Sobre a marcha para a barbárie ou o Leste como bode expiatório

Gerd Bedszent

 

 

“O artigo de Gerd Bedszent trata da propaganda mediática à volta do 30º aniversário da chamada queda do Muro de Berlim, mas também da violência radical de direita que assolou especialmente as regiões remotas da Alemanha Oriental. Bedszent cita vários textos já antigos de Robert Kurz e analisa as ligações entre os dois eventos. A maioria das localizações industriais da Alemanha Oriental, de qualquer modo já inferiorizadas na concorrência com as economias ocidentais mais fortes e já em declínio, recebeu o golpe de morte final depois de 1990. No decurso da desindustrialização de regiões inteiras, milhões de pessoas perderam os empregos; para outras, a "racionalização" das instituições administrativas e a aplanação de grandes partes da paisagem cultural garantiram uma interrupção continuada da carreira. O facto de partes da população da Alemanha Oriental terem sido estilizadas como heróis pelos meios de comunicação social, mas as mesmas pessoas terem sido frequentemente descartadas como economicamente "supérfluas", fornece o terreno fértil para numerosas teorias da conspiração confusas e muitas vezes anti-semitas. Contudo, como escreve Bedszent com referência a Robert Kurz, a actual onda de extremismo de direita tem a sua causa estrutural na crise final do sistema de produção de mercadorias. Como reacção perversa a esta crise, os políticos de direita apelam veementemente ao reforço das mesmas instituições do Estado-nação cujo enfraquecimento estão de facto a promover com o seu programa de política económica.” (Apresentação do texto na exit! nº 17, Abril de 2020)

 

 

1. O que era a RDA? * 2. A farsa revolucionária * 3. Saque criminoso * 4. Luta pela normalidade e resultados desastrosos * 5. Onda de direita no Leste e no Oeste * 6. A escalada do terror de direita nas ruas * 7. A ideologia da rejeição permanente * 8. O Quarto Reich como quadratura do círculo * 9. A caminho da guerra civil mundial * 10. Não há alternativa? Em lado nenhum? * Bibliografia

 

 

 

Caiu a vergonha, caiu o muro, caiu tudo

E foi para o Oeste toda a caravana

Cada um dos vencedores, até o mais sortudo

Recebeu no fim por igual uma banana.

(Wenzel, 2001)

 

Aniversários redondos são ocasiões bem-vindas para trazer de novo à baila nos meios de comunicação eventos históricos esquecidos ou reprimidos com sucesso na consciência colectiva. Se isto for feito com o objectivo de uma reavaliação crítica, não há nada de errado com a propaganda mediática em si. Por ocasião do 30º aniversário da abertura da fronteira entre os dois Estados alemães por um apparatchik da Alemanha Oriental, no entanto, não é de esperar uma avaliação crítica. Pelo contrário: os políticos e os magnatas da comunicação terão mais uma vez a oportunidade de relativizar todas as atrocidades actuais. O arame farpado, os atiradores no muro e os informadores da Stasi sempre foram piores do que todas as guerras de ordenamento mundial, massacres de guerra civil e assassinatos por radicais de direita do nosso belo novo presente. E os funcionários de um partido de extrema-direita importados do Ocidente estão agora a aproveitar a atenção mediática para se apresentarem ao povo do Leste, estupidamente embasbacado, como a "conclusão da revolução de 1989".

O cantor-compositor Hans-Eckardt Wenzel citado no início foi um dos poucos alemães de Leste que zombou impiedosamente da orgia de consumo nacionalista de 1989/90, numa fase muito precoce. O filme de culto "Letztes aus der Da Da eR", realizado em 1990 com a sua participação significativa, foi um surrealista canto de despedida do Estado que se afundava.

1. O que era a RDA?

Não se pretende aqui prosseguir uma idealização póstuma da RDA, um Estado que não existe há décadas. O seu declínio e desaparecimento teve causas sistémicas e não resultou de modo nenhum de conspiradores maléficos ou de agentes secretos ocidentais. O resultado deste colapso, porém, é a desindustrialização continuada da maioria das regiões da Alemanha Oriental, a consequente deterioração das infra-estruturas públicas, e a extensa desmoralização da população que resta, incluindo a sua susceptibilidade aos slogans imbecis da direita radical. O avanço destes radicais de direita é retratado na maior parte dos media alemães do nosso tempo exclusivamente como um legado do Estado desaparecido.

Tendo em conta o actual espectáculo mediático e os resultados das recentes eleições estaduais na Saxónia e no Brandeburgo, faz sentido voltar a pegar em alguns dos textos mais antigos de Robert Kurz e lê-los novamente. No início dos anos 90, Kurz tinha acompanhado como publicista a reunificação alemã. Em Maio de 1990, sob o título Deutschland einig Irrtum [Alemanha equívoco unido] na edição 8/9 da revista Krisis, que na altura ainda era largamente influenciada por ele, apresentou uma primeira análise do processo de colapso de grandes partes da economia da Alemanha Oriental, que estava apenas a começar nessa altura. Em 1991 e 1993, o editor Klaus Bittermann publicou outros artigos sobre o tema em forma de livro.

Algumas das abordagens e explicações, apenas brevemente afloradas nestes textos, foram tratadas com muito mais pormenor por Kurz nas suas últimas grandes obras. E várias suposições expressas nas primeiras obras estão agora ultrapassadas ou há muito se tornaram realidade. Além disso, estão hoje disponíveis valores mais precisos e actualizados para os valores por Kurz citados em abundância. No conjunto, estes primeiros textos fornecem uma visão interessante dos acontecimentos da época, incluindo o seu contexto económico. Este último é completamente ignorados pela maioria dos comentadores.

Robert Kurz não era certamente um adepto da RDA, nem do modelo socialista da Europa de Leste no seu conjunto. Nos seus livros, ele polemizava veementemente contra os socialistas a passo de ganso e contra os resquícios de um capitalismo completamente reaccionário preservado na sociedade da RDA. A sua conclusão foi que o socialismo "não tinha ultrapassado a forma capitalista do trabalho, mas tinha-a congelado historicamente ao nível da totalização da economia de guerra" (Kurz 1991, 31). Mesmo o fetichismo do trabalho propagado na RDA referia-se mais ao "ao passado do capital alemão do que a um futuro pós-capitalista" (ibidem, 23). Uma descrição que é absolutamente correcta.

