Do confinamento light passando pela vacinação até à morte em liberdade com segurança jurídica

Observações sobre o coronavírus na perspectiva da crítica da dissociação-valor

 

 

Herbert Böttcher

 

Nota prévia:

O texto reúne reflexões que surgiram durante a pandemia de coronavírus no âmbito da Rede Ecuménica Rhein-Mosel-Saar e da exit!. (1) Levam a uma crítica do que está a acontecer na previsível quarta vaga. Enquanto no início da crise do coronavírus o foco estava principalmente nas discussões sobre medidas estatais para conter o vírus, no decurso da crise os actores estatais também seguiram ou adoptaram cada vez mais o apelo à liberdade no quadro da normalidade capitalista. No entanto, devido à morte em massa de pessoas, tiveram de voltar a medidas – agora ainda mais difusas – para proteger a saúde das pessoas ou, mais precisamente, para aliviar o sistema de saúde, que está a atingir os seus limites, sem abandonar a retórica da liberdade e da normalidade. A primeira parte do texto foi a base para uma intervenção no seminário de exit! em Outubro de 2021, o foco na 4ª vaga serviu de base a uma apresentação na Assembleia da Rede Ecuménica, em Novembro de 2021.

 

Sobre a propagação do coronavírus

Com a propagação do coronavírus , pessoas em todo o mundo estão a sofrer e a morrer em condições indignas. Os mais afectados são os 'supérfluos' nas condições capitalistas. Isto é verdade tanto no que diz respeito à propagação descontrolada do vírus (sem abrigo, habitações apertadas, emprego precário e informal, lares de idosos) como no que diz respeito a medidas para o conter. O vírus "entrelaça-se com 'pandemias' de pobreza, desigualdade, violência patriarcal, militarização, autoritarismo, isolamento ". (2) Isto não deve desaparecer atrás dos números, para que as pessoas não sejam reduzidas ainda mais a números e transformadas em espécimes.

 

O vírus e as medidas para o conter são, por assim dizer, sobrepostos às relações de crise capitalistas e actuam como seu acelerador. Se as considerações sobre zoonose estiverem correctas, o vírus pode ter tido origem no contexto das relações de produção capitalista (utilização excessiva da terra, produção animal, pecuária em massa etc. para efeitos de produção de carne) e das relações naturais a elas associadas. (3) Propagou-se através das relações de distribuição capitalistas. No processo, deparou-se com sistemas de saúde inadequados ou parcialmente privatizados, prejudicados pela austeridade e, nas regiões em crise da periferia, com a dissolução das estruturas do mercado e do Estado.

 

O regresso do primado da política?

Pretende-se que o vírus seja tratado por uma política que está a ficar cada vez mais sem fôlego, com a diminuição do financiamento e das opções de acção na crise. As somas astronómicas da dívida, incluindo o seu potencial inflacionário, impulsionado mais uma vez pelas ajudas económicas na crise do coronavírus, estão a alimentar a formação de bolhas, e não podem ser compensadas pela produção de valor futuro. O objectivo das medidas estatais, na sua combinação de ajudas, restrição de contactos e vacinação, é assegurar o contexto do sistema capitalista e restaurar a sua normalidade.

 

A política não segue um padrão rigoroso. Antes dos confinamentos, o vírus foi ignorado ou minimizado. As medidas políticas que começaram depois são marcadas por contradições. Enquanto foram deixados de fora sobretudo os sectores virados para a exportação, as restrições visaram principalmente a indústria da restauração, a indústria de eventos e lazer, o sector cultural e o impedimento de contactos sociais. Sobretudo esta última medida afectou de uma forma inaceitável pessoas em instituições saúde e de cuidados. Enquanto alguns sectores económicos "fechados" receberam ajuda estatal, o mesmo não se aplica às pessoas forçadas a viver em contextos sociais precários.

 

Os problemas sociais e psicossociais associados aos "confinamentos", como o isolamento de idosos e doentes, a restrição de contactos sociais, as consequências do encerramento de escolas especialmente para crianças socialmente desfavorecidas, o aumento da violência doméstica, depressão e distúrbios de ansiedade etc. tendem a ser ignorados pelos proponentes das "medidas de confinamento" e apresentados pelos críticos como um argumento contra as medidas – sem, obviamente, considerá-los “doenças pré-existentes" no quadro da normalidade capitalista, por exemplo, divisões sociais e desvantagens sociais no sistema educativo, condições de habitação apertadas, stress psicológico devido à intensificação do trabalho, condições precárias de emprego, etc. O vírus atingiu as "condições pré-existentes", sobretudo no chamado mundo dos dois terços. Assentou em condições de vida marcadas pela fome e pela guerra, pela destruição dos meios de subsistência e pela fuga. Todos estes problemas têm sido exacerbados pelo vírus. Mas as medidas contra a sua propagação atingem também de forma particularmente dura as pessoas que dependem das suas ocupações informais, sem poderem compensar pelo menos parcialmente as perdas através da ajuda estatal.

 

Face aos auxílios estatais e às medidas de protecção, alguns sonham com o retorno do primado da política. Na realidade política, contudo, rapidamente se chegou a um confuso ir e vir entre 'confinamentos' e 'relaxamentos'. Isto reflecte os limites da acção política para reconciliar a proclamada protecção da saúde com as necessidades sistémicas da produção e consumo capitalistas. No decurso da crise do capitalismo, já se tinha tornado evidente, sobretudo no colapso do sistema financeiro, que, dependendo do curso da crise, havia mudanças cada vez mais rápidas e difusas entre as polaridades do mercado e do Estado, da economia e da política, ou seja, da "liberdade" e da regulação. Aqui torna-se claro que esta "interacção" também atinge os seus limites e leva a uma acção política cada vez mais difusa. Com a "interacção" de "relaxamentos" e "confinamentos", a crise do coronavírus também não pode ser "posta sob controlo".

