-Heidegger, à qual pretende subordinar de uma vez por todas a crítica do fetichismo de Marx.
A redução da crítica da identidade de Marx na lógica da identidade e o fundo tácito da forma androcêntrica da teoria
Não é preciso ter capacidades de vidente para prever um prazo impreterível apenas curto para as últimas convulsões do cadáver residual com faces de Jano da história teórica pós-marxista. A metamorfose pós-moderna do desconstrucionismo culturalista em crítica da alienação naturalizadora do sujeito só pode prosseguir tão bem porque a inautenticidade pós-moderna inicial já tinha lançado ao vento todo o contexto de mediação histórico e social geral. O facto de a "crítica social" de esquerda não ter conseguido até hoje ir além do "Marx exotérico", no entanto, tem razões na verdade extramarxistas, mais precisamente extra-androcêntricas. Mesmo a crítica da lógica da identidade burguesa permanece em toda a obra de Marx agarrada ao juízo de identidade. Neste ponto, também é decisivo pôr em perspectiva a intenção da crítica da dissociação-valor de ir "com Marx para além de Marx": A constituição social fetichista da "economia política" não pode de modo nenhum ser atingida com uma "crítica através da exposição".
Uma vez que Marx, através das suas diferenciações entre "processo de metabolismo com a natureza" e abstracção social real, entre indivíduo corporal e forma de sujeito burguês denuncia a não-identidade da "relação social com a natureza", ele atingiu de certo modo o cume da crítica imanente androcêntrica da lógica da identidade capitalista. Esta crítica imanente androcêntrica da identidade, no entanto, tem de cortar abruptamente as suas linhas internas de pensamento, logo que tenha desenvolvido a relação concreta dessa não-identidade: uma vez que o Marx crítico do fetiche estabelece a abstracção real como o primeiro e supremo princípio da "Crítica da Economia Política", a génese social real do poder de destruição do "trabalho abstracto" tem de permanecer em última instância incompreensível. A destrutividade, que historicamente se busca a si mesma, de uma abstracção consumada na produção do conteúdo material concreto do trabalho não pode ser explicada a partir de si mesma, o seu poder destrutivo tem um carácter por si só reactivo. Como destrutividade inerente à forma do capital, o trabalho abstracção real surge de um pressuposto social geral que se fecha ao princípio formal da constituição político-económica como tal.
Virando o conteúdo das formas de capital, que em seu carácter constitutivo é simultaneamente reactivo, num princípio formal sem pressupostos, Marx instaura a abstracção real como princípio monolítico, que, precisamente face à sua unicidade, cria a aparência de neutralidade sexual. Daí a subsunção da "feminilidade" ao valor já consumado, que como categoria por si subsistente é elevado a problema geral da humanidade, pelo que o conceito de natureza a ele subordinado perde a sua prefiguração sexual específica, permanecendo assim tão indeterminado como o conceito de valor estabelecido abstractamente.
Apresentando como contradição assexuada a não-identidade de abstracção real e "processo de metabolismo com a natureza," de determinação da forma social e indivíduo corporal, Marx, todavia, não pode ficar satisfeito com este resultado. A determinação da forma feminina dissociada permanece um tema constante, precisamente através da tentativa do seu apagamento, sempre com pressa de fazer sair dos eixos a lógica androcêntrica da identidade; por isso a dissociação, enquanto dominada pela lógica da identidade, recebe na obra de Marx uma entrada apenas mais projectiva, encarcerada na "natureza feminina" e na finalidade social para ela prevista na socialização heterossexual compulsiva: "Na relação com a mulher, como presa e criada da volúpia comunitária, está expressa a degradação infinita na qual o ser humano existe para si mesmo, pois o segredo desta relação tem a sua expressão inequívoca, decisiva, evidente, desvendada na relação do homem com a mulher e no modo como é apreendida a relação de género imediata, natural. A relação imediata, natural e necessária do ser humano com o ser humano é a relação do homem com a mulher." (9)
A abstracção real capitalista, na sua destrutividade sem sentido, é uma reacção à "natureza feminina ameaçadora", sendo a sua aparência como princípio humano sexualmente neutro e universal apenas o resultado da dissociação consumada, à qual só é permitido apresentar-se como natureza atrofiada androcentricamente dominada – aparada numa aparente "relação natural" de heterossexualidade patriarcal compulsiva. Na configuração de um princípio na aparência sexualmente neutro, que se depara com uma "natureza feminina" tão projectivamente empolada como androcentricamente dominada, Marx reproduz o modus social real do fetichismo sexual do patriarcado produtor de mercadorias.
