No exit? – Teorias económicas do colapso ligadas a Marx

Entrevista da redacção da revista Narthex a Herbert Böttcher

 

 

Enquanto se fala mais que nunca de um apocalipse ecológico ou médico iminente, o tema de um apocalipse económico, ou seja, de um colapso iminente do sistema económico, passou actualmente mais para segundo plano. Falámos com Herbert Böttcher, economista e teólogo e colaborador da EXIT!, sobre um possível colapso do capitalismo segundo a teoria da crise de Marx e que consequências poderia ter para o mundo. Será também seguido pelo colapso da civilização? Ou, como Marx esperava, por um novo e melhor começo?

 

 

Caro Sr. Böttcher, está próximo da revista EXIT! que foi fundada pelo teórico Robert Kurz, entretanto falecido, e que procura continuar a desenvolver o seu pensamento. As abordagens de Kurz – desenvolvidas, entre outros, no Livro Negro do Capitalismo (1) publicado em 1999 – tiveram grande impacto na primeira década deste século, mesmo fora dos círculos da teoria radical de esquerda. Ele desenvolveu a sua própria versão de uma teoria marxista do colapso, que girava em torno do "derretimento" da "substância do valor" no decurso da "revolução microindustrial". Poderia talvez esboçar brevemente os pontos-chave desta teoria de colapso? O que a distingue de outras teorias marxistas da crise e do colapso?

 

A teoria da crise desenvolvida por Robert Kurz entende as crises associadas ao capitalismo como o processo de uma contradição inerente ao capitalismo que conduz ao seu declínio. Desde os anos 70, com o avanço da revolução microelectrónica, tornou-se evidente que está a ser substituído pela tecnologia mais trabalho do que pode ser compensado pelo barateamento e diversificação da produção e pela expansão dos mercados. Isto significa que o capitalismo está agora também a enfrentar historicamente o limite lógico que Marx tinha descrito como uma "contradição em processo". (2) Ou seja: por meio da concorrência, a produção capitalista é compelida a substituir trabalho por tecnologia. Do lado material, isto implica um enorme aumento da produtividade, incluindo um consumo crescente de material e de energia. Mas, do lado do valor, isto é acompanhado por um processo em que desaparece o trabalho como substância do valor. Esta contradição lógica está agora também a tornar-se historicamente cada vez mais eficaz, em processos de crise que surgem a diferentes níveis: em crises de acumulação juntamente com o endividamento nacional e a formação de bolhas nos mercados financeiros, na concorrência global e regional pela localização do investimento, na política como administração da crise sem perspectivas, na desintegração dos Estados, na destruição dos fundamentos naturais da vida, na migração e na fuga, até às crises dos sujeitos que, como "eus empresariais", estão sob pressão para se adaptarem às condições de crise a que é suposto deverem submeter-se autonomamente. Os indivíduos enfeitiçados na forma de sujeito são forçados a processar a crise de uma forma que perde cada vez mais os seus fundamentos à medida que o trabalho diminui. Tudo isto alimenta o anti-semitismo, o anticiganismo, o racismo, o sexismo até à anomia social e à barbárie nas relações sociais...

A diferença decisiva em comparação com outras teorias marxistas da crise é sobretudo que Robert Kurz não baseia a sua teoria da crise em contradições a nível da circulação, mas na autocontradição do capital no nível basilar da substância do trabalho. O trabalho como abstracção real e a crise estão mutuamente dependentes. Isto torna-se claro numa comparação com as teorias da crise de Rosa Luxemburgo e Hendrik Großmann. Segundo Luxemburgo, o capitalismo falha porque já não pode aceder a territórios fora do capitalismo. Pode produzir mais-valia, mas não a consegue realizar com a venda ao nível da circulação. Hendrik Großmann parte efectivamente da esfera da produção e de uma crise na extracção de mais-valia. Em última análise, defende a ideia de que as receitas dos capitalistas se tornam cada vez menores como resultado da queda da taxa de lucro, uma vez que uma grande parte deve fluir para a acumulação. Immanuel Wallerstein, que em tempos mais recentes tem sido tratado como um profeta marxista do crash, assume um sistema mundial e processos transnacionais surgidos ao longo de 500 anos e marcados pelo conflito entre centro e periferia. Este sistema está hoje a desmoronar-se. Os indicadores disto são austeridade, especulação, concentração de capital, dívida (nacional), desemprego em massa, etc. Estas "teorias da crise" não partem da ligação interna entre a contradição em processo e a obsolescência do trabalho. O que também se aplica a Wallerstein, para quem isto permanece apenas um elemento da sua visão no resto da teoria dos sistemas.