O resultado das revoluções políticas em vários países da Europa de Leste, Ásia, África e América Latina, que foram implementadas sob os auspícios socialistas no século XX, não foi uma sociedade livre de constrangimentos. Uma sociedade desse tipo – segundo Kurz – também não teria sido viável nas condições da época. Em vez disso, no caso destes últimos chegados ao desenvolvimento capitalista, o que ocorreu foi uma modernização atrasada, a formação de uma economia estatal protocapitalista e repressiva, que nos países industrializados altamente desenvolvidos já era coisa do passado. Na RDA e em Estados de estrutura semelhante, a concorrência económica interna foi eliminada, substituída por um controlo rígido por parte das autoridades de planeamento. Como escreveu Robert Kurz, este planeamento burocrático do Estado não teve origem numa "lógica pós-burguesa, mas numa lógica pré-burguesa cujo relativo sentido histórico [...] há muito que tinha perdido toda a legitimidade" (Kurz 1990, 15). Foi precisamente esta lógica pré-burguesa e protoburguesa dos séculos XVII e XVIII que levou à estratégia de se isolar das economias vizinhas mais fortes, através de um regime fronteiriço rígido. Uma estratégia que, nos nossos dias, está mais uma vez a ser propagada de forma bastante aberta pelos radicais de linha dura do mercado e pela direita radical, em íntima comunidade. Hoje em dia, porém, não querem fechar-se à concorrência economicamente mais forte, mas sim à massa falida social das regiões perdedoras.

Kurz caracterizou a contradição sistémica aparentemente insuperável entre o Leste e o Ocidente, entre capitalismo e socialismo, como um conflito entre as potências capitalistas economicamente desenvolvidas e os vários recém-chegados, que na altura tentavam alcançar a modernidade através de um acto de violência. Como ele também disse, "o Estado alemão dos operários e camponeses manteve-se compatível com as economias ocidentais através do mercado mundial, apesar deste isolamento militar" (ibidem, 32).

A vitória do mercado sobre o estatismo, comemorada em 1989/90, não foi, no entanto, uma vitória do progresso sobre as condições retrógradas, como é muitas vezes falsamente apresentada. Como Kurz escreve noutro lugar, a "escravidão abstracta da economia estatal e a liberdade abstracta da economia de mercado [...] são mutuamente dependentes uma da outra e alternam na acentuação histórica dos impulsos de modernização" (Kurz 1993b, 13). Esta é a única explicação para o facto de várias economias estatais repressivas, que na altura resistiram a uma abertura radical do mercado (exemplo bem conhecido: a China), terem mais tarde conseguido criar uma história de sucesso económico (por um período de tempo limitado). Outros Estados, por outro lado, cujos governos, na altura, se tinham apressado demasiado perante os ditames neoliberais, sofreram um desastre económico.

A maioria dos recém-chegados, agindo sob os auspícios socialistas, não conseguiu abalar as estruturas da economia de guerra da sua fase de construção, pelo menos não nas condições do impulso de modernização iminente no final do século XX. O inevitável declínio económico foi seguido de um colapso do sistema político, frequentemente seguido de uma crise do Estado e mesmo de um colapso do Estado. Segundo Kurz, o colapso da RDA e da sua economia ocorreu "dentro de uma lógica estabelecida pelo próprio capitalismo, que nunca fora abandonado" (Kurz 1991, 8).

2. A farsa revolucionária

A chamada revolução de 1989 na RDA foi uma farsa para Robert Kurz; só lhe restava o escárnio para a maioria dos seus actores: "A casta burocrática ou nomenklatura da RDA [...] não foi expulsa, mesmo que as vigílias da oposição, as manifestações de impotência e os serviços de oração tenham sido desde então estilizados como a "revolução democrática alemã". Ela simplesmente renunciou, e da maneira mais estúpida, por assim dizer, porque não sabia o que fazer [...]" (Kurz 1991, 8). Caracterizou a tão alardeada e celebrada queda do Muro como um sintoma de colapso económico: "A Cortina de Ferro rebentou sob a pressão de défices insustentáveis nas balanças comercial e de capitais das economias nacionais atrasadas" (Kurz 1993b, 121).

Na realidade, a convulsão política na maioria dos Estados da Europa de Leste na altura foi notavelmente pouco sangrenta (excepções: Roménia e, um pouco mais tarde, a Jugoslávia). Na RDA, o partido do Estado no poder retirou os petrificados adeptos da linha dura de posições de liderança, concedeu aos membros da oposição uma participação temporária no governo e anunciou a realização de eleições livres e a elaboração de uma nova constituição. No entanto, isto nunca entrou em vigor.

Mas, e o aplauso maciço, o tumulto nacional nas ruas nessa altura? "Em contraste com as massas desiludidas do Sul, as do Leste [...] ainda acreditavam na promessa ocidental, porque [...] estavam literalmente presas num suposto contra-sistema e aparentemente julgavam o outro mundo, de forma realmente ingénua, segundo as imagens da publicidade na televisão" (Kurz 1993b, 9). Em consequência do colapso da economia da Alemanha Oriental provocado pela crise, os alemães provaram, segundo Kurz, "serem bastante fracos para se reunificarem a nível nacional" (Kurz 1991, 164).

Na altura, a maioria dos alemães ocidentais esperava que a fusão dos dois Estados desse um impulso económico significativo, enquanto a maioria dos alemães orientais esperava que isso salvasse a sua economia em desagregação. Ambas as ideias eram mutuamente excluidoras. Nenhuma delas pôde ser cumprida.

A ideia da emergência de "paisagens florescentes" (Helmut Kohl) no Leste unificado não era de modo nenhum apresentada apenas pelos partidos burgueses e pela imprensa dominante no Ocidente na altura. A maioria da esquerda ocidental também acreditava que a Alemanha Oriental poderia tornar-se capitalista com sucesso. A rejeição deste processo por partes desta esquerda foi alimentada pelo receio de que o aumento do poder económico pudesse mais uma vez levar os alemães a aventuras bélicas e a uma luta pelo domínio mundial.

Uma ideia que Kurz caracterizava como absurda já então. Contudo, na altura, estava quase sozinho no seu prognóstico de catástrofe económica na Alemanha Oriental anexada, com graves consequências também para a economia da Alemanha Ocidental: "A Alemanha não é mais do que um triste equívoco. É triste ver as esperanças e os desejos de tantos milhões de pessoas desorientadas no Leste cruelmente desiludidas e o potencial de barbarização que já é visível será necessariamente mais desenvolvido. Após quarenta anos de um cinzento socialismo de caserna, estas massas [...] são despedidas como dupla e triplamente perdedoras" (Kurz 1990, 36).