 

Em alguns círculos de esquerda ou liberais de esquerda, o suposto regresso do primado da política foi suspeito de utilizar o coronavírus para implementar objectivos autoritários, até ao estado de excepção. Quando foram feitas referências ao estado de excepção, desvaneceu-se a ligação constitutiva entre capitalismo e democracia, entre repressão e liberalismo, na fixação da crítica às medidas coronavírus (especialmente entre os críticos da esquerda liberal). (4) Quase nenhuma atenção foi dada às limitações do direito de manifestação, aprovadas principalmente pelo governo do Estado 'liberal quanto ao coronavírus' da Renânia do Norte-Vestefália para complementar a rígida lei policial que já está em vigor desde 2018 (por exemplo, restrição da liberdade de reunião, possibilidades abrangentes de regulação e vigilância por parte da polícia). (5) A intensificação da repressão contra os refugiados, como as deportações forçadas colectivas da Grécia para a Turquia, impostas sob a pressão da crise do coronavírus, e a intensificação da perseguição penal do asilo da Igreja também passaram em grande parte despercebidas. A religião praticamente vivida no asilo da Igreja obviamente não se enquadra na liberdade (religiosa) exigida contra as medidas do coronavírus.

 

Nas últimas décadas, o estado de excepção dos refugiados tornou-se o estado normal. Aqui se executa o que ameaça todos os que foram tornados 'supérfluos'. É de temer que medidas autoritárias do Estado, implementadas tendo em vista o coronavírus ou à sombra do coronavírus, sejam também aplicadas noutros contextos sociais e sejam acompanhadas pelo crescente asselvajamento dos aparelhos policial e judicial (corrupção, ligações mafiosas, redes de extrema-direita, etc.). No processo, o "estado de excepção", que dificilmente pode ser imposto pela política a longo prazo, é susceptível de se transformar em asselvajamento político e social, como pode ser observado em governos politicamente autoritários que ignoram a pandemia, tais como no Brasil ou na Hungria.

 

Media

As difusidades da situação social reflectem-se também no panorama mediático. Não funciona de modo uniforme. Os media atraem a atenção sobretudo quando os contrários são reproduzidos ou encenados de forma tão emocional quanto possível. Foi o que aconteceu nas discussões sobre "confinamento" e "relaxamento", sobretudo quando os defensores das restrições e aqueles que exigiam relaxamentos cada vez mais amplos (sobretudo os representantes de sectores individuais), juntamente com os "peritos" correspondentes, foram postos uns contra os outros. Os talk shows, na sua busca de entretenimento e atenção, não hesitam em deixar que até as vozes mais bizarras e absurdas tenham a sua palavra.

 

Sob o manto do equilíbrio democrático, encenam a desinformação e uma "cultura de discussão" tão aberta de todos os lados que, como forma elevada de discurso democrático, também é possível afinal discutir se a Terra é realmente uma esfera ou talvez um disco. "É errado dar a palavra aos cegos. Temos feito isso jornalisticamente desde o início e temos feito enormes estragos com isso", diz à Redaktionsnetzwerk Deutschland (RND) Dirk Steffens, jornalista e apresentador na "Terra X", sobre a forma como os media lidam com os negacionistas do coronavírus e do clima. Uma campanha mediática bastante uniforme pôde ser observada – embora dividida por fases diferentes – nos media  do grupo Springer. Transformaram-se justamente em defensores da liberdade contra um Estado autoritário e mobilizaram os "peritos" correspondentes.

 

Sobre ética e outras contradições

Os conselhos e comissões de ética são procurados quando se trata de estabelecer harmonia com as condições da normalidade capitalista. Todo o "espalhafato de ética" (Roswitha Scholz) visa estabelecer normas éticas gerais, tais como "protecção da saúde" ou orientações éticas como "a vida não é o bem mais elevado" (Schäuble), com funcionalidade sistémica. (6) Os discursos éticos tornam-se um teste de compatibilidade de valores e normas supostamente universais com as condições pressupostas como norma (normalidade) inquestionável. Ao apontar que a vida não é o bem mais elevado e é finita de qualquer modo, pretende-se que a crise do coronavírus abra caminho à normalidade capitalista – mesmo à custa da libertação do darwinismo social.

 

Analogamente à problematização da mortalidade da vida "em si", a ilusão de controlo sobre a natureza foi biopoliticamente identificada como um problema ético. Mas não é apenas a mania biopolítica (de controlo da natureza) de vida funcional e eficiente e seu prolongamento a qualquer preço que é um problema biopolítico, mas também um deixar-morrer sistemicamente funcional – sobretudo tendo em conta os custos associados à preservação da vida 'supérflua'. Na lógica da ética kantiana, isto pode mesmo tornar-se um dever. Neste contexto, a queixa sobre o recalcamento do falecimento e da morte não é menos cínica do que a referência à mortalidade da vida "em si".

 

É duvidoso que os políticos no início da crise do coronavírus estivessem preocupados em proteger os idosos e os fracos particularmente vulneráveis. Os "idosos" eram mais susceptíveis de serem considerados como um reservatório eleitoral, mas também devido ao escândalo que terá sido temido de uma "morte em massa". Do mesmo modo, as invocações de solidariedade (7) não são de confiança. Analogamente aos sonhos de regresso ao primado da política, alguns já sonhavam com o regresso a uma sociedade solidária que mostrasse consideração pelos seus "vulneráveis" e "fracos", e mostrasse "apreço" por aqueles que se ocupavam deles (pelo menos batendo palmas das varandas) ou assumiam serviços importantes ao serviço de outros no "confinamento". Tal solidariedade, contudo, provou ser tanto mais frágil quanto maior for a pressão económica e psicológica para regressar à normalidade capitalista. Que os sentimentos de solidariedade exacerbados acabaram (pelo menos politicamente) nas fronteiras do próprio país foi demonstrado pela luta sobre a distribuição global de vacinas. Aqui grassa um "nacionalismo vacinal", que também é cego às consequências em termos da sua própria situação. A chamada lei das patentes cria "segurança jurídica" para isso.

