Gerd Bedszent

 

A OLIGARQUIA COMO MANIFESTAÇÃO DA EROSÃO DO PODER DE ESTADO

 

 

O termo "oligarquia", herdado da Antiguidade grega, mais não significava realmente do que "poder da minoria", e é geralmente usado no sentido de "domínio dos ricos". O que leva frequentemente os marxistas tradicionais à conclusão apressada de que os Estados capitalistas são todos oligarquias.

É claro que um Estado capitalista moderno só com muita reserva pode ser comparado às formações de poder da Antiguidade. Assim, o termo sofreu uma mudança de significado no nosso tempo. Como oligarcas são actualmente designados os magnatas da economia, que podem estabelecer e impor as suas próprias regras, devido à posição económica proeminente num território limitado, na ausência de um poder estatal em funcionamento. Isso foi possível nas fases iniciais do desenvolvimento do Estado burguês e é-o ainda mais agora, na fase de desmoronamento do poder estatal moderno.

Durante a transição do capitalismo inicial da Europa Ocidental, de cunho estatal, para o livre mercado, indivíduos particularmente enérgicos e brutalmente activos foram capazes de se apoderar temporariamente de ramos económicos inteiros, ditando as condições do respectivo governo. Nos EUA, onde, como é sabido, o capitalismo pôde desenvolver-se livremente, sem ter em consideração as relíquias feudais das relações de produção e de poder que ainda perturbavam a Europa, expandindo-se numa massa de terra aparentemente sem dono, foram chamados oligarcas indivíduos economicamente dominantes, que em territórios recém-explorados exerceram um poder exclusivo, antes que o poder estatal burguês se estabelecesse depois deles. A imposição desta estatalidade, contra a lei da selva concentrada nas mãos de indivíduos, tornou-se parte do mito histórico dos Estados Unidos, e é hoje soprada em numerosos romances de cordel e filmes westerns.

 

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Em nossos dias, o termo "oligarca" tem uma conotação muito negativa – e certamente com razão. Como resultado do colapso das "economias de comando estatistas" (1) na Europa Oriental, chegou-se rapidamente ao declínio das estruturas estatais e não só. Tecnocratas, funcionários do partido, agentes dos serviços secretos, criminosos profissionais e outros sujeitos recorreram, subsequentemente, a métodos extremamente grosseiros para reivindicar a propriedade da massa falida da União Soviética em desintegração e de seus Estados satélites. O termo "oligarca" também se estabeleceu para essa nova camada de novos ricos, mais ou menos criminosos.

Não esquecer que, após o colapso do regime de modernização do Leste Europeu, os ramos funcionais da economia geralmente caíram nas mãos de figuras obscuras, no decurso de medidas de privatização implementadas à pressa. As receitas dos radicais de linha dura importadas do Ocidente eram vistas como o único meio de superar a ineficiência das estruturas económicas estatais. O que, obviamente, não funcionaria. Grandes partes da economia, escorregando em agonia, colapsavam agora à velocidade da luz. Outras empresas e grupos de empresas descartavam agora obrigações sociais incómodas, sob a direcção de seus novos donos. E estes puderam enriquecer de forma francamente desavergonhada.

A estupidez e a indiferença, prevalecentes entre a maioria da população da antiga União Soviética, viravam-se agora em agressividade, ao lado de uma camada de "novos russos". As negociações foram conduzidas na época com a ajuda de pistolas silenciadoras e Kalashnikovs, ex-directores de fábrica "vermelhos" foram corridos de seus gabinetes com bastões e gás lacrimogéneo. Sob o slogan "Nenhum poder aos ladrões", gangues de extorsionários profissionais, assassinos a soldo, traficantes de mulheres e outros mafiosos apoderaram-se de bancos e instalações industriais que pareciam particularmente lucrativos. O especialista austríaco na Europa Oriental, Felix Jäitner, escreveu que apenas na Colômbia e na África do Sul a taxa de homicídios era mais alta do que na Rússia. (2) Ele define o sistema Yeltsin como "conquista do poder estatal por grandes empresas privadas". (3) O que não é totalmente errado.

