Observações sobre o coronavírus na perspectiva da crítica da dissociação-valor
Herbert Böttcher
1. Com a propagação do coronavírus, há gente a sofrer e a morrer em condições indignas por todo o mundo. Isto não deve desaparecer atrás dos números, se não se pretende que as pessoas continuem a ser reduzidas a números e transformadas em espécimes. Afectados são sobretudo os "supérfluos" nas condições capitalistas. Isto aplica-se tanto à propagação descontrolada do vírus (com falta de habitação ou habitação exígua, condições precárias de trabalho, emprego informal) como às medidas para o conter. O vírus "entrelaça-se com 'pandemias' de pobreza, desigualdade, violência patriarcal, militarização, autoritarismo, isolamento". (1)
O vírus e as medidas para contê-lo são, por assim dizer, sobrepostos às relações de crise capitalista e actuam como seu acelerador. Se as considerações sobre zoonose estiverem correctas, o vírus pode ter tido origem no contexto das relações de produção capitalista (uso excessivo da terra, produção animal e pecuária maciça etc. para fins de produção de carne) e das conexas relações com a natureza. (2) Espalhou-se através das relações de distribuição capitalistas. E deparou-se com sistemas de saúde insuficientes ou parcialmente privatizados e prejudicados pela austeridade e, nas regiões de crise da periferia, com a dissolução das estruturas do mercado e do Estado.
2. Pretende-se que o vírus seja tratado por uma política que está a ficar cada vez mais sem fôlego, com a diminuição do financiamento e das opções de acção na crise. As somas astronómicas da dívida, incluindo o seu potencial inflacionário, impulsionado mais uma vez pelas ajudas económicas na crise do coronavírus, estão a alimentar a formação de bolhas e não podem ser compensadas pela produção de valor futuro. O objectivo das medidas estatais, na sua combinação de ajudas, restrição de contactos e vacinação, é assegurar o contexto do sistema capitalista e restaurar a sua normalidade.
A política não segue um padrão rigoroso. Antes dos confinamentos, o vírus foi ignorado ou minimizado. As medidas políticas que começaram depois são marcadas por contradições. Enquanto sobretudo os sectores orientados para a exportação foram deixados de fora, as restrições visaram principalmente a indústria da restauração, a indústria de eventos e lazer, o sector cultural e o impedimento de contactos sociais. Sobretudo esta última medida afectou pessoas em instituições saúde e de cuidados de uma forma inaceitável. Enquanto alguns sectores económicos "fechados" receberam ajuda estatal, o mesmo não se aplica às pessoas forçadas a viver em contextos sociais precários.
Os problemas sociais e psicossociais associados aos "confinamentos", como o isolamento de idosos e doentes, a restrição de contactos sociais, as consequências do encerramento de escolas especialmente para crianças socialmente desfavorecidas, o aumento da violência doméstica, depressão e distúrbios de ansiedade etc. tendem a ser ignorados pelos proponentes das "medidas de confinamento" e apresentados pelos críticos como um argumento contra as medidas – sem, obviamente, considerá-los “doenças pré-existentes" no quadro da normalidade capitalista.
3. Em vista dos auxílios estatais e das medidas de protecção, alguns sonham com o retorno do primado da política. Outros falam de estado de excepção. A política de ida e volta entre o "confinamento" e os "relaxamentos" não reflecte o primado da política, mas os limites da acção política para conciliar a proclamada protecção da saúde com as necessidades sistémicas. Nas referências ao estado de excepção, tem sido ignorado o contexto constitutivo de capitalismo e democracia, de repressão e liberalismo, especialmente pelos críticos da esquerda-liberal. (3) Quase nenhuma atenção foi dada à limitação do direito de manifestação (por exemplo, restrição da liberdade de reunião, amplas possibilidades de regulação e vigilância policial), especialmente pelo governo estadual "liberal quanto ao coronavírus" da Renânia do Norte-Vestefália. (4) Também a intensificação da repressão contra os refugiados, como as deportações colectivas forçadas da Grécia para a Turquia, impostas sob a pressão da crise do coronavírus, e a dificultação do processo de asilo da igreja (tais práticas ligadas à religião aparentemente não se enquadram na liberdade (religiosa) exigida contra as medidas do coronavírus) passaram em grande parte despercebidas.