O que caiu no processo histórico real, bem como na crítica de Marx à repressão, vem à luz do dia sem rodeios no devir histórico da forma da dissociação-valor. O adestramento moderno inicial do proto-sujeito androcêntrico, através das medidas de disciplinamento que acompanharam a "revolução militar", no campo de manobras e nos manicómios e asilos, foi tecido de modo indissoluvelmente ligado com a dissociação das partes sensuais e sexuais, que foram projectadas como "feminilidade ameaçadora" na determinação da forma feminina que se constituía equiprimordialmente. O sujeito androcêntrico desde a sua constituição foi impulsionado pelo medo pânico de perder a sua determinação da forma socialmente imposta, se se entregasse à actividade dos sentidos e da paixão, e esta ameaça projectada foi doravante associada aos indivíduos coagidos à determinação da forma feminina. Sem a queima das bruxas nunca teria havido o nascimento brutal da modernidade – piras e canhões anunciaram a aurora de uma era verdadeiramente diabólica.
Especialmente as imagens contemporâneas da caça às bruxas dos séculos XV e XVI ainda trazem cá para fora, consciente e publicamente, o que desde o século XVIII está sedimentado no inconsciente da subjectividade androcêntrica e na determinação da forma feminina, e até hoje continua a funcionar como pressuposto tornado tácito: que a mulher é uma bruxa selvagem, que obriga o homem às relações sexuais com vara e chicote. A associação entre "natureza" e "feminilidade", que culmina na forma da dissociação, constitui a charneira da dominação androcêntrica da natureza; a capacidade de violência do "trabalho abstracto" é preformada pelo ódio androcêntrico à "natureza feminina ameaçadora", e nunca se teria tornado realidade histórica sem ele. Esta dissociação do feminino, por conseguinte, condicionou historicamente, e também em termos de lógica da constituição, a "valorização do valor", e constituiu, como "forma sem forma" própria (Roswitha Scholz), o Outro equiprimordialmente mediado com a forma do valor, que se encontra no mesmo nível de abstracção e prefigura a "totalidade concreta", também num plano social, sócio-psicológico e cultural-simbólico.
O reducionismo categorial da lógica androcêntrica da identidade que também marca o "Marx esotérico" é fundamentalmente incompatível com a crítica da dissociação-valor, o que antes de mais é esclarecido pela a respectiva compreensão da dialéctica. Como crítica do valor, a teoria de Marx desenvolve-se na forma de uma dialéctica do geral (valor, sociedade de classes, natureza humana) e das suas manifestações particulares, pelo que a valorização do valor, na verdade ela própria predeterminada como geral, distorce como androcentricamente imanente o seu pressuposto já não derivável. A forma da teoria burguesa encontra o seu limite imanente nessa dialéctica do geral e do particular, que como categorias da lógica da identidade já trouxeram atrás de si o fetichismo da dominação androcêntrica da natureza. Esta lógica marxiana da derivação da contradição principal e da secundária também tem obviamente o seu lugar na horrível marcha de uma esquerda zombie, e é assim que hoje flutua, ao lado do animado lúmpen com a inscrição "Os vossos filhos vão ser como nós, os vossos filhos vão ser todos queer!", em plena harmonia, a desencabrestada faixa "A luta das mulheres é luta de classes", que poderia seguramente ter vindo da primeira metade do século passado.
