Herbert Böttcher

 

O espírito do mundo anda por aí... ou estará talvez a chegar ao fim?

 

 

Sobre o entendimento do 'espírito do mundo' (1)

Kant tinha perguntado o que constitui o sujeito do conhecimento e a autonomia da sua razão. Com Hegel, entrou em foco o todo do mundo e da história, e com ele a questão do que mantém tudo junto e em fluxo. A resposta "Deus" tinha-se tornado questionável no iluminismo. Hegel recorre ao 'espírito do mundo' como resposta. Como "a ideia geral e única", é o absoluto que constitui tudo o que é particular. Como ideia geral, o espírito do mundo realiza-se no mundo e cria-o como um mundo orientado para a razão. Após a sua realização, regressa a si próprio, a fim de se realizar a si próprio numa nova fase de desenvolvimento e regressar a si próprio uma e outra vez. Nesta realização permanente do espírito do mundo e no seu regresso a si próprio, surge a história, e surge como "realização da liberdade e da razão", como resume Assheuer. Esta é a base filosófica para o mito burguês do progresso. Apesar de todos os percalços e danos colaterais, a história progride para o objectivo da liberdade e da razão estabelecido pelo espírito do mundo.

O "geral" do espírito do mundo tem, portanto, de ligar-se através da sua realização com o particular, com o material da história. Mas como pode a história como um todo chegar à razão e à liberdade? Para Hegel, através da acção de 'grandes homens'; neles o espírito do mundo faz avançar a história. Resta a questão: como é que um todo racional se torna realidade através da acção descoordenada de indivíduos, por mais eminentes que sejam, de grandes mentes? Para uma solução, Hegel recorre a um constructo com a qual Adam Smith tentou explicar porque é que a acção descoordenada de agentes económicos individuais, que perseguem os seus próprios interesses, deveria conduzir a um mercado perfeito e à "prosperidade das nações". Para Smith, isto era feito pela "mão invisível do mercado". Nas costas dos indivíduos, orienta as suas acções para um todo sensato. Por detrás desta noção está uma herança teológica: a crença na providência de Deus, pela qual a história é guiada através de toda a confusão, até à sua conclusão. Analogamente à "mão invisível do mercado", Hegel fala da "astúcia da razão". Nas costas dos grandes da história, dirige toda a história, para além de todo o sofrimento, em direcção à razão e à liberdade. Assim, os sofrimentos dos seres humanos são justificados como danos colaterais necessários, no caminho para o ideal comprovado pelo espírito do mundo.

 

Para a crítica da mitologia burguesa do progresso

Uma observação do Bispo Johannes Bahlmann, cuja diocese se situa na região de Amazonas, no nordeste do Brasil, pode esclarecer uma referência actual: "Hoje olhamos para trás na história e pensamos: Inacreditável o que as gerações anteriores fizeram de errado! Não gostaria de saber o que as gerações futuras dirão de nós se não pusermos definitivamente fim à destruição da floresta tropical." (2) O horror do bispo pode ser estendido a todos os lugares de destruição da vida em todo o globo: A desertificação crescente, a subida do nível do mar..., o tornar supérfluas as pessoas, os colapsos económicos e políticos, as guerras de gangues nas regiões em desintegração, a barbárie das relações, em suma, a destruição dos fundamentos da vida e a concomitante migração e fuga de pessoas, que para a maioria, se não morrerem antes, acaba perante as fronteiras da Europa seladas militar e policialmente ou num campo de detenção, no que nenhum pensador transversal ou liberal é capaz de reconhecer uma contradição com a liberdade – contradição que ele reconhece muito mais no uso de máscaras e nos confinamentos no contexto de uma pandemia.

Já no início do século passado, o filósofo e crítico literário marxista Walter Benjamin criticava a ideia burguesa de progresso. Na escrita da história, os vencedores 'sobreviveram', enquanto as vítimas desapareceram no nada do esquecimento. A história burguesa do progresso revelou-se para ele como uma história de catástrofes. Era preciso então interromper o curso desta história, paralisar a sua dialéctica e utilizar esta paralisação para uma reflexão crítica. Ao fazê-lo, a história tem de ser recordada da perspectiva dos vencidos e não da perspectiva dos vencedores, e o seu curso catastrófico tem de ser rebentado.

