Editorial da Revista EXIT! nº 4
A "camada inferior" tem vindo a inquietar a república, mesmo que o ministro do trabalho e dos assuntos sociais não o queira admitir e ninguém saiba dizer com exactidão em que consiste ela. No entanto, já se falara da nova pobreza em meados dos anos setenta e, com maior insistência, desde os anos oitenta. Não é, portanto, a camada inferior como fenómeno que é nova, novo é o facto de ela saltar para os cabeçalhos. Para isso pode ter contribuído o facto de a situação de muitos desempregados, "subempregados" e dependentes de apoio social se ter agravado consideravelmente devido à redução forçada do orçamento social e às medidas de coacção decorrentes do programa Hartz IV. O que, ao invés, é mais importante para a percepção mediática é o facto de o círculo dos potenciais afectados ter sido alargado consideravelmente nos últimos anos, já incluindo ramos académicos inteiros. O chavão do "precariado", usado inicialmente sobretudo em contextos de esquerda, circula agora também nos media burgueses. As angústias correspondentes encontram-se particularmente instaladas nas camadas médias, como já tem sido abundantemente debatido na imprensa das mais diversas orientações políticas.
Isto afecta não em último lugar também a(s) esquerda(s). É assim que nos últimos tempos se tornou conhecido por exemplo o teórico pós-operaista Sergio Bologna. Questiona ele: "Quem fala ainda hoje de si mesmo como de uma camada social? Quem considera ainda esta middle class um sujeito político interessante? Ao recorrermos à história dos movimentos anti-autoritários (...) ou à história dos chamados movimentos operaistas (apercebemo-nos) de que no fundo não existe uma análise da middle class (Sergio Bologna, Die Rolle der Theorie in der politischen Aktion [O Papel da Teoria na Acção Política], in: jour fixe-initiative berlin, Klassen und Kämpfe [Classes e Lutas], Münster 2006, p. 58). O que, para Bologna, é problemático neste âmbito é que na sociedade da informação e do conhecimento até estejam a desaparecer determinadas camadas médias novas que ela própria tinha produzido.
Numa direcção semelhante aponta também Georg Seeßlen na "Jungle World" (25.10. 2006): "E até a luta de classes vinda de cima, em que vivemos desde há alguns anos, chegará aos seus limites quando estiver definitivamente triturada a camada média, que hoje tem que providenciar tanto o luxo dos ricos como a sobrevida dos pobres. É assim que a camada média em luta pela sobrevivência acaba por se transformar numa classe que sangra e que em seguida se desvanece. No momento, porém, em que uma classe que tudo tem se contrapuser directamente a outra classe onde já nada se pode ir buscar, estará escrita a história do capitalismo. Nada haveria a opor a isso se tal não se traduzisse concretamente em imensa dor, violência e prejuízo". Parece evidente que isto se refere sobretudo às camadas médias exploradas por cima e por baixo, as quais supostamente representam a possibilidade de emancipação de toda a humanidade, ainda que Seßlen não o exprima com toda a precisão. O que ainda não nos tínhamos apercebido é de termos de providenciar o luxo dos ricos e a sobrevida dos pobres!
De todo o modo, sempre pensámos que os marxistas da luta de classes mais ou menos tradicionais se opusessem a quaisquer relações de classe... É assim que uma pessoa se pode enganar: nas citações acima revela-se que se trata de um interesse próprio e que uma pessoa se localiza a si mesma nas camadas médias. Neste contexto, o povo de esquerda está chocado sobretudo porque agora ele próprio se vê posto em causa. Corresponde a uma ofensa narcisista ter, por exemplo, estudado durante anos e mesmo assim ser posto na prateleira. E mesmo que uma pessoa tenha interrompido os estudos, isso não parecia significar durante bastante tempo que uma pessoa é ultraflexível e que (de algum modo, embora talvez apenas em potência) poderia inscrever-se entre os bem sucedidos? Semelhantes fantasias e/ou experiências preenchem não poucos percursos de vida da esquerda. Aqui ainda reinam ideias, no fundo petulantes, que radicam nas situações da burguesia cultural estatutária ou do fordismo classista, a saber, de no fundo quererem pertencer à "gente de bem".