Esta esperança desiludida é, aliás, uma das principais razões para os ataques agora recorrentes de nostalgia, para a retrospectiva agora bastante positiva de partes da população da Alemanha Oriental sobre o sistema político que, na altura, consideravam repressivo.

Kurz prosseguiu: "Por mais feios e ditatoriais que possam parecer os regimes do Segundo e Terceiro Mundo [...], contra a pressão para se abrirem ao Ocidente eles mantiveram algo como a dignidade da auto-afirmação, e de modo nenhum apenas no interesse das elites autoritárias e petrificadas. Pois era previsível que teriam de ser massacrados economicamente no campo de batalha da concorrência mundial aberta, independentemente da ideologia de legitimação com que tivessem entrado na batalha" (Kurz 1993b, 121). Uma consequência deste massacre é precisamente a "lixeira do crime tipo Mezzogiorno, na qual o dessocializado e descivilizado pós-moderno mostra a sua face assassina" (Kurz 1993a, 98) e que hoje se pode observar no Leste.

Aqui ficam alguns aditamentos, para os leitores que não vivenciaram pessoalmente estes eventos na altura: A maioria dos apoiantes dos grupos de intelectuais de oposição activos na RDA nos anos 80 – uma minúscula minoria em termos de números – não pretendia o desaparecimento da RDA nem o abandono fundamental da economia estatal. As suas críticas eram dirigidas principalmente contra os efeitos secundários ecológicos da produção industrial em massa que dominava a economia da RDA, contra a crescente militarização da vida pública e a rígida censura noticiosa nos meios de comunicação da RDA. O menor denominador comum destes grupos era a introdução da "democracia socialista", com a abolição do "papel de liderança do partido da classe operária".

Bernd Gehrke, um dos poucos intervenientes relativamente claros no seio dos grupos da oposição da Alemanha de Leste, conseguiu, alguns anos mais tarde, um balanço amargo do processo de unificação: "Que o rápido florescimento do fornecimento de bens ocidentais seria seguido pela catástrofe da economia da Alemanha de Leste, com custos devastadores para a Alemanha Ocidental, foi previsto com rara unanimidade pelos movimentos de cidadãos, pela esquerda da Alemanha Ocidental e pelos peritos económicos dos partidos no poder, e condenado pelos políticos conservadores no poder como alarmismo de esquerda. [...] As paisagens florescentes foram criadas de uma forma completamente diferente do que fora prometido: A natureza recuperou porque as obsoletas bases industriais da vida foram destruídas. Mas, com os empregos, também as pessoas desapareceram" (Gehrke 1999, 432s.).

A tentativa feita por Gehrke e alguns camaradas de luta na altura para construir um movimento sindical independente na Alemanha Oriental, com o objectivo de amortecer o impacto social do iminente colapso económico, acabou por ser condenada ao fracasso. As acções de resistência contra as atrocidades sociais da nova era permaneceram limitadas a nível local. Lendária até hoje é a rebelião dos trabalhadores da mina de potássio de Bischofferode, no norte da Turíngia, que tentaram impedir o encerramento da mina através da greve de fome e da ocupação da empresa.

A propósito, a maioria da oposição da RDA aderiu rapidamente ao Partido Verde. Alguns participaram na fundação da filial na Alemanha Oriental do SPD da Alemanha Ocidental, outros acabaram na CDU, e outros ainda procuraram juntar-se ao movimento radical de esquerda da Europa Ocidental, que já estava em declínio na altura, e acabaram por aderir ao Partido da Esquerda. E alguns que não se davam minimamente bem com a vida política alemã, foram apanhados em confusas teorias da conspiração e acabaram no ambiente da direita radical. A conclusão de Robert Kurz de que "não surgiram novos portadores independentes de ideias a partir destas pseudo-"revoluções", mas apenas uma classe política clonada seguindo o padrão do Ocidente" (Kurz 1990, 20) revelou-se, em todo o caso, verdadeira.

Nas chamadas eleições das bananas de 18 de Março de 1990, a CDU da RDA tornou-se a força dominante e, juntamente com uma série de outros partidos, formou o último governo da RDA. Contudo, este gabinete já era um mero destinatário de encomendas do Governo federal alemão de Kohl, e não fez quaisquer tentativas sérias para salvar de algum modo partes da economia em dificuldades da RDA.

A retoma prometida e esperada por muitas pessoas após a queda das primeiras grandes empresas da Alemanha Oriental não se concretizou, naturalmente. As transferências financeiras dos antigos Estados federais financeiramente mais fortes acabaram muitas vezes em projectos de grande escala, por vezes completamente disparatados. Entretanto, as aldeias e comunidades tiveram de fechar piscinas, instalações desportivas, centros culturais e clubes juvenis em resultado da diminuição dos fundos. A indústria cultural que tinha surgido na RDA foi drasticamente reduzida pelo cancelamento dos subsídios, a paisagem teatral foi desbastada e praticamente deixaram de ser produzidos filmes ou peças radiofónicas. A maioria dos editores de livros entrou em colapso ou foi engolida pela concorrência da Alemanha Ocidental. As faculdades e universidades foram encerradas ou fundidas, tendo uma grande parte da elite intelectual sido trocada por pessoal "politicamente fiável" da Alemanha Ocidental.

Uma manobra muito engenhosa do último governo da RDA, dominado pela CDU na altura, foi abrir grande parte dos arquivos do dissolvido Ministério da Segurança do Estado. Nas condições da súbita eclosão da concorrência pelos postos de trabalho restantes, esta situação teve efeitos de pôr os cabelos em pé. Massas de pessoas acusaram-se mutuamente de terem trabalhado clandestinamente para os falecidos serviços secretos. Nos últimos meses da RDA, a imprensa publicou páginas e páginas de anúncios classificados, em que as pessoas afirmavam ser vítimas da igualdade de nomes e que nunca tinham trabalhado para a Segurança do Estado. Mesmo a grande maioria dos intelectuais da Alemanha Oriental, independentemente do desastre económico e da devastação cultural que se verificava diante dos seus olhos, não conseguia pensar em nada melhor durante anos do que argumentar, com base em pedaços de papel amarelecido, sobre quem tinha andado com qual dirigente antes de 1990, ou até mesmo tinha ido para a cama com ele.

