Revista EXIT! nº 7, Dezembro 2010

 

SUMARIO E EDITORIAL

 

 

 

SUMÁRIO

 

Editorial

 

Em memória de Jörg Ulrich

 

Jörg Ulrich

Salvação falhada

Reflexões sobre o fragmento de Walter Benjamin "O capitalismo como religião"

 

Robert Kurz

Não há Leviatã que vos salve

Teses para uma teoria crítica do Estado, Parte 1

1 O Estado como "último recurso" e as formas de desenvolvimento da crise capitalista mundial • 2 A insuficiência da teoria do Estado e o debate teórico sobre a teoria radical da crise • 3 Desenvolvimento capitalista e historicidade da teoria. A "herança" do iluminismo burguês afirmativo na esquerda da modernização • 4 A teoria contratual do direito natural e o poder estatal absoluto em Hobbes • 5 O patriarcado objectivado da modernidade e o carácter androcêntrico do Leviatã • 6 "Economia política" absolutista e liberdade de concorrência dos cidadãos proprietários • 7 Do liberalismo teológico à forma transcendental da "vontade geral" em Rousseau • 8 O "imperativo categórico" kantiano e a auto-interdição esclarecida • 9 Adam Smith e a "mão invisível" da máquina da concorrência como reverso da "vontade geral" • 10 O idealismo estatal alemão como superação ideológica aparente da duplicação da "vontade geral" • 11 A diferenciação "nacional" anglo-saxónica, francesa e alemã da "vontade geral" • 12 O "estado de natureza" violento entre os Leviatãs e a sua limitação pelo mercado mundial • 13 A "paz perpétua" kantiana como visão duma instituição meta-estatal da "vontade geral" repressiva e o seu desmentido por Hegel • 14 A batalha dos Leviatãs imperiais pelo poder mundial nacional da "vontade geral" • 15 Duas nações numa. O entendimento do Estado do burguês proprietário como atraso da modernização • 16 O Estado burguês como horizonte de emancipação truncada e a função modernizadora do movimento operário • 17 A repetição feminista da emancipação truncada • 18 O idealismo estatal alemão como "herança" do movimento operário e a expansão capitalista das funções do Estado • 19 A crítica do Estado no jovem Marx: as contradições da "vontade geral" transcendental • 20 O duplo Marx e a dupla definição do político • 21 O conceito de Estado reduzido à sociologia das classes em Marx e Engels • 22 Trinta anos depois. A reprodução do conceito truncado de Estado no Anti-Dühring de Engels • Antevisão da segunda parte

 

Elmar Flatschart

Extraviados com Gramsci

Uma crítica contextualizada dos marxismos "gramscianos"

1. A filosofia da práxis no contexto histórico • 1.1 Modernização atrasada na Itália • 1.2 Guerra de posição ou de movimento? • 1.3 O cesarismo – um teorema do fascismo "embutido" • 1.4 • Para uma crítica contextualizada de Gramsci • 2 Neogramscianismo político-económico 3 A teoria da hegemonia “pós-fundacionalista” • 4 Continuidades pavorosas

 

JustIn Monday

Uma questão interna

Sobre o Estado como pressuposto irreflectido da racionalidade económica no século XX e o seu papel na teoria neoliberal

Introdução: a fantasia colectiva da omnipotência do Estado • I. As contradições da consciência perante a crise • II. As contradições das estatísticas da economia nacional • III. Liberalismo, Estado autoritário e neoliberalismo: diferenças históricas • IV "Nível de preço", "poder de compra", "produto social" e "conjuntura" • V. A modificação do liberalismo pelo Estado autoritário na teoria • Lei e ordem – o primeiro par conceptual central do neoliberalismo • Liberdade e concorrência – o segundo par conceptual central da teoria neoliberal • O controlo da crise na pesquisa sobre a conjuntura económica

 

Roland Grimm

Ferrovias e Estado

O caminho de ferro como empresa capitalista de Estado • A nacionalização dos caminhos de ferro alemães no Império • O caminho de ferro alemão e a República de Weimar • Automobilização e caminho de ferro no Estado nacional-socialista • A ferrovia federal alemã de 1945 a 1990 • Ferrovia e tráfego rodoviário na RDA • Modelo suíço? • A caminho da privatização • Contradições da privatização da ferrovia • A crise está a bloquear a entrada em bolsa • Perspectivas