Theodor W. Adorno reflectiu epistemologicamente sobre o que Benjamin tinha considerado na filosofia da história. Contra a absolutização do geral (o espírito do mundo) por Hegel, Adorno enfatiza o particular, que não deve ser absorvido pelo geral de um conceito totalizante. Na dominância do geral sobre o particular, ele reconhece uma relação de dominação. O geral domina sobre o particular. Isto parece abstracto, mas torna-se mais claro quando se torna evidente que com a dominação do geral, segundo Adorno, entra em vigor a generalidade do princípio da troca. Na troca de mercadorias, a particularidade de cada mercadoria é equacionada no valor da troca – expresso em dinheiro. A igualdade da troca torna igual todo o particular. Tudo o que não é absorvido na troca é inútil, supérfluo... Em termos concretos: as pessoas que não podem trocar o seu capital humano por salários no mercado perdem a base da sua existência, tornam-se não só "supérfluas", mas também um fardo social.

Contra o pensamento de Hegel sobre o geral e a sua auto-realização dialéctica e a superação das contradições numa síntese, Adorno desenvolve a sua "dialéctica negativa". Começa com aquilo que não é absorvido na generalidade dos conceitos 'dominantes' e lhes resiste. Esta resistência manifesta-se sobretudo no sofrimento das pessoas nas condições dominantes. Há uma teologia crítica que se inspira tanto em Benjamin como em Adorno. No seu centro está a "memoria passionis", a memória do sofrimento e da resistência contra a injustiça e a violência, ou seja, de tudo o que não se funde num sentido e num objectivo geral da história. Vê-se a si própria como uma teologia 'pós-idealista' e, portanto, como uma objecção às tentativas da filosofia e da teologia de assegurar o objectivo e o significado da história através de justificações ontológico-idealistas. Ela insiste na não-identidade, sobretudo na particularidade das histórias humanas de sofrimento, que permanecem sem importância nos discursos sobre um significado universal da história ou na certeza da salvação teologicamente construída, e que acabam por desaparecer.

 

De volta a Assheuer

As referências mais interessantes ao espírito do mundo de Hegel, na minha opinião, estão ausentes do texto de Assheuer. Ele nota alguns desenvolvimentos problemáticos, mas não os analisa, antes balança "ligeira e superficialmente" sobre eles. Um problema é mencionado, e passa-se ao seguinte – sem que se veja um pensamento rigoroso, um "esforço do conceito" (Hegel). Retomemos as referências de Assheuer a Marx e a Popper:

Em relação a Marx, ele apenas reproduz a frase de que este último virou o idealismo de Hegel de pernas para o ar e identificou a "luta de classes terrena" como o motor da história universal. Mais interessante do que o Marx da luta de classes é o Marx da análise fetichista, especialmente quando se trata da relação entre Marx e Hegel. Quando Marx analisa o capitalismo como fetichismo, como 'idolatria', visa o movimento básico para a multiplicação do capital. Formulado por analogia com a auto-realização de espírito de Hegel e o seu regresso a si próprio com o objectivo de uma nova auto-realização: O capital realiza-se na produção de mercadorias. Aqui, através do dispêndio de trabalho, forma-se o valor e a mais-valia objectivados na mercadoria. Na circulação da mercadoria, ou seja, na compra e venda, o valor é transformado em dinheiro ou mais dinheiro. Assim: o capital realizado regressa a si mesmo e realiza-se novamente na produção de mercadorias, a fim de se multiplicar cada vez mais. Não se trata aqui da história do mundo, mas da história do capitalismo, que há umas centenas de anos conduziu e está a conduzir para o abismo mundos passados e presentes.

Ao contrário de Hegel, Marx sabe que existe um limite interno para o progresso na multiplicação do capital. Uma vez que tem de produzir mercadorias em concorrência, é obrigado a substituir trabalho por tecnologia. Ao fazê-lo, porém, corta a água a si próprio, nomeadamente o trabalho, como fonte de valor e de mais-valia. O desaparecimento do trabalho é a razão decisiva para o beco sem saída da crise do capitalismo que estamos actualmente a viver, e sobre a qual Assheuer fala inutilmente, na sua busca de onde o espírito do mundo possa estar.

