exit! Crise e Crítica da Sociedade das Mercadorias nº 17 sai em Março de 2020 – Índice e Editorial
Índice
·Robert Kurz: Sinal verde para o caos da crise
·Roswitha Scholz: O capitalismo, a crise... o divã e o declínio do patriarcado capitalista – Observações críticas sobre Slavoj Žižek e Tove Soiland
·Thomas Meyer: Sobre a miséria ininterrupta do positivismo – Comentário adicional tardio ao "caso Sokal”
·Leni Wissen: Para a história da assistência aos pobres
·Andreas Urban: A superfluidade como instituição total – A história, a lógica e a função do lar de idosos
·Herbert Böttcher: A caminho de uma "igreja empresarial" na senda da modernidade em ruínas
·Gerd Bedszent: Sobre a marcha para a barbárie ou o Leste como bode expiatório
Editorial, carta aberta e apelo a doações
Desde o crash financeiro de 2007/8, pelo menos, pode ser observada uma inversão na estratégia política: Após os tempos da dissolução neoliberal das fronteiras, a salvação é agora vista na fronteira. Há um retorno crescente à nação ou aos regionalismos. Com "Make America great again" e "America First", Trump faz da necessidade uma virtude, porque a potência mundial EUA está há muito tempo numa espiral descendente perante complexos processos de decadência: tarifas protetecionistas vão sendo impostas, guerras comerciais vão sendo travadas (acima de tudo contra a China). Entretanto, a dívida nacional nos EUA continua a aumentar, apesar da imposição de tarifas protecionistas. Cada vez mais se tenta manter fora os refugiados vindos do México, etc. Também o Brexit, é claro, representa este estabelecer da fronteira. O debate sobre ele deixa claro quais são as contradições resultantes da economia e da política mundiais sem saída, e que a globalização não pode ser simplesmente abandonada. Isto provavelmente tornar-se-á ainda mais óbvio após a eleição de Boris Johnson.
Em todo o mundo, estão a ser eleitas bizarras e estridentes figuras e partidos de direita que confiam em "verdades" simples: Orbán, Kaczyński, Erdoğan, Duterte, Trump, Bolsonaro – e a lista continua a crescer. Entretanto Trump deixa a Síria ao cuidado de Putin e atira os Curdos para serem devorados por Erdoğan. O sonho dos anti-imperialistas de que os EUA se retirem e se contenham revela-se um pesadelo. A guerra por procuração no Iémen entre o Irão e a Arábia Saudita e as suas consequências devastadoras só são mencionadas de vez em quando nas notícias locais, com uma atitude demonstrativa da consciência de culpa. Muitos cenários de catástrofe e muitas queixas há muito se tornaram o pão nosso de cada dia, e só chegam às manchetes dos jornais quando um problema se agrava de forma aguda, como a situação desoladora dos serviços sociais na Grécia há alguns anos atrás, da qual quase nada se tem ouvido entretanto e que não deverá ter melhorado muito. Como pano de fundo, há a ameaça de uma enorme crise económico-financeira, para a qual Nouriel Roubini adverte insistentemente que pode já não ser politicamente administrável, como ainda foi o caso em 2008 e anos seguintes. (1) Todos sabem isso. A "Crash-Literatur" é que está em alta. O livro de Marc Friedrich e Matthias Weik »Der größte Crash aller Zeiten. Wirtschaft, Politik, Gesellschaft. Wie Sie jetzt noch ihr Geld schützen können« [O maior crash de todos os tempos. Economia, política, sociedade. Como ainda pode proteger o seu dinheiro agora] é o número 1 na lista de bestsellers da Spiegel.
Ao mesmo tempo, os contemporâneos preocupam-se não apenas com o problema da habitação, mas também com as alterações climáticas, onde é bastante óbvio que as contramedidas já não são suficientes apenas a nível nacional, regional e local. Os próprios Verdes não passam aqui de um paliativo, para garantir que nada realmente tem de mudar, mas que tudo se pode fazer na imanência. Figuras como Greta Thunberg tornam-se estrelas. (2) Após o debate Me Too, o movimento de mulheres está a reconstituir-se em todo o mundo, expressando com veemência a sua indignação em greves/manifestações, por exemplo, na Argentina ou na Espanha. A agitação social contra os cortes no sector social está a fazer manchetes na Argentina, por exemplo. Os aumentos de preços dos combustíveis ou do Metro fazem o copo transbordar no Irão e no Chile; em vários países árabes há protestos (a lista poderia continuar). Assim, a agitação social reaviva-se repetidamente e é "trabalhada" em conformidade pela polícia à bastonada e a tiro (com mais de 100 mortos no Irão). (3) Acresce que o sistema partidário se torna irrelevante e desprovido de qualquer conteúdo. Os "partidos populares" estão em erosão, os Verdes e a AfD estão em ascensão. Prevê-se que a situação económica se deteriore não apenas na Alemanha, mas em todo o mundo. Entretanto, também na Alemanha há um alto coro a apelar ao fim da política de austeridade, inclusive para estimular a economia, o que, naturalmente, faria subir a dívida pública.
