Gerd Bedszent

 

UCRÂNIA – A DUALIDADE DE NACIONALISMO E DESMORONAMENTO DO ESTADO

 

 

Texto concluído em Setembro 2014, que aborda a génese histórica da guerra civil desencadeada e assim possibilita uma interpretação mais adequada do chamado "conflito Rússia-Ucrânia" do que a usada no confronto entre os média ocidentais, por um lado, e partes da esquerda, por outro. (Apresentação na Revista EXIT! nº 12)

 

 

 

Durante os últimos meses atropelaram-se literalmente as notícias sobre os acontecimentos na Europa de Leste. O que no Outono de 2013 ainda começara na Ucrânia como pancadaria perfeitamente habitual entre diversas facções da camada superior mais ou menos criminosa desenvolveu-se em pouco tempo como uma pesada guerra de desmantelamento do Estado.

 

Tal desenvolvimento não constitui nada de novo – nem sequer na Europa. Já há mais de vinte anos que o desmoronamento económico da Jugoslávia desembocou em toda uma série de guerras de partilha entre os bandos nacionalistas ou abertamente criminosos que dominavam cada uma das regiões. A intervenção militar ocidental na Bósnia e no Kosovo acabou por instalar nestes territórios pseudo-estatais uma administração da pobreza repressiva – com um único ramo económico em expansão: a economia do crime.

 

Um cenário semelhante se apresenta actualmente na Ucrânia. Também aqui, com a cobertura de um projecto de modernização atrasada, foram comprimidas as várias partes muito diferentes do país na República Socialista Soviética da Ucrânia (1922-1991). E, também como no caso da Jugoslávia, os actores de um “regime de modernização protocapitalista” (Robert Kurz) não conseguiram resolver as desproporções em termos de economia nacional entre cada uma das partes do país. Neste caso ainda com a particularidade de o Estado ucraniano proclamado independente em 1991 ter sido já o produto do desmoronamento estatal da União Soviética.

 

Nas regiões fronteiriças do Leste da Ucrânia mantêm-se ainda desde o crash económico do início dos anos noventa restos da antiga indústria pesada soviética, que tiram proveito sobretudo da proximidade da Rússia. A Ucrânia continua a ser um dos principais fornecedores da indústria de armamento e da indústria espacial russas. Nas regiões fronteiriças ocidentais, que em geral só integraram  Ucrânia entre 1939 e 1945,  o projecto de modernização atrasada nunca passou dos começos. Estas regiões eram muito mais fortemente marcadas pela economia agrária e recaíram num rápido processo de empobrecimento com a dissolução das cooperativas agrícolas pós-soviéticas. A produção agrícola ucraniana parece de facto recuperar nos últimos anos, após o crash dos anos noventa – mas apenas nas condições de uma violenta racionalização empresarial capitalista e com a supressão maciça de força de trabalho que lhe está associada.

 

Do continuado declínio económico do campo e das furiosas lutas pela partilha nas cidades, entre a nomenclatura pós-soviética enriquecida e o sub-mundo do crime de facto legalizado a partir de 1991, resultou o desmoronamento crescente das instituições estatais e a simultânea ascensão das milícias da direita radical. Estas últimas assumem-se conscientemente na tradição dos grupos armados que entre 1918 e 1922 supostamente tentaram instalar um Estado independente tanto no Leste como no Oeste da Ucrânia e que na II Guerra Mundial, contra vagas promessas de independência futura, fizeram para o ocupante alemão serviços sujos nos assassínios em massa de motivação anti-semita.

 