 

Analogamente à 'auto-referencialidade' do capital, os indivíduos formatados para a 'auto-referencialidade' são subitamente supostos estar de novo em solidariedade. (8) No entanto, o interruptor não pôde ser invertido de repente, convertendo 'auto-referencialidade' em solidariedade. Com a intensificação da concorrência na crise, porém, isto é exactamente como a quadratura do círculo: "As pessoas (devem) ser ao mesmo tempo egoístas e altruístas, ao mesmo tempo assertivas e cooperativas; competitivas e solidárias [...] ao mesmo tempo [...] devem ser [...] pobres e ricas, [...] económicas e esbanjadoras, [...] gordas e magras, ascéticas e hedonistas”, como Robert Kurz já tinha formulado em relação aos desenvolvimentos pós-modernos. (9)

 

colapso dos apoios capitalistas, nas polaridades de economia e política, sujeito e objecto, mais uma vez é acelerado pela crise do coronavírus. O confuso vai e vem entre as polaridades é cada vez mais rápido e transversal aos pacotes de medidas. O mesmo é verdade para os sujeitos. Eles estão divididos entre liberdade e repressão, auto-afirmação e solidariedade, sentimento do ego e sentimento de nós. As contradições repercutem-se errática e transversalmente nos grupos e sujeitos individuais, e dificilmente podem ser resolvidas – especialmente numa sociedade formatada para a ausência de reflexão.

 

Os sujeitos, tornados vazios e insubstanciais com o colapso do trabalho e a dissolução dos apoios capitalistas, correm o risco de cair socialmente e na sua "identidade" num "vazio metafísico". Isto é tanto mais verdade quanto mais as medidas do coronavírus restringiram os contactos sociais e cortaram a compensação através de eventos e entretenimento, e as pessoas são jogadas mais directamente de volta ao vazio que se intensifica com a crise da socialização capitalista.

 

Em busca de certezas identitárias

A "inconsistência" da socialização de crise capitalista e da sua mediação com os sujeitos, que se intensificou mais uma vez com o coronavírus, faz com que se busque refúgio em certezas identitárias. Mencionem-se alguns aspectos brevemente:

 

 • Em vista da ameaça permanente da crise, que se tornou ainda mais aguda com o coronavírus – desde o medo de não conseguir e de cair, até ao medo da crise climática – as experiências e medos da dependência, da impotência e da doença são negadas e recalcadas, e é imaginada a própria genialidade em megalomania narcisista. O indivíduo humilhado e ofendido pode posicionar-se gloriosamente diante do coronavírus, tornar-se um herói da liberdade e, em sua iluminação ou na descoberta esotérica da verdade, tanto dentro como em conexão com o cosmos, "as estrelas", posicionar-se contra a tacanhez dos estúpidos e/ou manipulados. As fantasias da conspiração reduzem a complexidade, removem a incerteza e ligam o medo e a agressão.

 

 • As medidas para conter o vírus também têm ofertas de certeza identitária – especialmente para uma classe média cada vez mais precária. Medos existenciais e até suspeitas de que toda a reprodução social e toda a normalidade vão colapsar podem ser projectados para a luta contra o coronavírus. Nas medidas contra o vírus, bem como nas vacinações, parece estar de volta uma capacidade de acção que está cada vez mais a deparar-se com limites imanentes na crise.

 

 • Quase todos concordam em querer voltar à liberdade da normalidade capitalista: uns através da via do protesto contra as medidas, outros através de medidas defensivas que culminam na vacinação, que o Ministro da Saúde, Spahn, elogia com o slogan: "Estamos a vacinar-nos de volta à liberdade".

 

 • De um canto supostamente emancipatório de esquerda-liberal, o apelo à liberdade ressoa como um apelo à democracia, aos direitos liberais e aos direitos humanos. Demirovic quer negociar democraticamente como lidar com a epidemia e enfatiza: "Nós mantemos a nossa liberdade e tomamos decisões que podem ser autoritárias, liberais, social-darwinistas ou autonomistas-socialistas". (10) Em termos de direitos humanos democráticos vale tudo, incluindo uma decisão pelo darwinismo social.

 

Foco 4ª vaga: Pior é sempre possível

Actualmente (21 de Novembro), estamos na quarta vaga. Na Alemanha, o número de mortes de coronavírus registadas diariamente aumentou dez vezes entre 23.10. e 9.11.21, de 23 para 237, (11) e continuou a aumentar depois disso, e continuará a aumentar drasticamente de acordo com o desenvolvimento da incidência. O limite de 100 000 mortes por coronavírus acaba de ser ultrapassado. "A Alemanha não está de todo a viver um déjà vu com o segundo Inverno do coronavírus. A Alemanha está agora a viver um desastre sem precedentes", comenta o Kölner Stadt-Anzeiger. (12) Em tal situação, o Parlamento alemão, por instigação da nova coligação semáforo, declara que a emergência epidémica terminou.

 

No novo projecto de lei da coligação semáforo sobre as medidas que podem ser tomadas, de acordo com Franz C. Meyer, Professor de Direito Público, Direito Europeu e Internacional na Universidade de Bielefeld, já pode ser visto na remoção das possíveis medidas. O que resta é: Requisitos de distanciamento, máscaras obrigatórias, regulamentos para vacinados, recuperados e portadores de teste negativo, concepções de higiene, rastreio de contactos, requisitos para escolas e universidades. (13) A gestão da pandemia é transferida principalmente para o nível dos Estados federados, sendo longa a lista de restrições que já não são possíveis: sem restrições de saída ou de contacto, sem proibição ou restrição de viagens, de operações culturais e ou de estabelecimentos gastronómicos, sem encerramento nem restrição de empresas, universidades, escolas, creches.... (14) Os Estados federados ficam com um catálogo de medidas ainda mais reduzido que, "devido ao seu baixo nível de intervenção", podem também ser ordenadas pelos governos estaduais sem o consentimento dos parlamentos estaduais. Se os Estados federados apertarem individualmente as suas medidas de protecção contra a propagação do vírus, utilizarão a Lei de Protecção de Infecções, que ainda está em vigor até 15 de Dezembro, para o fazer.