 

Hanns-Friedrich von Bosse

Com a ética contra a crise

 

Roswitha Scholz

Não digo nada sem a minha Alltours

A identidade (masculina) pós-moderna entre a mania da diferenciação e a segurança da teoria marxista vulgar. Réplica a críticas à teoria da dissociação e do valor

Introdução • O conceito de dissociação-valor • Igual originariedade e sujeito "autónomo" • Falsa historicização e falsa ontologização • Dissociação-valor como conceito da totalidade • O não-idêntico e a lógica da dissociação-valor • Princípio social fundamental e diferenças • A ausência do conceito de dissociação-valor na teoria feminista • Teoria, empiria e desenvolvimento histórico • Sexo e Género • Dissociação-valor e heterossexualidade compulsiva • Dissociação-valor e crítica da economia política • Diferentes níveis de análise e pensamento positivista • Conclusão: O espírito do tempo pós-moderno na crise, os círculos tornados queer de esquerda e a insustentabilidade de uma mentalidade de crítica ecléctica

 

Udo Winkel

A alma da situação desalmada

Sloterdijk e Cª.: O declínio intelectual dos pensadores de elite alemães pós-críticos

 

Udo Winkel

No 80º Aniversário de Kurt Lenk

Um representante da teoria crítica algo diferente

 

Udo Winkel

Crise e teologia do capital

Terminologia e compreensão da realidade – Notas sobre publicações recentes relevantes

 

 

 

 

EDITORIAL

 

Há felicitações por toda a parte e em todas as oportunidades: a crise acabou – e isto no 20º aniversário da reunificação chamada adesão das regiões a leste do Elba.

 

A crise do sistema financeiro global, além de um breve susto quanto à fiabilidade de suas previsões, tinha provocado uma incerteza – obviamente temporária – sobre se o sistema do capital, considerado natural e portanto eterno, poderia estar porventura afectado pela doença do histórico. Curiosamente, esta gripe mental ligeira afectou sobretudo o pessoal das páginas culturais da imprensa burguesa – pelo menos em tempos de irrupção aberta de processos de crise, há entre os comparsas da opinião publicada um claro pressentimento subliminar de que eles mesmos não possam contar com a sua própria apologética em caso de emergência. Os extintores de incêndio foram distribuídos e utilizados abundantemente, sobretudo nos pisos executivos dos bancos e do aparelho estatal de administração da crise. A chancelerina federal garantiu as poupanças privadas – sem saber com quê –, bem sabendo que a fúria de poupança dos alemães levaria à queda imediata de todo o sistema, se o cidadão poupador – impulsionado pelas histórias de horror do mercado financeiro internacional – porventura limpasse as contas da noite para o dia e se escolhesse a si mesmo como novo domicílio para a sua paixão de coleccionar pés-de-meia da avó. E o sistema bancário à beira da falência foi temporariamente saneado através da estação estatal de transbordo das dívidas. O ritmo e a consequente lógica interna sugerem que, no Ministério das Finanças, dispensando o conselho de especialistas económicos e usando uma calculadora com dígitos suficientes, se possa de algum modo ter esperança, pelo menos no nível da circulação, mesmo sem fazer a mínima ideia de que na crise do dinheiro apenas assoma a crise do valor. Sendo que, para o crash, de qualquer maneira, é indiferente se a sua essência foi sintetizada – ele simplesmente acontece.

 

Nisto do crash há obviamente acordo com a maioria da esquerda alemã. Se a perplexidade inicial desta perante o colapso dos mercados financeiros ainda constituiu a prova de que ela esperava tudo, e não apenas a situação de emergência, de seguida ela rapidamente voltou à ordem do dia, com a qual está obviamente acostumada há muito tempo. Os especuladores foram identificados como a personificação da culpa e "o Oskar" proclamou Keynes conselheiro económico do seu partido no congresso federal do Partido da Esquerda em Rostock: "KFW... significa keynesianismo, regulação do mercado financeiro e governo económico a nível europeu. Estes são os três pilares da nossa política económica.” Poder-se-ia acrescentar, com Dante Alighieri, "Vós que entrais, abandonai toda a esperança!" Pelo menos, toda a esperança de que, nas estruturas partidárias e nos think tanks modernos da solidariedade, possa aumentar o conhecimento da natureza do patriarcado produtor de mercadorias e do seu limite interno de valorização, e que daí possa surgir mais que uma administração de crise pragmática de esquerda. Onde as questões da crítica radical simplesmente não são colocadas, ou são consideradas como um fenómeno marginal, não se pode esperar quaisquer respostas que tenham em vista a abolição do capitalismo.

