No coronavírus e passando ao lado do capitalismo....
Notas sobre "O coronavírus e as igrejas. Uma crítica"
Sob o título "As igrejas e o coronavírus. Uma crítica", o Instituto de Teologia e Política (ITP) (1) publicou um texto de Julia Lis e Michael Ramminger, assistentes de investigação no ITP, sobre como as igrejas estão a lidar com a pandemia. (2) Sobre o qual o seguinte texto do Grupo de Trabalho de Orientação Teológica da Ökumenisches Netz Rhein-Mosel-Saar formula algumas objecções críticas.
O que não está no texto...
Julia Lis e Michael Ramminger exigem com razão que "nós, enquanto cristãos, desvendemos as contradições sociais que a pandemia tornou visíveis, trabalhemos numa contraprática messiânica resistente e, ao fazê-lo, nos baseemos nas nossas tradições" (p. 13). Esta também deve ser a base de uma crítica à prática das igrejas na época do coronavírus. Infelizmente, o texto apenas expõe as contradições sociais de uma forma truncada. Em primeiro lugar, é impressionante o que não está no texto: não há uma frase que trate da actual situação de coronavírus aqui e globalmente; nem uma frase sobre o aumento do número de mortes; nem uma frase sobre o sofrimento de pessoas gravemente doentes que sofrem de medos mortais e lutam pelas suas vidas em unidades de cuidados intensivos – se é que ainda aí podem ser acomodadas; nem uma frase sobre o empenhamento de enfermeiros e médicos que vai além de todas as forças; nem uma frase sobre as graves consequências a longo prazo que uma doença covid tem para as pessoas. Não há sequer uma dica neste texto do que é legitimamente apontado noutros contextos do ITP, nomeadamente que são principalmente as pessoas com emprego precário – frequentemente mulheres –, os pobres, as minorias e os migrantes que estão entre os perdedores e vítimas da pandemia.
Se, como o texto exige, "nos basearmos nas nossas tradições", o primeiro olhar deve ser para aqueles que mais sofreram com a pandemia de coronavírus como pobres e doentes. Deve recair sobre aqueles que, como sobretudo as mulheres, trabalham por baixos salários, estão sob pressão no emprego precário e em condições parcialmente desprotegidas ou mal protegidas, sobre todos os precários trabalhadores por conta própria ou freelancers e, por último mas não menos importante, sobre todos aqueles que têm de suportar os encargos nos pontos quentes do acontecimento, sobretudo nos lares de idosos e de recobro, nos hospitais. Teria de se tornar mais explícito que o coronavírus está a provocar uma escalada da desigualdade e da divisão entre ricos e pobres aqui e globalmente. (3) Se tudo isto for ignorado, dificilmente será possível tornar claras as "contradições sociais" da pandemia.
Coronavírus e capitalismo
Um problema crucial subjacente ao argumento do texto reside na sua equiparação das medidas contra o coronavírus com a biopolítica capitalista. Sugere que sob o pretexto do coronavírus "a sobriedade e a abstinência devem ser aplicadas como etapa final de um longo processo do capital" (p. 5). No entanto, se o objectivo é expor as contradições sociais subjacentes à pandemia, isto não só fica consideravelmente aquém, como também nos conduz ao caminho errado. Naturalmente, o coronavírus só pode ser discutido e compreendido no contexto da sociedade capitalista mundial. As contradições devem ser procuradas principalmente no modo de produção capitalista, e não apenas na sua mediação política e cultural-simbólica. Têm de ser evidenciadas na questão das circunstâncias estruturais que acompanham o "surto" da pandemia, bem como no tratamento político da mesma. Também as consequências sociais acima delineadas têm de ser consideradas neste contexto.