 

A alteração é justificada pela criação de segurança jurídica. Isto é para assegurar que as medidas também passarão em tribunal. No entanto, as medidas individuais não foram anuladas devido à falta de base jurídica – como alegado pelas partes da coligação – mas porque os tribunais as consideraram desproporcionadas na sua aplicação. A crítica não foi a falta de uma base jurídica, mas sim a sua aplicação em casos individuais. De acordo com Meyer, uma decisão do Tribunal Administrativo da Baviera (VGH), à qual o político do FDP Buschmann se referiu expressamente várias vezes, "deixa muito claro que no contexto da epidemia também pode haver, talvez até deva haver, bases jurídicas muito abertas. Só quando se trata de medidas concretas é que se levanta a questão decisiva de saber se são proporcionais no caso específico. ... O argumento da segurança jurídica é, portanto, obviamente errado, especialmente porque outra jurisprudência não indica que as bases relevantes estejam a ser questionadas". (15)

 

Na nova coligação semáforo, o FDP tem obviamente prevalecido, assistido pelos Verdes, que estão associados ao liberalismo burguês, e – na boa tradição social-democrata adaptada – aparentemente também sem resistência por parte do SPD. Todos são a favor da "liberdade" – no quadro da normalidade capitalista, é claro. Os slogans de liberdade são ouvidos em conformidade quando se trata de regressar à normalidade burguesa capitalista o mais rapidamente possível. Mas quando se trata de restrições ao direito de manifestação, repressão contra refugiados etc., o FDP e os consigo membros da coligação seguem o autoritarismo, até ao estado de excepção nas fronteiras europeias e nos campos para refugiados. Liberdade para os "normais", repressão e morte para os tornados "supérfluos" no quadro da liberdade do mercado. É a lógica neoliberal, segundo a qual o Estado social foi desmantelado e o Estado policial construído no Chile sob Pinochet desde o início dos anos setenta – de acordo com o slogan social-darwinista liberal: o Estado social escraviza, o Estado policial liberta. Isto mostra quão rapidamente o liberalismo se pode aliar a sistemas autoritários e mesmo fascistas. (16)

 

Contra as medidas de protecção do vírus, a ideologia individualista e anti-social da liberdade está agora a ser avançada por liberais de vários matizes. Esta ideologia intelectualmente simplória tem o seu preço. De acordo com a lógica da história social-darwinista do liberalismo, é pago por aqueles que têm a piores cartas na luta pela existência. (17) Não há necessidade de qualquer "espalhafato de ética", porque a liberdade liberal é evidente por si mesma e o sujeito autónomo e consciente está acima da mediação social. As crises são ignoradas e negadas quando entram em conflito com coerções sistémicas e quando contradizem a auto-imagem liberal do sujeito responsável em conformidade com o sistema.

 

Liberdade para o darwinismo social

Numa sociedade neoliberal, em que os indivíduos têm de assumir a responsabilidade pela sua própria auto-optimização, a fim de estarem equipados em toda a liberdade para a luta pela existência, uma liberdade com conotações sociais darwinistas é altamente plausível. Tendo em conta o coronavírus, o preço desta liberdade é pago por aqueles,

 

 • que morrem de coronavírus em unidades de cuidados intensivos, bem como por aqueles que não podem ser tratados ou só podem ser tratados demasiado tarde de doenças agudas, por exemplo, ataques cardíacos ou acidentes vasculares cerebrais, ou ferimentos graves,

 

 • que estão sobrecarregados, como médicos e enfermeiros nas unidades de cuidados intensivos,

 

 • todos aqueles que não podem ser protegidos pela vacinação e, por último, mas não menos importante

 

 • crianças com menos de 12 anos, que não podem (ainda) ser protegidas pela vacinação e cujos quadros clínicos são tão graves como os dos adultos, mesmo que pareçam ocorrer com menos frequência – menosprezar isto como um "risco geral de vida", como o governo da Renânia-Palatinado ainda o formulou em Julho, não corresponde em caso algum à realidade.

 

De acordo com o Gabinete de Saúde da Renânia do Norte-Vestefália, a incidência entre os jovens de zero a 9 anos é de 276, sendo a maior incidência entre os jovens de 10 a 19 anos (344). (18) À medida que a incidência aumenta, aumenta também o perigo, para o qual Michael Hallek, um internista do Hospital Universitário de Colónia, adverte: "Todos os pacientes da unidade de cuidados intensivos sofrem terrivelmente, e muitos jovens morrem diante dos nossos olhos" (19) Ao mesmo tempo, está a aumentar o perigo de efeitos tardios maciços. Uma das principais razões para o aumento da incidência entre crianças e adolescentes é a vacinação não possível ou demasiado tardia. Em vez de proteger adequadamente estes grupos, por exemplo, em creches e escolas (filtros de ar, máscaras, aumento dos testes), estes grupos são expostos à contaminação, e é eliminado o instrumento do encerramento geral de creches e escolas. Entretanto, o presidente da Associação Alemã de Professores, Heinz Peter Meidinger, adverte que "a política não deve simplesmente aceitar a contaminação das escolas”. (20) Depois de "os velhos" terem sido protegidos pela vacinação durante cerca de 5 meses, as crianças e adolescentes em particular estão ameaçados de serem vítimas de uma política de contaminação, enquanto que os mais jovens vacinados recuperam "a sua liberdade", e se pretende que os não vacinados sejam obrigados a vacinar-se em nome da liberdade. O preço para tal poderia ser pago por crianças e jovens que, sem protecção suficiente, são "mantidos" nas creches e escolas "relevantes para o sistema" com o objectivo da "liberdade" dos pais para trabalhar, e estão a ser preparados para a sua valorização. E "os idosos" estão também a pagar novamente o preço, nomeadamente o de mortes às centenas, porque apesar dos primeiros indícios, não foram colocados "reforços" a tempo e as infra-estruturas necessárias sob a forma de centros de vacinação foram em grande parte encerradas – e só agora estão a ser reabertas, com mais de 300 mortes por dia.