Assim, ainda é válido entender as sociedades como uma estrutura de contradição, nomeadamente – e este é o ponto decisivo – no declínio do capitalismo. O "colapso da modernização" (Robert Kurz) mostra-se em condições anómicas, difíceis de calcular. O que é estabelecido hoje como um estado ou uma tendência pode parecer diferente amanhã. Além das tendências de direita, hoje também se fazem sentir protestos que não podem ser simplesmente classificados como reacionários à maneira anti-alemã (embora amplos sectores dos próprios anti-alemães representem agora posições próximas da AfD, sobretudo na Bahamas), como é evidente nos movimentos feministas e da política do clima, que transcendem as fronteiras nacionais (mesmo que aqui também haja, sem dúvida, tendências questionáveis ou problemáticas).
Uma reacção importante da esquerda a esta nova situação desde 2008 tem sido a reactivação da luta de classes, que ela provavelmente considera como uma das suas categorias centrais, embora se diga repetidamente que já não se trata das classes "antigas". Os outros problemas (sexismo, racismo, ecologia, etc.) são então incluídos nas contradições secundárias supostamente já não existentes. Klaus Dörre deseja seriamente um novo movimento social que se proponha "Expropriar Zuckerberg". (4) A classe deve vir novamente antes da "identidade", com o racismo e o sexismo a aparecerem como secundários. Mesmo nos círculos feministas é possível escrever um manifesto feminista para os 99% (!). (5) Procede-se como se tais tipos de discriminação tivessem estado seriamente em discussão para além de nichos marginais, já que nos anos 80 e 90 o discurso hegemónico das ciências sociais se preocupava com o meio, a subcultura, o estilo de vida e a individualização. Hoje anda-se outra vez à procura de culpados. Está a alastrar um (vulgar) marxismo de personalizações, em que os capitalistas, especuladores e investidores são a imagem do inimigo, o que, naturalmente, implica um anti-semitismo estrutural. (6)
No decurso do debate sobre o pós-crescimento, todo o tipo de conceitos existentes estão a ser reunidos e utilizados para fazer uma salada: democracia económica, economia solidária, participação dos trabalhadores na empresa, etc. Obviamente, uma mistela intragável. Um novo "New Deal Verde" também está em alta, como deixam claro publicações como as de Jeremy Rifkin e Naomi Klein. Até a Presidente da Comissão Europeia, von der Leyen, é a favor de um "Green Deal".
À concentração e discussão na nova leitura de Marx, no fetichismo (7) e no discurso de que 'o capitalismo está a chegar ao fim' (8) segue-se agora a concentração na 'nova' questão das classes. (9) Falta a perspectiva do fetiche, segundo a qual o fetiche inclui tanto o trabalhador como o capitalista. Hoje, todos se sentem ameaçados pelo capital externo, não importa o quanto tenham contribuído para Schröder, que se tornou um arrogante novo-rico nos anos 90 e descobriu as acções da bolsa para si mesmo. Tudo isso indica que tudo deve ser resolvido dentro da forma da crítica da dissociação e do valor. O problema básico da situação actual é basicamente expresso no discurso de Greta Thunberg aos políticos: "Como se atrevem?!” – ao que os políticos então lhe respondem que encontre ela primeiro respostas práticas para todas estas questões! Na verdade, todos são contra as alterações climáticas (excepto a AfD e os seus): empresários, políticos, a notoriamente infame sociedade civil.
Assim, o modo como resolver este problema dentro do quadro fetichista de referência revela-se um comum desamparo político-económico: A taxa de CO2, a proibição dos veículos a diesel e afins têm aqui um mero carácter simbólico. É necessária uma mudança fundamental no modo de produção e de vida, e também nas estruturas de necessidade correspondentes, para além da lógica de uma classe trabalhadora e uma classe capitalista. Isto é, em princípio, claro para qualquer criança. Eles sabem-no, mas fazem-no apesar disso, poderia dizer-se hoje com Žižek, mas de uma forma completamente diferente do que ele pensa (ver o artigo sobre o 'Lacan-Marxismo' de Roswitha Scholz, nesta edição). Aos debates sobre uma eco-ditadura, que também assombram o mundo, teria de ser contraposta a visão de Marcuse sobre as falsas necessidades geradas no capitalismo e sobre a sua satisfação substitutiva, porque não há sociedade emancipatória que também produza outras necessidades e estruturas de necessidade. As respostas actualmente dadas de modo nenhum fazem justiça ao drama da desintegração das relações patriarcais-capitalistas.