 

"Agora estamos mesmo junto ao leito de enfermo do capitalismo, não apenas como diagnosticadores, mas também – bem, como dizê-lo? – será como o médico que quer curá-lo, ou será como o alegre herdeiro que não consegue esperar pelo fim e preferia apressar a coisa com veneno ou algo assim? ... Pois é... estamos condenados a ser o médico que quer ajudar a sério e, no entanto, mantendo a sensação de que somos herdeiros, que queremos receber todo o legado do sistema capitalista antes hoje que amanhã... Se o doente agoniza, as massas lá fora passam fome. Sabendo nós isso e conhecendo um remédio, mesmo estando convencidos de que ele não cura o doente, mas, pelo menos, alivia o seu estertor, de modo que as massas lá fora voltem a ter que comer, então damos-lhe o remédio, não pensando que somos os herdeiros à espera do seu fim iminente." Não é aqui o lugar para debater o entendimento de (r)evolução e a atitude acrítica de Fritz Tarnow perante a modernidade, que já nos anos trinta nem sequer no SPD fazia amplo consenso (nem tão-pouco a história da redução intencional do seu discurso no congresso do SPD de 1931, aqui citado). Mas é preciso destacar dois pontos: Onde Tarnow – com certeza que subjectivamente considerado sério e honesto – ainda distingue entre a salvação táctica e temporária do doente e a posição estrategicamente colocada do "herdeiro de todo o legado do sistema capitalista", e pretende reivindicar este último pelo menos retoricamente, as nossas esquerdas actuais estão livres de tal distinção. Uma vez que a "fome das massas lá fora", pelo menos na terra do campeão ou vice-campeão mundial da exportação, já não constitui qualquer fome imediata perante as portas do congresso do partido, mas ocorre "lá fora" muito mais longe, é possível concentrar-se confiantemente no desenvolvimento de medicamentos para a recuperação do doente. Com o tempo, o gemido do vizinho de quarto apenas pode enervar. E, como na Alemanha não é legalmente permitido desligar a ficha do ventilador, não vale a pena pensar em tal acto proibido.

 

Claro que – já que estamos em maré de citações – pode contrapor-se o seguinte, em sentido contrário:

 

"Os pacifistas e humanitaristas da luta de classes que, queiram ou não queiram, estão trabalhando para o prolongamento deste processo de crise, de qualquer maneira longo e doloroso, ficariam chocados se vissem os sofrimentos que impõem ao proletariado com o prolongamento desta lição ao vivo." Quer Tarnow tenha podido ou querido conhecer Lukács, quer não – agora não podemos ignorar o que já Lukács sabia em 1920.

 

Mas já não há realmente qualquer surpresa perante a abstinência da teoria, se os ingredientes mais importantes do medicamento repetidamente indicado são: Estado, Estado e mais Estado. É claro que um Estado democrático. Um Estado subordinado a uma "democracia real", melhor ainda, a uma "democracia absoluta". Poder-se-ia supor que tem grande saída a fé no Estado, isto é, a ideia de uma instância "em si" neutral, que apenas poderia agir "com correcção", para garantir o "funcionamento racional do sistema", sobretudo nos tempos em que a crise do sistema empresarial rompe a superfície polida. De facto, os sujeitos do valor "com sucesso" tendem a dar uma resposta negativa ao Estado, cuja função em última análise consiste em assegurar o quadro da autovalorização do valor e uma redistribuição de parte da mais-valia social total retirada através dos impostos, porque eles não compreendem a necessidade dos custos da contenção dos rejeitados pela máquina da valorização, custos esses que confundem com solidariedade indesejável. Mas logo que "os que tiveram sucesso" se tornam precários, ou desde que surja um indício disso no rebordo do prato da própria consciência, o "Estado", ou melhor, o "Estado social", que simplesmente era muito caro (para os encargos fiscais próprios), torna-se a última esperança. Este boom do Estado, no entanto, só na aparência é induzido pela crise.