 

Os políticos na Alemanha parecem mostrar uma consideração especial pelos cépticos da vacinação. Isto provavelmente não se deve apenas ao respeito pela "liberdade", mas tem uma origem especificamente alemã. Não é por acaso que a vontade de vacinar parece ser particularmente pronunciada nos países de língua alemã: um estudo da Fundação Heinrich Böll de Baden-Württemberg mostra a ligação entre os medos existenciais burgueses, o chamado meio alternativo verde de esquerda e, sobretudo, a antroposofia. (21) Esta última é também permeada por um "pensamento" esotérico que remonta à filosofia vitalista do século XIX, cujo conteúdo é, entre outras coisas, o do super-homem de Nietzsche. Também aí, o caminho para o darwinismo social está pavimentado e a acção conjunta com extremistas de direita já não é uma coincidência.

 

Em vez do primado da política, a política difusa

Os caminhos social-darwinistas são, em última análise, uma expressão do auto-abandono da política. Dissolvem a polaridade entre a auto-regulação (social-darwinista) em conformidade com o mercado e a regulação política. Ao fazê-lo, seguem o agravamento da situação de crise, que já não pode ser ultrapassada nas polaridades familiares, e permitem que o asselvajamento das relações de crise siga o seu curso. No entanto, isto não significa que as contradições das condições tenham terminado, mas sim que elas estão a ripostar:

 

 • O lema de Spahn: "Vacinamo-nos de volta à liberdade" foi rapidamente negado pelo facto de a vacinação proteger contra doenças graves, mas cada vez menos à medida que a protecção imunitária diminui, e pelo facto de os vacinados transmitirem o vírus aos não vacinados, o que pode levar a doenças nos não vacinados – e cada vez mais também nos vacinados, especialmente aqueles com sistemas imunitários fracos – e às suas consequências. O regresso à "normalidade" não é tão rápido como os pregadores de Spahn e do FDP tinham imaginado. As promessas do fim da situação epidémica, cada vez mais relaxamentos, "não mais bloqueio", não mais regras para vacinados, recuperados e testados no local de trabalho, não mais vacinas ... estão a provar ser enfatuadas e ignorantes da realidade. Manobraram a política para uma situação em que os políticos preferem cingir-se a estes discursos a admitir um erro que custa vidas humanas. No entanto, os cientistas estão amplamente de acordo:o que é necessário é uma abordagem coordenada, desde a vacinação, passando pela utilização generalizada do certificado de vacina ou de recuperação, até ao uso de máscaras e ao encerramento de instalações a nível nacional para conter ou quebrar a quarta vaga. Apesar de toda a previsibilidade, (22) mais uma vez não existe um plano para isso mesmo. Em vez disso, a remoção das máscaras torna-se uma adesão desafiadora às promessas ilusórias e, assim, uma ilusão de que, com as máscaras, o vírus também desapareceu. A luta contra as máscaras torna-se uma luta contra o facto de a ameaça se tornar visível nas máscaras. De acordo com a lógica arcaica de matar o mensageiro pelas más notícias que traz, o desaparecimento da máscara destina-se a fazer desaparecer a sua mensagem negativa e a sua razão. A realidade recalcada, contudo, regressa com as ameaças que se estão a tornar novamente visíveis e que colocarão a política sob pressão para se legitimar a si própria.

 

 • Com o fosso entre vacinação e segurança, está de volta a contradição entre liberdade liberal e responsabilidade social. Um regresso despreocupado à "normalidade" só será possível, entre outras coisas, quando mais pessoas forem vacinadas. Por conseguinte, a questão da vacinação não é simplesmente uma questão de liberdade individual, mas de mediar a vida do indivíduo com as circunstâncias. Isto aplica-se mesmo aos contextos globais em que o nacionalismo vacinal dos economicamente "fortes" se quebra nas cadeias de abastecimento e nas rotas comerciais globais que são essenciais ao capitalismo global. As cadeias de produção, comércio e infecção estão interligadas de tal modo que a escassez da oferta pode ocorrer à medida que o vírus se espalha e que são tomadas medidas para o conter. Isto alimentou simultaneamente a inflação porque a escassez da oferta leva a preços de mercado mais elevados. Por outras palavras, mais liberdade para o vírus significa menos liberdade para a economia. O facto de a propagação descontrolada do vírus ser também ameaçadora para a economia a longo prazo foi entretanto reconhecido pelas associações empresariais e estas estão certamente a apelar a medidas contra a propagação do vírus – em contraste com os liberais políticos que se agarram como se nada fosse ao seu rumo de darwinismo social.

 

Os políticos sentiram uma vantagem de curto prazo na ligação aos pensadores transversais, liberais e alguns de esquerda que exigiam liberdade. No processo, as críticas dos cientistas foram ignoradas tanto como as dos supostos alarmistas e moralizadores. Entretanto, parece ter ficado claro para os economistas que pensam a longo prazo que a economia só poderia retomar se conseguisse domar o vírus. Então a política será mais uma vez confrontada com a situação de mudar de cavalos, ou seja, de polaridades, incluindo todos os problemas que isso implica: desde a perda de credibilidade e confiança até aos limites da acção cada vez menos manipuláveis nas polaridades familiares. Mesmo esta alternância de polaridades encontra limites.

 

Não são apenas os intervalos de tempo em que há um confuso ir e vir que se estão a tornar mais pequenos. Há sinais crescentes de que a confusão percorre as pessoas envolvidas. A co-presidente do SPD, Esken, recomenda que os Estados implementem medidas mais rigorosas no sentido de um encerramento enquanto ainda é possível. O Ministro da Saúde da Renânia do Norte-Vestefália, responsável pelo ajustamento neoliberal dos hospitais, tenta relativizar a situação catastrófica nos hospitais, assinalando que há falta de pessoal de enfermagem porque demasiados deles estão a desistir do emprego.