No que diz respeito ao surto da pandemia, há muito a dizer sobre a chamada zoonose/zooantroponose, uma infecção que pode ser transmitida dos animais para os seres humanos. Diz-se que 75% das novas infecções têm origem animal. (4) Isto coloca-nos no contexto da questão da relação entre capitalismo e natureza, como uma relação de dominação. Na qual a natureza é o objecto da valorização capitalista. Na crise do capitalismo, é impiedosamente valorizada, explorada e ainda mais destruída, apesar de todos os protestos de defesa do clima e da natureza. Pois, com o aumento da produtividade imposto pela concorrência, a substância de trabalho desaparece e com ela a possibilidade de obter valor e mais-valia. O capital torna-se insubstancial. Isto aumenta a pressão do capital tendencialmente vazio para aceder "a todas as coisas deste mundo sem excepção": "desde a escova de dentes até à mais subtil emoção, do objecto utilitário mais simples à reflexão filosófica ou à transformação de paisagens e continentes inteiros…" (5) No capitalismo, a natureza está sujeita ao domínio abstracto da valorização do valor e da dissociação da reprodução. A viragem neoliberal do capitalismo para a globalização da produção e do comércio serviu o propósito de abrir novas oportunidades para o capital se acumular na crise. Isto abriu o caminho para o salto de vírus dos animais para os seres humanos, e para a sua propagação através do comércio globalizado e das rotas de transporte. Pois: "A urbanização em massa, o tráfego aéreo, o aquecimento global e o enfraquecimento ecológico constituem um caldo venenoso" (6) . A este respeito, o surto e a propagação do vírus são tanto parte das contradições da situação mundial capitalista como das condições que o vírus encontra: pobreza e sistemas de saúde destruídos, formas de coexistência social e política desintegradas, até puras lutas pela sobrevivência nos processos de desintegração e crise, em que o vírus se pode propagar sem obstáculos e ameaça tornar-se uma catástrofe global.
Capitalismo, Estado e democracia
O texto reduz demasiado as contradições sociais à crítica de um Estado autoritário que, antidemocraticamente, impõe as medidas coronavírus para manter o "sistema", e menciona apenas de forma distante e enigmática as "causas criadas pelo homem que ... conduzem a epidemias e pandemias" (p. 13). Os problemas são vistos sobretudo na "suspensão da lei" e na "democracia" (p. 7). Esta argumentação pressupõe que o direito e a democracia são o Outro libertador em comparação com o capitalismo. Não reconhece que o quadro social do capitalismo no Ocidente é como regra democraticamente estabelecido e mantido. Isto aplica-se sobretudo a medidas anti-sociais e repressivas. Exemplos: a Agenda 2020 com o sistema Hartz IV, medidas que levaram ao desmantelamento dos sistemas de saúde e às divisões bem conhecidas entre ricos e pobres, à rejeição de migrantes e ao seu internamento em campos, a intervenções militares, à política de armamento ou à militarização da política, que não por último servem o propósito de manter as regiões económica e politicamente decadentes sob controlo e manter as pessoas "supérfluas" ou capitalistamente não valorizáveis longe das fronteiras. Tudo isto foi aplicado democraticamente. A democracia não é simplesmente um regulador normativo que paira sobre as condições capitalistas, mas faz parte das contradições sociais do capitalismo – e a referência a uma visão crítica da "democracia representativa" (p. 8) não é suficiente. A divisão social, a exclusão e a repressão não são o Outro de uma "verdadeira democracia", mas inerentes a ela, o que se torna particularmente claro em tempos de crise. Ao "pensamento democrático de qualquer cor [nunca] ocorre a ideia ... de querer mobilizar e organizar os recursos e a riqueza social de qualquer outra forma que não na forma de mercadoria ou dinheiro; nem que, assim, a sua suposta liberdade e humanidade estabelecem sempre inconscientemente os limites do sistema da moderna forma de mercadoria como limites rígidos" (7).
