exit! Crise e Crítica da Sociedade das Mercadorias, nº 20

Índice e Editorial

 

( Sai em Maio de 2023, na zu Klampen Verlag. 22 euros (ISBN 9783866749917) ou assinatura)

 

 

Índice

Robert Kurz: Trabalho fetiche – O marxismo e a lógica da modernização

Roswitha Scholz: O valor e os 'outros' – Correcções da crítica da dissociação-valor à teoria de Moishe Postone

Fábio Pitta & Allan Silva: A Pandemia na crise fundamental do capital: Inflação global, o estouro da mais recente bolha financeira mundial e a desintegração social na particularidade do Brasil sob administração de Bolsonaro

Tomasz Konicz: Dilacerada entre o Leste e o Ocidente – Uma breve panorâmica histórica do caminho para a guerra na Ucrânia no contexto da crise mundial do capital

Herbert Böttcher: Destruição mundial como autodestruição – O que há ‘que pensar’ no seguimento de Walter Benjamin

Thomas Meyer: Alternativas ao capitalismo – Em teste: Democracia económica e autogestão dos trabalhadores

 

Editorial e apelo a donativos

As esquerdas no seu conjunto têm estado numa situação desoladora desde o colapso do "socialismo realmente existente". Perderam a oportunidade de reflectir criticamente sobre este contexto – e antes de mais também autocriticamente sobre os contextos do seu próprio agir e pensar. Mas assim as 'esquerdas' têm agido entre o luto pela perda da alternativa socialista, com um desafiante 'para a frente é que é o caminho', por um lado, e o esforço para estar 'ao nível dos tempos', fazer-se notar e envolver-se no capitalismo, por outro.

Enquanto os anos 90 ainda foram marcados por um clima de festa e pela convicção de que o capitalismo duraria para sempre, apesar das numerosas guerras civis por todo o mundo, as primeiras fissuras no quadro do capitalismo aparentemente vitorioso já se tornaram visíveis com a crise dos tigres asiáticos (nos quais tinha sido posta a esperança de um grande futuro capitalista). Esta tendência continuou com a crise das dotcom, tendo o crash de 2008 sido o seu ponto culminante até agora.

O neoliberalismo e a globalização caracterizaram este desenvolvimento, especialmente desde o final dos anos 80. As consequências foram o ajustamento estrutural nos chamados países do Terceiro Mundo e uma reestruturação do Estado social na Alemanha (Hartz IV etc.). Já então isto deu origem a críticas de esquerda à globalização, em parte com inclinação estruturalmente anti-semita. Com a fusão do PDS e do WASG, a esquerda na Alemanha parecia voltar a ganhar mais influência no parlamento em meados dos anos 90. Também parecia haver vislumbres de esperança em outras partes do mundo. Na Grécia, Espanha, Venezuela houve mudanças para governos de esquerda, a "Primavera Árabe" estava na boca de toda a gente etc. Após uma reacção de pânico, o crash parecia de momento ter sido evitado através de pacotes de salvamento. Isto levou Robert Kurz a publicar textos com títulos como "Crise Mundial e Ignorância" (2013), e a amortecer as esperanças de revolução; o apelo a donativos para a exit! na passagem de ano 2011/2012 foi intitulado "Não há revolução em lado nenhum". Tais avaliações foram entretanto confirmadas.

Na Alemanha entraram em cena a AfD e os Pegida. O mais tardar desde a eleição de Trump, a direita descolou realmente, um desenvolvimento que já tinha uma pré-história de décadas. As razões para a eleição de Trump foram sobretudo a obsolescência do trabalho abstracto (directamente visível no “Cinturão da Ferrugem”), combinada com tendências de empobrecimento e miséria, e com a queda ou medo da queda das classes médias. Isto também se aplica ao surgimento da AfD e dos Pegida na Alemanha, bem como à ascensão e sucesso de outros partidos de direita em muitos países. Culminou então um desenvolvimento de direita que já começara nos anos 80. Ainda que esta evolução não tenha continuado linearmente – Trump e Bolsonaro não foram reeleitos, como é sabido –, é provável que a tendência se intensifique ainda mais, continuando a situação sócio-económico-ecológica a piorar.

O coronavírus e a guerra da Ucrânia têm-se revelado até agora como aceleradores da crise já antes existente, como foi muitas vezes salientado. Trump já tentara uma política nacional isolacionista por meio de tarifas alfandegárias. A crise do coronavírus e a guerra da Ucrânia tornaram ainda mais claro a que distorções isto conduz: as cadeias de valor e de abastecimento são desfeitas, com as correspondentes consequências: sobretudo escassez de energia e de alimentos, frio e fome. Tal como na sequência do crash de 2008, os pacotes (de salvamento) estão hoje novamente a ser preparados para amortecer a crise. Não só isto, mas também a subida da despesa em armamento estão a aumentar a dívida pública. Já é evidente que os pacotes de salvamento serão seguidos por pacotes de austeridade. E há muito que se fazem notar turbulências nos mercados financeiros, prefigurando um novo colapso.

Já desde os anos 90 que as teorias da conspiração se vêm espalhando. (1) Desde o coronavírus, porém, tais fantasmas ganharam uma nova qualidade, tornando-se cada vez mais popular um movimento de pensamento transversal. O coronavírus não será pior do que a gripe. Teria sido inventado e estaria a ser instrumentalizado para impor uma administração da crise repressiva por parte dos "dominantes". Bill Gates, George Soros e outros estariam por detrás do coronavírus. Está-se à procura de um "Great Reset" (Klaus Schwab/Thierry Malleret). A indústria farmacêutica e os Big Data estão a lucrar com este desenvolvimento e a impulsioná-lo. Fala-se de um Deep State, diz-se que a política é controlada por figuras na sombra etc., como se pode ler em órgãos relevantes do pensamento transversal como o Rubikon e o Nachdenkseiten. Correspondentemente, direitistas, pensadores transversais e profetas do crash estão em franca expansão. Neste contexto, mesmo intelectuais de pensamento transversal como Fábio Vighi estão a adoptar argumentos da crítica do valor completamente distorcidos. (2) Depois de ter sido sorrateiramente rejeitada uma perspectiva de esquerda do "colapso da modernização" (Robert Kurz), que já esteve em cena, está agora a ser retomada num quadro assim enviesado.

Quanto mais aumentam as tendências de direita e autoritárias, mais se propagam correntes que estão para lá da direita e da esquerda, englobando diferentes agrupamentos. A escalada da crise está também a provocar a queda de muitos esquerdistas. Ideias de direita são misturadas com ideias de esquerda. Em vez de se encarar de frente um ressentimento que é cada vez maior no declínio do capitalismo, bem como as estruturas e mecanismos correspondentes, este ressentimento é accionado cegamente.