Em vez de insistir em mudanças radicais no sentido dessa crítica do fetiche, fazem-se pseudodiscursos. A esquerda está assim a balançar e não produziu nada de novo há décadas. As ofertas de utopia e as instruções para a acção são abundantes. As respostas, desde os anos 70, continuam basicamente as mesmas. Mudanças radicais não são realmente esperadas. De facto, desenvolveu-se um pequeno discurso sobre a crítica do trabalho (10), mas este também permanece dentro do quadro social dado, desprovido de qualquer transcendência real.
O grave trauma do colapso do Bloco de Leste está completamente por resolver. E depois: o fim da social-democracia, o fracasso do movimento alternativo, do movimento de mulheres, do movimento ecológico, etc., que ajudaram a criar o "novo espírito do capitalismo" (Boltanski & Chiapello). Para não mencionar: A derrota das tentativas de governos de esquerda na América Latina (Venezuela, Bolívia). Em vez disso, há simplesmente uma nova evocação de todos os correspondentes temas, o renascimento das correspondentes ilusões (democracia económica, economia solidária, renda básica, etc.), que agora estão sendo passadas como radicais e inter-sistemas. Uma não reconhecida "melancolia de esquerda" (Walter Benjamin, Wendy Brown, Enzo Traverso) refugia-se assim em ideologias retro, em utopias ao desbarato e no accionismo, que não têm nada que se oponha realmente às más condições e são bem capazes de se revelarem ineficazes. Após a vergonha da social-democracia, uma "hiper-social-democracia " é agora suposta ser a solução para todos os problemas. O que permanece despercebido é que a própria social-democracia era apenas um motor para o desenvolvimento do capitalismo (por exemplo, no Fordismo), e não é possível uma nova edição dela ("verde") sob a égide do precário capitalismo dos mercados financeiros, dos progressivos processos de racionalização, da concorrência internacional, das interdependências do capital, etc. (11) (que agora também a direita está a tentar impedir).
Actualmente um boom de movimento está mais uma vez a determinar a esquerda; a teoria que não serve imediatamente à necessidade de acção e que poderia até mesmo fazer das questões aqui levantadas um assunto de discussão tem pouca saída neste momento. Certamente que não se deve aturar tudo, nem curvar-se aos ditames da financiabilidade (arrendamentos, Hartz-IV etc.), é indispensável, por exemplo, um compromisso prático contra o racismo, o anti-semitismo, o neofascismo etc. Mas qualquer abstracta hipostasiação da práxis deve ser aqui evitada e o quadro social e histórico de referência tem de ser reflectido. É necessário levar em conta a necessidade da abstracção da dissociação-valor e olhar para o famoso todo, também para possivelmente desenvolver a clarividência de até que ponto as acções e movimentos trabalham para a afirmação da regulamentação da administração da crise. É preciso, certamente, olhar do lado da crítica da dissociação e do valor para ver onde podem existir movimentos com momentos que vão além de si mesmos, nos quais podemos interferir para ampliar o seu horizonte intelectual no sentido de uma crítica da síntese social. A este respeito, é essencial utilizar as possibilidades de acção para melhorar a situação actual. Afinal, já não vivemos no "mundo administrado", como no tempo de Adorno, mas em tempos de "colapso da modernização" (Robert Kurz). No entanto, não se pode aqui ir atrás dos movimentos. A distância crítica, a elaboração teórica e o questionamento da forma social são hoje especialmente importantes, quando a corrente principal da esquerda acredita que todos os problemas complexos podem ser resolvidos dentro desta forma, e as pseudo-soluções estão na ordem do dia. Em contraste com a Nova Leitura de Marx, o objectivo não é realizar uma exegese de Marx formal-analítica e filológica, mas entender os conceitos de Marx como abstracções reais e relacioná-los com as mudanças reais da sociedade mundial actual. Isto também significa reconhecer que a política e a subjectividade (política) estão em erosão há décadas. As teorias pós-modernas foram a expressão disso. Mesmo que as relações solidárias sejam muito importantes, sobretudo no reacendido movimento de mulheres, isso não deveria levar à anacrónica proclamação, à maneira da agit-prop, de um novo sujeito político mulheres (questão a que será preciso voltar num artigo separado). É precisamente o entendimento da teoria crítica da dissociação e do valor que permite perceber processos e movimentos sociais num continuum social histórico e temporal maior, em vez de adoptar de modo reducionista uma perspectiva com grande saída em tempos de movimento: Preocupação e imediatidade, a que muitas vezes se segue uma ressaca passados alguns