3. Saque criminoso

A União Económica e Monetária de Junho de 1990 e a rápida implementação da associação estatal, tendo em conta as consequências desastrosas iniciais, foram acompanhadas por uma multiplicidade de actividades abertamente criminosas. Hoje em dia, estas actividades são em geral vergonhosamente ocultadas. Nunca houve uma acção judicial consistente contra os chamados crimes da unificação.

Robert Kurz descreveu muito apropriadamente a situação na altura: "Nas ruínas socioeconómicas de uma terra de ninguém histórica, em que as estruturas de economia de guerra do mercado planeado entraram em colapso, mas em que não podem surgir novas estruturas económicas competitivas de um mercado ‘livre’, estão a sair figuras sombrias das caves de instituições asselvajadas. Será isto um milagre? A economia de mercado artificialmente insuflada com dinheiro desafia francamente a energia criminosa" (Kurz 1993a, 119s.). "Simples fraude vigarista, suborno, violação de segredos, abuso de confiança, fraude e falência fraudulenta, abuso de informação privilegiada, injustiça: tudo está representado. Já no Outono de 1991, um bom ano após a unificação, começava a surgir o quadro pouco apetitoso da generalizada criminalidade da empresa de privatizações. ... Desde os criminosos de fato às riscas até aos pequenos e médios bandidos oportunistas, a cena das piranhas comerciais fareja a sua oportunidade fora da gestão do mercado mundial de capital produtivo" (ibid., 121).

Mais uma explicação: a Treuhandanstalt foi criada no início de 1990 pelo penúltimo governo da RDA com o objectivo de administrar os bens do Estado da RDA. Após a sua transformação numa pura agência de privatização, tornou-se o objecto de ódio preferido de todos os alemães de Leste. No entanto, a economia do Leste não foi apenas vítima de gestores da Treuhand movidos por interesses, bem como de capitães da indústria importados do Ocidente e de outros criminosos profissionais. Como escreveu Robert Kurz, o colapso económico da Europa de Leste e também da RDA já estava em curso há muito tempo e, em condições de economia de mercado, não teria sido possível impedi-lo em circunstância alguma. A burocracia criminalmente activa ou mesmo simplesmente incompetente da Treuhand e os criminosos profissionais que com ela cooperaram exploraram ao máximo esta catástrofe e, ao mesmo tempo, agravaram-na bastante.

O receio expresso por Kurz, já em 1991, de que "a Alemanha Oriental, e portanto a Alemanha no seu conjunto, esteja a caminhar para uma catástrofe económica e financeira" (Kurz 1991, 97) foi, de qualquer modo, confirmado. Segundo estudos actuais, 19 regiões da Alemanha reunificada são actualmente classificadas como "problemáticas"; onze delas situam-se no Leste. A propósito, as oito regiões da Alemanha Ocidental mencionadas nos estudos situam-se em partes da região do Ruhr, do Palatinado e do Schleswig-Holstein, mais todo o Sarre e a cidade de Bremerhaven.

4. Luta pela normalidade e resultados desastrosos

Voltemos mais uma vez ao passado: grandes partes da Alemanha Oriental foram amplamente desindustrializadas no decurso da onda de privatizações no início dos anos 90. Frequentemente, isto acontecia de tal modo que um comprador (principalmente) da Alemanha Ocidental, que tinha comprado a empresa anteriormente sem dívidas por uma soma ridícula de dinheiro, esvaziava todas as contas da empresa, obtinha listas de fornecedores, ficheiros de clientes e patentes, vendia imóveis valiosos o mais rapidamente possível e depois simplesmente fechava a empresa. Por vezes escolhia alguns trabalhadores úteis para a sua própria empresa e depois deixava a grande maioria para as autoridades sociais. O desemprego aumentou a um ritmo alarmante nos Estados de Leste já em 1990; afectou cerca de três milhões de pessoas, principalmente trabalhadores industriais e assalariados, só nos primeiros três anos após a reunificação.

A maioria das empresas agrícolas da Alemanha Oriental, estruturadas em grande escala desde a década de 1960, conseguiu manter-se, mas apenas com base numa racionalização rígida e na consequente redução de mão-de-obra. As "Cooperativas de Produção Agrícola" (LPG), que tinham sido criadas na RDA sob uma pressão política por vezes intensa, foram substituídas por filiais de empresas agrícolas ocidentais ou por novos barões agrícolas locais ricos – estes últimos recrutados frequentemente a partir da gestão das primeiras LPG. Durante os anos 90, o número de pessoas empregadas na agricultura da Alemanha Oriental diminuiu para cerca de um décimo, ou seja, de cerca de um milhão para pouco menos de 100.000. E o processo de transformação na agricultura não estava de modo nenhum concluído; para os anos seguintes, simplesmente não existem dados fiáveis disponíveis.

Como é sabido, as empresas que já não existem e os trabalhadores desempregados não pagam impostos. A desbravamento industrial e a vaga de racionalização da produção agrícola foi, portanto, seguida de um desmantelamento radical das infra-estruturas públicas. Isto, por sua vez, resultou no encerramento de outras empresas, ou na sua deslocalização para regiões que ainda eram economicamente viáveis. Afinal de contas, nenhum empresário com um nível razoável de bom senso investiria em áreas onde não existe ligação ferroviária ou de auto-estrada em funcionamento, onde as instalações administrativas, correios, esquadras de polícia e bombeiros locais estão cronicamente com falta de pessoal.

Os candidatos a emprego normalmente também deixam essas áreas. A emigração da Alemanha de Leste para o Ocidente continuou durante muitos anos após a queda do Muro, e só agora parece estar lentamente a parar. A população das regiões desindustrializadas da Alemanha Oriental é agora considerada completamente envelhecida. Várias grandes cidades tornaram-se pequenas cidades e muitas aldeias e pequenas vilas estão a caminho de desaparecer do mapa.

Como já foi descrito, houve casos isolados de resistência a esta evolução nos anos 90. O autor destas linhas, socializado na RDA, também esteve envolvido em protestos contra o despovoamento económico e os brutais despedimentos em massa. No entanto, as tentativas de transformar essas acções individuais num amplo movimento através de estruturas interpartidárias fracassaram sucesivamente. Os principais meios de comunicação, com uma regularidade cansativa, caracterizavam tais acções de resistência como iniciadas pelas estruturas remanescentes do antigo SED (que, no entanto, quase não existiam e cuja ancoragem na população tendia para zero). Muitos radicais de esquerda da Alemanha Ocidental conduziram tais relatos, na altura, à falácia completamente idiota de que a Alemanha Oriental se encontrava no limiar de uma revolução proletária.