Isto acontece no contexto de uma tendência geral para a regressão e a restauração, também entre os esquerdistas, como já notámos várias vezes na exit!; as pessoas agarram-se cada vez mais aos mitos da luta de classes, a clássicos de esquerda como Lenine, por exemplo, a uma história de esquerda, independentemente do desaparecimento do bloco de Leste etc. O que se torna completamente reaccionário perante o conflito na Ucrânia: toma-se partido por Putin, em vez de se olhar, numa dimensão global, mundial e histórica, para as estruturas que estão por trás e a que o Ocidente não escapa. Sahra Wagenknecht é um exemplo disto mesmo. Globalmente, pode dizer-se que, após a crise do coronavírus, a cena do pensamento transversal tem-se concentrado mais na guerra da Ucrânia e – em contraste com a frequente demonização de Putin – numa defesa da política russa, sendo a Rússia retratada como vítima e o Ocidente como o verdadeiro agressor.

Especialmente a crise do coronavírus exacerbou as divisões já existentes na sociedade. Divisões que também abrangem contextos de esquerda. Também no contexto da exit! esta crise conduziu a conflitos e finalmente a divisões. Pretende-se de facto transferir a crítica do valor, ou crítica da dissociação-valor, para um contexto de pensador transversal. Ela é falsificada em conformidade; o pensamento transversal é subestimado. De repente, pretende-se que as relações acima/abaixo do marxismo vulgar são novamente aplicáveis: "Elas [ciência e medicina RS] estiveram quase sempre ao serviço do Estado e do capital, e são moldadas por este na sua estrutura fundamental". (3)

Em vez disso, seria preciso levar em conta o carácter fetichista das relações capitalistas. De acordo com o qual, as relações são realmente feitas pelas pessoas, mas tornam-se independentes em relação a elas. Andreas Urban, pelo contrário, assume que relação de acção e relação de estrutura são mais ou menos fifty-fifty, e que esta relação fetichista aparece na relação capital-empresário, estando lado a lado com ambos indiferentemente. Um "sujeito automático" é de facto cancelado. No entanto Horkheimer e Adorno já sabiam na “Dialéctica do iluminismo" que a sociedade predomina sobre os indivíduos, e que estes se tornam "anfíbios" no sentido da autoconservação, conservando a sociedade como ela é. Em vez disso, Urban & Cª reactivam descaradamente uma velha concepção de sociedade num entendimento personalizante, à maneira de capitalismo/Estado-proletário/homenzinho subordinado, neste sentido mandando abaixo a crítica da dissociação-valor. Hoje esta relação fetichista assim determinada conduz-se ela mesma ao absurdo, com a consequência de o ressentimento na crise estar a impor-se cada vez mais entre os indivíduos sociais, ressentimento que Urban, Jappe e outros servem: Assim escreve Urban, que aparentemente sabe o que será na verdade a crítica do valor: "Porque se pretende que seja per se contra a crítica (da dissociação e) do valor se certas tendências nas acções e cálculos do Estado ou das várias facções do capital são objecto de análise e sobretudo de crítica, perante este pano de fundo tal é completa e absolutamente incompreensível e já imanentemente uma posição teórica não só arbitrária mas também inconsistente, que não pode de modo nenhum estar ligada à crítica da dissociação-valor nem às tradições dialécticas do pensamento nela preservadas. Pois é ao nível empírico da aparência – e isto inclui em particular as acções (orientadas por interesses) das pessoas – que o ser social aparece, por assim dizer. Quem, portanto, acreditar que pode dispensar a inclusão das acções do Estado e de certas agendas e cálculos das elites funcionais na análise e crítica da crise final (reconhecidamente não como a razão última e ‘causa’ dos desenvolvimentos sociais, mas sim como uma manifestação concreta da essência social), pode estar envolvido em muitas coisas, mas certamente já não na crítica (da dissociação e) do valor". (4)

Robert Kurz, pelo contrário, já escreveu sobre o significado das relações de vontade no marxismo tradicional: não se questiona a "constituição social" nem a razão da sua constante reprodução: "A razão para esta falta de interesse é simples: nesta perspectiva sociologicamente redutora, as relações sociais estão em última instância reduzidas a puras relações de vontade. O capitalismo existe porque os seus actores o ‘querem’. Assim, o capitalismo confunde-se com os capitalistas (proprietários privados de capital dinheiro, e também gestores), ou com o colectivo social da classe capitalista, que se querem como tais. Esta vontade dos sujeitos capitalistas é que submeteu a si a maioria da sociedade como trabalhadores assalariados". (5)

Neste contexto, para a crítica da dissociação-valor não se trata fundamentalmente a apreender a subjectividade apenas na constelação capitalista-proletário, mas de agarrar pelo cinturão o/a cidadão/cidadã comum, cuja posição Urban/von Uhnrast e Jappe assumem à maneira populista: "Como o horizonte de desenvolvimento capitalista interno se dissipou, já não se pode formular uma oposição emancipatória nas categorias do moderno sistema produtor de mercadorias. Porém, isso também significa que simplesmente não se pode mais lutar contra um inimigo externo facilmente definível (a ‘classe proprietária’, as ‘forças reacionárias’, o ‘imperialismo’ das potências estabelecidas há muito tempo etc.), mas que também a própria forma de sujeito e de acção (constituída à maneira capitalista) está posta em causa. Isso não é só difícil de entender, mas é também difícil de suportar". (6) Em vez disso, em Urban & Cª a relação de fetiche determina as acções dos actores apenas em "última instância", como se fosse meramente externa aos indivíduos e agentes, e estes fossem autónomos.

Aqui é preciso deixar claro que o antagonismo das classes é apenas aparência, e que a luta de classes é uma luta pela distribuição imanente ao sistema, ao passo que o fetichismo do capital tem de ser descoberto como o que está por trás e não é reconhecido. (7) "O que transcende os sujeitos agentes e perfaz o movimento real de valorização é o todo do ‘sujeito automático’, o apriorismo constitutivo e transcendental que apenas se manifesta no capital individual, mas não o é em termos categoriais. Só o capital global é o automovimento do valor, como que um «monstro que respira» que confronta os actores, embora sejam estes que o produzem". (8) Em relação a isto, "as maquinações dos EUA", por exemplo, não devem ser registadas no sentido de uma ontologia da vontade abstracta de poder, como é o caso de Urban. (9) Pelo contrário, seria importante entendê-las e analisá-las como parte do contexto capitalista global. Urban acusa a crítica da dissociação-valor de contradizer a sua própria crítica da lógica da identidade ao equiparar os minimizadores do coronavírus críticos do valor com os minimizadores do coronavírus em geral. Mas trata-se do conteúdo e do contexto de pensamento em que ele se articula, senão poder-se-ia insistir – em termos puramente formais e mecanicamente críticos da identidade – que também existem muitos nazis diferentes e que nem todos podem ser agrupados. Contudo, como já indicado, os/as pensadores/as transversais críticos/as do valor mais não fazem do que fundamentar em termos de crítica do valor uma per se problemática posição negadora/minimizadora do coronavírus. Isto pretende depois ser um desenvolvimento adicional da crítica da dissociação-valor "ao nível dos tempos". (10) Os nossos minimizadores do coronavírus teriam, pelo contrário, de pensar contra si mesmos, em vez de subitamente distorcerem por completo o essencial da crítica da dissociação-valor, atirando aos pés da crítica da dissociação-valor feita até hoje um resultado tão efémero como se fosse um desenvolvimento adicional, de acordo com o lema "pegar ou largar". Quando tais pensadores transversais críticos do valor regressam a uma crítica personalizadora do capitalismo, é preciso constatar uma viragem de 180 graus.