Estas esperanças inconfessadas são agora desiludidas. Quase poderia dizer-se que, entretanto, da "sociedade nivelada da classe média" que Schelsky já constatara nos anos 50, e de certa maneira de uma "sociedade pluralizada de classe média" desde os anos 70, se caminha para a cave de uma "sociedade pluralizada de camada inferior". Mas a salvação está próxima: depois do colapso da New Economy no início da presente década, uma economia da Internet ressuscitada procura uma vez mais arrancar em força: "Wir nennen es Arbeit [Chamamos a isso trabalho]", diz o bestseller de Holm Friebe e Sascha Lobo relativamente à "boémia digital". Pelos vistos já não se leva muito a sério a possibilidade de também esta bolha rebentar, sendo certo que apenas se trata de um boom passageiro! Estas novas esperanças integram-se na propaganda que entretanto grassa de uma "retoma" global agora supostamente "real", cuja dependência dos circuitos globais do défice (e do altamente endividado "milagre do consumo" americano em fim de linha) não é de modo algum tematizada. Simultaneamente a euforia mediática descura o facto de os tão badalados novos empregos serem na sua maioria temporários e localizados no segmento precário dos serviços. Prossegue desenfreado o processo de desclassificação massiva de relações de emprego até aqui regulares (como é o caso na Quelle ou na Telekom); simultaneamente são conhecidos novos planos de despedimentos em massa (caso da Opel).
Acontece que se pode partir do princípio, sem grande margem para dúvidas, que já grande parte da nova classe média na realidade faz parte do "precariado" (palavra-chave: geração do estágio). É precisamente aí que reside a novidade da situação: já não são atingidos sobretudo os pouco qualificados como ainda há poucos anos acontecia. Mesmo que nestas circunstâncias muitos possam confiar no patrocínio e no "toucinho fordista" (Robert Kurz) dos pais, este toucinho vai derretendo aos poucos. Apesar de tudo não há que esquecer que ao mesmo tempo a camada inferior tradicional (os sem-abrigo, os chamados sem formação etc) se vai alargando mais ainda. Ela sempre existiu no capitalismo, mesmo na época áurea do estado-providência, como ponto de fuga da socialização e subjectividade negativa, e desempenhou o cargo do verdadeiro fundo da escala social, sem que na altura a sua miséria conseguisse causar grande alarme – abstraindo de algumas ideologias de grupos marginais da esquerda, no sentido de uma questionável instrumentalização, como quase substituto revolucionário do proletariado. Ora, hoje a "camada inferior" transforma-se na cifra horrorosa da queda da classe média pós-fordista, quando o elevador já não anda "para cima", como na sociedade do bem-estar pós-fordista, mas sim "para baixo", e quando hoje vivemos numa "Sociedade do Menos [Gesellschaft des Weniger]", segundo a expressão minimizadora de Ulrich Beck. "Vida em Perigo [Gefährdetes Leben]" (Judith Butler), "Vida Condenada [Verworfenes Leben]" (Zygmunt Bauman) e "Homo sacer" (Giorgio Agamben) são títulos de livros sobre o tema que já desde há alguns anos vêm obtendo êxito no mercado livreiro e cujo conteúdo versa a "exclusão" e o "tornar-se supérfluo" sob diversos pontos de vista.
É, por isso, decisivo para o caso de realmente ocorrer uma revolta que se problematizem por antecipação as tendências social-darwinistas nos próprios movimentos sociais, para em última instância as isolar a fim de, no interior da esquerda, fazer frente a um ponto de vista mais ou menos presente do interesse particular, no sentido da nova classe média ameaçada pela queda. Embora a correspondente choradeira na senda dos primeiros protestos contra Hartz-IV não deixe prever nada de bom, ela não terá necessariamente um seguimento. É de esperar que a consideração do todo social negativo também se imponha no interior dos movimentos sociais. É claro que não se pode tratar de abstrair altruisticamente da situação própria, todavia esta não pode tornar-se o ponto de partida central do empenhamento social, marcado pela ideologia da afectação e redutor da perspectiva crítica. Neste contexto seria essencial incluir à partida as dimensões da discriminação que são o género e a "raça"/etnia e, mais ainda, a dimensão de uma interpretação da crise assente na ideologia da circulação e/ou "existencialista" (Heidegger), que se encontra mediada com um anti-americanismo culturalista, um "antisemitismo estrutural" e, cada vez mais abertamente, com clichés anti-semitas. Aqui se manifesta a tendência ideológica mais perigosa no âmbito da "queda da nova classe média" e da "sociedade pluralizada de camada inferior" como forma de decurso do processo de crise.