 

Como salienta Robert Kurz nesta edição da EXIT!, na primeira parte das suas teses sobre uma teoria crítica do Estado NÃO HÁ LEVIATÃ QUE VOS SALVE, o Estado foi originariamente "instância fundadora" e simultaneamente garante tanto de uma totalidade social que conseguisse a valorização de todas as expressões humanas da vida como dos seus pressupostos naturais – todo o progresso da civilização, quando visto à luz da afirmação e interiorização das funções de violência e coerção do Estado, consiste na "razão" e nas "virtudes cívicas", bem como num "desarmamento" (quer dizer: refinamento e diversificação) assim tornado possível dos seus instrumentos de coacção. De Hobbes, passando por Rousseau até Kant e Hegel (nesta primeira parte), a compreensão do Estado vai avançando, desde a forma coerciva aberta sem disfarce, porque necessária ao lançamento do capitalismo, passando pela “vontade livre” dos sujeitos – obviamente burgueses – num "contrato social", até à afirmação de uma necessidade ontológica, que é chamada de liberdade, e à vinda a si do espírito do mundo, que encontrou a sua perfeição no Estado prussiano (onde o servidor do Estado Hegel estava perfeitamente em casa). E é bem en passant que aqui se elimina o carácter histórico do Estado, ou seja, a sua ligação categorial à socialização do valor, na mesma medida em que esta última se torna quase natural e recebe ordens ontológicas. A actualização crítica da síntese da história intelectual de uma "instância de mediação e controlo" na aparência socialmente neutra entrou na ordem do dia não apenas porque, em vez da crítica categorial aconselhável que inclua necessariamente uma crítica do Estado, para grande parte da esquerda o Estado deve salvar o sistema e, como parte do sistema que garante e do qual também "vive" – aqui a questão torna-se involuntariamente cómica – deve preparar o transcender deste. Expulsar o demónio com Belzebu, como diz o ditado. Mas não é só isso. A questão está também na ordem do dia porque "o Estado" é visto pela mesma esquerda como condição implícita duma sociedade "pós-capitalista". Aqui está obviamente o entendimento de que também apenas se pode imaginar um "pós-capitalismo" na base do trabalho abstracto – mas, se assim se tem de repor novamente o direito do valor (ou deixar ficar algo semelhante), juntamente com a compulsão ao trabalho a isso associada, que em lado nenhum se quer criticar, assim se apresenta a fundamentação de um Estado sem dúvida "absolutamente democrático". Uma perspectiva refinada, de que também se poderia simplesmente dizer que tresanda a reaccionária.

 

Libertos da crítica categorial radical, mas simultaneamente sob pressão das expectativas de produção própria de "instruções de uso" viáveis (para não falar outra vez de "medicamentos") que devem obter sucesso no "espaço político" – também reflectido de forma acrítica –, o Estado não é ele próprio visado como problema a questionar; em vez disso, estratégias de acção há muito falhadas passam por uma nova “fundamentação”, numa como que "teorização atrasada", fundamentação em que o Estado, devidamente reconhecido em sua independência relativa, mas hipostasiando precisamente esta, se torna o campo da disputa por uma "boa sociedade", ou por um "bom capitalismo"– como Robert Misik já anuncia nas Blätter für deutsche und internationale Politik [Folhas de política alemã e internacional]. Aqui todos os combatentes invocam Antonio Gramsci, mais ou menos comprovadamente e de forma ecléctica, o qual, com o conceito que lhe é atribuído de "sociedade civil" e com a tarefa de aumentar a "hegemonia política", fundou obviamente um campo de actividade ontológico para todos os círculos da esquerda (o que, para fazer justiça a Gramsci, desde logo por causa das suas "condições de trabalho" na prisão fascista, não deveria ter sido a sua intenção). Esclarecedor é o artigo EXTRAVIADOS COM GRAMSCI, de Elmar Flatschart, que submete a uma investigação histórico-crítica em particular o desenvolvimento de uma "filosofia da práxis" que o próprio Gramsci afirmou pretender. Esta abordagem parece a um espírito crítico a abordagem devida e, portanto, evidente. Mas não é. Assim, Elmar Flatschart consegue avaliar Gramsci no seu desempenho histórico e simultaneamente criticar a sua limitação histórica, enquanto em discursos teóricos da esquerda, de forma realmente degradante, Gramsci é transformado em Che Guevara para intelectuais, com algumas citações panfletárias. Que as invocações de Gramsci agradem a autoproclamados teóricos do Estado como Poulantzas, e também a pós-operaistas como Negri e Hardt, para o deshistoricizar, escondendo o seu campo de referência decididamente nacional nos tempos presentes da globalização capitalista, tal facto permite a bela ilusão de que termos como "hegemonia política" não estariam ligados a condições sociais concretas nem a desenvolvimentos de crise históricos. O "político" torna-se assim o espaço ontológico de qualquer engajamento crítico – e é perfeitamente indiferente aos utilizadores de Gramsci saber se, mesmo nos tempos do fordismo, Gramsci achava que poderia localizar a hegemonia numa sociedade de classes definidas a nível nacional (o já citado Lukács, no entanto, já em 1920 sabia dos "escalões sociais" e das "camadas" no seio do proletariado, que naturalmente teriam de dificultar uma hegemonia política ou até cultural). Para os epígonos o importante é apenas que "sociedade civil" e "hegemonia" são inscrições descobertas para a meta, que devem flutuar ao vento no final de cada maratona, mesmo que o objectivo continue na névoa.