A crítica à "suspensão da democracia nos regulamentos das directivas", a que as igrejas se teriam submetido voluntariamente, invoca a história bíblica como uma "história de autonomia e liberdade" (p. 8). Actualmente são justamente os opositores às directivas para o coronavírus que se referem aos direitos de liberdade e autonomia. O apelo à autonomia e à liberdade, que não é mediado pelas condições capitalistas, dificilmente é capaz de se distinguir dos apelos à autonomia e à liberdade com que se exige o regresso à normalidade capitalista. Este apelo permanece consistentemente auto-referencial, exigindo liberdade para os indivíduos, para as indústrias individuais etc., sem se colocar em relação com aqueles que sofrem e morrem em unidades de cuidados intensivos. Assim, permanece auto-referencial como o capital, que não se consegue relacionar com outra coisa que não seja consigo próprio. (8)
Ora é precisamente a "teologia política" de J.B. Metz que insiste que a autonomia e a liberdade estão enraizadas num a priori de sofrimento, no reconhecimento da autoridade dos que sofrem. Sem este a priori de sofrimento, as pós-modernas sociedades do discurso que visam a "negociação" (em relação à situação actual, por exemplo, Alex Demirović) (9) não vão além da "lógica do mercado" nem de uma relação entre pessoas determinada pela "relação de troca e concorrência", e permanecem cegas às "relações assimétricas de reconhecimento – como a atenção de uns para com os outros ameaçados e sacrificados". (10) Se o apelo à liberdade não se deve deter na auto-referencialidade de indivíduos e indústrias capitalistamente condicionados e ajuramentados à normalidade capitalista, tem de se deixar interromper e irritar pelo sofrimento dos outros. Só a referência à liberdade que lhes é negada pode determinar a liberdade em termos de conteúdo. Neste sentido, a liberdade teria de ser entendida como uma consciência negativa da liberdade negada, e só poderia ser determinada em relação à dominação ou às relações sociais fetichistas. A contradição com Metz teria de ser registada onde ele pensa que "o respeito pelas histórias de sofrimento" poderia tornar-se a "base das reservas culturais da democracia liberal" (ibidem). Subestima que a "democracia liberal" anda constitutivamente de mãos dadas com a liberdade de mercado, de troca e de concorrência, em última análise com a multiplicação do capital por amor de si mesmo e com a dissociação da reprodução conotada como feminina que lhe está equiprimordialmente associada, de modo a não poder ser posteriormente "pressuposta", por assim dizer, a lembrança do sofrimento dos outros. Também por isso todas as tentativas de "reinventar a democracia face às condições catastróficas do mundo" (p. 8) devem falhar.
Agora é perceptível que, nas discussões sobre as medidas coronavírus, as referências ao sofrimento são utilizadas de uma forma quase inflacionista. Vêm de contextos – tais como o FDP e a [associação industrial] BDI – que de resto não são propriamente conhecidos por se preocuparem com o sofrimento humano e com as desvantagens sociais. É também perceptível que os indivíduos e os sectores se referem principalmente ao seu próprio sofrimento, enquanto o sofrimento de outras pessoas permanece fora do âmbito das suas exigências. Aqui, o sofrimento de uns é jogado contra o sofrimento de outros. No processo, ignora-se sobretudo que enquanto alguns correm o risco de perder o seu sustento como trabalhadores, outros perdem as suas vidas. Enquanto alguns são ameaçados nas suas próximas férias, outros são ameaçados com a perda das suas vidas e saúde.
As medidas políticas governamentais também não são guiadas por um a priori de sofrimento. Face à pandemia, a política procura manter o funcionamento dos "sistemas" de economia e saúde. Isto leva à contradição de que o trabalho e o consumo devem continuar. A manutenção da "custódia" de crianças em creches e escolas, justificada pela necessidade de educação e "justiça educativa" (pelo FDP, justamente), está provavelmente também relacionada com isto. As restrições são aplicadas principalmente nos sectores privados e nas conexas gastronomia e indústria cultural e de eventos.
Contudo, esta crítica não deve ocultar o facto de que, tendo em conta a rápida propagação do vírus, estas medidas obviamente inadequadas podem, no entanto, proteger pessoas em risco e contrariar uma morte miserável em unidades de cuidados intensivos, bem como um sistema de saúde sobrecarregado que está a exigir do seu pessoal muito para além das suas forças e que, a dada altura, deixará de ser capaz de cuidar das pessoas doentes. Neste contexto, não há razão para ridicularizar o uso de máscaras, a manutenção da distância e outras medidas de higiene, como é feito no texto por Rammiger e Lis, e desqualificar as pessoas que observam tudo isto como "cidadãos obedientes" (p. 12). Desta forma, o texto, com a sua crítica míope, contribui perigosamente para a deslegitimação das medidas de protecção que, mesmo que o seu objectivo seja preservar o sistema capitalista, são importantes na situação actual para proteger a vida das pessoas.