Nas últimas décadas, o estado de excepção dos refugiados tornou-se o estado normal. Aqui se executa o que ameaça todos os tornados 'supérfluos'. É de temer que as medidas autoritárias do Estado implementadas em relação ao coronavírus também sejam aplicadas em outros contextos sociais e sejam acompanhadas pelo crescente asselvajamento dos aparelhos policial e judicial (corrupção, ligações mafiosas, etc.). Neste processo, o "estado de excepção", que dificilmente pode ser imposto pela política a longo prazo, provavelmente se transformará em asselvajamento político e social, como se pode ver em governos politicamente autoritários que ignoram a pandemia, como no Brasil ou na Hungria. Também aqui, as primeiras vítimas da ignorância sobre o vírus tal como das medidas de protecção são as partes da população tornadas "supérfluas".
4. "Todo o espalhafato de ética" (Roswitha Scholz) tem como objectivo estabelecer normas éticas gerais, tais como "protecção da saúde" ou "a vida não é o bem mais alto" (Scheuble), em sintonia com a funcionalidade do sistema. (5) Os discursos éticos tornam-se um teste de compatibilidade de valores e normas supostamente universais com as condições pressupostas como norma (normalidade) inquestionável. Ao apontar que a vida não é o bem mais elevado e é finita de qualquer modo, pretende-se que a crise do coronavírus abra caminho à normalidade capitalista – mesmo ao preço da libertação do darwinismo social.
Não é só uma vida funcional e eficiente produzida por uma mania de dominação da natureza e seu prolongamento a qualquer preço que constitui um problema biopolítico, mas também um deixar morrer funcional ao sistema, dados os custos associados à preservação da vida "supérflua". Na lógica da ética kantiana, isto pode ser tornado um dever. Neste contexto, a referência geral à mortalidade da "vida em si" é tão cínica quanto a queixa sobre o recalcamento do falecimento e da morte.
É duvidoso que os políticos no início da crise do coronavírus estivessem preocupados em proteger os idosos e os fracos particularmente vulneráveis. Os "idosos" eram mais susceptíveis de serem considerados como um reservatório eleitoral, mas também por causa do escândalo que terá sido temido no caso de uma "morte em massa". Agora que "os idosos" estão protegidos pela vacinação, as crianças e os jovens em particular são ameaçados de se tornarem vítimas da política pandémica, enquanto os vacinados recuperam "a sua liberdade" e os não vacinados são obrigados à vacina em nome da liberdade. O preço dessa liberdade poderá ser pago pelas crianças e adolescentes, sem protecção adequada nas creches e escolas "relevantes para o sistema", com o objectivo de a 'liberdade' de trabalhar dos mais velhos ser 'mantida' e de os alunos serem preparados para a sua possibilidade de valorização.
5. Também não se pode confiar nas evocações de solidariedade. Isto é particularmente óbvio na luta pela distribuição global de vacinas. Aqui se enfurece um "nacionalismo vacinal" que também está cego quanto às consequências para a própria nação. Analogamente à 'auto-referencialidade' do capital, indivíduos formatados para a 'auto-referencialidade' são subitamente supostos estar de novo em solidariedade. (6) Em vista da intensificação da concorrência na crise, porém, isto é exactamente como a quadratura do círculo: "As pessoas (devem) ser ao mesmo tempo egoístas e altruístas, ao mesmo tempo assertivas e cooperativas; competitivas e solidárias [...] ao mesmo tempo [...] devem ser [...] pobres e ricas, [...] económicas e esbanjadoras, [...] gordas e magras, ascéticas e hedonistas”, como Robert Kurz já tinha formulado em relação aos desenvolvimentos pós-modernos. (7)
6. O colapso dos apoios capitalistas, nas polaridades de economia e política, sujeito e objeto, mais uma vez é acelerado pela crise do coronavírus. O confuso vai e vem entre as polaridades é cada vez mais rápido e transversal aos pacotes de medidas. O mesmo é verdade para os sujeitos. Eles estão divididos entre liberdade e repressão, auto-afirmação e solidariedade, sentimento do ego e sentimento de nós. As contradições repercutem-se errática e transversalmente nos grupos e sujeitos individuais, e dificilmente podem ser resolvidas – especialmente numa sociedade formatada por a ausência de reflexão.