anos, esticando-se depois na imanência do sistema as exigências e conteúdos até ao limite (pode-se pensar no feminismo de Estado). A ânsia de agora realmente “ter de fazer alguma coisa", no entanto, obscurece o facto de que a própria elaboração teórica é uma práxis independente no contexto social geral, que só pode servir à práxis social visando processos sociais de mudança social se não se entregar a um fetiche de prática, com ele se unificando. (12) Este parece ser o caso quando se é hostil à teoria e se visa a prática, não querendo saber nada sobre uma mudança radical indispensável, mas contentando-se simplesmente com o falso status quo imediato, que de qualquer modo não pode ser mantido. Enquanto nos últimos 30 anos se insistiu numa posição queer e pós-colonialista, ou seja, numa perspectiva de preocupação e de ponto de vista, parece que neste momento uma orientação de classe dos supostos "99%" (não apenas feminista) pretende substituir neste aspecto as teorias e ideologias pós-modernas. Com tal definição da questão social, torna-se evidente a necessidade de ser 'normal' à maneira pequeno-burguesa, e de pretender representar as massas e não estar em comum com os outros marginalizados e discriminados, por mais que se declare que se pretende incluí-los. Entretanto, parece já ter sido completamente esquecido o facto de a "questão da mulher" e do Outro terem sido vistas como uma contradição secundária. Mas as mulheres e os migrantes são os mais afectados pela "questão social". Ser incapaz de práxis, supérfluo e marginalizado e não ser capaz de se articular é o maior crime. As teorias pós-modernas poderiam ser criticadas sobretudo pela sua versão culturalista desta discriminação e por permanecerem na "política de identidade", em vez de lhe contraporem a "questão social" com uma ênfase "materialista" pesada. Como tal, experiências interrompidas no contexto de um todo da história mundial histórica, para além de baratas hipóteses pós-modernas de hibridez, teriam que ser fortalecidas em sua decadência e também, antes de mais, processadas. Caso contrário, faltam os potenciais de percepção de um sistema fetichista auto-referencial, que o próprio homem e a própria mulher co-constituem (co-constituíram). Poder-se-ia dizer maliciosamente que a experiência como tal já não é tão centralmente importante para quem realmente no essencial faz experiências (a revista Outside the box tem agora a "experiência" como tema na sua actual edição nº 7).
Mesmo em contextos de crítica do valor já houve um impulso para se tornar prático e para se ligar às experiências directas. Economia solidária, Commons e Open-Source foram as palavras-chave aqui. (13) Nada fez tão triste figura como a ideologia do Open-Source. A liberdade na rede tem dado vazão ao ressentimento, a vómitos de opinião afectada e a demagogia, tem vindo a aumentar a ideologia da dádiva, etc.
O contexto da exit! e com ele Claus Peter Ortlieb, que morreu em 15.9.2019 e sobre quem publicamos um elogio, sempre resistiu a tais tendências e se demarcou das (mais recentes) elaborações 'teóricas' da Krisis. A este respeito, é altamente problemático capturá-lo num elogio na Krisis, degustando o seu texto "Uma contradição entre matéria e forma", como foi abusivamente feito na homepage da Krisis (krisisis-online.org de 10.10.2019). Nesse texto Ortlieb procurou insistir na relevância da mais-valia relativa para esta contradição, o que Trenkle ignorou, por exemplo, na sua discussão com Heinrich, e até hoje não desempenha nenhum papel decisivo na Krisis. Ortlieb também encontrou palavras claras contra a Streifzüge e a Krisis relativamente a outros aspectos. (14)
Pedimos aos leitores de exit! que continuem a apoiar com doações os nossos esforços teóricos, que, como sempre, não podem ser guiados apenas por esforços práticos imediatos, e não se curvam às restrições de um empreendimento académico de esquerda, nem a ser impulsionados por intenções de carreira ou por baratas atitudes e correcções de cena política. Especialmente hoje, há necessidade de intelectuais que, em termos de conteúdo e institucionais, "metodicamente" e "metodologicamente", não se movam na roda de hamster académica nem permitam que o seu pensamento seja ditado ou estragado por ela, mas que olhem para o todo social (mundial), para além do caminho batido. Sem isso, não haverá uma crítica verdadeiramente radical da sociedade. Nas antologias e nos congressos, as mesmas figuras com seus doutorandos e doutorandas vêm aparecendo há anos, se não há décadas. Estão submetidas a um funcionamento da universidade cada vez mais precário, e é por isso que se agarram ou têm de agarrar ainda mais à academia como um potencial ganha-pão – "Quando eu como pão, canto uma canção" – é o lema afinal.