Não estão preocupados – como é sugerido – em apontar numerosas contradições, mas sim em tomar partido – ainda que hesitantemente – por um lado, o lado do pensador transversal, porque acreditam poder reconhecer nele um defensor da liberdade ameaçada pelas acções dos dominantes. Não há nenhuma demarcação perante o lado dos pensadores transversais; ela é afirmada como pressuposto de modo meramente formal e, portanto, sem conteúdo. Como demarcação restam os extensivamente aplicados "sim-mas" e método do ainda-assim, sendo que o pensamento transversal prevalece empolado. O potencial repressivo da política das medidas coronavírus, por exemplo, foi por nós muito bem salientado. No entanto, fomos seriamente acusados de nadar com o mainstream.

Um dos truques do pensamento transversal é usar elementos isolados da crítica de esquerda virando-os depois para a teoria da conspiração e para a direita. Os minimizadores do coronavírus "críticos do valor", porém, promovem de facto uma vulgarização da crítica do valor, que se dispõe a falar a favor de problemáticas posições de pensamento transversal, as quais invocam uma constituição democrática há muito tornada obsoleta e como tal ainda mais apropriável pela direita, com base em dados descritos pelos próprios autores como à partida inadequados.

Tal religiosidade da estatística, que até é fulminada pelo seu compincha pensador transversal das Streifzüge Franz Schandl no texto "Die toteste Kontinuität oder: Der Fetischismus der Fakten" [A mais morta continuidade ou: o fetichismo dos factos], (11) embora dirigida contra os defensores das medidas coronavírus, é agora contraposta às posições da exit!. Como crítica à exit!, aponta-se que a recusa em tomar uma posição clara do lado dos críticos das medidas e contra a repressão dos "dominantes" se deveu provavelmente ao facto de trabalharem com a exit! teólogos que teriam exercido a sua influência moralizadora. Ignora-se deliberadamente que os nossos teólogos críticos da dissociação-valor são mais do que cépticos quanto à moralidade e à ética. (12) A sua crítica visa precisamente o facto de a retórica ética e moralizadora pressupor as relações fetichistas que têm de ser objecto de reflexão crítica. O que não é levado em conta é que os teólogos moralizadores e que também argumentam à moda fundamentalista estão a caminhar com os pensadores transversais proclamando: "A vacinação é um pecado", como é o caso do pastor Martin Michelis. Jappe também insiste em moralizar, e na mesma homepage argumenta, em relação ao problema ambiental do consumo de gás, que o embargo à Rússia deveria ser utilizado para alcançar uma perspectiva transcendental. Como método testado, traz a jogo um correspondente "círculo virtuoso". (13)

Em Urban & Cª, o pensamento transversal, o anti-semitismo estrutural e os media da frente transversal são fundamentalmente minimizados. Só são definidos na sua confusão, para depois os incluir na sua aparente difusividade em tal contexto supostamente de oposição crítica da dissociação-valor, num grande gesto de resistência. Eles juntam-se a uma "resistência democrática" em que a liberdade é defendida contra a repressão. A ideia de que a democracia devora seus filhos é obviamente estranha aos da frente transversal críticos do valor. É por isso que também se deve ficar só de um lado. Assim o facto de existirem democratas autoritários e autoritários democráticos no declínio do patriarcado capitalista já não pode ser apreendido. Em vez disso, fica-se do lado da democracia como pensador transversal, lamentando-se "a mais grave restrição da liberdade desde 1945" (Anselm Jappe). O que há muito é conhecido torna-se assim vítima do Alzheimer, por exemplo, o que Robert Kurz escreveu há mais de 20 anos (e tais coisas essenciais também podem ser encontradas em artigos anteriores): "O mundo democrático é assim um mundo de 'coerção silenciosa' (Marx), que se faz notar em muitas manifestações como a lei da valorização do dinheiro. A grande conquista histórica de emancipação da democracia foi que todas as pessoas pudessem tornar-se um ‘eu’ sem barreiras corporativas; mas pouco a pouco tornou-se evidente que este ‘tornar-se eu’ tinha um preço terrível. A submissão pelo nascimento a um ‘senhor’ pessoal foi substituída pela submissão à dominação impessoal e muito mais total do dinheiro. Todos têm o direito de ser o que a sociedade total das mercadorias fez deles. Todos podem representar ‘os seus interesses’, mesmo que seja ‘como um sem abrigo’; mas é desde logo esta categoria do ‘interesse’ preparado na forma de mercadoria que acorrenta cada um estruturalmente à sua própria miséria. A democracia é a liberdade de morrer, pelo menos para uma maioria crescente da humanidade. Este núcleo de repressão sem sujeito, esta sujeição do processo da vida às leis fetichistas abstractas da modernidade provocou desde o início crítica e rebelião. Enquanto a crítica de esquerda sempre procurou, tão desesperada como inutilmente, alargar a racionalidade ocidental para além do seu alcance objectivo, a crítica de direita (e da 'direita radical') sempre mobilizou momentos do irracionalismo, que é afinal apenas o reverso negro da própria racionalidade ocidental". (14)

Na mobilização para defender a democracia contra as medidas coronavírus, os pensadores transversais "críticos do valor" negam o perigo da pandemia de coronavírus. O cinismo total que isto implica é o que mostra uma referência a Ivan Illich: "Na 'velha normalidade' antes de 2020 ainda havia um consenso médico relativamente amplo de que as pessoas muito idosas tinham apenas uma pequena hipótese de sobreviver à ventilação invasiva, devido à enorme tensão que implica no corpo, razão pela qual se tendia a evitar intervenções médicas tão intensivas na maioria dos casos. Entretanto, considera-se agora razoavelmente certo que a mortalidade mais elevada, especialmente durante a primeira vaga de coronavírus, pode ser devida, pelo menos em parte, à prática de ventilação invasiva precoce em pacientes com coronavírus hospitalizados e especialmente nos muito idosos. Também em relação a esta prática, talvez se possa seguir Ivan Illich e vê-la como uma manifestação do moderno recalcamento da morte, quando Illich fala de um ‘exorcismo multiforme de todas as formas da má morte’ em relação à ‘morte na unidade de cuidados intensivos’. ‘As nossas grandes instituições não são mais do que um gigantesco programa de defesa, através do qual travamos uma guerra contra forças e classes mortíferas em nome da ‘humanidade’. Esta é uma guerra total’". (15)