Enquanto estas conexões não forem suficientemente expressas, também o debate sobre o chamado rendimento mínimo incondicional decorrerá como decorre. Também aqui os grandes protagonistas são as novas classes médias. Neste âmbito fica cada vez mais despropositada a crítica de que elas, com a sua ingenuidade, ajudam uma concepção neoliberal a vingar, pelo menos no que concerne à suposição de no fundo quererem outra coisa. É que a orientação neoliberal dessa concepção não só é aceite como é apoiada abertamente. Um rendimento mínimo situado abaixo da linha de água de Hartz IV (como na proposta do ministro-presidente Althaus) é aceite se forem aumentados os limites para as receitas suplementares e se o rendimento puder ser melhorado com tarefas ocasionais. Embora com isso não se possa sair do nível da pobreza, sempre se pode obter um ganho de distinção face às camadas inferiores autênticas, que são imaginadas como totalmente passivas.
Trata-se de um modo geral de uma hegemonia do discurso e do poder de definição sobre as diversas problemáticas em causa no sentido da administração da crise. É assim que por exemplo a "falta de vontade de subir" passa por ser a razão para a situação sem perspectivas das camadas inferiores e que o apoio à família nos é apresentado como solução. Segundo Lothar Späth [antigo ministro-presidente do estado de Bade-Vurtemberga – N.T.] terá sido mesmo o Estado social quem causou a miséria da camada inferior! Não obstante toda a cosmética verbal da área do estado-providência, o objectivo consiste em despachar o problema para a esfera privada. O mesmo também é patente numa campanha omnipresente contra a mentalidade de gomas e batatas fritas do precariado da camada inferior; deste modo, mesmo na hora de introduzir critérios qualitativos (afinal o que queremos é "boa" em vez de "má" alimentação) quer-se transformar um cenário secundário em cenário principal e submeter todo o mal-estar a um controlo no sentido da "pedagogia negra". Talvez haja aí um novo campo de ocupação para os nossos biscateiros eco-sociais de classe média ameaçados pela queda? E com isso não se faria talvez ao mesmo tempo algo contra as alterações climáticas e, certamente apenas por acréscimo, contra os seus custos?
Como é sabido, o que conduziu à indignação no chamado debate sobre a camada inferior não foram protestos "de baixo", mas um estudo da Fundação Friedrich Ebert largamente publicitado. O mesmo se aplica ao tema das alterações climáticas que igualmente faz, uma vez mais, manchetes. O antigo economista do Banco Mundial Nicolas Stern apresentou um estudo sobre o tema, encomendado pelo Chanceler do Tesouro britânico, Gordon Brown. O que está em causa são os custos das alterações climáticas. No estudo, Stern exorta a que em todo o mundo se proceda com determinação contra as emissões de gases com efeito de estufa. O derretimento das calotas polares e a subida dos níveis do mar acarretariam consequências como migrações e escassez de alimentos. Segundo Stern, o escândalo consiste em que os exorbitantes custos daí resultantes atirariam a economia mundial para uma profunda depressão que até poderia ultrapassar em gravidade a depressão dos anos 30. Os custos para o evitar seriam segundo Stern diminutos: seria suficiente 1% do produto social a nível mundial, ou seja, 350 mil milhões de dólares por ano. No entanto, tal mudança teria de ser promovida rapidamente, caso contrário estaria eminente o colapso, não só ecológico, mas igualmente económico.