A histeria que há meses atravessa os média sobre o reacendimento da guerra fria carece naturalmente de qualquer fundamento. O conflito entre a Rússia e as potências Ocidentais não tem qualquer base ideológica, não passando de uma guerra económica neo-imperialista perfeitamente normal. O antigo oficial do KGB Vladimir Putin não constitui um ressurgimento de Lenine ou de Estaline, é apenas um típico representante dos interesses da antiga camada de funcionários enriquecida na sequência do crash político da União Soviética e das consequentes orgias de privatização. O facto de Putin, contra a resistência de partes da camada oligárquica pós-soviética, ter conseguido suspender provisoriamente o desmoronamento estatal da Rússia, tornado óbvio no fim dos anos noventa, e estabilizar o Estado, naturalmente num baixo nível, atesta realmente as suas qualidades políticas. Mas a longo prazo estas não servem de muito. Pois o novo modelo económico da Rússia não se baseia num programa de modernização autónomo, mas em primeiro lugar na exportação de matérias primas para o centros de produção  capitalista de mercadorias que ainda funcionam. Putin financia o orçamento de Estado em parte considerável com os lucros recebidos do conglomerado Gazprom maioritariamente detido pelo Estado. A Rússia é actualmente o maior exportador mundial de gás natural e o segundo maior exportador de petróleo; o preço de exportação do petróleo e do gás russos é várias vezes superior ao preço interno cobrado no próprio país. A Gazprom funciona assim como motor de um milagre económico temporário; a Rússia é de facto um conglomerado petrolífero com um Estado anexo.

 

Embora a queda galopante na pobreza da maioria da população russa tenha sido provisoriamente travada com a chegada ao poder de Putin e com a sua política de preços altos para a exportação de matérias primas, as disparidades sociais agravam-se cada vez mais. Actualmente só em Moscovo haverá mais multimilionários do que em toda a Alemanha. Uma idealização do regime de Putin como a que é feita actualmente por  partes da esquerda residual é por isso mais que questionável.

 

Enquanto os países ocidentais se podem perfeitamente defender dos preços altos impostos pela Rússia, os Estados vizinhos empobrecidos da Europa Oriental e da Ásia Central estão mais ou menos à sua mercê. Um exemplo disso é a Ucrânia, cujos restos da economia estão altamente dependentes do gás natural russo.    Se nos anos de 1990 os oligarcas ucranianos ainda faziam grandes fortunas como intermediários na negociação do gás russo barato, dez anos depois o Estado ucraniano foi obrigado a subvencionar o gás usado como combustível pela população, particularmente no Inverno.

 

A instabilidade política e a frequente mudança de governo nos últimos anos na Ucrânia têm a sua causa em última instância nas lutas pelo poder dos diferentes grupos de oligarcas. Uns ter-se-iam esforçado para fazer frente à imposição de preços da Rússia através da aproximação económica e política à UE, aceitando assim a entrega indefesa do resto da indústria ucraniana à superior concorrência ocidental. Outros cingem-se a aceitar como um mal menor o prosseguimento dos contactos económicos com a Rússia que vêm já dos tempos soviéticos. Dado que se trata de uma escolha entre a peste e a cólera nenhum destes agrupamentos conseguiu impor-se sustentavelmente. A população empobreceu cada vez mais, o endividamento do Estado aproximou-se ameaçadoramente da insolvência, as diferentes partes do país afastaram-se ainda mais e a direita radical fortaleceu-se, sobretudo na Ucrânia ocidental.

 

O Ocidente prossegue face à Ucrânia interesses perfeitamente diferentes. Para os EUA em decadência a Ucrânia foi e é uma simples peça de xadrez na sua guerra económica com a  indústria petrolífera russa concorrente. A União Europeia, pelo contrário, está interessada em ficar com a Ucrânia como fornecedora de produtos agrícolas baratos. Esconde-se aqui sistematicamente que isto só pode acelerar o colapso económico da Ucrânia e o processo de desmoronamento da União Europeia que já não pode ser ignorado, como mostram as experiências com outros Estados da Europa de Leste. As negociações do regime de Janukowitsch para a conclusão de um acordo de associação com a UE acabaram por fracassar no fim de 2013, pois o governo ucraniano de facto insolvente já não estava em posição de suportar os custos da imposição do acordo e a burocracia da UE não tinha vontade de o fazer. A chamada oposição democrática suportada financeiramente pelo Ocidente ficou portanto a ver navios, aliou-se com a extrema direita e exigiu a mudança de regime. Com isto estavam pré-programados a guerra civil e o desmoronamento do Estado.