No passado, a crítica da (dissociação-)valor teve um pequeno boom, e também é retomada em textos e referências da esquerda, mas pára-se quando se trata do essencial, ou seja, do questionamento radical da forma patriarcal-capitalista de socialização. Mas esta fase também parece ter terminado, e em muitos casos as pessoas até estão a voltar a um marxismo da Idade da Pedra algo modificado. Após anos de pós-modernismo com a sua "paralisação frenética" (Paul Virilio), que tornou cada vez mais clara a forma vazia do valor baseada na dissociação do feminino, a necessidade hoje é novamente para o "fixo", para o "identitário", para imagens claras do inimigo, a fim de identificar indivíduos e grupos como responsáveis pela miséria, etc: O mundo deve ser de novo dividido claramente em acima e abaixo, amigo e inimigo, bem e mal, e o não idêntico é ignorado. Assim se prepara o pogrom em pensamento. É assim que se expressa a "nova seriedade" após o fim do pós-modernismo lúdico. Os artigos da presente edição da exit! estão no contexto desta crítica.
Com "Sinal verde para o caos da crise", de Robert Kurz, reimprimimos um texto publicado numa antologia esgotada de 1994. Este ensaio é sobre a mania do automóvel. Esboça o desenvolvimento histórico da implementação do transporte individual e mostra que esta implementação se deve essencialmente à irracionalidade do modo de produção capitalista. Kurz chama a atenção para as consequências destrutivas. Ele também enfatiza que o transporte individual, o "carro", não é apenas tecnologia, mas está associado a um modo de vida específico. Por último, mas não menos importante, o "cão de combate pintado" serve à "mobilização total" da mercadoria força de trabalho e, como objecto de consumo, é simbolicamente carregado: Isto torna a mania do automóvel também uma mania masculina.
Para a exit! nº 18, também está previsto um comentário sobre este texto, que actualizará o ensaio de Kurz e dará uma olhada aos novos desenvolvimentos da loucura automóvel (condução autónoma, mobilidade eléctrica), sobretudo tendo como pano de fundo a catástrofe climática que há muito está em curso.
Žižek tem sido um dos intelectuais de esquerda mais influentes há já algum tempo. Quando se diz que se está a escrever algo sobre Žižek é-se recebido com incompreensão. Ele seria confuso, oco, polémico, às vezes até é descartado como um bluf e um impostor, ficando assim completamente fora de discussão. Surge então a questão de saber por que é ele ao mesmo tempo considerado respeitável, é frequentemente convidado e as massas se reúnem nos seus eventos. Por que pode ele publicar em editoras como Suhrkamp ou Fischer e é considerado um "filósofo estrela"? No texto de Roswitha Scholz "O capitalismo, a crise... o divã e o declínio do patriarcado capitalista – Observações críticas sobre Slavoj Žižek e Tove Soiland" visa-se principalmente criticar a teoria de Slavoj e o seu preconceito androcêntrico a partir da perspectiva da crítica da dissociação e do valor, mas também mostrar, pelo menos em certa medida, o seu papel como figura central na transição do pós-modernismo para uma era anárquico-autoritária, que vai de par com uma referência semi-irónica a Lenine e a Estaline nos seus escritos. Mais surpreendente ainda é que Tove Soiland, cuja abordagem também é referida como o título já indica, ignore tais traços em Žižek e tente acriticamente tornar o seu pensamento frutífero para um "Lacan-Marxismo" feminista.
Na contribuição de Thomas Meyer, "Sobre a miséria ininterrupta do positivismo – Comentário adicional tardio ao ‘caso Sokal’", é examinado o chamado caso Sokal. Que consistiu no facto de há mais de 20 anos o físico Alan Sokal ter submetido um artigo falso a uma revista pós-estruturalista, o qual foi escrito num jargão típico da cena correspondente, de modo que ninguém reparou que este artigo não tinha qualquer significado sério. Meyer mostra que Sokal permanece superficial em suas críticas ao absurdo pós-moderno e que ele mesmo não tem nada a oferecer além do positivismo comum. Sokal está longe de uma crítica à "objectividade inconsciente" (Claus Peter Ortlieb). Além disso, Meyer pega na crítica de Sokal à crítica feminista da ciência e mostra que Sokal, devido ao seu androcentrismo e à sua incapacidade de transcender as fronteiras do positivismo, não entende ou não está disposto a entender aspectos essenciais da crítica feminista da ciência e, portanto, tem que dar a feministas como Evelyn Fox-Keller uma descompostura mais ou menos grosseira. O modo de apontar défices na ciência académica, impingindo falsos artigos a presumíveis idiotas para "provar" que os ramos correspondentes da ciência nada mais produzem do que puro disparate, não parou até hoje. Isso também é problemático, como aponta Meyer, porque todos os tipos de populistas de direita se exaltam sobre o absurdo não-científico espalhado pelos estudos de género, etc. e argumentam que eles deveriam, portanto, ser abolidos e banidos. Assim, o impingir de artigos fraudulentos pode estar ligado à agitação populista de direita ou neofascista, como demonstra a abolição dos estudos de género na Hungria.