Entretanto diversos estudos (entre outros, ambos os relatórios sobre o clima da ONU) demonstraram que os custos contabilizados na imanência capitalista de uma mudança efectiva nas emissões seriam na realidade exorbitantes; a propósito já se falou ocasionalmente de uma espécie de (ilusória) "economia de guerra planetária" para evitar a catástrofe climática. Na medida em que são sequer reflectidas as consequências de uma intervenção profunda, na maior parte dos casos apenas se fala de uma redução generalizada do nível de consumo da maioria; deste modo, o debate sobre o clima ainda pode porventura ser instrumentalizado para a administração da crise social.
Neste âmbito é notável o seguinte: as alterações climáticas e os problemas daí resultantes no fundo não são colocados de modo algum em estrita correlação com o modo de produção e de vida capitalista. De um modo perfeitamente imanente, em parte são responsabilizados meros "descuidos", sobretudo da política e da gestão empresarial, em parte o problema é empurrado para a esfera privada, como simples tarefa pessoal de mudança de comportamento compatível com o capitalismo (poupança energética, carros de menor consumo etc). É igualmente estranho que a medida da crítica não seja a catástrofe humana (e ecológica), mas o problema dos custos, o qual é ingenuamente minimizado. Sempre que na classe política alvorece uma certa percepção da ameaça, esta defronta-se com a impossibilidade de pôr em causa nem que seja de forma incipiente a lógica funcional capitalista. Ao mesmo tempo os neoliberais de linha dura (por exemplo o redactor-chefe da "Wirtschaftswoche", Stefan Baron) vociferam contra a criação de um "pânico artificial". No marketing político, a compreensão e a negação não são de forma alguma incompatíveis; não é por acaso que o "socialista" neoliberal Toni Blair, por esta altura antes de mais impopular, tenta aproveitar esta oportunidade, chamando agora para conselheiro Al Gore, que se apresenta como homem bom da ecologia. Está à vista que se trata de simples truques de malabarista ideológicos semi-conscientes. Trata-se de apresentar a intenção neo-liberal, há muito transversal a todos os partidos, de forma vergada e humana, branda e sensível.
Deste modo pretende-se sugerir à partida a solidariedade com possíveis movimentos de protesto para ao mesmo tempo os esvaziar estrategicamente. Pode supor-se que, à semelhança do que acontece no caso do debate sobre a camada inferior, se trata antes de mais de uma desdramatização e destematização, quando voltam a vir à tona "velhos" temas como a desigualdade social e a ecologia e entretanto até o CDU/CSU [democrata-cristão] e o FDP [liberal] procuram fazer crer que agora abriram o coração ao "social" e ao "ecológico"; a preços de saldo, como é evidente.
Vemos portanto que a necessidade da crítica da ideologia e da crítica do sujeito continua a impor-se, tanto face ao mainstream burguês como face ao cenário de esquerda. A "questão social" não pode ser invocada sem passar por uma análise diferenciada inclusivamente das falhas ideológicas. A EXIT! pretende no futuro dedicar uma atenção reforçada, sob diversos pontos de vista, ao complexo problema da "queda da nova classe média" e da sua digestão ideológica. Estas e outras tendências devem ser colocadas em relação com a essência da constituição capitalista, isto é, com a relação de valor-dissociação. O que na actualidade se evidencia nos acalorados debates em torno do precariado e da miséria da classe média, da "sociedade do conhecimento" pós-moderna ou das alterações climáticas encontra-se mediado com o conceito burguês de praxis, virulento também na esquerda, com as condições da moderna constituição do sujeito, tal como o modo de pensar das ciências naturais e dimensões latentes do racismo, sobre o pano de fundo da sociedade do trabalho. Nesta edição da EXIT! dedicamo-nos nesse sentido uma vez mais sobretudo aos correspondentes "abismos do sujeito" observados em diversos planos.