 

A histeria mediática perante a anexação do Crimeia pela Rússia e consequente guerra civil nas regiões fronteiriças orientais só pode ser explicada pela incapacidade de perceber o desmoronamento da Ucrânia como tal em geral. Em todo o caso não passa de puro disparate a “reunificação da terra russa” mediaticamente apoiada pela administração Putin. A anexação de toda a Ucrânia supostamente visada significaria para a Rússia em primeiro lugar um encargo financeiro, que o país de modo nenhum pode suportar sem arriscar o seu próprio colapso. A ocupação da península do Mar Negro terá sido antes a consequência de considerações práticas: a Rússia usa o fundo do Mar Negro para o transporte de gás natural para a Europa do sul e o Próximo Oriente por pipeline e aproveitou sem rodeios a ausência de um governo ucraniano funcional para ficar com a Crimeia como importante ponto estratégico de apoio à frota que garante a segurança a esta linha. Além disso será de supor que a Rússia quis aproveitar a oportunidade para se assegurar das jazidas de gás natural que se pensa existirem na costa da Crimeia.

 

O estado em que entretanto se encontram as instituições da Ucrânia pode ser bem avaliado pelo facto de as forças de segurança ucranianas estacionadas na Crimeia não terem efectivamente oposto quase nenhuma resistência à anexação da península do Mar Negro e de a Rússia também ter podido apropriar-se sem luta de quase toda a marinha de guerra  ucraniana. Grande parte dos soldados ucranianos mudaram-se de imediato para as forças armadas russas, satisfeitos por agora finalmente poderem voltar a contar com o pagamento regular do salário. A maioria da população da Crimeia desesperadamente empobrecida – seja qual for a sua origem étnica – saudou alegremente o invasor, esperando uma rápida melhoria da sua situação. O júbilo entretanto deu lugar à desilusão. O que era de prever – afinal os habitantes da península trocaram apenas um regime oligárquico falido por outro menos falido.

 

O facto de, finalmente, também em duas regiões fronteiriças orientais activistas pró-russos terem tomado o poder, proclamando primeiro a independência estatal como “república popular” e depois a anexação à Rússia, foi um empreendimento tão disparatado como previsível. A Rússia não empreendeu até agora quaisquer esforços sérios para incorporar as partes desleais do país vizinho, mas exigiu uma “regionalização” da Ucrânia – ou seja, na realidade uma divisão da Ucrânia em esferas de interesses económicos. O que o Ocidente, no entanto, não quis aceitar até agora.

 

Verificou-se logo no início da guerra civil que a Ucrânia já não dispõe de exército nem de polícia operacionais. Um oficial ucraniano não identificado, por exemplo, explicou a um jornal alemão que terá desaparecido um regimento de tanques com equipamento moderno, porque alguém terá vendido secretamente os carros de combate a um regime árabe. Unidades de polícia recusaram aceitar ordens para entrar em acção contra os rebeldes; tropas enviadas apressadamente para a região deixaram-se desarmar por camponeses em protesto. Em diversas cidades do leste da Ucrânia exercem por vezes o poder, em vez da autoridade do Estado que já não funciona, empresas de segurança privadas em missão ao serviço de oligarcas ucranianos. Outros oligarcas financiaram “unidades de voluntários” da direita radical, criando assim um pequeno exército privado próprio.

 

O governo acabou por declarar sem mais diversas milícias da direita radical como “Guarda Nacional” e enviá-las para as regiões sublevadas. Isto obviamente também com segundas intenções, para manter longe das imediações da capital e sede do governo o núcleo activo dos nacionalistas que agem de modo cada vez mais irracional. E, uma vez que o aparelho de Estado em colapso já não estava em condições, os bandos de mercenários assassinos e predadores foram essencialmente armados e pagos por oligarcas próximos do governo. A consequência, previsível, foi estas unidades de Guarda Nacional passarem a agir cada vez mais fora do controle do regime. Perante a ganância de enriquecimento dos oligarcas actualmente dominantes em Kiev, que de modo nenhum foi travada pela guerra civil – uma grande parte da ajuda militar ocidental nunca chegou à frente, mas aterrou directamente no mercado negro – os radicais de direita armados já ameaçaram marchar sobre Kiev e instalar um governo militar.

 

Provou-se que diversos batalhões da Guarda Nacional e outras unidades de voluntários marcham descaradamente com a cruz suástica e outros símbolos fascistas e que se gabaram perante jornalistas ocidentais que o seu verdadeiro objectivo é a conquista de Moscovo. O que, perante a real relação de forças militar, só pode ser explicado como megalomania grave.