Leni Wissen em seu artigo vira-se "Para a história da assistência aos pobres". O "trabalho", como forma central de actividade no capitalismo, implica uma relação especial com o não-trabalho. A relação entre “trabalho” e “não-trabalho” é particularmente importante para a estruturação das relações sociais. Isso reflete-se na forma como a pobreza é tratada, como mostra um olhar sobre a história da assistência aos pobres. Com a emergência da sociedade da dissociação-valor, a distinção entre os pobres dignos, isto é, trabalhadores, e os indignos, isto é, não trabalhadores, começou a prevalecer, o que teve uma influência decisiva na configuração do sistema de assistência social emergente. A história da assistência aos pobres está intimamente ligada à história do anticiganismo. Pois no anticiganismo a discriminação social e a racista estão inseparavelmente ligadas. Tendo em conta as tendências gerais de asselvajamento na senda da dinâmica de crise pós-moderna do capitalismo, um "anticiganismo estrutural" (Roswitha Scholz) parece ser a forma ideal de lidar com a crise para uma classe média em declínio, e também tem de ser considerado como um ruído de fundo para a reestruturação do Estado social no capitalismo em decadência, como mostra Wissen no exemplo do "Estado social activador" na Alemanha.
A contribuição de Andreas Urban é dedicada à história do lar de idosos como instituição moderna. Com isso, ele segue directamente a sua tese, desenvolvida num artigo anterior (in: exit! nº 15), de uma "superfluidade" capitalista das pessoas idosas (como base de uma hostilidade estrutural à velhice nas sociedades modernas) – uma superfluidade que talvez seja materialmente objectivada de modo particularmente impressionante no lar de idosos. Mostra que o lar de idosos é histórica e logicamente uma instituição para a custódia de idosos como 'improdutivos' e 'supérfluos'. Esta função ainda hoje é válida, apesar das numerosas mudanças superficiais que os lares de idosos têm sofrido nas últimas décadas. Isto pode ser visto em particular no facto de que a segregação espacial e social e o confinamento de facto de idosos e necessitados de cuidados ainda fazem parte da essência mesmo dos mais confortáveis e acolhedores lares e "casas de repouso". Além disso, o cuidado dos idosos (não só, mas sobretudo institucional) está sujeito a cálculos económicos de custo-benefício, bem como a lógicas de tempo resultantes da estrutura capitalista da dissociação-valor. Neste contexto, o artigo também fornece algumas prespectivas críticas sobre fenómenos e tendências que estão a ser discutidos actualmente na ciência e nos media sob as palavras-chave "estado de necessidade na assistência" e "crise de cuidados", por exemplo, a progressiva redução de custos no sistema de assistência, condições de trabalho inaceitáveis na enfermagem, negligência e violência contra pessoas que necessitam de cuidados, etc.
As igrejas também estão a ser arrastadas para o turbilhão da crise. Em termos económicos, a sua crise manifesta-se como uma crise de recursos financeiros em declínio a longo prazo e, a um nível substantivo e simbólico, como uma perda de significado social e político. Tal como nas áreas "seculares", as igrejas também enfrentam "reformas". O texto de Herbert Böttcher "A caminho de uma "igreja empresarial" na senda da (pós-)modernidade em ruínas" mostra como as igrejas querem reformar-se no "espírito do capitalismo" em vez de no "Espírito Santo". Elas procuram aconselhamento em concepções de desenvolvimento organizacional que operam com base na teoria de sistemas. Como empresas, as igrejas querem ligar-se ao seu ambiente e manter-se actualizadas. O resultado é um processo de adaptação a uma sociedade (pós-)moderna em crise que está em queda brusca. Não se trata apenas de adaptação organizacional. Isso só pode ajudar se os produtos pastorais e religiosos oferecidos pelas igrejas também forem competitivos nos mercados esotéricos e espirituais, e atenderem às necessidades dos/das seus/suas clientes. As pessoas devem ser alcançadas na sua "vida quotidiana" e nos seus "espaços sociais". Sem uma reflexão sobre os contextos de mediação social, os indivíduos que se sentem stressados e levados à depressão pela pressão das condições de crise devem ser alcançados e cuidados de tal modo que se sintam novamente bem ou, pelo menos, melhor nas circunstâncias. Os produtos religiosos-esotéricos oferecidos não devem ser medidos pela sua reivindicação de verdade, mas pela sua utilidade. Ao mesmo tempo, porém, a igreja deve ser também um lar para pessoas que estão em busca de sentido e identidade perante o "relativismo" do pós-modernismo. Em vista destes problemas, as igrejas abrem-se ao pensamento e à acção identitária e autoritária. Tudo isto não deixa de afectar os conteúdos da tradição judaico-cristã. Eles são individualizados e esoterizados e devem ser garantidos à maneira existencialista e/ou na objectividade das "verdades eternas". Os conteúdos emancipatórios da tradição judaico-cristã, que se baseiam numa distinção entre transcendência e imanência acentuada em termos de crítica da dominação, caem no esquecimento.