As contradições sociais que se tornam visíveis na pandemia de coronavírus são as contradições da forma social capitalista como um todo. Não podem ser reduzidas à contradição entre democracia, liberdade e direito, por um lado, e Estado autoritário impositivo, por outro. A análise truncada das contradições e a falsa iminência de uma crítica anti-autoritária abstracta das medidas do Estado para conter a pandemia leva o texto a uma proximidade perturbadora com o FDP, a AfD, os negadores do coronavírus, os pensadores transversais e outros fantasistas da conspiração. Em vez disso, o que é importante é um exame crítico destes fenómenos e da sua ligação à quotidiana heteronomia sob o capitalismo, que se projecta sobre as medidas estatais de protecção na crise do coronavírus. A "susceptibilidade às teorias da conspiração" aumenta obviamente "sempre que a percepção toma nota de que já não há qualquer hipótese de uma forma de vida independente e autodeterminada e que, em vez disso, a toda a volta apenas poderes anónimos governam e operam em segredo. Em situações de pressão aparentemente sem esperança, que podem ser causadas, por exemplo, pelo declínio social e por uma deterioração drástica da situação económica, as teorias da conspiração abrem uma enganadora estrada real para a interpretação das ligações mais complicadas e transmitem a sensação de segurança de finalmente saber o que se passa à sua volta e consigo…" (11)
Onde a mania da conspiração se exprime, o anti-semitismo não está longe, como é mais uma vez bem claro na crise do coronavírus: "Por exemplo, cerca de uma em cada cinco pessoas em Inglaterra concordam mais ou menos que os judeus criaram o vírus para fazer ruir a economia e fazer da situação um negócio". Também se puderam observar autovitimizações anti-semitas nas manifestações anticoronavírus na Alemanha, dos chamados "anti-vacinistas", que aparentemente se alucinavam como os "judeus de hoje", vestindo T-shirts com uma estrela judaica (!) nas quais estava escrito "não vacinados"(!). (12)
Seria um perfeito disparate sugerir que o ITP partilha tais posições. Fica a quilómetros de distância disso. Mas em vez de expor estas contradições e reflectir sobre a ligação com a sociedade da crise capitalista, a crítica no texto do ITP permanece presa num liberalismo formal que apenas percebe a situação social parcialmente. Só quando isto for visto no seu conjunto é que as ambivalências e contradições podem ser analisadas de forma diferenciada e tratadas de forma crítica.
Neste contexto, é claro que se devem criticar medidas que simplesmente proíbem contactos pessoais – por exemplo, com os idosos, os doentes e os moribundos – em vez de criar condições de enquadramento que os tornem possíveis, enquanto que o trabalho e o consumo devem continuar com o menor número possível de restrições. Ao mesmo tempo, deveria ter ficado claro que um confinamento mais consistente – tal como proposto por várias iniciativas de zero-covid desde Dezembro – teria significado menos mortes e, ao mesmo tempo, teria sido menos grave em termos de efeitos sociais do que o vai-e-vem entre as medidas de confinamento e os "relaxamentos", o que tem sido fomentado sobretudo pelos primeiros-ministros e pela imprensa Springer, e pelo virologista Streeck a quem eles cortejam. A exigência de protecção dos grupos de risco, que foi repetidamente apresentada como uma alternativa ao confinamento, era errada como alternativa e uma transparente legitimação para os "relaxamentos". A coisa certa a fazer teria sido, ou é, proporcionar maior protecção aos grupos de risco, permitir visitas responsáveis aos doentes e aos moribundos, e além disso fazer esforços para reduzir o número de casos.
Sobre o papel das igrejas
O texto acusa as igrejas de "eclesiologia de submissão", "confinamento antecipado", "retirada, bem como do apelo à submissão às medidas estatais", e duma adopção acrítica da "política de higiene". Nesta ele vê uma acomodação às plausibilidades prevalecentes. A questão é quais são as implicações desta crítica da igreja? Devem as igrejas, independentemente da situação social global e das consequências para a saúde, insistir na liberdade religiosa, a fim de poderem continuar a sua vida eclesial sem restrições e celebrar a "memoria passionis" não irritada pelo sofrimento dos doentes, dos pobres e dos marginalizados? O culto e o cuidado pastoral devem ter lugar sem medidas de protecção, porque cumprir seria conformidade e submissão? Como deve ser uma "contraprática messiânica resistente" nestes contextos? Deverão as igrejas resistir apenas às medidas de protecção ou a todas elas? No interesse das liberdades liberais, incluindo a liberdade religiosa, aceita-se o conceito social-darwinista de imunidade de grupo, que custaria ainda mais vidas? Aceita-se que se chegue a situações de triagem, e que o sistema de saúde entre em colapso também aqui, como já acontece há muito tempo noutros países, causando um sofrimento incrível?