 

Uma perda gritante da realidade é visível na política difusa. É particularmente evidente na ignorância complacente das descobertas científicas, o que levou a que a política escorregasse para a evitável quarta vaga do coronavírus e provocasse uma situação ainda mais dramática em comparação com o Inverno passado. Levantar a emergência epidémica no meio desta vaga é uma marca particular de tal ignorância. É – e aí reside a sua dimensão profunda – uma expressão da perda do objecto da política, que se deve sobretudo ao curso da crise. Não tenta fazer justiça a um objecto, mas perde-se a si própria na sua própria encenação. Não se trata de tomar uma posição sobre um problema factual em relação ao objecto e agir em conformidade, mas de se encenar de forma atractiva. A encenação tem como objectivo atrair a atenção e a aprovação. No processo, o objecto é perdido de vista. Se a encenação falhar a marca, o problema não é um erro na matéria, mas uma comunicação defeituosa, que levou a um mal-entendido. Por exemplo, o chefe do FDP, Linder, que foi apresentado nos Temas do Dia pelo apresentador Zamperoni, a propósito da sua declaração de que medidas como as restrições de saída e de contacto eram ineficazes "de acordo com estudos científicos", e que foi repreendido pelos esclarecimentos do cientista Viola Priesemann, não corrigiu o disparate factual que tinha dito, mas pediu desculpa por se ter expressado de uma forma equívoca. (23)

 

O Secretário-Geral do FDP, Volker Wissing, também forneceu uma amostra de tal comunicação: "O nosso sistema de saúde é estável, os cuidados de saúde dos cidadãos estão assegurados, a 'emergência epidémica de âmbito nacional' pode ser levantada", tweetou ele – propaganda competitiva com a do Pravda. Quando foi recebido com indignação por aqueles que apontavam o número crescente de infecções e mortes, ele apagou o tweet, mas não o propósito político, que fora imposto contrafactualmente e contra os conhecimentos virológicos. O que é corrigido é a comunicação, não a questão. Tais recuos fazem lembrar as tácticas da AfD que, quando as suas tiradas racistas e social-darwinistas fazem demasiadas ondas, se desviam e pretendem "não ter feito tal".

 

O liberalismo político como o "último grito"?

Nesta situação confusa marcada pela perda do objecto, o liberalismo político, em todo o vazio da sua fraseologia de liberdade, parece ser actualmente a última âncora de salvação do pessoal político. Não é por acaso que, na actual crise, o liberalismo político – actualmente numa sinistra família espiritual de AfD, FDP e Verdes, juntamente com os social-democratas, bem como o anterior vergar-se democrata-cristão – está politicamente a tomar o comboio. O seu lugar original foi no estabelecimento do capitalismo. A sua tarefa era preparar o caminho para uma sociedade capitalista, prometer liberdade aos bem sucedidos e tornar os cadáveres invisíveis ou justificá-los como o preço do progresso. Uma breve fase ocidental de capitalismo socialmente temperado foi seguida pelo capitalismo neoliberal, à medida que a crise do capitalismo – como uma crise da valorização do trabalho – se intensificou. Propaga a mudança da responsabilidade social para a responsabilidade pessoal, incluindo a obrigação de auto-optimização. Esta propaganda é o acompanhamento musical de uma adaptação cada vez mais agressiva às condições de valorização ditadas pelo capital e cada vez mais apertadas na crise, e à consequente destruição nos domínios sociais e ecológicos. Aqueles que na intensificação da concorrência não pensam em primeiro lugar ou apenas em si próprios correm o risco de serem expulsos da corrida, ou seja, de serem seleccionados no darwinismo social... O liberalismo promete liberdade através da submissão aos constrangimentos das condições capitalistas para aqueles que conseguem ser bem sucedidos nelas.

 

Liberdade através da subjugação! Isto já mostra que a liberdade e a repressão pertencem juntas no liberalismo, como duas faces da mesma moeda. A liberdade propagada em face do coronavírus tem o seu lado negativo nas mortes daqueles que não se podem proteger suficientemente, bem como nos encargos para o pessoal médico.

 

Onde se fala de liberdade, também se fala de direito. Aqui a promessa é igualdade perante a lei e a segurança jurídica. Mas ao direito também falta o objecto. É um direito formal independentemente do seu objecto substantivo. A coligação semáforo gaba-se de que com o fim da emergência epidémica e a nova Lei de Protecção contra Infecções, as medidas contra o coronavírus vírus são "juridicamente seguras". Parabéns, agora o vírus pode expandir-se "com segurança jurídica", as pessoas podem ficar gravemente doentes "com segurança jurídica" e morrer em unidades de cuidados intensivos "com segurança jurídica". Sintomas de tal asselvajamento são também reconhecíveis na crise do coronavírus:

 

 • O indicador para avaliar a gravidade da crise é o funcionamento do sistema de saúde e não o número de mortes. Com uma maior resiliência do sistema de saúde, "nós" poderíamos permitir mais mortes e, portanto, mais liberdade.

 

 • A ignorância da morte e do falecimento já não se aplica 'apenas' àqueles que morrem de fome e das alterações climáticas e àqueles que morrem em fuga, mas também aos mortos do coronavírus na própria sociedade – desde que não sejam tantos que afectem o seu estado de espírito e o estraguem. O que é praticado em termos de ignorância e agressão para com aqueles que, como "supérfluos", parecem estar "fora" da própria sociedade, repercute-se nos supostos domínios internos da sociedade.