A contribuição de Gerd Bedszent "Sobre a marcha para a barbárie ou o Leste como bode expiatório" trata da propaganda mediática à volta do 30º aniversário da chamada queda do Muro de Berlim, mas também da violência radical de direita que assolou especialmente as regiões remotas da Alemanha Oriental. Bedszent cita vários textos já antigos de Robert Kurz e analisa as ligações entre os dois eventos. A maioria das localizações industriais da Alemanha Oriental, de qualquer modo já inferiorizadas na concorrência com as economias ocidentais mais fortes e já em declínio, recebeu o golpe de morte final depois de 1990. No decurso da desindustrialização de regiões inteiras, milhões de pessoas perderam os empregos; para outras, a "racionalização" das instituições administrativas e a aplanação de grandes partes da paisagem cultural garantiram uma interrupção continuada da carreira. O facto de partes da população da Alemanha Oriental terem sido estilizadas como heróis pelos meios de comunicação social, mas as mesmas pessoas terem sido frequentemente descartadas como economicamente "supérfluas", fornece o terreno fértil para numerosas teorias da conspiração confusas e muitas vezes anti-semitas. Contudo, como escreve Bedszent com referência a Robert Kurz, a actual onda de extremismo de direita tem a sua causa estrutural na crise final do sistema de produção de mercadorias. Como reacção perversa a esta crise, os políticos de direita apelam veementemente ao reforço das mesmas instituições do Estado-nação cujo enfraquecimento estão de facto a promover com o seu programa de política económica.
Falta mencionar que foram publicados os seguintes livros e antologias: As duas partes de "A substância do capital" de Robert Kurz (in: exit! nºs 1 e 2) foram traduzidas para o francês: La Substance du capital, Paris 2019; uma colectânea de artigos de Roswitha Scholz: Le Sexe du capitalisme – 'Masculinité' et 'féminité' comme piliers du patriarcat producteur de marchandises, Paris 2019; e a primeira edição da revista em língua francesa: Jaggernaut – Crise et critique de la société capitaliste-patriarcale, que também contém (entre outros) textos traduzidos de Robert Kurz e Roswitha Scholz. O livro A Guerra de Ordenamento Mundial de Robert Kurz foi traduzido para o português, mas infelizmente apenas excertos do mesmo serão publicados pela Antígona (Lisboa) (o texto completo pode ser encontrado em: https://exit-online.org/pdf/A_Guerra_de_Ordenamento_Mundial-Robert_Kurz.pdf). Uma história da crítica do trabalho no pensamento francês moderno, de Charles Fourier a Guy Debord, foi publicada por Alastair Hemmens, em inglês por Palgrave Macmillan 2019 e simultaneamente em francês: Ne travaillez jamais, Albi 2019; La société autophage – Capitalisme, démesure et autodestruction de Anselm Jappe foi publicada em espanhol: La sociedad autófaga, Logroño 2019. As aventuras da mercadoria em italiano: Le Avventure della Merce – Per una Nuova critica del valore, Roma 2019. Uma coleção de textos de Claus Peter Ortlieb foi publicada por Schmetterling-Verlag: Zur Kritik des modernen Fetischismus – Die Grenzen bürgerlichen Denkens [Para a Crítica do Fetichismo Moderno – Os Limites do Pensamento Burguês], Stuttgart 2019. De Raimund G. Philipp saíu o livro Die Geschichte Chinas als Geschichte von Fetischverhältnissen – Zur Kritik der Rückprojektion moderner Kategorien auf die Vormoderne: ausgehendes Neolithikum, die drei Dynastien [A história da China como história de relações fetichistas – Para a crítica da retroprojecção de categorias modernas na pré-modernidade: O neolítico tardio, as três dinastias], Darmstadt 2019.
Daniel Späth e Patrice Schlauch deixaram de fazer parte da redacção.
Roswitha Scholz pela redacção da exit! em Dezembro de 2019.
(1) Ver, por exemplo: "Wir erleben eine Balkanisierung des Welthandels" [Estamos a viver uma balcanização do comércio mundial] handelszeitung.ch de 2.9.2019.︎
(2) Onde é notório o enorme ódio de que Thunberg é objecto, cf. p. ex. Hinz, Enno; Meyer, Lukas Paul: Gegenwind für die Klimabegung, akweb.de de 12.11.2019 ou Analyse & Kritik No. 654.