Para a eliminação pós-feminista da crítica radical da razão tem de permanecer impensável a dinâmica realmente fetichista de valor e dissociação, como dialéctica automediada do geral com o geral, demonstrando ao sujeito androcêntrico a carreira violenta do seu pressuposto em vias de extinção. Que esta totalidade fragmentada produz a partir de si mesma, com a dimensão social-psicológica, sociológica e cultural-simbólica, os próprios planos de formação da subjectividade burguesa, que não são derivados da dialéctica basilar de valor e dissociação, mas, no entanto, a ela voltam a ser remetidos, essa crítica dialéctica da "totalidade concreta" (Roswitha Scholz) tem de parecer ao cortejo fúnebre do pós-feminismo, em regressão para a imanência sexual de crise, como um esforço verdadeiramente do além, que oscila algures entre a mística teológica e a megalomania autoritária.
Por muito que a crítica da dissociação-valor desenvolvida por Roswitha Scholz tenha, assim, de romper com a lógica da identidade de Marx, de modo nenhum isso significa escamotear os seus fermentos de crítica do fetiche. A compreensão crítica da sua limitação androcêntrica modificou a sua importância como androcentricamente imanentes, sem que por isso se tenham tornado desnecessários para a análise crítica das formas do capital. Na verdade, a teoria da crise radical do "Marx esotérico" desempenha até hoje uma função-chave na crítica da dissociação-valor. Assim, a crítica radical ao "patriarcado produtor de mercadorias" está decididamente em contradição não só com o pós-marxismo “de crítica social” e com a crítica do valor androcentricamente degradada; a "ruptura categorial" faz-se notar também em relação ao pós-feminismo de esquerda. O "pesadelo das gerações" é um pesadelo literal, o esconder da sua história patriarcal de violência aplanou à inocência pós-feminista o caminho da sua própria "passagem através das instituições".
A possibilidade de a constituição social fetichista ter sido construída discursivamente eliminou a recordação da relação entre "dominação da natureza e feminilidade" (Elvira Scheich), para a reproduzir de imediato culturalistamente na megalomania androcêntrica; a desconstrução, que se pretende cristalizar em modo de vida, de qualquer momento natural da própria sexualização compulsiva internalizou isso fundamentalmente, para se poder entregar tanto mais “progressistamente” à "dessexualização narcisista" (Lilli Gast) da sexualização de crise pós-moderna; e também a redução compulsiva da realidade fetichista à "contingência" e à "diferença" do "discurso" não correspondia a nenhuma crítica da forma androcêntrica da teoria, ela vinha na verdade da metamorfose do próprio androcentrismo, que, como Silvia Bovenschen já expusera sobre o romantismo, mais uma vez ocupa a feminilidade dissociada na figura do bonzinho agora pós-moderno, assim procurando disponibilizá-lo para o controlo androcêntrico da crise.
O sussurro persistente sobre a alienação, portanto, tem condicionamentos no essencial sexualmente específicos. O entrelaçamento, resultante do desenvolvimento especificamente sexual entre inautenticidade desconstrucionista e autenticidade naturalizante, manifesta-se de modo particularmente plástico em relação à constituição de género: Já por trás da masculinidade de bonzinho pós-moderna espreitava a violência crua da subjectividade androcêntrica de crise, que, através da sua estilização particularmente "delicada", deu ao androcentrismo a forma de desenvolvimento adequada ao seu limite interno. Assim, já não é de admirar que tenha sido principalmente o bonzinho pós-moderno que se distinguiu nos contextos de esquerda por excessos sexuais de violência, sem que por isso ficasse decididamente perdido: Ora ele é gentilmente delicado e em qualquer caso bastante lastimável; e alguém assim pode ter cometido ataques sexistas? O bonzinho em cena, estendendo-se em seu estado tão lamentável, apelou inconscientemente aos impulsos reprimidos da feminilidade maternal, conseguindo esquivar-se muitas vezes, protegido pela masculinidade de crise de esquerda hegemónica no contexto.