É claro que uma tal referência à morte pouco tem a ver com a crítica do recalcamento da morte formulada no contexto da crítica feminista da dissociação do feminino nas ciências naturais, que ao mesmo tempo se opõe à energia nuclear, por exemplo, quando se trata da sobrevivência da humanidade. A defesa da morte em Urban/Uhnrast, porém, está próxima de uma heroicização do morrer e de uma celebração da morte, como se pode ver nas Tempestades de Aço de Ernst Jünger ou mesmo na "liberdade para a morte" de Heidegger.

Neste contexto, eles associam o tratamento da guerra da Ucrânia no Ocidente com a crise do coronavírus, vendo a mesma lógica em acção em ambos os casos: "Desde o início da guerra da Ucrânia, [vimos] na esfera pública paralelos notáveis com os debates sociais durante a crise do coronavírus [...], que determinou em grande parte o discurso nos últimos dois anos: com a ajuda de um enorme aparelho de propaganda, é produzido um 'consenso' público que não tolera qualquer contradição ou mesmo diferenciação. Se na ‘guerra contra o vírus’ foi criada e invocada uma ‘comunidade solidária’, que reagiu com violento rancor contra todos aqueles que se atreveram a fazer perguntas estúpidas (sobre confinamentos, obrigações de uso de máscara, vacinas etc.), agora também se levanta um exército de ‘solidários’, ombro a ombro com o governo ucraniano e em unidade contra o agressor russo". (16)

A redacção da exit! decidiu contra a publicação de textos de Jappe, Urban e von Uhnrast na homepage da exit! porque eram textos diametralmente opostos ao pensamento da crítica da dissociação-valor. (17)

Com a publicação ter-nos-íamos negado a nós próprios. Também não satisfizemos a exigência de tratar em detalhe os longos documentos logicamente inconsistentes e contraditórios de Urban/von Uhnrast. Não queríamos perder-nos em debates picuinhas, como se o seu pressuposto básico de uma crítica marxista vulgar e personalizadora do capitalismo não tivesse já sido objecto de crítica nos nossos textos durante décadas. Entretanto, os textos de Jappe, Urban e von Uhnrast foram circulando, tendo sido mais divulgados e comentados em círculos de pensamento transversal supostamente 'de esquerda'.

É de temer que esse pensamento transversal se espalhe ainda mais na crise, como uma perigosa variante de senso comum que se esquiva aos níveis sobrejacentes. Ao fazê-lo, defende uma nova normalidade pós-pós-moderna que restauradora e regressivamente apela ao antigo e a uma "vida" abstracta (darwinismo social incluindo a morte dos fracos), em vez de ter em mente uma ruptura categorial que questiona radicalmente sobretudo também essas mesmas ideias. Já depois da cisão da Krisis há 19 anos se constatou uma guinada para a direita e uma crítica do valor truncada especialmente nas Streifzüge.

Assim não admira que Andreas Urban publique agora também nas Streifzüge, queixando-se por os estudantes quererem bloquear uma série de eventos organizados por pensadores/as transversais na Universidade de Viena. (18) Publicou também uma avaliação crítica do pensamento transversal de esquerda. (19) Mas de qualquer maneira as Streifzüge não têm problemas em colocar posições diferentes lado a lado (cf. editorial da exit! nº 14.). Em vez disso, do ponto de vista da crítica da dissociação-valor, é importante continuar a colocar toda a nossa energia em oposição a qualquer pensamento transversal, assim se opondo aos desenvolvimentos de direita, em vez de apoiar tendências bárbaras com dicção de pseudo-esquerda. A crítica da dissociação-valor é hoje marginalizada. Isso não é por acaso, numa época que quer dissolver tudo em interesses, identidades e preocupações. A nossa crítica, por exemplo, a de Thomas Meyer ao transumanismo, a uma perspectiva de género não materialista ou a uma digitalização abrangente, é bastante diferente da dos contextos de pensamento transversal, que no fundo quer agarrar-se ao existente de forma bastante primitiva e reaccionária, em vez de o ultrapassar. Faz parte do estilo e é um estratagema dos pensadores transversais apropriarem-se de ideias de esquerda e virá-las em seu proveito, de modo que "alguns acham que tireida e esquerta não dem como confuntir. que tisparade!", para citar aqui umas palavras notáveis de Ernst Jandl.

Isto inclui também que uma perigosa e mofenta normalidade está a ser (novamente) passada como honesta, decente, e até mesmo resistente, perseguindo todos os "desviantes", e ainda invocando um conceito ontológico de liberdade que, em última análise, está enraizado na ideologia do capitalismo democrático, o que também significa o direito liberal a uma existência de Lázaro. A exit! tem como objectivo algo completamente diferente.

A esquerda mainstream não só está presa nas categorias, ideias e referências tradicionais, mas está a regredir ainda mais com o agravamento da crise, fazendo uma cambalhota à retaguarda, mesmo nos círculos da exit!. Assim se atira borda fora uma crítica do anti-semitismo estrutural já antes conhecida, não só entre os pensadores transversais críticos do valor, mas na esquerda em geral.

A esquerda estendida no chão, em vez de continuar a remexer em velharias, precisa, antes de mais, de um quadro de referência e um pensamento (teóricos) novos/diferentes, para compreender a actual crise mundial, mas também para ficar claro porque está ela própria em crise. É por isso que foram aqui recordados alguns elementos essenciais da crítica do valor que podem ser encontrados em particular nos textos de Robert Kurz. A nossa tarefa, agora mais do que nunca, é continuar a tornar visíveis estruturas e mecanismos (sobrejacentes) no sentido da dissociação-valor (sendo que a "dissociação" é frequentemente esquecida, não só neste conflito). Só a partir daqui podem ser feitas tentativas para identificar alternativas práticas, e não para favorecer e pretender alternativas à partida fora da realidade. É portanto necessário manter uma crítica radical da sociedade para fazer uma ruptura categorial, mesmo que actualmente tal crítica só fale para alguns, mas com a confiança de que nunca mais nada ficará como está.