(3) De acordo com a Amnistia Internacional. O número de vítimas pode ser muito maior, como mostra uma documentação de France 24 Observers: https://observers.france24.com/en/video/iran'-hidden-slaughter-video-investigation-france-24-observers. A situação no Iraque é semelhante. Cf. ex. Karam Hassawy: Revolutionärer Herbst im Irak [Outono revolucionário no Iraque], jungle world de 23.11.2019.︎
(4) In: Ketterer, Hanna; Becker, Karina (eds.): Was stimmt nicht mit der Demokratie? – Eine Debatte mit Klaus Dörre, Nancy Fraser, Stephan Lessenich und Hartmut Rosa [O que há de errado com a democracia? – Um debate com Klaus Dörre, Nancy Fraser, Stephan Lessenich e Hartmut Rosa], Frankfurt 2019, 20.︎
(5) Fraser, Nancy e outros: Feminismus für die 99% – Ein Manifest [Feminismo para os 99% – Um manifesto], Berlim 2019.︎
(6 ) Como Paul Mason numa entrevista: FR-online.de de 28.9.2019.︎
(7) Cf. Scholz, Roswitha: Fetisch Alaaf! – Zur Dialektik der Fetischismuskritik im heutigen Prozess des ›Kollaps der Modernisierung‹ – Oder: Wie viel Establishment kann radikale Gesellschaftskritik ertragen?, in: exit! – Krise und Kritik der Warengesellschaft Nr.12, Angermünde 2014, 77–117.︎ Trad. port.: Viva o fetiche! Sobre a dialéctica da crítica do fetichismo no actual processo de ‘Colapso da modernização’. Ou: quanto establishment pode suportar a crítica social radical?, online: http://www.obeco-online.org/roswitha%20scholz18.htm
(8) Cf. o editorial da exit! nº 14.︎
(9) Cf. Meyer, Thomas: »Neue Klassenpolitik«? – Kritische Anmerkungen zu aktuellen Diskursen, 2019, auf exit-online.org. Trad. port: "Nova política de classe"? – Notas críticas sobre discursos actuais, online: http://www.obeco-online.org/thomas_meyer11.htm
(10) Por exemplo, no documentário Frohes Schaffen – Ein Film zur Senkung der Arbeitsmoral [Feliz criação – Um filme para baixar o moral do trabalho] von Konstantin Faigle de 2012 e em vários livros, como Spät, Patrick: Und was machst du so? – Fröhliche Streitschrift gegen den Arbeitsfetisch [E o que é que tu fazes? – Panfleto alegre contra o fetiche do trabalho], Zurique 2014.︎
(11) Ver Kurz, Robert: Das Weltkapital – Globalisierung und innere Schranken des modernen warenproduzierenden Systems [O capital mundial – Globalização e limites internos do moderno sistema de produção de mercadorias], Berlin 2005.︎
(12) Cf. também o texto de Robert Kurz: Grau ist des Lebens Goldner Baum und grün die Theorie – Das Praxis-Problem als Evergreen verkürzter Kapitalismuskritik und die Geschichte der Linken, in: exit! – Krise und Kritik der Warengesellschaft No. 4, Bad Honnef 2007, 15-106.︎ Trad. port.: Cinzenta é a árvore dourada da vida e verde é a teoria. O problema da práxis como evergreen de uma crítica truncada do capitalismo e a história das esquerdas, online: http://www.obeco-online.org/rkurz288.htm
(13) Cf. Kurz, Robert: Der Unwert des Wissens – Einürztes 'Wertkritik' als Legitimationsideologie eines digitalen Neo-Kleinbürgertums, in: exit! – Krise und Kritik der Warengesellschaft Nr.5, Bad Honnef 2008, 127-194, também em exit-online.org. Trad. port.: O desvalor do desconhecimento. “Crítica do valor” truncada como ideologia de legitimação de uma nova pequena-burguesia digital, online: http://www.obeco-online.org/rkurz313.htm ︎
(14) Ver, por exemplo: Zur Spaltung der Krisis-Gruppe: Erklärung ehemaliger Redaktions- und Trägerkreismitglieder, 11.4.2004; Ortlieb, Claus Peter: Die Sinnlichkeit des MWW, 13.7.2009; ambos em exit-online.org. Trad. port. do primeiro: Sobre a cisão do grupo krisis. Declaração de anteriores membros da redacção e do círculo de apoio, online: http://www.obeco-online.org/sobre_cisao_krisis.htm
Original exit! Krise und Kritik der Warengesellschaft Nr. 17 erscheint im März 2020 – Inhalt und Editorial in: www.exit-online.org. Tradução de Boaventura Antunes