É verdade que o 'confinamento' torna visíveis muitos problemas da igreja: a falta de palavras face aos contextos de crise, o insuficiente tomar partido por aqueles que, como os pobres, são as primeiras vítimas da pandemia a nível local e mundial, a ignorância da crítica do capitalismo, a fuga para encenações clericais e banais juntamente com o reconfortante esoterismo e 'pensamento positivo'... No entanto, a 'contenção' das igrejas no culto merece reconhecimento. Corresponde à consideração pelos ameaçados na sociedade. Ao mesmo tempo, é expressão da primazia da diaconia (13) sobre a prática do culto.
Esta avaliação não decorre de uma subavaliação da Eucaristia, mas sim do seu conteúdo. No centro da sua "memória subversiva" estão as vítimas das condições. Na crise do coronavírus vemo-las sobretudo naqueles que, como os velhos e os doentes, são vítimas do vírus e das condições capitalistas ao mesmo tempo. Uma igreja messiânica pode renunciar temporariamente à liturgia se isso servir para proteger aqueles que, como não-valorizáveis, estorvam a normalidade capitalista. Ao mesmo tempo, decorre da memória celebrada na Eucaristia que a igreja nunca poderá renunciar à diaconia e à crítica profética. Em toda a problemática do comportamento da igreja na pandemia tornaram-se visíveis vestígios de uma igreja messiânica, onde a preocupação com os sem-abrigo não foi abandonada mas reforçada, porque também pertencem às vítimas prioritárias da pandemia. Um pouco embaraçosa, pelo contrário, foi a insistência em retomar os serviços religiosos o mais rapidamente possível, invocando a liberdade de religião constitucionalmente garantida.
As igrejas não devem preocupar-se em fazer valer os seus interesses de culto religioso. A sua tarefa é defender aqueles que, com o coronavírus, são ainda mais desprivilegiados do que já são na normalidade capitalista: Doentes e idosos, sem-abrigo e migrantes, pessoas no mundo dos dois terços, em suma, todos aqueles cujo "capital humano" não é valorizável. A sua miséria é susceptível de ser agravada "depois do coronavírus", nomeadamente quando as dívidas tiverem de ser pagas. É exactamente isso que vão defender as forças de direita e liberais, que agora parecem ter descoberto o seu coração pela liberdade, pelo social e pelos que sofrem sob as medidas.
A crítica formulada no texto por Lis e Ramminger sobre uma mania de saúde positivista, expressa no slogan "O principal é ser saudável", que discrimina os doentes, e sobre a consequente crença positivista na ciência, torna-se um desafio para as igrejas onde é imposta uma política de resiliência, que – como está actualmente a tornar-se evidente na política de saúde – está orientada para tornar a sociedade resiliente, flexível e resistente a crises futuras. É uma política de imunização contra crises previsíveis mas aparentemente inevitáveis. São aceites como uma desgraça que não pode ser evitada, para a qual parece haver apenas a possibilidade de medidas de protecção. Quanto mais avança a crise do capitalismo, mais autoritárias as medidas de protecção ameaçam tornar-se. Sob a primazia da resiliência preventiva, tudo o que promove o coronavírus e irá alimentar futuros surtos de infecção pode então continuar: a dominação da natureza, a criação e valorização de animais, a globalização e mobilidade para a produção e comércio... tudo sob a dominação abstracta do irracional fim-em-si de aumentar o capital por amor de si mesmo. Perante o limite lógico e histórico em que a acumulação de capital esbarra, as medidas regulamentares para limitar a acumulação não chegam a nada ou exacerbam a crise de acumulação. A única alternativa realista continua a ser a ultrapassagem do capitalismo, e isto teria de estar ligado a estratégias para a sua liquidação, em vez de todas as tentativas irracionais de o preservar de qualquer maneira e a qualquer preço.
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(1) O ITP é uma iniciativa não universitária comprometida com a "teologia política" de Johann Baptist Metz e a teologia da libertação. Procura continuar estas abordagens de teologia socialmente crítica.
(2) Julia Lis, Michael Ramminger, Kirchen und Corona. Eine Kritik, Münster 2020. Disponível em: https://www.itpol.de/kirchen-und-Coronavírus-eine-kritik/.
(3) Cf. Andreas Wulf, Das Virus macht nicht gleich [O vírus não faz a mesma coisa], https://www.medico.de/blog/das-virus-macht-nicht-gleich-17699.