Pode parecer de momento que, devido às porcarias da esquerda e não apenas da direita, tem de se procurar uma nova perspectiva emancipatória para lá da direita e da esquerda. No entanto, na nossa opinião, tal só pode acontecer no contexto de uma tradição de esquerda, tendo em conta as contradições sociais. Nesta tradição há que insistir no que está por satisfazer: A abolição de estruturas abstractas de dominação, a associação de indivíduos livres, a reconciliação com a natureza, a eliminação de disparidades e hierarquias sociais, não só económicas e educacionais, mas também racismo, sexismo, homofobia, anti-semitismo e anticiganismo, hostilidade para com os idosos e os deficientes, que até agora têm sido vistos na esquerda apenas como contradições secundárias, o que deve ser severamente criticado! Se forem implicados na sua própria lógica, surge um auto-entendimento qualitativo da esquerda completamente diferente do que pode ser encontrado no entendimento da esquerda comum até hoje.

A emancipação assim entendida não pode ser simplesmente exigida à maneira voluntarista; envolvendo a acção humana, ela tem de crescer a partir das contradições sociais, para além de um mero postulado moral abstracto. Como desejo abstracto, corresponde apenas a necessidades "autónomas" em si já burguesmente obsoletas, que acreditam ser completamente independentes. Apenas a perspectiva da esquerda teve até agora em mente uma dimensão de emancipação social (mundial) juntamente com a crítica da dominação da natureza, perspectiva que não quer deixar ninguém para trás e que, claro, inclui igualmente uma crítica histórica de si mesma (sem esquecer o marxismo tradicional e do Bloco de Leste). Só assim é que estrutura e acção seriam então contraditoriamente unidas.

Até agora (meados de Dezembro), o esperado Inverno de fúria manteve-se dentro dos limites, o que talvez se deva à velha manobra social-democrata de apaziguamento ("you never walk alone", "duplo corte [no preço do gás e electricidade]" e afins) e ao facto de se estar preparado para derramar a cornucópia da caridade do Estado social até certo ponto – mas não para além dele (ainda assim, com o enorme problema do aumento da dívida pública). E não vale a pena ficar zangado com Habeck, ele de qualquer modo apenas assume compromissos contra as suas convicções. Os pagamentos retroactivos de gás e electricidade só são devidos no próximo ano, e os subsídios estatais provavelmente estarão longe de ser suficientes.

Além disso, não se pode ignorar que mesmo entre os actores políticos que se movem no quadro da normalidade parlamentar, sobretudo nos debates sobre apoios sociais e direitos de cidadania, a partir do trato com os refugiados e dos debates sobre Hartz-IV, foram trazidas de novo à superfície as difamações habituais vindas das profundezas dos e das democratas: A repressão contra os supérfluos e a sua difamação, combinada com o trabalho obrigatório e a selecção dos úteis de entre os supérfluos, como o cúmulo da fetichização do trabalho. As palavras do Ministro Federal liberal da Justiça podem ser consideradas como a ponta do iceberg: "Quando se trata de imigração, são bem-vindas todas as mãos que ajudam no mercado de trabalho, mas ninguém que apenas queira estender a mão no sistema social. Isto também se aplica à cidadania" (Kölner Stadt-Anzeiger, 29.11.2022). Os refugiados têm de pagar o preço da liberalização da imigração: Devem ser deportados mais rapidamente. A Ministra dos Negócios Estrangeiros, Baerbock, não quer saber das violações dos direitos humanos. Ela pode falar de modo tocante e sentimental sobre o nascimento de uma criança e sobre ser mãe quando se trata da guerra 'de Putin' na Ucrânia, mas consegue entregar os refugiados à guarda costeira líbia com total impassibilidade. A guerra de Erdoğan contra os Curdos também não interessa nada.

A burguesia bruta torna-se visível como o outro lado da sentimentalidade democrática. Estabeleceu-se como parte da normalidade democrática. O suposto 'extremo' torna-se 'normal'. As suas "formas de comunicação e de acção abertamente brutais estão inseparavelmente ligadas à normalidade da vida social e política" e "emergem dela". (20)

Vejamos o que acontece quando as situações de crise chegarem a um ponto crítico. Os pensadores transversais e os de direita já estão provavelmente à espera nos bastidores. Mas mesmo que as coisas corram bem, certamente não nos livraremos tão depressa das tendências de direita e do pensamento transversal; pelo contrário, é provável que se agravem ainda mais no futuro, como produto da normalidade democrática.

 

Nesta situação, é indispensável uma crítica social emancipatória como a crítica da dissociação-valor. Por conseguinte, pedimos donativos para podermos continuar a fazer frente aos desenvolvimentos descritos. Isto é tanto mais verdade quanto uma perspectiva de pensamento transversal continua a espalhar-se mesmo no nosso contexto, e podemos ser forçados a prosseguir os nossos objectivos emancipatórios com uma base de pessoas mais reduzida. Quanto mais se espalha um entendimento personalizador do capital com anti-semitismo estrutural, e a "burguesia bruta" se torna a normalidade democrática, mais tem de se lhe opor uma crítica do fetichismo, especialmente quando ela parece estar de momento marginalizada. Para além dos protestos contra os desaforos do patriarcado capitalista (custos da energia, belicismo, mas sem minimizar o regime russo), são indispensáveis esforços teóricos para poder classificá-los e dar-lhes uma orientação, e assim – ceterum censeo – não os deixar derivar para o bárbaro!

 

Este número da exit! começa com um texto de Robert Kurz publicado já em 1994 (21): "Trabalho fetiche – O marxismo e a lógica da modernização". Neste texto, Kurz explica que, com o fim da União Soviética, o marxismo até aí vigente também chegou ao seu fim histórico. A moderna categoria real do trabalho patriarcal era central para o marxismo como ideologia da modernização, (tal como para o liberalismo e para o fascismo). Em contraste com uma crítica categorial do capitalismo, que concebe o trabalho, a dissociação, o valor etc. como categorias históricas e assim torna concebível a sua ultrapassagem e abolição, em vez de positivar a sua imposição ou regulamentação (ou mesmo aluciná-las como determinação ontológica do ser humano), o marxismo formulou uma crítica do capitalismo do ponto de vista precisamente desse trabalho. Face à crise mundial do capital, o marxismo do movimento operário clássico, que pensa já ter reconhecido o factor decisivo na "luta de classes" e na "expropriação da propriedade privada", já não consegue captar a gravidade da realidade da crise. Com o fim da sociedade do trabalho, um ponto de vista do trabalho só pode ser reaccionário, como Kurz deixa claro.