Enquanto Hegel, na sua reflexão sobre o espírito do mundo, reflecte sobre uma totalidade, Popper coloca todo o pensamento sobre a totalidade sob suspeita de totalitarismo. Ao fazê-lo – o que Assheuer não escreve – ele tem em mente principalmente o pensamento utópico. Quem desenvolve utopias contra as realidades torna-se totalitário. O chamado "racionalismo crítico" de Popper afirma o mundo tal como ele é, em defesa das utopias. Depois das utopias terem chegado ao fim com a suposta utopia do comunismo, Fukuyama vê o "fim da história" no mercado e na democracia. O progresso atingiu o seu objectivo já não ultrapassável.

A filosofia pós-moderna também se vê a si própria como um pensamento anti-totalitário. A ideia de unidade é substituída pela multiplicidade, especialmente sob a forma da multiplicidade de culturas. O que permanece escondido para o culturalismo pós-moderno, porém, é que este pluralismo tem lugar na uniformidade não-reflectida da valorização capitalista, que esbarra nos seus limites. Nesses limites, o pluralismo pós-moderno vira-se para o pensamento identitário e autoritário. Tem-se envergonhado particularmente em guerras civis e escaladas de violência, nas quais grupos étnicos identitários se lançam uns contra os outros, nos processos de desintegração do capitalismo. Este problema está por detrás do que Assheuer aborda sob a rubrica "A guerra da Jugoslávia e o terror islâmico". É característico do texto de Assheuer que ele possa listar páginas e páginas de problemas sem ser capaz de apreender ou compreender nenhum analiticamente. ‘Ceterum censeo': falta "o esforço do conceito".

 

E por fim Habermas...

Pelo menos o texto encontra o caminho para uma observação interessante no final: "Israel rompe com o pensamento mítico e proclama uma revolução: a aliança com Deus e o êxodo do Egipto". Esta é de facto uma ruptura decisiva no pensamento. A história entra no pensamento. Isto é contra o mito, contra o idealismo de Platão e contra todos os seus círculos (como o 'Círculo de Platão', que existe em Koblenz) até ao idealismo do espírito do mundo de Hegel. A vida e a história não estão asseguradas em nenhum mito primordial, nem em nenhuma ideia, por mais sublime que seja. "Nenhum espírito do mundo garante a autocivilização da espécie no sentido de uma liberdade razoável", escreve Assheuer com razão, retomando Habermas. A isto podemos acrescentar: nem nenhum mito ou ideia transcendental. Em todas as incertezas que acompanham a crise do capitalismo, estão a ser de novo procurados os mitos estabilizadores, os mitos de um eu curado e curador, mas também o mito do iluminismo, do qual nem mesmo os sujeitos em queda na crise conseguem libertar-se.

Habermas também se agarra ao mito do iluminismo, apesar dos tons anti-idealistas aparentemente críticos. Embora não exista um espírito do mundo que garanta a "autocivilização da espécie no sentido de uma liberdade razoável", existe um "processo de aprendizagem com um resultado em aberto". É neste processo de aprendizagem – segundo Assheuer – "que se transforma" aquilo "que para Hegel é o espírito do mundo reinante". O processo de aprendizagem, contudo, já pressupôs sempre aquilo em que também termina: "a exigência de uma democracia social". Esta exigência ontológica de democracia é o princípio e o fim da história universal. O que se pressupõe é o que tem de ser objecto de crítica: a democracia, como forma política em que a acumulação de capital segue o seu curso. Na crise da acumulação de capital torna-se óbvio o que ela contém: estado de excepção e repressão. Aqui não há oração que ajude, e muito menos as invocações idealistas de uma democracia "real", como base normativa da coexistência social. Tais idealismos transcendentais vão parar a uma "má eternidade", na qual o mundo pode afundar-se na barbárie, e o ideal democrático, com isso nada perturbado, pode continuar a ser sempre transcendentalmente acarinhado, cultivado e reclamado...

 

 

(1) Thomas Assheuer, Was macht der Weltgeist? (Que anda a fazer o espírito do mundo?), in: DIE ZEIT nº 33/2020, 6 de Agosto.

(2) "A situação está fora de controlo" O bispo brasileiro Johannes Bahlmann sobre a crise do coronavírus na Amazónia e a contínua destruição da floresta tropical, in: Kölner Stadt-Anzeiger, 30/11/2020, p. 4.

 

 

Original Der Weltgeist geht um … oder vielleicht auch unter?” in www.exit-online.org Publicado inicialmente em www.oekumenisches-netz.de Tradução de Boaventura Antunes

 

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