Robert Kurz, por outro lado, caracterizava este accionismo desesperado como uma "luta sem esperança pela normalidade capitalista, cuja curta história se caracteriza por grandes manifestações contra a Treuhand, ocupações de fábricas, caravanas de automóveis, greves sentadas e até greves de fome. [...] Na verdade, isto já não é uma luta de distribuição, mas sim uma luta de morte de uma população industrial que foi rejeitada como incapaz pela economia de mercado" (Kurz 1993a, 174). Na perspectiva actual, trata-se de uma formulação muito adequada; não poderia ser mais bem conseguida.

5. Onda de direita no Leste e no Oeste

Não é de admirar que a representação mediática dominante da violência desproporcionadamente crescente da extrema-direita no Leste ignore completamente o seu contexto económico. No entanto, a maior confiança no Estado de algumas partes da população da Alemanha Oriental, em comparação com a antiga República Federal, desempenha certamente um papel no avanço dos bandos fascistas. Afinal, na RDA, o alegado "primado da política sobre a economia" já era martelado na mente das pessoas na escola. Consequentemente, a maioria da população considerava o Politburo dominante como uma espécie de Pai Natal, a quem apenas se teria de escrever uma lista de desejos suficiente – depois, a dada altura, receber-se-ia um aumento salarial, uma gama farta de bens no supermercado ou mesmo um Trabbi.

Quando no final dos anos 80 se tornou claro que a lista de desejos já não estava a funcionar correctamente, as expectativas de muitas pessoas mudaram para uma fúria selvagem: "Fomos todos enganados!" gritaram alguns manifestantes de segunda-feira em Leipzig e noutras cidades. Os activistas dos direitos civis, que foram aplaudidos pelos meios de comunicação social ocidentais, ficaram completamente esmagados com a situação e tentaram, com mais ou menos sucesso, separar os manifestantes radicais de direita dos de esquerda.

No seu discurso em Dresden, em Dezembro de 1989, o Chanceler Helmut Kohl pôde anunciar a reunificação iminente dos dois Estados alemães aos aplausos de uma multidão de fãs da CDU, que tinham vindo especialmente de aldeias e pequenas cidades saxónicas: "Helmut, leva-nos pela mão, mostra-nos o caminho para a terra do milagre económico!” – Robert Kurz citou este slogan idiota muito correctamente (Kurz 1991, 38). O autor destas linhas estava pessoalmente presente em Dresden na altura. Mas eu não me regozijei – muito pelo contrário. Houve também uma contra-manifestação que foi escondida pela maioria dos meios de comunicação.

A onda de direita no Leste e no Oeste, porém, não tinha começado só com o frenesim nacional da reunificação anunciada, mas anos antes, com a eliminação progressiva da economia keynesiana do pós-guerra a nível mundial. As crises económicas dão sempre origem ao espectro do radicalismo de direita. Em meados dos anos 80, os Republikaner de direita radical (Reps) – mais ou menos comparáveis à actual AfD – tinham evoluído para uma séria ameaça à paisagem partidária burguesa da antiga República Federal. Grupos extremistas de direita nas margens dos Reps ainda burgueses usaram de violência brutal contra minorias. Robert Kurz menciona "os radicais de direita da Alemanha Ocidental que incendiaram Trabbis estacionados pouco depois da abertura do Muro e, por exemplo, incendiaram uma casa de acolhimento temporário para migrantes da RDA em Stuttgart-Feuerbach no Natal de 1989" (Kurz 1991, 171). Aliás, o fogo posto mencionado não foi, de modo nenhum, o único naquela altura. Tal como hoje a imigração de refugiados de guerra e pobres do Sul, o afluxo de pessoas provenientes do Leste em colapso foi visto nessa altura como uma ameaça para o bacon da prosperidade.

Para o próprio Leste, Robert Kurz observou que "desde o início dos anos 80 [...] tem havido uma crescente tendência nacionalista e de velha direita", especialmente entre a juventude da Alemanha Oriental (Kurz 1991, 168). Esta tendência existia, e havia também um ressentimento entre a população, que se manifestava na crescente hostilidade para com os trabalhadores contratados da Polónia, de Moçambique e do Vietname: circulavam opiniões de que nem sequer iriam trabalhar, mas que iriam comprar todos os bens que de qualquer modo eram escassos. O que era um disparate, claro: para os cerca de 17 milhões de cidadãos da RDA havia cerca de 200.000 trabalhadores contratados e estudantes estrangeiros. O que este grupo numericamente negligenciável da população consumiu ou enviou para os seus países de origem foi mínimo do ponto de vista económico. O crescente descontentamento face à crise incompreensível necessitava de um bode expiatório. E o racismo que tinha sido obrigado a recuar na RDA, mas que estava latentemente presente, garantiu que as partes não alemãs da população fossem as afectadas.

A ideologia dominante tinha uma concepção limitada do fascismo (Tese de Dimitroff: "ditadura terrorista aberta dos elementos mais reaccionários, chauvinistas e imperialistas do capital financeiro"). Tinha havido numerosas condenações e expropriações de nazis incriminados e de criminosos de guerra na Alemanha Oriental, especialmente no período do pós-guerra. Outros, porém, considerados menos culpados, tinham sido incluídos na economia do pós-guerra. Também na RDA existiam antigos membros do NSDAP em posições de liderança política e empresarial, embora a "continuidade do pessoal [...] não fosse igual à do Ocidente" (Farin; Seidel-Pielen 1992, 71).

Na mente de muitos funcionários do SED, o fascismo era considerado "exterminado pela raiz" na RDA. Nos últimos anos da RDA, porém, estes mesmos funcionários foram obrigados a fazer face ao aumento excessivo da violência juvenil de direita. Os conselhos penais para motivações de extrema-direita estavam sob a jurisdição do Ministério da Segurança do Estado; foram utilizadas unidades da polícia anti-motim contra os adeptos de futebol que se revoltavam. Com a convulsão política, as estruturas dos serviços secretos desapareceram e as unidades antimotim da polícia foram também dissolvidas muito rapidamente. Isto criou – temporariamente – uma situação em que bandos de arruaceiros de extrema-direita tinham rédea solta.