Com o texto "Cinzenta é a árvore dourada da vida e verde é a teoria. O problema da praxis como evergreen da crítica social truncada e a história da esquerda", Robert Kurz procura definir em moldes fundamentalmente novos a dimensão da acção até agora deixada de parte na elaboração teórica da teoria do valor-dissociação. Neste âmbito, o entendimento tradicional da 11ª tese sobre Feuerbach de Marx é decifrado como pertencendo ao perfil de exigência da "modernização atrasada" categorialmente imanente, que se pode descrever com os conceitos de "interpretação do real", "tratamento da contradição", "transformação capitalista do mundo" e "crítica afirmativa". A isso estava associada uma despotenciação da crítica teórica que tinha de desaguar na "razão instrumental" burguesa. Para contra isso desenvolver um conceito de praxis suficiente para a crítica da moderna constituição de fetiche é necessária uma reapreciação da pretensão tradicional, em que é suplantado o agrilhoamento da reflexão crítica a uma prática social pré-estabelecida e assim à "forma teoria" burguesa universalista androcêntrica. A relação entre "praxis teórica", "praxis ideológica" e revolução [Umwälzung] social surge assim a uma nova luz. Essencial para uma nova definição é romper com a polaridade burguesa entre a "teoria da estrutura" (objectivismo) e a "teoria da acção" (subjectivismo), cuja conexão interna é apresentada para lá da sociologia. É perante este pano de fundo que se revela a "viragem teórica para a acção" do marxismo ocidental, que permaneceu tão presa à constituição de fetiche como a velha metafísica da legalidade marxista e que marcou a transição do marxismo de partido para a ideologia do movimento. Em polémica com a chamada filosofia da praxis, com o "marxismo estrutural" de Althusser, com o pós-estruturalismo de cunho foucaultiano e com o (pós-)operaismo de Negri e Holloway é esboçado um desenvolvimento que vai dar especularmente ao colapso do socialismo real e a uma capitulação da esquerda perante a socialização capitalista negativa, incluindo a relação de dissociação sexual. A confrontação crítica iniciada neste texto com a "ideologia do movimento" hoje dominante deve ser continuada com artigos sobre a "teologização da crítica" pós-moderna, sobre a metafísica do quotidiano e do mundo da vida existencialista e fenomenológica (que hoje grassa também em círculos da "crítica do valor") e sobre um conceito truncado de "apropriação" que regride para trás do paradigma já obsoleto do planeamento estatal do marxismo tradicional, em vez de ir para além dele.
Entre os paradigmas centrais da modernidade inscreve-se uma significativa ausência de escrúpulos, designadamente a disponibilidade para obter ou assegurar poder ou lucro com o emprego mesmo de violência brutal e com a aceitação consciente da aniquilação de seres humanos bem como dos fundamentos da vida em geral. Carsten Weber, no ensaio "O primeiro grito do sujeito" investiga como se desenvolveu esta mentalidade específica da Idade Moderna. Partindo da constatação de que os desenvolvimentos históricos se consumam com uma enorme inércia e que por isso apresentam antecedentes correspondentemente prolongados no tempo, de modo que esta ausência de escrúpulos e esta disponibilidade para o aniquilamento, bem como o sujeito seu portador, não vieram ao mundo no começo da Idade Moderna sem quaisquer pressupostos, ele vira a sua atenção para a questão de que contributo prestou para este desenvolvimento histórico a Idade Média que, segundo o consenso geral, estava impregnada de uma mentalidade completamente diferente. Neste contexto, uma ênfase especial é colocada sobre uma observação crítica do cristianismo que, como religião monopolista da Europa medieval, teve uma importância decisiva para a mentalidade medieval. Revela-se que uma religião no princípio estritamente afastada do mundo, ascética e até pacifista do fim dos tempos se converteu em uma autêntica religião de guerreiros, o que se reflecte muito expressivamente nos santos da igreja católica: se estes eram de início ainda exclusivamente eremitas, ascetas e mártires, após a ascensão do império franco figuram nas listas de santos sobretudo comandantes militares, de origem tanto clerical como nobre. Particularmente o papado deu impulsos decisivos para a crescente viragem da igreja para a actividade guerreira. Revela-se como fase decisiva o último terço do século XI que, com a questão das investiduras e com a 1ª cruzada, produziu logo duas guerras acompanhadas de autênticas tempestades de aniquilamento e pelas quais em ambos os casos o papado arca com a responsabilidade principal. Nesse tempo a morte e o aniquilamento tornaram-se de tal modo omnipresentes que o último passo para o nascimento da modernidade, o desenvolvimento das armas de fogo e do mercenariado, não representa nenhuma ruptura com a Idade Média tardia, mas sim a sua continuação lógica.