 

 • Na crise do coronavírus, a ignorância é frequentemente combinada com a agressão para com aqueles que impõem medidas de protecção. Em Idar-Oberstein, o funcionário de uma estação de serviço foi mesmo morto a tiro, depois de ter apontado a necessidade de máscara a um cliente. A violência aumenta durante os protestos contra as medidas do coronavírus. A loucura da conspiração anda de mãos dadas com o irracionalismo esotérico e o anti-semitismo. A guerra na "luta pela existência" já não é travada apenas nas fronteiras externas, em defesa contra os refugiados, ou para manter o funcionamento do sistema capitalista, mas também no interior da(s) sociedade(s) contra pessoas que supostamente ameaçam a própria liberdade juntamente com a megalomania narcisista que frequentemente a acompanha. Parecem ser identificáveis pelas máscaras que se tornaram um símbolo de falta de liberdade.

 

 • Os sujeitos auto-referenciais condicionados à auto-responsabilidade têm dificuldade em ver o outro e o todo das relações, e em agir solidariamente, o que já poderia encontrar expressão no uso de máscaras na pandemia. A impotência lamentada face às crises capitalistas – dependendo do estado de espírito – ou a tão invocada capacidade de agir seria bastante fácil e imediata de "ter" como medida contra a propagação do vírus.

 

 • Mesmo das igrejas – para além dos apelos muito tardios à vacinação por parte dos Bispos Bode e Hanke (em 19.11.21) – nenhum apelo à consideração e solidariedade para com as pessoas em risco pode ser ouvido, e nem mesmo as medidas de protecção contra a propagação do vírus no seu próprio estabelecimento e nos serviços eclesiásticos são suficientes. A igreja protestante da Saxónia sublinha que não está a planear uma regra de certificado de vacina ou de recuperação para os serviços eclesiásticos. O Bispo Bilz declarou categoricamente que estes eventos eclesiásticos devem ser mantidos abertos a todo o custo. Enquanto no início da pandemia os teólogos ainda estavam a discutir o coronavírus e a teodiceia, e os pastores debatiam o significado mais profundo do coronavírus, perante os actuais desenvolvimentos dramáticos a maior preocupação parece ser a questão de saber se os serviços de Natal podem ser celebrados e se, tendo em conta o canto tão importante para o espírito natalício, é melhor cantar duas estrofes do que cinco. (24)

 

 • O facto de já quase não terem espaço nem o conteúdo da festa, na qual é lembrada a solidariedade de Deus para com os fracos, nem os gritos daqueles que sofrem e perecem devido à pandemia parece não penetrar na consciência. A perda do objecto não é apenas para ser lamentada na política.

 

A actual fraseologia liberal e socialmente muito aceite da liberdade, juntamente com a sua "estratégia" social-darwinista, parece uma fuga para a frente de acordo com o lema: Se não há remédio contra a barbárie, então pelo menos nós próprios a faremos, ou de forma igualmente banal: Fecha os olhos e força. Há muitos exemplos na história do liberalismo ... Entre o liberalismo e as intervenções autoritárias de crise atiradas para lá e para cá, a crise vai continuar o seu curso catastrófico (25) de asselvajamento social-darwinista.

 

Não só coronavírus

E por último, mas não menos importante: para evitar reduzir a discussão ao coronavírus, questões como a crise climática e a fuga da destruição das bases da vida, do Afeganistão etc. devem ser insistentemente incluídas na discussão, e deve perguntar-se até que ponto problemas semelhantes aos do coronavírus podem ser vistos aqui, por exemplo, a negação ou recalcamento dos sinais de crise, a recusa de perceber as ligações com a socialização da dissociação-valor, a ignorância "continuando como antes" mesmo quando as catástrofes se transformam em asselvajamento, "continuando como antes" com o fetichismo da acção, com ou sem "espalhafato de ética" no quadro das relações pressupostas, em desintegração e cada vez mais confusas perante a dissolução dos seus apoios polares …

 

Tendo em conta as várias crises ligadas umas às outras através do valor e da dissociação, contudo, deixará de haver perspectivas de uma vida bem sucedida, mesmo para aqueles que são fortes na luta pela existência. Além disso, novas pandemias irão "despontar". Isto é garantido sobretudo pelo tratamento dos animais e das suas pastagens no contexto da agricultura industrializada, juntamente com a insaciável fome de carne no quadro da normalidade capitalista e das suas coerções de crescimento. Isto sem sequer mencionar a deslocação de pessoas da sua terra, que está a ser valorizada para a produção de carne, o abate de florestas, as monoculturas para alimentação do gado, a contaminação do solo e as alterações climáticas. Aqui, a questão da acção torna-se mais complicada, porque tem de andar de par com a questão de como pode ocorrer uma ruptura categorial das relações fetichistas. Mas quando a acção solidária já ameaça falhar por causa de uma questão banal e facilmente controlável, como o uso de uma máscara, quando a política – impulsionada pela alta voz dos "pró-relaxamento" e pelo tumulto dos pensadores transversais e dos maníacos da conspiração – age de forma confusa e sem cabeça, o desamparo cresce exponencialmente, à semelhança dos números da infecção. E não é preciso imaginação para ver como são as lutas, quando a crise final do capitalismo e as suas manifestações se aproximam ainda mais das sociedades capitalistas normais do Norte global...

 

 

(1) www.exit-online.org e www.oekumenisches-netz.de.

 

(2) Jule Manek, Usche Merk, In Turbulenzen. Die Pandemie (über) fordert Einzelne und Gesellschaften. Eine psychosoziale Ringvorlesung erkundet die sozialen und affektiven Folgen [Em turbulências. A pandemia exige (demais) aos indivíduos e às sociedades. Uma série de leituras psicossociais sobre as consequências sociais e afectivas], in: medico international, rundschreiben 03/21, 44s.

 

(3) Cf. Rob Wallace, Was Covid-19 mit der ökologischen Krise, dem Raubbau an der Natur und dem Agrobuisness zu tun hat [O que tem a Covid-19 a ver com a crise ecológica, a sobreexploração da natureza e o agronegócio], Köln 2/2021.