6. A escalada do terror de direita nas ruas

Em áreas degradadas e nichos da sociedade da RDA, os vestígios da ideologia nazi tinham sem dúvida ficado hibernados e, no decurso das convulsões políticas, esses vestígios aventuraram-se de novo ao ar livre. Além disso, os bandos de jovens nazis militantes que se tinham formado nos anos 80 puderam armar-se com muito material de propaganda graças à fronteira semipermeável. Os partidos extremistas de direita activos na antiga República Federal, como o NPD ou os Republikaner, enviaram propagandistas específicos para o Leste, o mais tardar até ao final de 1989, onde as pessoas agarravam avidamente qualquer folheto, a polícia estava praticamente inactiva e os grupos de auto-ajuda antifascistas não existiam ou estavam apenas a emergir. As chamadas manifestações de segunda-feira no Inverno de 1989/90 em várias cidades da Alemanha Oriental foram muito rapidamente dominadas por radicais de direita (Farin; Seidel-Pielen 1992, 75ss.).

As primeiras estruturas dos Republikaner e dos Mitteldeutschen Nationaldemokraten (um partido irmão do NPD federal-alemão) foram fundadas em Leipzig. Em 1990, um partido com o belo nome Deutsch Soziale Union (DSU) conseguiu conquistar dois cargos ministeriais no último governo da RDA (dominado pela CDU), incluindo o de Ministro do Interior. A propósito, este DSU foi fundado em Janeiro de 1990 com a ajuda activa da CSU bávara, através da fusão de vários grupos separatistas com uma orientação conservadora para a extrema-direita, e estava sediado principalmente nas pequenas cidades da Saxónia e da Turíngia. O DSU desapareceu então rapidamente e tornou-se politicamente insignificante depois de a CSU se ter recusado a continuar a apoiá-lo e de ambos os ministros se terem transferido para a CDU. No entanto, a marcha triunfal dos partidos de direita prosseguiu no Leste cada vez mais desindustrializado.

Em Setembro de 1991, ocorreu o primeiro pogrom: as autoridades da pequena cidade saxónica de Hoyerswerda evacuaram um albergue de refugiados e alojamento para trabalhadores estrangeiros contratados, após a fúria de uma turbamulta de direita. A polícia permaneceu inactiva, só intervindo dias depois, durante uma manifestação de protesto de esquerda. A direita radical celebrou a primeira "cidade libertada nacionalmente" e uma onda de terror de direita nas ruas escalou em todo o país. O Leste, porém, foi o mais duramente atingido: No estado federal da Saxónia-Anhalt, em 1991, a probabilidade de ser vítima de um acto de violência por motivos raciais era cerca de 20 vezes maior do que na Renânia do Norte-Vestefália na mesma época (ibid., 43). Em Agosto de 1992, a turbamulta seguinte invadiu o subúrbio de Rostock, em Lichtenhagen – mais de uma centena de antigos trabalhadores contratados do Vietname na RDA, juntamente com uma equipa de televisão da ZDF, só conseguiram fugir de um albergue em chamas. Significativamente, tudo isto se passou à vista de uma unidade policial alegadamente muito ocupada. As tentativas de assassinato seguintes foram então no Ocidente – em Maio de 1992 em Mannheim-Schönau, em Novembro de 1992 em Mölln e em Maio de 1993 em Solingen. E houve mesmo pessoas mortas, incluindo crianças.

7. A ideologia da rejeição permanente

Até à data, tem sido dada pouca atenção à coincidência entre bandos de extrema-direita e cenário criminoso de pobreza. Um grupo denominado Neue Deutsche Ordnung (NDO), que ganhou triste fama em Hoyerswerda, em 1991, como força motriz do pogrom, tinha anteriormente tomado medidas contra as lanchonetes turcas (Farin; Seidel-Pielen 1992, 56ss.). Os seus métodos podem ser descritos como uma combinação de violência com motivações raciais e extorsão de protecção. Outros bandidos de extrema-direita, que ao mesmo tempo ameaçavam e abusavam das mulheres jovens em Eberswalde-Finow, Brandenburg, como alegadas "prostitutas negras", também costumavam roubá-las (ibid., 60ss.).

A intoxicação de nacionalismo de 1989 e 1990 foi rapidamente seguida de uma desilusão. Com a perda dos empregos e o fracasso de várias empresas em fase de arranque, muitas pessoas sentiram-se frustradas e, com o aumento do custo de vida, a sua subsistência tornou-se insegura. As deslumbrantes imagens publicitárias da televisão tinham provado ser quimeras inacessíveis para muitos antigos cidadãos da RDA. Em resultado disso, voltaram a ter a sensação de que tinham sido enganados. Foram procurados bodes expiatórios e encontrados nas figuras de alegados falsos requerentes de asilo, que meteriam no bolso o contribuinte alemão. Na verdade, a propensão racista para a violência, na mente de grande parte dos seus protagonistas, é uma luta bárbara por benefícios sociais que alegada ou efectivamente se estão a tornar mais escassos.

Em 1998, os meios de comunicação gritaram de horror quando a "Deutsche Volksunion" (DVU) do editor de direita Gerhard Frey (que mais tarde se fundiu com a NPD abertamente nazi) obteve mais de 12 % dos votos numa eleição estatal na Saxónia-Anhalt. A fracção parlamentar de extrema-direita no Parlamento do Estado voltou, de facto, a dividir-se muito rapidamente. No entanto, a tendência geral de direita prosseguiu e continua, especialmente entre a população que ficou desempregada na indústria. E, entretanto, parece ter-se tornado uma triste normalidade o facto de os radicais de direita serem eleitos nos Estados federais orientais.

Em Robert Kurz lê-se sobre "formas de comportamento e de reacção de partes do povo da Alemanha Oriental que já não devem ser negligenciadas e que tendem para pogroms e para o racismo deliberado" (Kurz 1993a, 86). Infelizmente, ele ignorou completamente nas suas contribuições a então muito feroz resistência da subcultura de esquerda, mesmo nas cidades da Alemanha Oriental, contra a violência da direita.

A orgia da violência de extrema-direita que eclodiu nos anos 90 desapareceu em grande parte da consciência pública durante vários anos. Com a crise financeira de 2007, porém, veio a nova vaga da direita. E é exactamente no meio dela que ainda estamos neste momento.