 

Já está quase esquecido o recente grito de vitória da "derrota do neoliberalismo”. A fanfarra soprada especialmente pela ATTAC, ao som do hino de vitória que não passa afinal duma estética do peido necessariamente subsequente ao estouro da bolha, esconde que a ATTAC não tem nada mais a dizer. Em face de um neoliberalismo com meios keynesianos – ou, dependendo da leitura, de um keynesianismo com vestes ordoliberais – também no caso da ATTAC é preciso decidir se ainda há uma tentativa de se aventurar outra vez na crítica social radical, ou se pretende entreter-se a embrulhar os diversos movimentos monotemáticos. Claro que, subjacente à luta da ATTAC contra o neoliberalismo, já estava no fundo a confusão entre a luta contra uma expressão particular da gestão da crise e a luta contra o próprio sistema não reconhecido. A primeira hipótese torna-se picante até ao paradoxo no ponto em que, mais uma vez – sejam bem-vindos, ainda não nos vimos hoje! – o Estado é escolhido novamente como salvador de emergência também pela ATTAC. Picante e paradoxal, porquanto, contra todas as declarações precisamente do neoliberalismo e dos seus novos consortes, se partia e se parte sempre e consequentemente do princípio da existência de um Estado absolutamente eficaz – pelo menos quando se trata da obrigação do trabalho. E sem trabalho abstracto a coisa deixa de funcionar. Tal como sem Estado. Quod erat demonstrandum.

 

Em seu texto UMA QUESTÃO INTERNA JustIn Monday contradiz a suposição generalizada de que o neoliberalismo seria propaganda a favor de uma esfera económica o mais possível livre do Estado, sem considerações político-sociais. Em vez disso, as suas fantasias de solução da crise fixadas no Estado, que durante a crise financeira ocuparam abruptamente o centro do debate, servem de pretexto para provar que o Estado moderno, mesmo para os apologistas do capitalismo que a si próprios se designam como liberais, constitui bem mais do que o mero monopólio da violência para manter as formas de relacionamento. No decurso do século XX, o Estado também se tornou uma questão interna tanto dos sujeitos como das próprias formas económicas fetichistas. Na história de neoliberalismo e do ordoliberalismo, esta factualidade foi em parte abertamente propagandeada – o que a crítica de esquerda do neoliberalismo ignora amplamente – e em parte surge como retorno dos pressupostos recalcados da ordem social idealizada naquelas mesmas formas – o que a crítica nem sequer percebe.

 

Na verdade, já deveria bastar quanto ao tema Estado. Mas na Alemanha ainda há – ou melhor, havia – como que uma encarnação material particular do conceito de Estado e das ideias que os "cidadãos comuns" alemães lhe associam: fiabilidade e pontualidade. A este respeito, a empresa pública "Caminhos de Ferro Alemães" era não apenas parte da infra-estrutura necessária, que assegurava a mobilidade e a disponibilidade pontual do capital constante e principalmente do capital variável, mas também uma espécie de instituição moral da ética protestante do trabalho, sem a qual não haveria capitalismo moderno. "Podes acertar o relógio pelo combóio", foi – há muito tempo – não apenas um facto, mas também uma constatação: Então também podes chegar pontualmente ao teu local de trabalho! Quem agora reclama porque a nova ferrovia quase privatizada de vez já não faz jus a esta pretensão ignora que, na renúncia anunciada embora ainda não concluída a essa função de infra-estrutura pública, se pode situar uma manifestação específica da forma de Estado que é invocada, mas de facto caiu em crise – manifestação impulsionada pela contradição entre o aumento da quota do Estado e o declínio da produção de valor. A pontualidade já só é exigida aos gestores e às vidas flexíveis que têm de se deslocar de TGV dum ponto de valorização para outro – o "resto" da sociedade, ou está estacionário, integrado na máquina da valorização, ou excluído e, tanto num caso como no outro, também já não precisa de viajar.