 

(4) Cf. Roswitha Scholz, ‚Die Demokratie frisst immer noch ihre Kinder‘ – heute erst recht! In: exit! Krise und Kritik der Warengesellschaft 16/2019, 30 – 60. Trad. port.: ‘A democracia continua a devorar os seus filhos’ – hoje ainda mais!, online: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz32.htm

 

(5) Cf. Verachtung demokratischer Teilhabe. Geplantes Renânia do Norte-Vestefália-Versammungsgesetzt führt Grundrecht ad absurdum [Desprezo pela participação democrática. A planeada lei de assembleia da Renânia do Norte-Vestefália reduz os direitos fundamentais ao absurdo], in: Informationen Grundrechte Komitee.de 02/2021.

 

(6) Cf. Herbert Böttcher (2020): Sobre a discussão do coronavírus, https://www.oekumenisches-netz.de/2020/05/zurdiskussion-um-corona/.

 

(7) O quão insustentáveis são tais invocações já se tornou claro no contexto da chamada cultura de boas-vindas de 2015. Rapidamente se transformou em isolacionismo como luta contra os refugiados. Cf. David Goeßmann: Die Erfindung der bedrohten Republik - Wie Flüchtlinge und Demokratie entsorgen werden [A Invenção da República Ameaçada - Como esão a ser eliminados os refugiados e a democracia], Berlin 2019.

 

(8)Ver Herbert Böttcher e Leni Wissen, Zwischen Selbstbezüglichkeit und Solidarität? Corona in der Leere des Kapitalismus, in: exit! u. Ökumenisches Netz, Netztelegramm, Februar 2021, vor allem p. 3ss., https://www.oekumenisches-netz.de/wp-content/uploads/2021/02/Netztelegramm-1.21_Sonderausgabe-mitexit.pdf. Trad. port.: Entre a auto-referencialidade e a solidariedade? O coronavírus no vazio do capitalismo, online: http://www.obeco-online.org/leni_wissen1.htm

 

(9) Robert Kurz, citado por Roswitha Scholz, acima, nota 3, 50.

 

(10) Alex Demirovic, Warum die Forderung nach einem harten Shutdown falsch ist. Zur Kritik des Aufrufs ZeroCovid [Porque está errada a exigência de um confinamento rigoroso. Para a crítica do apelo ZeroCovid]. https://www.akweb.de/bewegung/zerocovid-warum-die-Forderung-nach-einem-harten-shutdown-falsch-ist/, 2021.

 

(11) Kölner Stadt-Anzeiger vom 11.11.21.

 

(12) Kölner Stadt-Anzeiger vom 23.11.21.

 

(13) Vgl. Franz C. Mayer, Besser Gesetze nicht ändern als schlecht ändern [É melhor não mudar as leis do que mudar mal], https://verfassungsblog.de/besser-gesetzenicht-andern-als-schlecht-andern/ (12.11.21).

 

(14) Para uma lista ainda mais longa, ver ibid.

 

(15) Ibid.

 

(16) Ver também Ishay Landa: Der Lehrling und sein Meister – Liberale Tradition und Faschismus, Berlin 2021, original The Apprentice's Sorcerer: Liberal Tradition and Fascism, Lieden/Boston 2010.

 

(17) Sobre a ligação entre liberalismo e darwinismo social ver Robert Kurz, Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft [O livro negro do capitalismo. Um canto de despedida à economia de mercado], Frankfurt am Main 1999, 273ss, 762ss ou na edição de 2009, 293ss., 782ss.

 

(18) Landeszentrum für Gesundheit, citado em WDR: https://www1.wdr.de/nachrichten/themen/coronavirus/coronadaten-nrw-100.html (18.11.21).

 

(19) Kölner Stadt-Anzeiger vom 18.11.2021.

 

(20) Ibid.

 

(21) Ver Oliver Nachtwey, Nadine Frei, Quellen des „Querdenkertums“. Eine politische Soziologie der Corona-Proteste in Baden-Württemberg [Fontes do "pensamento transversal". Uma sociologia política dos protestos coronavírus em Baden-Württemberg], https://boell-bw.de/de/2021/11/04/zusammenfassung-der-studie.

 

(22) Christian Drosten já alertou em maio que todos os não vacinados e também alguns vacinados seriam infectados (embora a maioria destes últimos sem consequências) (ver n-tv.de de 11.5.21, https://www.n-tv.de/panorama/Drosten-Ungeimpfte-werden-sich-infizieren-article22549310.html).

 

(23) Ver Priesemann contra Lindner, https://www.tagesspiegel.de/politik/priesemann-contra-lindner-wissenschaftlerinweist-fdp-chef-mit-klarstellungen-zurecht/27797088.html (13.11.21).

 

(24) Sobre teologia e a questão da teodiceia perante a epidemia de coronavírus, ver Herbert Böttcher, Herr Kant, Seien sie mir gnädig! Gott vor Gericht in der Corona-Krise [Sr. Kant, tenha piedade de mim! Deus em tribunal na crise do coronavírus], in: exit! Krise und Kritik der Warengesellschaft 19/2022.

 

(25) Ver Herbert Böttcher, „Irgendetwas geht seinen Gang. Oder Der Abpfiff, den niemand hören will. Offener Brief an die Interessenten und Interessentinnen von exit! Zum Jahreswechsel 2028/19, in: exit! Krise und Kritik der Warengesellschaft 16/2019, 23 – 29. Trad. port.: "Alguma coisa segue seu curso" – ou: O apito final que ninguém quer ouvir. Carta aberta às pessoas interessadas na exit! na passagem de 2018 para 2019”, online: http://www.obeco-online.org/herbert_bottcher3.htm

 

 

 

Original “Vom Lockdown-light über Impfung zum rechtssicheren Sterben in Freiheit. Beobachtungen zu Corona aus wertabspaltungskritischer Perspektive” publicado em www.exit-online.org, 06.12.2021. Tradução de Boaventura Antunes

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