 

Sobre a situação nas duas “repúblicas populares” do leste da Ucrânia há poucas informações seguras. Certo é que a rebelião em Kiev, com pogroms sangrentos contra partidários do deposto presidente Janukowitsch  bem como contra comunistas e outros membros de organizações de esquerda, foi apoiada – na cidade costeira de Odessa, por exemplo, uma populaça da direita radical, com a conivência da polícia, incendiou um edifício sindical e massacrou os que fugiam das chamas. Com múltiplas ameaças à vida e integridade física, as pessoas fugiram para as regiões fronteiriças orientais, onde estavam em relativa segurança até à eclosão da guerra civil aberta.

 

A liderança política das duas “repúblicas populares” – se assim se pode dizer – é consequentemente um tosco conglomerado de nostálgicos dos sovietes, radicais de direita russos e funcionários administrativos agindo pragmaticamente. Na constituição da “República Popular de Donetz”, por exemplo, prescreve-se tanto a manutenção dos regulamentos do Estado-providência como a pertença à Igreja Ortodoxa.

 

O coronel-general ucraniano Wladimir Ruban, certamente insuspeito de simpatias pró-russas, declarou por exemplo em 20 de Agosto, numa entrevista ao Ukrainskaja Prawda, que os dois lados quase não se distinguem ideologicamente entre si – um dos raros casos em que um interveniente militar mantém um entendimento claro, perante o desencadear maciço da paranoia nacionalista.

 

Ora, é preciso em primeiro lugar opor-se à idealização das milícias que apoiam ambas a “repúblicas populares” leste-ucranianas promovida por grande parte da esquerda residual. Por exemplo, unidades de cossacos combatendo do lado dos insurgentes adquiriram uma miserável reputação antes da eclosão da guerra civil, com pogroms contra minorias não eslavas. Se nos batalhões da guarda nacional combateram desde o início radicais de direita suecos e italianos em nome da Ucrânia, as milícias dos insurgentes receberam rápida afluência de radicais de direita russos e franceses.

 

A guerra civil no leste da Ucrânia não constitui – como gosta de afirmar sobretudo a imprensa russa – uma reedição da Guerra Civil de Espanha de 1936-1938 ou da guerra defensiva anti-fascista de 1941-1945, mas sim uma guerra de desmantelamento do Estado, que se exprime em lutas pela partilha entre grupos étnicos tornados inimigos. Saqueia-se e assassina-se de ambos os lados. A ordem estatal apenas rudimentar no território de ambas as “repúblicas populares” constituiu a base ideal para toda uma onda de economia de roubo: saque, extorsão, sequestro e assassínio.

 

O brutal procedimento da guarda nacional e dos restos do exército nacional que a apoiavam levou de início  a uma limpeza étnica da população de língua russa no leste da Ucrânia. Às cidades controladas pelos insurgentes foi cortado com tiros certeiros o abastecimento de energia e de água potável pelas tropas do governo que as cercavam, que depois as enfraqueceram com fogo de artilharia pesada. Nas regiões recuperadas pelos militares de Kiev quase não havia moradores. Centenas de milhares de ucranianos fugiram para o país vizinho – nas regiões fronteiriças russas teve de ser declarado o estado de emergência. Após o colapso da empresa ferroviária houve colunas de refugiados em fuga para o leste, mesmo bombardeados pela força aérea ucraniana.

 

A guerra civil no país vizinho atingiu directamente interesses russos pelo menos desde Agosto de 2014. É verdade que, felizmente, não se encontra nenhum dos 17 reactores nucleares ucranianos (não contando com os quatro destroços parados em Chernobyl) nas regiões em disputa. A gerência da grande empresa química ucraniana Styrol, no entanto, enviou então um desesperado pedido de ajuda à liderança militar de Kiev, para parar imediatamente o bombardeamento do parque da empresa – uma explosão das suas instalações ameaçaria uma catástrofe ambiental em todo o país. Este incidente levou possivelmente o governo russo a apoiar agora realmente as actividades de ambas as “repúblicas populares”, inicialmente apenas toleradas. Com a consequente modificação rápida da relação de forças. As tropas de Kiev sofreram toda uma série de pesadas derrotas – vários batalhões da guarda nacional foram cercados e aniquilados. No exército regular constituído em grande parte por via do serviço militar obrigatório aumentaram os sinais de desintegração. Unidades inteiras desertaram da frente ou fugiram para a zona russa e pediram asilo político. As tropas em recuo não poucas vezes foram bombardeadas por unidades de voluntários da direita radical e obrigadas a inverter a marcha.