 

O artigo FERROVIAS E ESTADO de Roland Grimm traça o desenvolvimento das ferrovias na Alemanha, desde a nacionalização no império até à privatização agora pretendida. Depois de se ter simplesmente demonstrado que uma empresa privada capitalista não era viável, a ferrovia foi transformada num monopólio capitalista de Estado. Como tal, por um lado, era obrigada a ser rentável, por outro lado, porém, como parte da infra-estrutura pública, tinha de satisfazer tarefas que não podiam ser rentáveis. Assim, foram sobretudo objectivos de estratégia militar que levaram à nacionalização das ferrovias no império alemão. De início, a via-férrea era o meio de locomoção industrial sem concorrência; mas, a partir da crise económica mundial, em meados do século XX o Estado promoveu sistematicamente a circulação automóvel. Apesar de todos os problemas sociais e danos ecológicos, esta orientação tem sido mantida sem hesitações, como mostram os recentes programas de estímulo económico.

 

Não se fala de Sarrazin, Sarkozy e Sloterdijk neste editorial? Nem mesmo dos 5 euros de aumento para os beneficiários do Hartz IV? Tenho de fazer mais uma citação sobre este último: "No auge da euforia em torno Sarrazin, o governo federal – com a complacência dos seus críticos – cortou a este grupo de pessoas (em que os migrantes, de facto, ainda são uma minoria) os subsídios às crianças e adolescentes (“Elterngeld”), o pagamento do sistema de pensões, o subsídio de aquecimento e a subvenção na passagem do subsídio de desemprego (“ALG I”) para o subsídio social de desemprego (“ALG II”). No essencial concorda-se com Sarrazin. O espectáculo serviu, além do mais, de distracção”. Isto, de facto, é de George Fülberth, e também figurava na última edição da revista KONKRET, mas eu não poderia (nem quereria) contradizê-lo, pois a hipocrisia dos administradores públicos da crise é metódica. No entanto, a causa Sarrazin tem outros aspectos muito mais preocupantes. A rápida ascensão dos desabafos de Sarrazin a best-seller e o suspiro de alívio na rodada da mesa da cervejaria e entre os seus instigadores nos média, no sentido de agora disporem finalmente de um quebrador de tabus, torna muito claro como, na decadência crítica da forma do valor, a fina casca de civilização da "sociedade civil" se esfola e os sujeitos da concorrência estão prontos a abater-se sobre os mais fracos à sua volta; agora apoiados e iluminados bem descaradamente pela política, que já consegue disponibilizar sem cerimónias para as suas orgias de corte social a xenofobia, como contexto de justificação social enobrecido por Sarrazin.

 

Não admira a rapidez com que as elites políticas agora também dão à sua administração de crise uma base ideológica alargada – só na aparência eles vão apenas na esteira da alma do povo enfurecido. O discurso sobre a repartição dos encargos sociais da crise do sistema tem precursores destacados nos suplementos culturais da grande imprensa burguesa e nos quartetos filosóficos apoiantes do Estado. No chamado debate Sloterdijk torna-se claro que os conservadores voltam a ter a auto-imagem mais realista do que qualquer jovem romântico do Estado social. Sloterdijk oferece apenas o vocabulário pós-moderno para o darwinismo social imanente ao sistema. Udo Winkel analisou este debate com mais detalhe e comenta-o no seu texto A ALMA DA SITUAÇÃO DESALMADA.

 

Cada um pode ler no suplemento local do seu jornal como a crise supostamente superada agora surge irreconhecível noutras figuras, nomeadamente encerramento de teatros, museus, casas da juventude, piscinas etc. etc. No texto COM A ÉTICA CONTRA A CRISE de Hanns-Friedrich von Bosse pode ler-se como funciona em tal situação a indignação eticamente fundamentada e qual o núcleo anti-emancipatório que se esconde na moralização dos fenómenos objectivos da crise.