(4) Cf. Rob Wallace, Was Covid-19 mit der ökologischen Krise, dem Raubbau der Natur und dem Agrobusiness zu tun hat [O que a Covid-19 tem a ver com a crise ecológica, a sobreexploração da natureza e o agronegócio], Colónia 2021; cf. também Robert Harbeck, Steffi Lemke, Renate Künast, Schuld sind nicht die Nerze. Raubbau an der Natur erhöht das Risiko von Pandemien [Não é culpa do vison. A sobreexploração da natureza aumenta o risco de pandemias], em: Kölner-Stadt-Anzeiger, 18.11.2020..
(5) Robert Kurz, Weltordnungskrieg. Das Ende der Souveränität und die Wandlungen des Imperialismus im Zeitalter der Globalisierung , Bad Honnef 2003, 69f. Trad. port.: A Guerra de Ordenamento Mundial. O Fim da Soberania e as Metamorfoses do Imperialismo na Era da Globalização, online: http://www.obeco-online.org/livro_guerra_ordenamento.htm
(6) Mark Heywood, The Authoritarian Temptation [A tentação autoritária], https://www.medico.de/die-autoritaere-versuchung-17665.
(7) Robert Kurz: Die Demokratie frisst ihre Kinder – Bemerkungen zum neuen Rechtsradikalismus [A democracia devora seus filhos - Comentários sobre o novo radicalismo de direita], in: Rosemaries Babies – Die Demokratie und ihre Rechtsradikalen, Unkel/Bad Honnef 1993, 18.
(8) Ver Herbert Böttcher, Selbstbezüglichkeit … wie im Kapital so auch in uns selbst, https://www.oekumenisches-netz.de/2020/12/selbstbezueglichkeit-wie-im-kapital-so-auch-in-uns-selbst/; trad. port.: Auto-referencialidade...... tal como no capital, também em nós próprios, online: http://www.obeco-online.org/herbert_bottcher13.htm. Ver também Herbert Böttcher/Leni Wissen, Zwischen Selbstbezüglichkeit und Solidarität? Corona in der Leere des Kapitalismus, in: Sonderausgabe des Netztelegramms von Ökumenischem Netz und exit! Krise und Kritik des Warengesellschaft, Februar 2021, https://www.oekumenisches-netz.de/veroeffentlichungen/netztelegramm/; trad. port.: Entre a auto-referencialidade e a solidariedade? O coronavírus no vazio do capitalismo, online: http://www.obeco-online.org/leni_wissen1.htm
(9) Cf. Alex Demirović, Warum die Forderung nach einem harten Shutdown falsch ist. Zur Kritik des Aufrufs #ZeroCovid [Porque é errada a exigência de um confinamento rígido. Para a crítica do apelo #ZeroCovid], https://www.akweb.de/bewegung/zerocovid-warum-die-forderung-nach-einem-harten-shutdown-falsch-ist/.
(10) Cf. Johann Baptist Metz, Memoria passionis, Gesammelte Schriften, Bd. 4, 205 .
(11) Rudolf Jaworski, Verschwörungstheorien aus psychologischer und aus historischer Sicht [Teorias da conspiração de um ponto de vista psicológico e histórico], in: Caumanns, Ute; Niendorf, Mathias: Verschwörungstheorien – Anthropologische Konstanten – historische Varianten, Einzelveröffentlichungen des Deutschen Historischen Instituts Warschau, Osnabrück 2001, 19.Jaworski 2001, 22.
(12) Ver Thorsten Fuchshuber: Antisemitismus in der Pandemie: Alter Wahn, neues Gewand [Alucinação velha, roupas novas], jungle.world de 23.7.2020. Sobre as manifestações coronavírus na Alemanha ver também: https://report-antisemitism.de/documents/2020-09-08_Rias-bund_Antisemitismus_im_Kontext_von_covid-19.pdf; ver também Thomas Meyer no editorial da Exit nº 18, Primavera de 2021.
(13) Diaconia vem do grego e significa serviço. Nos contextos eclesiástico-teológicos, refere-se ao compromisso com os pobres e desfavorecidos, bem como às críticas às condições sociais que o tornam necessário.
Original An Corona und am Kapitalismus vorbei… Anmerkungen zu „Corona und die Kirchen. Eine Kritik“ in: www.exit-online.org. Publicado inicialmente em https://www.oekumenisches-netz.de. Tradução de Boaventura Antunes