 

As tentativas de vencer a crise limitaram-se da parte do governo de Kiev a gritos de socorro cada vez mais desesperados em direcção à Europa Ocidental. Que o Ocidente não quer e também não está em posição de segurar os restos em colapso do projecto de modernização da Europa de leste é coisa que obviamente não entra na cabeça dos oligarcas ucranianos. Só assim se pode explicar a reacção completamente irracional do ex-banqueiro e actual primeiro-ministro Jazenjuk: quando a derrota militar já era óbvia e se apertava o cerco das milícias russas em torno do resto das tropas governamentais detidas na cidade de Mariupol, este anunciou que a Ucrânia se separaria do país vizinho oriental por meio da construção de um “muro”. Uma notícia que foi recebida nas redacções noticiosas ocidentais com um abanar da cabeça, mas depois foi pouco divulgada. Os factos incontestáveis de que as referidas regiões fronteiriças já não estão sob controle do governo e que além disso o Estado em bancarrota efectiva nunca conseguiria e jamais com os próprios meios angariar os recursos financeiros para a construção de uma fortificação de mais de 2.000 quilómetros, tais factos não foram comentados. E muito menos o facto de que o isolamento económico da Rússia seria o fim para as regiões fronteiriças já agora amplamente arruinadas.

 

Não se sabe quantas vidas humanas custou até agora a guerra civil no leste da Ucrânia. O último número conhecido de 2.000 mortos deve ser considerado seguramente muito baixo. Aqui não será preciso acentuar que com o actual calar das armas, em todo o caso muito interrompido, entre o resto das tropas de Kiev e as milícias das duas “repúblicas populares” não consegue modificar no mínimo o desastre da Ucrânia. Os estragos maciços, justamente no leste ainda de algum modo economicamente estável, deverão acelerar uma maior desindustrialização do país já empobrecido. Dificilmente se pode imaginar que os oligarcas ucranianos estejam inclinados para pôr de novo em movimento as instalações produtivas destruídas com o dinheiro que roubaram. E muito menos que alguma empresa ocidental efectue investimentos significativos numa região instável e dilacerada pela guerra civil.

 

Uma ironia da história é que os Estados e instituições ocidentais durante a guerra civil se prestaram a apoiar o regime de Poroschenko por eles instalado com créditos de milhares de milhões – os mesmos créditos que antes tinham recusado ao regime de Janukowitsch. Mas estes dinheiros dificilmente poderão contribuir para uma estabilização sustentável da Ucrânia; eles devem ser transferidos imediatamente para o serviço da dívida ou para os buracos do orçamento abertos com a guerra civil. O que o Ocidente afinal promove no que respeita à Ucrânia é o saque dos restos do projecto de modernização falhado. A promoção da infraestrutura necessária para este saque organizado pode ainda integrar temporariamente uma minoria das pessoas aí residentes, mas nunca a maioria da população. Por isso é apenas uma questão de tempo até um novo colapso da Ucrânia.

 

O governo de Kiev só conseguiu manter-se até agora as regiões por ele controladas graças a uma furiosa política de cortes sociais, reduções de salários, supressão de postos de trabalho nos serviços públicos e pilhagem fiscal da própria população em geral. A resistência contra isso terá de se mover em estreitos limites, já que à sombra da guerra civil muitas modificações legislativas foram despachadas expeditamente: a Ucrânia tem actualmente uma das legislações mais repressivas da Europa; a polícia, por exemplo, pode prender arbitrariamente qualquer pessoa suspeita até trinta dias sem decisão judicial.