O facto de a nomeação da violência androcêntrica ser tornada tabu pela desconstrução de qualquer sexualidade foi aqui um catalisador para a aceitação aberta da brutalizante masculinidade de crise dentro da administração pós-moderna tardia do estado de necessidade. Para o bonzinho pós-moderno, o tempo de "dissimulação" e disfarce queer passou de uma vez por todas; se até aqui ele pôde manter a sua compulsão identitária narcisista em agressividade passiva, a necessidade generalizada e em expansão de ordem leva-o de volta à sua masculinidade aparentemente genuína. A masculinidade de crise em desintegração requer renovada rigidez na demarcação dos limites de género, que são propensos a proceder com tanto mais violência, quanto menos o androcentrismo tem algo para opor à erosão da forma global da dissociação-valor. A masculinidade “autêntica”, visada através da correia de transmissão da alienação, serve ao último levantamento da autocracia androcêntrica, mas, no estado da sua superfluidade, produz apenas caricaturas patéticas do "pater familias" dos séculos XVIII e XIX, sempre já perto do ridículo.
Este contexto, que se constrói sobre a mediação histórica de bonzinho pós-moderno e naturalização heterossexual compulsiva, tem de escapar, claro, ao pós-feminismo desconstrucionista, pois também ele não criticava a identidade narcisista compulsiva da determinação da forma feminina, mas apenas a reproduzia discursivamente. A "dupla socialização" (Becker-Schmidt) baseia-se na negação da determinação da forma feminina, que, precisamente por isso, no entanto, se apodera do eu como regresso do negado, enquanto permanente compulsão de retorno: Também para a biografia pós-feminista de classe média se torna óbvio que a crise fundamental subverte implacavelmente o programa pós-moderno de integração do feminino na forma do valor. A feminilidade desconstrucionistamente negada e privada de qualquer crítica transforma-se assim rapidamente no chão “autêntico” da feminilidade de crise em erosão, e na verdade a administração androcêntrica do estado de necessidade, em sua escalada de violência, baseia-se principalmente nesta auto-orientação das mulheres. Ela não poupa na oferta de identidade de uma autenticidade feminina, para fazê-la aceder a novas "honras", como “mulher da crise” e “mulher dos escombros”.
"Crítica categorial" ou barbárie
A inverdade desta funesta mistura de esquerda pós-marxista e esquerda pós-feminista resulta, portanto, da recusa fundamental de começar sequer a rever os passos do seu próprio percurso. Se já a controvérsia entre o "marxismo ortodoxo" e o "marxismo humanista" sobre o "Marx exotérico" reduziu toda a sua obra a clichés burguesmente compatíveis, entre as duas cabeças de Górgona do cadáver marxista global pelo menos ainda se travou uma furiosa batalha exegética em torno do jovem Marx; o actual boom da teoria marxista da alienação, pelo contrário, já vem sem qualquer referência legitimadora. Quanto mais compulsivamente a crítica social prescreve aqui as categorias "exotéricas" de uma constelação histórica passada, tanto menos o desenvolvimento da crise actual pode ser percebido por meio dessas categorias. Há tão pouco uma luta de classes dentro da socialização de classe média pós-moderna como uma "autenticidade" ontológica das pessoas, depois de séculos de história de imposição e internalização do capitalismo; a cabeça de Górgona do marxismo, outrora com dupla face de Jano, cambaleia literalmente de cabeça perdida, na administração do estado de necessidade que aí vem.
Se, na aparência, o divagar ensimesmado sobre a “luta de classes”, e em particular o recente impulso da teoria da alienação, gostaria de representar uma revitalização da crítica de Marx, o seu surgimento reflecte, na realidade, a saída agressiva para fora da herança marxista. Sob a ontologia da teoria da alienação das formas de consciência da pós-modernidade tardia, movem-se os piores clichés da história da ideologia burguesa. A naturalização do sujeito em desintegração não nasce só de uma afirmação bizarra da coerção social à desvalorização, ela é a ideologia pós-moderna pequeno-burguesa por excelência na sua fundação regional e cooperativa, já sempre perto do sentimento anti-semita com a sua aversão ao abstracto, além disso completamente identitária quanto ao género, e infiltrada com os mais diversos racismos etnopluralistas.