De qualquer modo, foi uma época contra a qual a guerra de gangues durante a Lei Seca nos EUA poderia até ser considerada calma e civilizada. Robert Kurz, em 1993, descreveu este período como a "desintegração do poder do Estado e (...) o estabelecimento da economia de pilhagem, do poder dos clãs, dos senhores da guerra, dos bandos e da máfia". (4)

Os media ocidentais raramente discutem os furiosos conflitos criminais de distribuição que ocorreram na Rússia durante a presidência de Boris Yeltsin. Afinal, o ex-funcionário do partido, Yeltsin, era um aluno modelo dos apologistas das atrocidades neoliberais em questões de privatização. Em todo o caso, grupos de pesquisa nas universidades ocidentais dedicavam-se a fazer caretas ao processo de transformação da Europa Oriental, mas a maioria caía de um espanto para outro. O desenvolvimento foi muito diferente do anteriormente previsto por supostos especialistas do Leste Europeu. Para os intelectuais ocidentais, o desastre socioeconómico que estava sendo implementado sob a sua direção acabou por se tornar embaraçoso, tendo-se concordado com um argumento simples e convincente: Putin é o culpado de tudo.

Não se trata aqui de, modo nenhum, de tecer louvores ao ex-oficial dos serviços secretos soviéticos,  que – inicialmente operando à margem do seu patrono Yeltsin – chegou à direcção da Federação Russa. No entanto, bater em Putin, um jogo favorito dos media da Europa Ocidental há alguns anos, é em grande medida hipócrita. Afinal o potentado da Europa oriental garante desde há anos anos, com seus métodos de governo em parte de extrema brutalidade, o fluxo desimpedido de combustível para as máquinas da valorização capitalista – os trocistas chamam entretanto à Rússia grande empresa petrolífera com um Estado anexo (5).

Ainda assim, não se pode questionar o completo restabelecimento da condição de Estado antes existente sob o regime indubitavelmente brutal de Putin. O papel de Putin como chefe de Estado está essencialmente reduzido à mediação de conflitos de interesses, entre os vários grupos oligárquicos que surgiram na era de Yeltsin. Parte deste papel, no entanto, é tirar de circulação os oligarcas que estão fora da linha e questionam abertamente a mediação do poder do Estado. Por via de regra, tais indivíduos, se não partiram a tempo para o estrangeiro, acabam em algum tipo de campo de prisioneiros. A propriedade por eles roubada, no entanto, não voltará a ser nacionalizada, mas passará para outros oligarcas. Aliás, diz-se que Putin tem uma energia criminosa não irrelevante, no cuidar do seu ambiente familiar.

No entanto, uma comparação da Rússia com a vizinha Ucrânia relativiza significativamente estas condições russas. Ambos os Estados são considerados como oligarquias clássicas da era pós-soviética e foram nos anos 90 cenário de violentas lutas de gangues.

Na Rússia, no entanto, após os excessos das privatizações e a guerra aberta de gangues da era Yeltsin, os restos do poder do Estado foram capazes de se afirmar, e também os restos da segurança social pré-existente puderam continuar a funcionar para a população. Esses remanescentes, após as orgias de privatização e o colapso de grande parte da indústria, são financiados quase exclusivamente pela exportação não negligenciável de matérias-primas para a Europa Ocidental. Principalmente a partir desta fonte também se alimenta em última análise o sector das empresas de segurança privada, extremamente crescido com a erosão do aparelho de Estado (mas que são apenas uma forma legal anterior à vulgar extorsão). As empresas de segurança, a soldo dos vários clãs oligárquicos, muitas vezes resultantes de gangues criminosos, actualmente controlam-se umas às outras, evitando assim uma nova escalada de guerras de distribuição violentamente disputadas. As relíquias do poder estatal russo ainda podem actuar como mediador entre os vários grupos de interesses económicos.

No território da Ucrânia, há bastante menos jazidas de matérias-primas, em comparação com a Rússia. Como resultado, os remanescentes do poder estatal tiveram menos margem de manobra financeira desde o início. Na esteira da crise do Estado subsequente à crise económica, vários oligarcas – o exemplo mais recente é o "rei do chocolate", Petro Poroshenko – apoderaram-se directamente da cúpula do Estado e impuseram os seus interesses contra os de outros oligarcas pela força bruta. O poder do Estado ucraniano tornou-se assim parte nas guerras de gangues que grassavam em seu território (6).

Na Federação Russa, pelo contrário, o fenómeno da tomada oficial do poder governamental por oligarcas permaneceu limitado a regiões remotas, distantes da capital Moscovo. Após um período de rápido colapso do Estado, a Rússia estabilizou num nível baixo, enquanto o colapso da Ucrânia ainda prossegue em ritmo acelerado.

Obviamente, os observadores ocidentais são extremamente apressados a distinguir entre oligarcas "bons" e "maus". Nem uns são democratas perfeitos, nem os outros são capangas ou aproveitadores de uma ditadura brutal. Um oligarca representa sempre apenas os seus próprios interesses e os de seu círculo próximo. E, no final, não passa de um participante numa luta de distribuição cada vez mais brutal, na fase final de um sistema bárbaro.