Robert Kurz caracterizou os impulsos regulares do radicalismo de direita no final de cada impulso de modernização como uma reacção ideológica daqueles que foram permanentemente rejeitados, ou que estão realmente ameaçados de colapso. No entanto, acrescentou: "O resultado cego de muitos anos de selecção negativa da classe política, incompetência galopante, corrupção em massa, lógica empresarial particular e ideologia da economia de mercado que se conduz ad absurdum [...] deve conduzir quase inevitavelmente a selvagens teorias da conspiração" (Kurz 1993a, 139).

Um pequeno exemplo de uma teoria da conspiração hoje: a actual Chanceler – no Inverno de 1989/90, porta-voz do grupo de oposição da RDA, Demokratischer Aufbruch [Despertar democrático], que se fundiu com a CDU pouco tempo depois – é agora considerada, na concepção do mundo dos loucos radicais de direita, como a sucessora de Erich Honecker, e que teria sido por ele encarregada de arruinar a economia alemã. Este tipo de coisas malucas está agora a acumular-se na Internet formando montanhas virtuais.

A propósito, Robert Kurz escreveu já em 1993: "É verdade que a violência de extrema-direita na Alemanha de Leste se manifestou de forma desproporcionada em relação à população [...]. O fenómeno foi então apenas uma vantagem negativa dos alemães orientais no processo de crise, e os alemães ocidentais poderão muito rapidamente ser apanhados pela onda racista [...]" (Kurz 1993a, 194s.).

Foi exactamente isso que aconteceu entretanto. A grande maioria dos políticos e publicistas de direita radical de hoje – de Björn Höcke a Alice Weidel, de Jürgen Elsässer a Götz Kubitschek – foi socializada na Alemanha Ocidental. A Alemanha de Leste constitui apenas uma grande parte das pessoas frustradas e permanentemente marginalizadas que lêem as obras destes bandidos pseudo-intelectuais e, depois, partem com dispositivos incendiários e tacos de basebol contra os abrigos de refugiados, ou ajudam os criminosos de secretaria a obter lugares bem pagos no Parlamento através do voto.

8. O Quarto Reich como quadratura do círculo

Como escreveu Robert Kurz no início dos anos 90, o anti-fascismo da esquerda na Alemanha, face aos campos de refugiados em chamas e às marchas de radicais de direita, limitou-se sobretudo a pintar imagens horríveis da temida renovação do império hitleriano. Já nos seus primeiros textos, Kurz salientou que o "Fordismo em esquadrilhas de tanques [...] com extermínio industrial de seres humanos" (Kurz 1993a, 188) dos anos 40 estava ligado a uma determinada fase de desenvolvimento económico e não é economicamente repetível.

O "Terceiro Reich" de Hitler não foi apenas a tentativa bárbara de minar a liderança económica dos Estados da Europa Ocidental por meios militares e de, neste contexto, se livrar de grupos indesejáveis da população através de assassínios em massa. No período que antecedeu esta expansão militar, foram removidas as relíquias do Estado corporativo guilhermino que ainda existiam na altura. Os nazis executaram uma forma de modernização atrasada, que depois se concluiu no milagre económico da era Adenauer, na Alemanha Ocidental.

Ao contrário da economia da Alemanha Ocidental, a economia da RDA, enquanto componente da aliança económica da então Europa de Leste, permaneceu em grande medida presa em estruturas de formação forçada da economia de guerra.

O caminho alemão para a modernidade já foi percorrido e é, portanto, uma coisa do passado. Um chamado Quarto Reich nunca poderá existir. O actual ressurgimento do anti-semitismo e do racismo não faz parte de um caminho repressivo para a modernidade, mas sim de um sintoma do seu declínio. (O que, no entanto, não exclui a possibilidade de os governos no limiar da desintegração de Estados, como o do Irão, poderem utilizar pedaços desta ideologia de modernização bárbara nas suas tentativas de ultrapassar a crise). A propósito, o Conselho Central dos Judeus na Alemanha referiu-se recentemente, no contexto do crescimento da AfD, a um aumento demonstrável dos crimes de anti-semitismo por parte dos radicais de direita alemães.

É certamente interessante observar de perto o programa da AfD e as declarações dos seus principais políticos: A chamada nova direita utiliza o vocabulário dos antigos nazis, sabendo que estão a ganhar votos através da retórica nacionalista. No entanto, o seu programa é mais uma manifestação de esquizofrenia política, uma quadratura do círculo: as exigências de mais violência policial e de segurança das fronteiras nacionais aparecem subitamente ao lado de pontos do programa que equivalem a um maior desmantelamento das instituições estatais: cortes fiscais, redução da burocracia e da regulamentação do Estado social, redução radical da legislação ambiental, etc. As exigências da política económica da AfD são, em grande medida, um programa neoliberal clássico. Com a ajuda de slogans destinados a reforçar o Estado-nação, a Direita quer, portanto, enfraquecer ainda mais este mesmo Estado-nação.

Como é sabido, o capitalismo precisa do Estado nacional como autoridade controladora e reguladora. O facto de a direita captar a maioria dos votos dos eleitores precisamente nas regiões da Alemanha Oriental onde a infra-estrutura do Estado-nação está em colapso é uma combinação perfeita. O que vem actualmente da direita radical faz lembrar fortemente a cena final da ópera de Brecht, Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny, escrita em 1928/29, de forma espantosamente clara. Uma marcha sob slogans e lemas aparentemente absurdos e anacrónicos – directamente para a barbárie pós-estatal:

"Pela inflação / Pela luta de todos contra todos / Pelo estado caótico das nossas cidades / Pela sobrevivência da idade de ouro" (Brecht 1961, 258).

9. A caminho da guerra civil mundial

Como escreve Robert Kurz, com a ascensão da Nova Direita, o "regresso da repressão e a renovação ideológica das formas de barbárie moderna [...] respondem a condições e circunstâncias alteradas" (Kurz 1993a, 184). "Este novo nacionalismo e radicalismo de direita [...] revela-se uma reacção bárbara à ameaça de eliminação de segmentos inteiros da população dos critérios de sucesso e de reprodução da economia de mercado internacionalizada, a qual, precisamente devido à sua elevada produtividade e intensidade de capital, já não tem espaço nem capacidade de integração suficientes para todos, nem mesmo nos países capitalistas mais desenvolvidos" (ibidem, 190).

Esta atitude é especialmente verdadeira para o ex-proletariado abandonado e desesperado da Alemanha Oriental. Derrubou-se então o velho regime sob bandeiras alemãs e continua-se à espera da prosperidade prometida, que simplesmente não chega – esta é a autojustificação das pessoas que actualmente vomitam sem rodeios as suas fantasias de violência contra as minorias étnicas, religiosas e sexuais na Internet.