Os sujeitos, tornados vazios e insubstanciais com o colapso do trabalho e a dissolução dos apoios capitalistas, correm o risco de cair socialmente e na sua "identidade" num "vazio metafísico". Isto é tanto mais verdade quanto mais as medidas do coronavírus restringiram os contactos sociais e cortaram a compensação através de eventos e entretenimento, e as pessoas são jogadas mais directamente de volta ao vazio que se intensifica com a crise da socialização capitalista.
7. As contradições da situação social também se reflectem no panorama mediático. Não funciona de maneira uniforme. Os media atraem a atenção sobretudo quando os opostos são reproduzidos ou encenados de modo tão emocional quanto possível. Na situação do coronavírus, isto foi feito principalmente colocando os defensores das restrições contra aqueles que exigiam cada vez mais relaxamento (especialmente os representantes de sectores individuais). Uma campanha dos media bastante uniforme – embora dividida por diferentes fases – poderia ser observada nos media do grupo Springer. Eles tornaram-se os defensores da liberdade contra um Estado autoritário e mobilizaram os "especialistas" correspondentes.
8. A "inconsistência" da socialização de crise capitalista e da sua mediação com os sujeitos, que se intensificou mais uma vez com o coronavírus, faz com que se busque refúgio em certezas identitárias. Mencionem-se alguns aspectos brevemente:
• Em vista da ameaça permanente da crise, que se tornou ainda mais aguda com o coronavírus – desde o medo de não conseguir e cair, até ao medo de que a crise climática se torne dependência da impotência – as experiências de humilhação e medos são negadas e suprimidas, e é imaginada a própria genialidade em megalomania narcisista. O indivíduo humilhado e ofendido também pode posicionar-se em sua auto-importância diante do coronavírus, tornar-se o herói da liberdade e posicionar-se na sua posição esclarecida contra o fanatismo dos burros e/ou manipulados.
• As medidas para conter o vírus também contêm ofertas de certeza de identidade. Medos existenciais e até suspeitas de que toda a reprodução social e toda a normalidade vão colapsar podem ser projectados para a luta contra o coronavírus. Nas medidas contra o vírus, parece estar de volta uma capacidade de acção que está cada vez mais a deparar-se com limites imanentes na crise.
• Quase todos concordam em querer voltar à liberdade da normalidade capitalista: uns através do caminho do protesto contra as medidas, outros através de medidas defensivas que culminam na vacinação, que o Ministro da Saúde, Spahn, elogia com o slogan: "Estamos a vacinar-nos de volta à liberdade".
• De um canto supostamente emancipatório de esquerda-liberal, o apelo à liberdade ressoa como um apelo à democracia, à liberdade e aos direitos humanos. Demirovic quer negociar democraticamente como lidar com a epidemia e enfatiza: "Nós mantemos a nossa liberdade e tomamos decisões que podem ser autoritárias, liberais, social-darwinistas ou autonomistas-socialistas". (8) Em termos de direitos humanos democráticos vale tudo, incluindo uma decisão pelo darwinismo social.
• Sob a bandeira da liberdade podem unir-se supostos esquerdistas emancipatórios, apoiantes da AFD/FDP e simpatizantes de Carl Schmitt. Estão também unidos na recusa em entender as crises no contexto da totalidade capitalista e o papel que nela se desempenham a liberdade, os direitos humanos e a democracia. O que a liberdade e o estado de excepção significam neste contexto é mostrado sobretudo no tratamento daqueles que caem fora do processo capitalista de valorização, são considerados como “supérfluos" e, como não mais financiáveis pelo processo de valorização, são excluídos, internados, deixados morrer e mortos.