 

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Quem quiser informar-se sobre a recém-formada camada de magnatas económicos pós-soviéticos sem procurar muito encontrará o que pretende no autor Wolfgang Kemp. Este, um ex-professor de história da arte, criticou habilmente essa casta de arrivistas ricos, em seu recente e abrangente ensaio "O Oligarca".

Kemp escreve com um humor amargo. Logo no início pode ler-se que é possível reservar um passeio de autocarro no Reino Unido com o nome feio de "Circuito da cleptocracia" (7). Trata-se de visitar as residências de oligarcas russos e ucranianos no centro de Londres. Por exemplo, Rinat Akhmetov, um ex-pugilista profissional e alegado criminoso profissional, até à eclosão da recente guerra civil o mais rico residente da Ucrânia – ele comprou há alguns anos, por 136 milhões de libras, o complexo habitacional mais caro do mundo, mandando-o depois alargar e remodelar por mais 200 milhões de libras (8).

E como difere um oligarca de um banal capitalista normal? Claro, pelo seu insaciável anseio por um iate de luxo, o maior e o mais caro possível. Como escreve Kemp, no caso de Akhmetov simplesmente não se lhe encontra o iate. Em vez disso, ele tem toda uma frota aérea para uso privado. A seguir aos nomes de todos os outros oligarcas mencionados no livro, Kemp, consequentemente, observa a extensão exacta do respectivo iate. Será o iate um símbolo fálico moderno? Infelizmente isso não é aprofundado no livro.

Kemp descreve alguns exemplos cómicos, às vezes sinistros, de antigas carreiras empresariais. A primeira actividade económica do russo actualmente mais rico, Mikhail Fridman, foi criar um florescente mercado negro de bilhetes de teatro em Moscovo – algo só possível na União Soviética. Noutra parte do livro está Mikhail Khodorkovsky, muito promovido pelos media ocidentais como modelo de oligarca democrata e vítima inocente perseguida, que tinha adquirido na década de 1980, designadamente através do tráfico de mulheres, a base para a sua fortuna de milhares de milhões, entretanto ganha e novamente perdida.

Mas essas negociatas semilegais no final da era soviética acabaram por trazer apenas amendoins. Kemp descreve detalhadamente como foram acumuladas fortunas de milhares de milhões, no âmbito das orgias das privatizações disponibilizadas por Yeltsin, e como, ao mesmo tempo, escalaram as lutas pelos bocados melhores. Na Rússia da era Yeltsin, vigorava uma regra empírica: para cada lucro de 100.000 dólares, uma morte. Somente em 1994, foram registados 36.000 homicídios na Rússia, em conexão com guerras criminais de distribuição (9). O que nem sequer era muito, se considerarmos a situação da maioria da população russa.

Na era de Yeltsin, a esperança média de vida dos residentes russos diminuiu muito rapidamente. Se em 1990, na fase final da União Soviética, ela ascendia a 69 anos, nos cinco anos seguintes caiu para 65 anos, devido ao rápido empobrecimento da população e às orgias de golpes na saúde e nos serviços sociais (10).

Como escreve Kemp, a esperança média de vida no final da administração de Yeltsin era de apenas 58 anos; a população diminuiu cerca de 750.000 por ano durante este período (11). No decurso da estabilização da Rússia sob Putin, a esperança de vida voltou a crescer lentamente e é agora, segundo dados oficiais, de pouco mais de 70 anos (em 2014).

A relação de Putin com a casta de oligarcas surgida com Yeltsin é caracterizada por Kemp apropriadamente como "pacto de não agressão". De facto, a justiça russa sob Putin só procede contra os oligarcas que desafiam abertamente a cúpula do Estado. Colocá-los fora de circulação, se ainda estão no país, é relativamente fácil. Afinal de contas, os "novos russos" estão todos envolvidos em porcarias criminosas.

Podem ler-se em Kemp muitas outras histórias do Leste de arrepiar os cabelos. Apenas um exemplo: O dito Khodorkovsky não só afastou muitos concorrentes pelo assassinato, mas também mandou matar em 1998 o presidente da câmara de uma cidade russa. Sua ofensa: ele tinha tomado o partido dos seus eleitores e denunciado publicamente o brutal roubo dos salários nas empresas de Khodorkovsky (12).