No diálogo sobre "Os abismos metafísicos das ciências naturais modernas", Claus Peter Ortlieb e Jörg Ulrich verificam uma estreita ligação entre a forma moderna de conhecimento objectivo e a constituição historicamente específica do seu sujeito do conhecimento burguês. O método matemático próprio das ciências naturais que, com o seu modo de proceder "não ideológico", supostamente apenas orientado por critérios objectivos, é apresentado com predilecção como contra-modelo da evidente irracionalidade da sociedade moderna, constitui o cerne do moderno modo de pensar e da relação do homem moderno com todo o seu mundo, e precisamente por isso não pode ser dissociado dos resultados catastróficos produzidos pelo valor-dissociação, tal como eles se encontram à vista após quatrocentos anos de sociedade burguesa. Os abismos das ciências naturais modernas de que se fala são os abismos do sujeito masculino-branco-ocidental. Os desentendimentos entre os parceiros do diálogo dizem respeito, por um lado, à questão de saber até que ponto a metafísica que se exprime nas ciências naturais é uma questão especificamente moderna e, por outro lado, à posição do objecto no processo de conhecimento das ciências naturais. O objectivo do diálogo é menos o esclarecimento definitivo do que a afinação de interrogações que dizem respeito à conexão do conhecimento moderno com a sociedade em que este é adquirido.
No debate da crítica do valor-dissociação, o racismo e o anti-semitismo foram durante muito tempo temas secundários, tratados como simplesmente derivados do valor. Neste contexto, o anti-ciganismo, mais ainda que os anteriores, era mencionado apenas à margem. No seu artigo "Homo Sacer e os Ciganos" Roswitha Scholz assinala que precisamente por isso se impõe a uma posição de crítica do trabalho a ocupação com este tema. "Que bela que é a vida de cigano" – segundo uma conhecida canção e cliché. Os ciganos são considerados, ao contrário do indivíduo disciplinado da cultura dominante, como "wild and free" [selvagens e livres], situando-se aparentemente no lado da sociedade afastado do trabalho. No entanto, eles não vivem no Taiti ou noutro lugar longínquo, mas estão "entre nós" há séculos e desde o princípio que constituíram uma parte integrante das sociedades do "centro". Simultaneamente o anti-ciganismo constitui uma forma de racismo, talvez como nenhuma outra, que se caracteriza por um profundo desprezo. "Os ciganos" supostamente mentem, burlam e roubam. A sua existência já foi considerada como quase fora da lei. Precisamente por isso eles foram criminalizados e controlados como nenhum outro grupo da população. O "cigano" também serve para assinalar a situação a que um membro da cultura dominante poderá chegar se não se comportar de uma forma adaptada à sociedade do trabalho. A tese central de Roswitha Scholz é no sentido de que o "cigano" representa o "homo sacer" par excellence, o ser humano que, na modernidade, é proscrito "como caça livre [vogelfrei]" e por assim dizer vê o seu abate autorizado. Isso traduz-se também no facto de até hoje o anti-ciganismo quase não figurar nas teses sobre o tema racismo. Assim, também demorou muito tempo até ser de todo tematizada a aniquilação maciça dos Sinti e dos Roma no nacional-socialismo. Este texto também pode ser lido como contribuição crítica para o chamado debate sobre a camada inferior.
A rubrica Recensões – Glosas – Comentários, na parte final da revista, inclui as seguintes contribuições: "Carl Schmitt e os judeus" de Udo Winkel, "Uma crítica à biopolítica ‘de esquerda’. Sobre o livro ‘A vida não vive’ do Grupo Röteln" de Frank Rentschler, "Fetiche nosso. Sobre a ontologia do fetiche em ‘Fetichismo e Cultura’ de Hartmut Böhme" de Claus Peter Ortlieb, "O preço do petróleo e a democracia" de Knut Hüller, "Utopia na Forma da Mercadoria" de Gerd Bedszent e "Entre ‘O Senhor K.’ e a História do Bacharel. Um comentário ao dia do historiador em Konstanz" de Udo Winkel.