9. Alternar entre pólos como economia e política, liberdade e segurança, "auto-referencialidade" e solidariedade, que vão mudando de acordo com o curso da crise, está a tornar-se cada vez menos possível – e isto é especialmente verdade no contexto da gigantesca dívida e da enorme bolha de liquidez, com as tendências inflacionistas a ela associadas. Em vez de tomar partido por um dos lados, "seria necessário pragmatismo e cooperação à escala internacional para conter a crise actual que se agudiza com o coronavírus. A pesquisa, as transferências de bens etc., a produção de coisas vitais teriam de ser controladas para além das fronteiras nacionais, sem burocracia e gratuitamente, para contrariar outras consequências bárbaras ... Contudo, tal pragmatismo e união de esforços não devem ser confundidos de maneira kitsch com o aparecimento de outra sociedade. Esta só pode ser vista quando, pensando e agindo, se chegar a uma ruptura com as formas de socialização da dissociação-valor.". (9)
10. E, por último: para evitar reduzir a discussão ao coronavírus, questões como a crise climática e a fuga da destruição das bases da vida e do Afeganistão devem ser incluídas na discussão, e é preciso questionar até que ponto problemas semelhantes aos do coronavírus podem ser vistos aqui, por exemplo, a negação ou recalcamento dos sintomas da crise, a recusa em perceber as ligações com a socialização da dissociação-valor, o ignorante "mais do mesmo" mesmo quando as catástrofes se transformam em asselvajamento, "mais do mesmo" com fetichismo da acção e "espalhafato de ética" no quadro das relações pressupostas, que estão em desintegração e cada vez mais confusas dada a dissolução dos seus apoios polares...
(1) Jule Manek, Usche Merk, In Turbulenzen. Die Pandemie (über) fordert Einzelne und Gesellschaften. Eine psychosoziale Ringvorlesung erkundet die sozialen und affektiven Folgen [Em turbulências. A pandemia exige (demais) aos indivíduos e às sociedades. Uma série de leituras psicossociais sobre as consequências sociais e afectivas], in: medico international, rundschreiben 03/21, 44s.
(2) Cf. Rob Wallace, Was Covid-19 mit der ökologischen Krise, dem Raubbau an der Natur und dem Agrobuisness zu tun hat [O que tem a Covid-19 a ver com a crise ecológica, a sobreexploração da natureza e o agronegócio], Köln 2/2021.
(3) Cf. Roswitha Scholz, ‚Die Demokratie frisst immer noch ihre Kinder‘ – heute erst recht! In: exit! Krise und Kritik der Warengesellschaft 16/2019, 30 – 60. Trad. port.: ‘A democracia continua a devorar os seus filhos’ – hoje ainda mais!, online: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz32.htm
(4) Cf. Verachtung demokratischer Teilhabe. Geplantes NRW-Versammungsgesetzt führt Grundrecht ad absurdum [Desprezo pela participação democrática. A planeada lei de assembleia da Renânia do Norte-Vestefália reduz os direitos fundamentais ao absurdo], in: Informationen Grundrechte Komiee.de 02/2021.
(5) Cf. Herbert Böttcher (2020): Sobre a discussão do coronavírus, https://www.oekumenisches-netz.de/2020/05/zurdiskussion-um-corona/.
(6)Vgl. Herbert Böttcher u. Leni Wissen, Zwischen Selbstbezüglichkeit und Solidarität? Corona in der Leere des Kapitalismus, in: exit! u. Ökumenisches Netz, Netztelegramm, Februar 2021, vor allem p. 3ss., https://www.oekumenisches-netz.de/wp-content/uploads/2021/02/Netztelegramm-1.21_Sonderausgabe-mitexit.pdf. Trad. port.: Entre a auto-referencialidade e a solidariedade? O coronavírus no vazio do capitalismo, online: http://www.obeco-online.org/leni_wissen1.htm
(7) Robert Kurz, citado por Roswitha Scholz, acima, nota 3, 50.
(8) Alex Demirovic, Warum die Forderung nach einem harten Shutdown falsch ist. Zur Kritik des Aufrufs ZeroCovid [Porque está errada a exigência de um confinamento rigoroso. Para a crítica do apelo ZeroCovid]. https://www.akweb.de/bewegung/zerocovid-warum-die-Forderung-nach-einem-harten-shutdown-falsch-ist/, 2021.
(9) Herbert Böttcher, Roswitha Scholz, Corona und der Kollaps der Modernisierung, https://exit-online.org/textanz1.php?tabelle=aktuelles&index=60&posnr=731. Trad. port.: Coronavírus e o Colapso da Modernização, online: http://www.obeco-online.org/coronavirus_e_o_colapso.htm
Comunicação apresentada no painel de discussão sobre coronavírus no seminário da exit! em setembro de 2021. Original “Beobachtungen zu Corona aus wertabspaltungskritischer Perspektive” in: exit-online.org. Tradução de Boaventura Antunes