Kemp também destaca a incapacidade da pesquisa da Europa Ocidental para compreender o desenvolvimento que está ocorrendo diante dos seus olhos. A turbulência do período de transição teria podido em algum momento desembocar numa democracia ao estilo ocidental... Mas, como se evita cuidadosamente uma análise económica das condições pós-soviéticas, todas as tentativas de interpretação se esgotam em termos jurídicos sem sentido: "regime híbrido", "capitalismo de nomenklatura", "autoritarismo competitivo", "democracia dirigida"... (13)

 

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Justamente porque os oligarcas do Leste Europeu, à maneira despreocupada de gabarolas novos ricos, se estilizam como sendo odiosos vilões globais, o seu significado real deveria ser objectivado. Sem dúvida, essas pessoas aproveitam-se da enorme desigualdade social, actuam de modo extremamente brutal, acumularam activos que zombam de qualquer descrição. Mas, por outro lado, eles não são parte dos super-ricos do nosso planeta.

O dinheiro verdadeiramente grande não é feito nas franjas arruinadas da modernidade capitalista, onde figuras obscuras lutam com cacete e pistola, ou com a ajuda de empresas de segurança e de juízes venais, pelo poder de dispor dos recursos naturais, através de cuja exportação pretendem obter pelo menos algumas migalhas da enorme riqueza esperada. O foco da economia está nas metrópoles capitalistas, no comércio retalhista, na produção de bens de consumo e no ramo da electrónica.

Os donos dos maiores activos não têm nenhuma necessidade de exibir a riqueza recém-adquirida por meio de iates de luxo perfeitamente sobredimensionados.

E, certamente, os empreendedores ocidentais modernos não precisam de colocar a sua própria pessoa à frente dos restos do poder estatal em desmoronamento. Há pessoal subordinado suficiente das fileiras de partidos políticos para a governança de Estados funcionais.

Em geral, um multimilionário ocidental não tem tempo nem prazer em ir pessoalmente às terras baixas da política. Se quer influenciar as decisões, ele não põe em marcha bandos de pistoleiros a soldo, mas advogados, agências de relações públicas ou organizações de lobistas. De momento, este ainda é o caso, mas o declínio do Estado moderno está a avançar. E é um claro sintoma de crise que agora, nos EUA, um empresário imobiliário duvidoso possa ter reclamado para si recentemente o mais alto cargo do Estado.

Como Brecht escreveu tão bem, na Ópera dos Três Vinténs: "O que é uma chave falsa em comparação com um título de uma acção? O que é um assalto a um banco em comparação com a fundação de um banco" (14) Na versão cinematográfica da Ópera dos Três Vinténs diz-se acertadamente: "E vêem-se os que estão à luz / Os que estão no escuro não se vêem" (15)

 

 

 

(1) Robert Kurz, Der Kollaps der Modernisierung. Vom Zusammenbruch des Kasernensozialismus zur Krise der Weltökonomie, Eichborn 1991, p. 148. Trad. port.: O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial, Paz e Terra, 1999.

(2) Felix Jaitner, Einfuhrung des Kapitalismus in Russland. Von Gorbatschow zu Putin [Introdução do capitalismo na Rússia. De Gorbatschov a Putin],VSts Verlag 2014, p. 75.

(3) Ibidem., p. 127.

(4) Robert Kurz, Der Letzte macht das Licht aus. Zur Krise von Demokratie und Marktwirtschaft [O último apaga a luz. A crise da democracia e da economia de mercado], Edition Tiamat 1993, p. 136.

(5) Gerd Bedszent, Zusammenbuch der Peripherie. Gescheiterte Staaten als Tummelplatz von Drogenbaronen, Warlords und Weltordnungskriegern [O colapso da periferia. Estados falhados como campo de jogos de barões da droga, senhores da guerra e guerreiros do ordenamento mundial], Horlemann Verlag 2014, p. 128s.

(6) Ibidem, p. 133s.

(7) Wolfgang Kemp, Der Oligarch [O oligarca], zu Klampen Verlag 2015, p. 7.

(8) Ibidem, p. 8.

(9) Ibidem, p. 53.

(10) Felix Jaitner. p. 74.

(11) Wolfgang Kemp, p. 68.

(12) Ibidem, p. 54s.

(13) Ibidem, p. 55.

(14) Bertolt Brecht "Stucke, Band III", Aufbau Verlag 1962, p. 135s.

(15) Ibidem, p. 169.

 

 

Original OLIGARCHIE ALS ERSCHEINUNGSFORM ERODIERENDER STAATSMACHT. Publicado no nº 14 da revista  exit! Krise und Kritik der Warengesellschaft, ISBN 978-3-89502-403-0, Maio de 2017. Tradução de Boaventura Antunes

 

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