 

Guardei para o fim a referência ao texto de Roswitha Scholz NÃO DIGO NADA SEM A MINHA ALLTOURS, uma réplica a críticas à teoria da dissociação e do valor. Não porque eu veja o teorema da dissociação como tema a tratar posteriormente de uma maneira ou de outra. Mas por outros motivos: Primeiro, Roswitha Scholz, na discussão com os seus críticos, apresenta um resumo conciso e apesar disso muito compreensível da dissociação-valor. Para quem isso pareça óbvio, verifique a sua própria abordagem teórica a uma integração original e não posteriormente implementada da constituição sexual da modernidade produtora de mercadorias. De resto, eu seria aqui mais apodíctico do que Roswitha Scholz: Apenas na medida em que se deixar W=c+v+m na sua abstracção – neste plano inevitável – se pode daí derivar um conceito de valor sexualmente neutro [W=c+v+m: mantêm-se as abreviaturas em alemão da fórmula de Marx em O Capital, sendo W=valor de uma mercadoria; c=capital constante e v=capital variável despendidos na sua produção; m=mais-valia obtida – Nt. trad.]. Assim que se questionar v para saber a sua natureza – nomeadamente que é expressão do valor dos custos de reprodução da força de trabalho – acaba a neutralidade sexual de W. Pois a grandeza de v apenas em primeira linha se constitui de acordo com os custos da reprodução da força de trabalho quantificáveis e portanto susceptíveis de serem expressos em dinheiro. Mas, nos momentos histórica e culturalmente condicionados, já destacados por Marx, que determinam a grandeza de v, todos os momentos da forma sempre historicamente condicionados já estão ligados à dissociação. Portanto, não há nada que – por amor da abstracção – alguma vez se possa “pôr de lado”, para inserir só depois na construção global do pensamento – a definição sexual também aqui já está metida no conceito.

 

Muito mais importante para mim no texto de Roswitha Scholz, no entanto, é sua abordagem da teoria do conhecimento, que a crítica da dissociação e do valor pretende saber localizada entre a auto-afirmação e a revogação auto-crítica e que nos exige a partir daí um “pensamento em constelação” – apoiado em Adorno – o qual não pode ter nada em comum com um entendimento positivista e androcêntrico da teoria. Enquanto neste ponto TEMOS sobretudo algo a aprender, resta esperar que não deixe de ser ouvido o apelo de Roswitha Scholz a outras ciências críticas para se envolverem numa constelação de análise social crítica radical.

 

E sobre o "fim da crise? As próprias estatísticas desmentem o jubileu de mentiras. Os grandes êxitos consistem em que – à força – os níveis de produção de 2007 voltaram a ser atingidos. Quem, obviamente, vive apenas de "crescimento", pode não ter de se preocupar com a substância real de valor até ao próximo crash. Já antes – por falta de ideias – isso não foi feito. Assim balança esta sociedade para a próxima queda que, desta vez – e isso será consequente – deverá estabelecer-se no plano estatal. Entretanto – e com isto volto ao início – as elites permitiram-se, com champanhe e caviar, perdão, com salsichas das Turíngia e espumoso (é o que se pode arranjar em Berlim) proporcionar uma festa de regresso ao império [“Heim-ins-Reich”: referência à palavra de ordem nazi de reintegração na Alemanha das regiões habitadas por descendentes de alemães – Nt. trad.]. Mas esta é uma história incontornável e mais longa para a EXIT! nº 8.

 

A presente edição encerra com dois comentários de Udo Winkel: KURT LENK NO 80º ANIVERSÁRIO e CRISE E TEOLOGIA DO CAPITAL.

 

Jörg Ulrich, membro da redacção e autor de nossa revista durante vários anos e com muitos textos na homepage da EXIT!, faleceu na primavera deste ano. A revista abre com uma breve homenagem a Jörg Ulrich e a reedição do seu texto SALVAÇÃO FALHADA

 

A nova edição do livro de Roswitha Scholz: O Sexo do Capitalismo. Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado está em preparação e sairá em breve na editora Horlemann.

 

 

Uwe Stelbrink pela redacção da EXIT!

Outubro 2010

 

Original EXIT! Krise und Kritik der Warengesellschaft Heft 7, Dezember 2010 in www.exit-online.org

http://obeco-online.org/

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