 

Moishe Postone é um clássico da crítica do valor e um dos indispensáveis 'componentes' da crítica da dissociação-valor. Sobretudo as suas reflexões no ensaio "Nacional-Socialismo e Anti-Semitismo", multiplamente recebido por muitas esquerdas, permanecem actuais face à crise mundial do capital (como deixam claro o desenfreado populismo de direita, a mania da conspiração etc.). No texto "O valor e os 'outros' – Correcções da crítica da dissociação-valor à teoria de Moishe Postone", Roswitha Scholz expõe os problemas da teoria de Postone decorrentes da ausência de uma teoria da crise, bem como da permanência dentro dos limites da perspectiva androcêntrica prevalecente na maioria das correntes que contam como crítica do valor. Scholz mostra que o problema do fetichismo, tal como desenvolvido por Postone, tem de ser elevado a uma nova qualidade através da crítica da dissociação-valor, qualidade necessária para poder dar conta da totalidade quebrada da relação de dissociação-valor.

 

A propagação global da inflação é explicada de maneira simplista como consequência da política anticíclica e do intervencionismo estatal, no contexto de medidas de emergência para conter a pandemia de Covid-19, que foram exacerbadas pela guerra na Ucrânia. Ao mesmo tempo, desde o surto de Covid-19, epidemiologistas da administração da crise e defensores da paranóia da conspiração sinofóbica têm estado em desacordo, mas sem reconhecer os determinantes mais profundos da origem desta pandemia na crise do capital, incluindo nas suas formas de aprofundamento do racismo e do patriarcado. Logo quando ela surgiu, Rob Wallace pôde ver a falsa contradição entre, por um lado, uma crítica obscurantista e redutora da ciência moderna – por vezes chamada liberal, por vezes autodesignada como crítica da 'microbiopolítica' – que vê a pandemia como consciente dominação técnico-científica dos corpos por parte da 'Big Pharma' e dos Estados, e, por outro lado, uma tecnocracia epidemiológica instalada, que se esforça por culpar os chineses e os seus hábitos alimentares ditos "primitivos" pela emergência da SARS-CoV-2, visando a possibilidade de um novo surto de modernização dos sistemas alimentares na Ásia, em vez destas práticas consideradas bárbaras. Neste ensaio, "A Pandemia na crise fundamental do capital: Inflação global, o estouro da mais recente bolha financeira mundial e a desintegração social na particularidade do Brasil sob administração de Bolsonaro", Fábio Pitta & Allan Silva tomam como ponto de partida a crítica da antinomia do Estado e do mercado, bem como a crítica da dissociação-valor, a fim de localizar a emergência da pandemia de Covid 19 na dupla dinâmica do processo histórico do colapso da modernização, nomeadamente como produto da destruição da natureza impulsionada pelos surtos de modernização e determinada pela crise da reprodução ficcionalizada do capital global. Esta é finalmente transferida para a produção de mercadorias, como momento da inflação dos títulos de propriedade com a sua economia de bolhas financeiras como capital fictício real, acelerando o atingir dos limites internos e externos da forma social capitalista. Ligadas a esta dinâmica estão as formas sacrificiais de administração da crise sanitária e económica no Brasil, na sua mediação com as "ideologias da crise" do novo extremismo de direita, aqui entendido como "pseudo-rebelião imanente" (Robert Kurz). Finalmente, o recente processo inflacionista é explicado como manifestação de outra bolha financeira mundial prestes a estourar, resultando na desintegração social, com o asselvajamento do patriarcado, do racismo e da precarização do trabalho.

 

No texto "Dilacerada entre o Leste e o Ocidente – Uma breve panorâmica histórica do caminho para a guerra na Ucrânia no contexto da crise mundial do capital", Tomasz Konicz tenta traçar a génese da guerra sobre a Ucrânia como um momento do processo de crise global. Começando com um breve esboço do fracasso do "socialismo realmente existente" capitalista estatal, que é apresentado no contexto do período de estagflação dos anos 70 e das crises da dívida dos anos 80, a catastrófica transformação sistémica da Ucrânia será exposta como um exemplo particularmente crasso dos colapsos socioeconómicos no espaço pós-soviético. Mostrar-se-á como a Ucrânia nunca recuperou deste choque de transformação, que muitas vezes destruiu a podre base industrial capitalista estatal ao estilo soviético, sem ser capaz de criar alternativas concorrenciais na semiperiferia deixada para trás.

A Ucrânia é vista como uma economia nacional economicamente pouco viável que – à semelhança de muitos Estados pós-soviéticos sem jazidas de recursos exportáveis – já não consegue manter um processo de valorização suficientemente amplo para garantir a estabilidade política e estatal, devido ao nível global de produtividade. O Estado ucraniano "fraco", a formação de uma oligarquia emergente da nomenklatura e a instabilidade política do país empobrecido, abalado por frequentes e particularmente fortes crises, são vistos como consequências deste limite interno do capital que se manifesta cada vez mais claramente a nível global – especialmente porque a Ucrânia também foi integrada nos correspondentes circuitos regionais de défice e bolhas de dívida regionais, como se verá.

Esta instabilidade interna, que não levou – como na Rússia – à formação de um regime autoritário, mas antes assumiu a forma de um regime oligárquico caracterizado por constantes lutas de facções – para além das coerções concretas da crise sistémica – forneceu a alavanca da política de poder para intervenções externas, que o Ocidente e a Rússia levaram a cabo com intensidade crescente, desde a Revolução Laranja até à guerra de agressão de Putin. Devido à crise, a Ucrânia estava economicamente no fim o mais tardar em 2013, e a oligarquia dominante teve de se decidir pela integração num sistema de aliança. A escalada que se seguiu e conduziu à guerra resultou do facto de ambos os campos geopolíticos, o Ocidente e o Leste, tentarem à viva força privar o respectivo adversário do acesso a este país de fronteira.

 

No processo de crise, a guerra está também a progredir da periferia para os centros capitalistas. Em combinação com os outros pontos quentes da crise, a guerra na Ucrânia e as reacções ocidentais têm o potencial de escalar para uma conflagração mundial. No seu texto "Destruição mundial como autodestruição – O que há ‘que pensar’ no seguimento de Walter Benjamin", Herbert Böttcher retoma análises de Robert Kurz em "A guerra de ordenamento mundial". Aí ele tinha visto os processos de desintegração e as guerras que os acompanham em ligação com o vazio da forma capitalista de produção e reprodução, que caminha para a destruição do mundo e para a autodestruição. Recorrendo ao entendimento da história de Benjamin, em que o passado e o presente entram numa nova constelação perante as catástrofes como "momento de perigo", Böttcher lança um olhar sobre a crise mundial que se está a agravar perigosamente em direcção à destruição do mundo e à autodestruição. Aqui Benjamin, ao abalançar-se à questão da totalidade como contexto de crise e de fetiche – ainda que de modo criticável como redutor – pode tornar-se um ponto de referência inspirador para a crítica da dissociação-valor. Contra a tendência de, face aos perigos, procurar apoio com orientação imanentemente regressiva na classe, na identidade, no interesse, na conspiração etc., Benjamin pode ser lido de tal modo que a ruptura com as relações fetichistas vigentes se torna reconhecível como pré-requisito indispensável para uma perspectiva de salvação.