Como se depreende da ficha técnica, Petra Haarmann (Herne) e Jörg Ulrich (Ulm) saíram da redacção e entraram os novos membros Micha Böhme (Lípsia), Martin Dornis (Lípsia) e Udo Winkel (Nuremberga). A terminar anunciamos ainda que na Primavera de 2007 saiu a terceira edição do livro „Marx lesen" [Ler Marx] de Robert Kurz, na Editora Eichborn (em paperback, tal como a segunda edição).
Frank Rentschler e Roswitha Scholz pela redacção da EXIT!
Abril 2007
Í N D I C E
Robert Kurz
Cinzenta é a árvore dourada da vida e verde é a teoria
O problema da praxis como evergreen da crítica social truncada e a história da esquerda
O mal-estar na teoria – Adorno sobre as pretensões de praxis truncadas e a "pseudo-actividade" – "Praxis teórica" e interpretação real do capitalismo – Digestão da contradição e "praxis ideológica" – O capitalismo como transformação do mundo: crítica afirmativa e crítica categorial – Teoria da estrutura e teoria da acção – A modernização atrasada como postulado de uma "unidade indissociável" de teoria e prática – Razão instrumental – A viragem na teoria da acção. Marxismo ocidental e "filosofia da praxis" – O "marxismo estruturalista" e o politicismo da teoria da acção – O Pêndulo de Foucault. Do marxismo de partido à ideologia do movimento – O regresso do "sujeito". A metafísica dos direitos humanos e a "autonomia" enganadora – Nós somos tudo. A miséria do (pós)-operaismo – Da capitulação da ideologia auto-referencial do movimento a um novo conceito de "praxis teórica"
Carsten Weber
O primeiro grito do sujeito
Pressupostos da modernidade na história da Idade Média
Desprezo pelo mundo e fuga do mundo como único sentido cristão da vida – Os papas como súbditos solícitos do Império – Da seita do fim do mundo à religião de guerreiros – Graça de Deus e feudalismo – A questão das investiduras: a ordem tradicional desconjunta-se – As cruzadas: primeira aparição da modernidade – O fim da certeza – A grande mortandade – O grande assassinato – O grande armamento
Claus Peter Ortlieb / Jörg Ulrich
Os abismos metafísicos das ciências naturais modernas
Um diálogo
Roswitha Scholz
O Homo Sacer e "os ciganos"
O anti-ciganismo. Considerações sobre uma variante essencial e por isso "esquecida" do racismo no capitalismo
Introdução: O anti-ciganismo: A variante de racismo no capitalismo "esquecida" por excelência – Modernidade e anti-ciganismo – Anti-ciganismo e género – Sobre a história do anti-ciganismo na Alemanha – Anti-ciganismo e anti-semitismo – O "Homo Sacer" e os "ciganos" – O romantismo de esquerda e os "ciganos" – Os "ciganos" na pós-modernidade e o tabu da hibridez – O anti-ciganismo estrutural e a pós-modernidade decadente – Resumo: Valor-dissociação, anti-ciganismo, outros racismos e a esquerda (crítica do trabalho) hoje
Recensões – Glosas – Comentários
Udo Winkel
Carl Schmitt e os judeus
Frank Rentschler
Uma crítica à biopolítica "de esquerda".
Sobre o livro "A vida não vive" do Grupo Röteln.
Claus Peter Ortlieb
Fetiche nosso
Sobre a ontologia do fetiche em "Fetichismo e Cultura" de Hartmut Böhme
Knut Hüller
"O preço do petróleo e a democracia"
Gerd Bedszent
Utopia na Forma da Mercadoria
Udo Winkel
Entre "O Senhor K." e a História do Bacharel
Um comentário ao dia do historiador em Konstanz
Original