Se o velho racismo e nacionalismo foi uma parte particularmente bárbara da história da afirmação da modernidade capitalista, os vingadores históricos dos antigos nazis são produtos e instrumentos da crescente decadência desta mesma modernidade no nosso presente. Já nos anos 90, Robert Kurz descreveu repetidamente o colapso da Alemanha Oriental e de outras economias da Europa de Leste como parte da crise global do sistema de produção de mercadorias. As consequências da crise começaram por se tornar visíveis nas suas margens, levando ao desmoronamento ou colapso de economias instáveis naquilo a que então se chamava o Segundo e o Terceiro Mundo. O colapso do modelo socialista da Europa de Leste fez parte precisamente deste processo.

E o nacionalismo, o racismo e o fundamentalismo religioso então surgidos dos seus recantos foram, como concluiu Kurz, a reacção ideológica a esta crise insondável: "Nas ruínas deixadas pelo mercado mundial [...] cresce o cogumelo venenoso de um nacionalismo terciário que nada tem a ver com o nacionalismo primário europeu do século XIX nem com o nacionalismo secundário de libertação do século XX. [...] As lealdades étnicas do desespero são todas infundadas. Não podem substituir o velho Estado-nação desmoronado nem criar novas estruturas sociais capazes de reprodução. Só se constituem na e através da guerra civil aberta ou latente, até que também esta se esgote" (Kurz 1993b, 124).

A guerra civil aberta ou latente, que Kurz descreveu em particular utilizando o exemplo da desintegração sangrenta da Jugoslávia socialista, espalhou-se inequivocamente por vastas partes do planeta Terra desde o início dos anos 90. O esgotamento desta guerra civil mundial, que ele previu a longo prazo, ainda hoje não está à vista.

10. Não há alternativa? Em lado nenhum?

Os anos 80 foram marcados pela busca desesperada de uma "terceira via" entre economia estatal e economia de mercado feita por intelectuais de esquerda. Uma busca que então não foi bem sucedida, nem poderia ter sido, uma vez que quase ninguém compreendeu então que ambos os sistemas económicos, que ainda se opunham um ao outro, se baseavam nas mesmas categorias básicas. O marxismo tradicional clássico, como escreveu Robert Kurz, chegou assim teoricamente ao fim: "No outono de 1989, a Wirtschaftswoche pôde apresentar praticamente todos os conhecidos marxistas da vida académica alemã como delinquentes arrependidos que foram autorizados a balbuciar as suas fórmulas de abjuração" (Kurz 1993b, 42).

Aliás, o autor destas linhas presenciou pessoalmente o "ofegar dos perdedores vira-casacas" (Kurz 1991, 47) no terreno da RDA chegada ao fim, que Kurz descreveu muito apropriadamente noutros locais. Apenas alguns exemplos: Os professores universitários de filosofia marxista-leninista de um dia para o outro apresentaram exactamente o oposto do que tinham proclamado anteriormente como a única verdade válida. Os directores de fábricas socialistas transformaram-se, à velocidade da luz, em gestores enlouquecidos, e despediram a maioria dos activistas e dos melhores trabalhadores que anteriormente tinham condecorado. E os oficiais políticos do Exército Popular Nacional imploraram desesperadamente para se juntarem ao exército do inimigo de classe que tinham combatido anteriormente. Karl Marx apareceu mais uma vez como um cão morto.

Não haverá, então, alternativa à omnipotência do mercado e às suas consequências bárbaras, ou à marcha para a barbárie abertamente favorecida pela direita? Robert Kurz, contudo, escreveu já nessa altura que, desta vez, Marx provavelmente tinha sido "enterrado de modo particularmente apressado" (Kurz 1993b, 43). Apenas o marxismo da modernização se tinha tornado completamente obsoleto, contudo "não porque fosse 'errado', mas porque a sua tarefa estava esgotada" (ibidem, 45). Ainda actual é a sua exigência formulada neste contexto: "No fino fio de Ariadne da crítica radical marxiana à mercadoria e ao dinheiro, necessariamente ainda abstracta e imperfeita, temos de tactear a nossa saída do labirinto da modernidade" (ibid., 47). "A ‘terceira via’ agora exigida [...] tem de conduzir a uma sociedade para além do mercado e do Estado, ou seja, à abolição do moderno sistema de produção de mercadorias" (ibidem, 148).

 

Bibliografia

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Brecht, Bertolt: Stücke, Band III, Berlin 1961.

Farin, Klaus; Seidel-Pielen, Eberhard: Rechtsruck – Rassismus im neuen Deutschland [Viragem para a direita – Racismo na nova Alemanha], Berlin 1992.

Gehrke, Bernd; Rüddenklau, Wolfgang: das war doch nicht unsere Alternative – DDR-Oppositionelle zehn Jahre nach der Wende [...afinal não era esta a nossa alternativa - os oposicionistas da RDA dez anos após a viragem], Münster 1999.

Kurz, Robert: Deutschland einig Irrtum. Die Wiedervereinigungsfalle und die Krise des warenproduzierenden Weltsystems [Alemanha equívoco unido. A armadilha da reunificação e a crise do sistema mundial de produção de mercadorias], in: Krisis – Zeitschrift für revolutionäre Theorie, Nr. 8/9, Erlangen 1990, 14–37, auch auf exit-online.org.

Kurz, Robert: Honeckers Rache – Zur politischen Ökonomie des wiedervereinigten Deutschland [A vingança de Honecker: Sobre a economia política da Alemanha reunificada], Berlin 1991.

Kurz, Robert: Potemkins Rückkehr – Attrappen-Kapitalismus und Verteilungskrieg in Deutschland, Berlin 1993a. Trad. port.: O retorno de Potemkin. Capitalismo de fachada e conflito distributivo na Alemanha, Paz e Terra, S. Paulo, 1993.

Kurz, Robert: Der Letzte macht das Licht aus – Zur Krise von Demokratie und Marktwirtschaft [O último apaga a luz. Sobre a crise da democracia e a economia de mercado] , Berlin 1993b.

Wenzel & Band: Grünes Licht [Luz verde] (Doppel-CD), Conträr Musik 2001.

 

 

 

Original Vom Marsch in die Barbarei oder Der Osten als Buhmann publicado na revista exit! nº 17, Abril 2020. Online: www.exit-online.org. Tradução de Boaventura Antunes

 

http://www.obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/