 

O texto de Thomas Meyer "Alternativas ao capitalismo – Em teste: Democracia económica e autogestão dos trabalhadores" trata de outro tópico discutido por muita gente à esquerda (ao lado de commons, pós-crescimento, economia do bem comum etc.), que promete a ultrapassagem do capitalismo (ou pelo menos a redução ou domesticação 'por partes' dos seus desaforos). Ambas as "concepções" são vistas como reivindicações viáveis ao capitalismo (neoliberal) e às suas devastações fatais. Na discussão destas supostas alternativas ao capitalismo, Meyer recorre à crítica marxista da democracia (principalmente pelo austromarxista Max Adler), à crítica da democracia económica (por August Thalheimer, entre outros), bem como à crítica da autogestão dos trabalhadores na Jugoslávia pelos filósofos da praxis há muito esquecidos (como Svetozar Stojanović e Michailo Marković) para demonstrar que a democracia económica já foi demolidoramente criticada em tempos passados, de modo que essas reivindicações de "repensar" a democracia económica, infelizmente, não vão de facto além do já pensado há muito tempo. Mostra também que a autogestão dos trabalhadores não pode de modo nenhum ser vista como uma "social transition beyond capitalism" (Richard D. Wolff). A democracia económica e a autogestão dos trabalhadores levam a uma democratização e a uma execução "autodeterminada" da coerção capitalista e não à sua abolição. Para lá da crítica marxista da democracia (que sabe nomear pontos apropriados, mas que permanece no campo da luta de classes proletária), salienta-se que o reconhecimento e a participação democrática das pessoas pressupõe a sua submissão à compulsão capitalista de valorização, bem como a sua capacidade de valorização. Esta capacidade de valorização está a desfazer-se e com ela a base da democracia (que é capitalista, note-se), o que significa que a codecisão democrática na economia e a autogestão pelos trabalhadores das "suas" empresas estão a tornar-se cada vez mais irrelevantes e acabarão por conseguir pouco mais do que a cogestão da falência e da miséria. O que é criticado nestes discursos é o facto de permanecerem no invólucro da forma capitalista e de estas concepções estarem vinculadas a uma valorização bem sucedida do valor e, portanto, a uma afirmação "autodeterminada" bem sucedida na concorrência – o que é ocasionalmente mencionado pelos debatedores da democracia económica e depressa "esquecido" de novo – sem que nenhuma crítica a isto seja sistematicamente desenvolvida.

 

Como de costume, gostaríamos de concluir referindo algumas publicações: Em francês, foram publicados por Crise et Critique (Albi): Robert Kurz: Cinzenta é a árvore dourada da vida e verde é a teoria (Gris est l'arbre de la vie, verte est la théorie) e Não há Leviatã que vos salve – Teses para um teoria crítica do Estado (L'État n'est pas le sauveur suprême – Thèses pour une théorie critique de l'État). Em italiano, por Meltemi (Milão): O capital mundial – Globlização e limites internos do moderno sistema produtor de mercadorias (Il capitale mondo – Globalizzazione e limiti interni del moderno sistema produttore di merce).

 

De Moishe Postone foi publicado em Português pela Consequência (Rio de Janeiro): Antissemitismo e Nacional-Socialismo – Escritos sobre a questão judaica e em francês uma edição em dois volumes das suas obras será publicada por Crise et Critique: Œuvres de Moishe Postone – Repenser une théorie critique du capitalisme au XXIe siècle (Volume 2 esperado no final de 2023).

Além disso, um livro electrónico sobre a história da modernização no Brasil foi publicado por Edufes (Vitória/Espírito Santo): Os sentidos da modernização: ensaios críticos sobre formação nacional e crise (edufes.ufes.br/). Os autores fazem parte do grupo de crítica do valor-dissociação de São Paulo/Brasil, que está ligado à Universidade de São Paulo. Apresentam as suas pesquisas em vários ensaios que abordam tanto a questão da constituição do trabalho abstracto, do patriarcado e do racismo na história brasileira como as crises das categorias capitalistas após a modernização atrasada dos anos 70.

 

O livro Ucrânia – O grande jogo – A luta pelo poder entre o Leste e o Ocidente na crise global foi publicado por Consequência sobre a guerra da Ucrânia e a sua 'pré-história'. O livro reúne 20 textos de Tomasz Konicz publicados entre 2014 e os primeiros meses da guerra.

 

Herbert Böttcher, no seu livro Auf dem Weg zur unternehmerischen Kirche [A caminho de uma igreja empresarial] (Echter-Verlag, Würzburg) (livro que é uma versão ampliada para quase o dobro do texto com o mesmo título, já publicado na exit! nº 17 [trad. port. em obeco.online]), descreve a transformação da igreja numa "igreja empresarial". O 'motivo' desta 'saída' é a crescente perda de importância da igreja – e isto no meio de crises sociais – que é acompanhada por uma perda maciça de fiéis. As reformas conexas procuram uma ligação às concepções da economia empresarial para adaptação às condições capitalistas. Querem estar ao "nível dos tempos", mais precisamente ao nível da sociedade capitalista em colapso. Böttcher aborda, por um lado, as concepções que abrem caminho a uma "igreja empresarial" e, por outro lado, os processos de renovação sinodal em que a igreja procura renovação interna, passando ao lado das crises sociais e das suas vítimas. A renovação torna-se assim optimização da adaptação às condições sociais.

 

No seu livro Die 'Himmelfahrt des Geldes' in den Prinzipienhimmel – Zur Finanzialisierung des Kapitalismus und den Grenzen christlicher Sozialethik [A 'ascensão do dinheiro' ao céu dos princípios Sobre a financeirização do capitalismo e os limites da ética social cristã] (AJZ-Verlag, Bielefeld), Dominic Kloos trata dos padrões de argumentação da doutrina social católica. Tomando como exemplo a declaração do Vaticano sobre o papel dos mercados financeiros, Oeconomicae et pecuniariae quaestiones (Questões económicas e monetárias), deixa claro como os juízos morais e os posicionamentos políticos derivam do "céu dos princípios" da doutrina social, sem terem sido examinadas criticamente as condições sociais em que se inserem os mercados financeiros. Onde se torna claro que a multiplicação do dinheiro através de transacções nos mercados financeiros é uma reacção à crise de acumulação na economia real. Isto, por sua vez, tem a sua causa central na substituição de trabalho criador de mais-valia por tecnologia. Este limite interno e inultrapassável do capitalismo não pode ser compensado a longo prazo pelo fornecimento de "dinheiro sem valor" (Robert Kurz) e tem consequências desastrosas. Tudo isto deveria ser objecto de reflexão. Em vez disso, parece ser mais fácil agarrar-se às acções dos actores, com apontar de culpas, condenações morais e exigências morais. Mas assim não se consegue voltar atrás nos caminhos da catástrofe para que o capitalismo está a conduzir na sua crise.