 

Além disso, a queda do regime de Janukowitsch desencadeou toda uma onda de lutas de distribuição criminosas. Sob a pressão de bandos armados, que na maioria das cidades exercem de facto o poder na sequência da dissolução progressiva da polícia, funcionários da justiça formalmente agindo ainda em nome do Estado de direito legitimam actos de puro roubo. Muitos oligarcas, que na distribuição dos lugares de governo obtiveram demasiado pouco, conseguiram, apoiados nas milícias por eles financiadas, construir um aparelho de poder em regiões afastadas e agem cada vez mais fora do controle do governo central.

 

O fornecimento de gás natural da Rússia ao vizinho ocidental foi interrompido porque o governo ucraniano se recusou até agora a pagar as quantias exigidas de milhares de milhões de dívidas antigas. Os distribuidores de energia ocidentais, que rapidamente procuraram substitutos, continuam em pré-pagamento, dada a situação económica do seu parceiro comercial. A população ucraniana deverá agora enfrentar um Inverno muito frio.

 

É preocupante a retórica belicista desabrida dos média ocidentais nos últimos meses e não só. Estes durante muito tempo negaram insistentemente a existência de bandos nacionalistas armados e abertamente anti-semitas na Ucrânia, classificando essa informação como mentiras da propaganda russa, ou então tentaram apresentá-los como um mal necessário. O colapso económico, que alastra também nos centros capitalistas, produz obviamente o renascimento do pensamento de direita radical, indo até à aceitação do anti-semitismo aberto.

 

Ora, como irá evoluir o Estado europeu oriental que se está a desfazer? Definitivamente que uma reedição da ditadura fascista clássica, receada por uma parte da esquerda marxista tradicional, não poderá ocorrer. A “formação coerciva fordista do nacional-socialismo” (Robert Kurz), como via especial de modernização atrasada, está ligada a uma época histórica que pertence definitivamente ao passado. Por outro lado, a evidência com que o mercado está a ser declarado o único deus salvador e simultaneamente os “seres humanos já não vendáveis” (Robert Kurz) estão a ser entregues ao desespero de uma administração da pobreza duradoura constitui o terreno de cultivo apropriado em que florescem e prosperam o racismo e o nacionalismo. O que se vai esgotando actualmente na Ucrânia é, portanto, um “nacionalismo do desespero social” (Robert Kurz). Um nacionalismo de desespero que age pouco menos barbaramente do que o seu modelo histórico. A “autarquia económica” da Ucrânia, promovida pelas associações fascistas armadas, aponta afinal para a instalação de uma administração da pobreza particularmente repressiva, associada a uma economia de pilhagem etnicamente motivada, que já é uma realidade em muitas partes do planeta. É provável que os confrontos armados no leste da Ucrânia, vistos num prazo alargado, se revelem apenas como o prelúdio de toda uma série de guerras civis, e acabem por desembocar na completa destruição das estruturas estatais e na queda na barbárie de outras partes da Europa de leste.

 

A ruína da Ucrânia é uma horrível advertência, um olhar sobre um futuro que a curto ou longo prazo se aproxima também dos Estados europeus actualmente ainda em funcionamento.

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

Robert Kurz: Dir Krise, die aus dem Ostem kam [A crise que veio do leste] in: Helmut Thielen (Hg.) Der grieg der Köpfe. Vom Golfkrieg zur neuen Weltordnung [A guerra das cabeças. Da guerra do golfo à nova ordem mundial], Horlemann, 1991

 

Robert Kurz: Die Demokratie frisst ihre Kinder [A democracia devora os seus filhos] in: Gruppe Krisis (Hg.) Rosemaries Babies. Die Demokratie und ihre Rechtsradikalen [Rosemaries babies. A democracia e os seus radicais de direita], Horlemann, 1993

 

Robert Kurz: Weltordnungskrieg. Das Ende der Souveränität und die Wandlungen des Imperialismus im Zeitalter der Globalisierung, Horlemann, 2003. Tradução portuguesa parcial: A Guerra de Ordenamento Mundial. O Fim da Soberania e as Metamorfoses do Imperialismo na Era da Globalização http://obeco-online.org/livro_guerra_ordenamento.htm

 

 

 

http://obeco-online.org/

 

http://www.exit-online.org/