As referências a Marx oferecidas do lado neofascista prosseguem, portanto, apenas o propósito expresso de recolher a bordo forças de esquerda, para o projecto de administração do estado de necessidade. Em algumas regiões do mundo, a era pós-marxista já é uma realidade sangrenta – no espaço islâmico e não só, o neofascismo islâmico pós-moderno destruiu sucessivamente as forças da crítica social, e essa catarse, até à limpeza do último elemento da teoria e da práxis de crítica social, está agora iminente também nos centros ocidentais, na sua degradação neofascista. A funesta mistura de pós-marxismo e pós-feminismo está perfeitamente em linha com este asselvajamento do estado de necessidade, na crise fundamental da pós-modernidade tardia, razão pela qual a naturalização do sujeito da teoria da alienação também sai precisamente do ventre do ex-desconstrucionismo.
Contra isso apenas se pode abrir uma nova "luta pelo Marx esotérico" e pela crítica feminista radical da razão, tomando a sério a dinâmica interna da culturalização pós-moderna inicial e da naturalização pós-moderna tardia e, assim, decifrando a "culturalização da relação com a natureza" e a "naturalização da sociedade" como manifestações concretas da ideologia de crise pós-moderna. Como "crítica categorial", a crítica da dissociação-valor tem de abandonar o fundo da lógica da identidade da epistemologia burguesa, e transformar-se numa negatividade verdadeiramente sem fundo da dialéctica equiprimordial de valor e dissociação, que não reifique os fermentos críticos da sua própria tradição teórica como entidades dadas, mas os comprove em seu conteúdo, para uma crítica da sociedade mundial em desintegração. Escovando a sua própria história de crítica social a contrapelo da ideologia da modernização, e assumindo de uma forma modificada os elementos radicais do "Marx esotérico" e da crítica feminista da razão, na sua crítica da "totalidade concreta", sob a perspectiva da crise mundial actual, ela preserva a sua herança marginalizada, construindo a ponte para um futuro possível, para além da barbárie do patriarcado produtor de mercadorias. Com isso ela também coloca o "pesadelo das gerações", finalmente, no seu direito histórico.
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(1) Existem inquestionavelmente entre estes representantes do "marxismo humanista" diferenças que não podem ser simples e imediatamente niveladas com o termo "humanismo". No entanto, é preciso registar, no nível mais abstracto da crítica, que todos eles falam de existencialização e ontologização, embora mais ou menos explicitamente. Isto pode parecer injusto, especialmente para Marcuse, mas no seu texto "Eros e civilização" – muito estimulante do conhecimento – cintila uma base ontológica, razão pela qual a sua epistemologia psicanalítica tem uma abordagem diferente da de Adorno, o qual sonda consequentemente, em contradição, a relação entre estrutura da pulsão e sociedade – precisamente de modo não idêntico. Como parte de uma análise mais detalhada da psicanálise, serão esclarecidas mais de perto estas constelações imanentes dos protagonistas da teoria crítica em relação à psicanálise. Apesar das suas críticas a Fromm, Marcuse pode perfeitamente ser classificado neste "marxismo humanista", pelo menos tanto quanto se pode aqui constatar.
(2) T. I. Oiserman, Der ‚junge’ Marx im ideologischen Kampf der Gegenwart [O 'jovem' Marx na luta ideológica do presente], 1976 Berlin
(3) Erich Fromm, Das Menschenbild bei Marx [A imagem do der humano em Marx], Frankfurt am Main, 1963, p. 33
(4) Ibid, p. 44
(5) Karl Marx, Ökonomisch-philosophische Manuskripte [Manuscritos Económico-Filosóficos ], Marx-Engels-Werke, Volume 40, Berlin p. 536
(6) Robert Kurz, Tote Arbeit (unveröffentlichtes Fragment) [Trabalho morto (fragmento não publicado)], p. 44sg.
(7) Ver em detalhe sobre isso: Robert Kurz, Geld ohne Wert [Dinheiro sem valor].
(8) Ver sobre isso Daniel Späth: Querfront allerorten oder „Die Neueste Rechte“, die „Neueste Linke und das Ende gesellschaftskritischer Transzendenz [Frente transversal em toda a parte! Ou: A 'novíssima direita', a 'novíssima esquerda' e o fim da transcendência na crítica social], p. 165sgs., em: EXIT! Crise e crítica da sociedade das mercadorias nº 14
(9) Karl Marx, Ökonomisch-philosophische Manuskripte [Manuscritos Económico-Filosóficos], Marx-Engels-Werke, Volume 40, p. 535