 

El capitalismo de hoy, la incertidumbre de mañana (O capitalismo de hoje, a incerteza de amanhã) (Pepitas de Calabaza, Logroño) de Clara Navarro Ruiz expõe à maneira de introdução os conceitos básicos para desenvolver um entendimento crítico do capitalismo contemporâneo. O livro destina-se a um vasto público e procura mostrar que o sistema capitalista – ao contrário do que dizem os seus apologistas – está actualmente a enfrentar sérios problemas para se reproduzir. Mesmo que a análise se baseie apenas parcialmente nas teses da crítica da dissociação-valor, em todo o caso o livro deixa claro que o capitalismo contemporâneo se baseia em suportes instáveis. Estes são sinais claros de que o capitalismo está no seu imparável e inevitável declínio.

O texto começa com um breve esboço dos conceitos básicos da lógica interna do capitalismo (valor, valor de troca, trabalho abstracto) e explica como o capitalismo está em declínio hoje em dia. Para o efeito volta-se para alguns aspectos das teses de Kurz sobre o colapso do capitalismo. Segue-se a análise dos fenómenos da globalização e do 'capitalismo de plataforma', mostrando até que ponto ambos são sinais de uma crise fundamental do capitalismo. O livro conclui com um capítulo sobre os efeitos do capitalismo na relação com a natureza, na relação de género e na "raça".

 

O livro Der Dialog – Ein Gespräch über Sinn und Unsinn der politischen Ökonomie [O diálogo Uma conversa sobre o sentido e o absurdo da economia política] de Knut Hüller & Klaus Müller é publicado por Mangroven-Verlag (Kassel) e documenta o debate entre os dois autores, que tomou como ponto de partida o ensaio-recensão de Hüller do livro de Müller Auf Abwegen – Von der Kunst der Ökonomen sich selbst zu täuschen [Por caminhos perdidos – Sobre a arte dos economistas de se enganarem a si próprios] (Colónia 2019) (a recensão e algumas das contribuições para o debate estão publicadas em exit-online.org).

 

De mencionar também o site exitinenglish.wordpress.com, onde aparecem traduções para inglês.

 

Johanna Berger passou a fazer parte da redacção.

 

 

Roswitha Scholz pela redacção da exit! em Dezembro de 2022.

 

 

Notas

(1) Cf. Scholz, Roswitha: Die Metamorphosen des teutonischen Yuppie, 1995, em exit-online.org. Trad. port.: As Metamorfoses do Yuppie Teutónico, em obeco-online.org.

(2) Cf. Böttcher, Herbert: Du musst »Gesundheitsdiktatur« sagen! Wer ist der beste im Regredieren?, 2022, em exit-online.org. Trad. port.: Tens de dizer "ditadura da saúde"! Quem é o melhor a regredir?, em obeco-online.org.

(3) Jappe, Anselm: Haben sie Gesundheitsdiktatur gesagt? [Você disse ditadura da saúde?], 2022, em wertkritik.org.

(4) Cf. Urban, Andreas: Ein Gespenst geht um in der Wertkritik – Anmerkungen zur wert(abspaltungs)kritischen coronavírus-"Debatte" [Um espectro assombra a crítica do valor – Comentários sobre o "debate" acerca do coronavírus em termos de crítica (da dissociação e) do valor], 2022, em wertkritik.org.

(5) Kurz, Robert: Marx lesen!, Frankfurt 2006, 51. Trad. port.: Ler Marx!, http://www.obeco-online.org/ler_marx.pdf, p. 28

(6) Ibid, 42 [24].

(7) Cf. Kommentar von Herbert Böttcher und der Redaktion zur Corona-Debatte innerhalb von exit!, em exit-online.org. Trad. port.: Comentário de Herbert Böttcher e da redacção acerca do debate sobre coronavírus na exit!, em obeco-online.org/

(8) Kurz, Robert: Geld ohne Wert, Berlim 2012, 178. Trad. port.: Dinheiro sem valor, Antígona, Lisboa, 2014, p. 159.

(9) Urban, Andreas: Propaganda und der geopolitische Abstieg des Westens [Propaganda e decadência geopolítica do Ocidente], 2022, em wertkritik.org.

(10) Urban, Andreas: Ein Gespenst geht um in der Wertkritik [Um espectro assombra a crítica do valor], 2022, em wertkritik.org.

(11) In: Birkner, Martin (ed.): Emanzipatorische Wissenschaftskritik [Crítica emancipatória da ciência], Berlim 2022,18-31.

(12) Cf. Kloos, Dominic: Die Himmelfahrt des Geldes in den Prinzipienhimmel [A ascensão do dinheiro ao céu dos princípios], Bielefeld 2022, bem como várias publicações do Netztelegramm: https://www.oekumenisches-netz.de/veroeffentlichungen/netztelegramm/.

(13) Jappe, Anselm: End Putin's Gas?, 2022, em wertkritik.org. Original: Stop au gaz russe?, em palim-psao.fr.

(14) Kurz, Robert: Die Demokratie frißt ihre Kinder, 1993, em exit-online.org. Trad. port.: A democracia devora seus filhos, Consequência, Rio de Janeiro, 2020.

(15) Urban, Andreas; Uhnrast, F. Alexander von: Corona als Krisensymptom [O coronavírus como sintoma da crise] Teil 2, 2022: em wertkritik.org.

(16) Urban, Andreas: Propaganda und der geopolitische Abstieg des Westens [Propaganda e decadência geopolítica do Ocidente], 2022, em wertkritik.org.

(17) Ver a declaração na homepage da exit! https://exit-online.org/textanz1.php?tabelle=aktuelles&index=34&posnr=814. Trad. port.: http://www.obeco-online.org/herbert_bottcher21.htm.

(18) Urban, Andreas: Der autoritäre Konformismus der akademischen Jugend [O conformismo autoritário da juventude académica], 2022, em streifzuege.org.

(19) Urban, Andreas: Corona von links [Coronavírus visto da esquerda], 2022, em wertkritik.org.

(20) Heitmeyer, Wilhelm: Autoritäre Versuchungen [Tentativas autoritárias], Berlim 2018, 279.

(21) Publicado pela primeira vez em: Fleischer, Helmut (ed.): Der Marxismus in seinem Zeitalter [O marxismo na sua época], Leipzig 1994, 162-184.

 

Original “Editorial und Spendenaufruf zur neuen exit! (erscheint im Mai)” em www.exit-online.org, 24.02.2023. Tradução de Boaventura Antunes

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