Outra característica da teoria da crise representada pela EXIT! é que ela não se deve só a uma recepção de Marx que entende Marx não apenas como um teórico da modernização, mas como um teórico do fetichismo e da crise. Ao mesmo tempo, é 'inspirada' pela Teoria Crítica – apesar de todas as críticas à sua redução à troca e à circulação – que chega a uma totalidade social, e vai de mãos dadas com o pensamento crítico da identidade, que dá espaço às diferenças não absorvidas no conceito. Por esta razão, a teoria de Kurz não pode ser reduzida a uma crítica do valor, mas está constitutivamente ligada ao que Roswitha Scholz desenvolveu como uma crítica do valor e da dissociação: A produção com conotação masculina e a reprodução com conotação feminina constituem equiprimordialmente o contexto social basilar da totalidade capitalista, sem que uma possa ser derivada da outra. Assim ganham espaço questões sobre conteúdos normativos e simbólicos, sobre inconsciente social e androcêntrico, bem como se torna clara a inclusão da questão do papel da matriz psicossocial do sujeito burguês e do carácter social narcisista actuando ele próprio na crise. Mais de 30 anos após a publicação de O colapso da modernização de Kurz, ainda é preciso salientar que Kurz também incluiu na sua teoria da crise a variante estatista-socialista da modernização, entendendo o colapso desta variante da produção de mercadorias como "precursor" do colapso da sua homóloga liberal.

 

O colapso da New Economy, o desemprego em massa e, mais ainda, a crise financeira global deram às teses de Kurz um elevado nível de evidência. Posteriormente, porém, houve uma clara recuperação da economia mundial, e a actual crise económica parece ser, pelo menos à primeira vista – e há também avaliações divergentes a este respeito (3) – devida ao coronavírus e às medidas tomadas contra ele, e não a contradições imanentes do modo de produção capitalista. Na melhor das hipóteses, o salto do agente patogénico para o ser humano e a sua rápida propagação poderiam ser caracterizados como consequência da sobreexploração forçada da natureza e da globalização, bem como de condições de vida apertadas. E, em geral, o capitalismo parece estar a entrar em colapso, se é que está mesmo, porque é incapaz de resolver a questão ecológica e não, como Kurz avisou, por razões estruturais. – Como é que avaliam isto? Será que as teorias de Kurz teriam de ser revistas à luz dos recentes desenvolvimentos? Ou a crise ecológica é apenas um fenómeno de superfície?

 

Não se pode falar de uma recuperação da "economia" mundial, quando muito de alterações entre vencedores da crise e regiões desindustrializadas, como estamos a viver na Europa entre a Alemanha e sobretudo os países do sul da Europa, e dos conflitos que as acompanham. Não se percebe o facto de as condições prévias para tal terem sido criadas na área interna dos vencedores com empregos precários e cortes sociais. A dinâmica da dívida mostra acima de tudo quão fino é o gelo em que assentam os países parcialmente bem sucedidos – pelo critério do PIB. A "recuperação" após o crash de 2007/2008 consistiu numa enorme bolha de liquidez que alimentou a economia global e pode rebentar a qualquer momento. Esta economia de bolhas, alimentada pelo crescimento do crédito e das bolhas especulativas, tem vindo a perder dinamismo económico desde 2008. As somas astronómicas da dívida, mais uma vez impulsionadas pelo coronavírus, não podem ser saldadas pela futura criação de valor.

À primeira vista, pode parecer óbvio que o capitalismo está a falhar por causa dos limites ecológicos ao crescimento que lhe é inerente. Mas estes não são independentes do limite lógico e histórico da acumulação de capital. A compulsão para remover do processo de produção o trabalho, que é a fonte de valor e de mais-valia, é também acompanhada por tentativas de compensar as crises de acumulação através da expansão da produção e do barateamento dos produtos. Isto requer um consumo cada vez maior de material e de energia, que continua mesmo quando a força de trabalho é substituída por tecnologia de acordo com a tendência social fundamental. Os regulamentos ecológicos contrariam a necessidade de alimentar o processo de acumulação em situação de crise. Um "New Deal Verde" é susceptível de produzir sucessos a curto prazo na melhor das hipóteses, mas estes não são economicamente sustentáveis em termos de preservação do sistema.

O coronavírus tem a ver com as relações capitalistas de produção e distribuição, tanto em termos da sua origem como da sua propagação. Contudo, não produziu uma nova crise, mas apenas exacerbou a crise existente. As intervenções estatais, desde a ajuda económica financiada a crédito até às medidas de protecção da saúde, fazem alguns sonhar com o regresso do primado da política, enquanto outros evocam um novo estado de excepção. Ambos passam ao lado da realidade da crise. O confuso movimento entre confinamentos e 'relaxamentos' reflecte os limites da acção estatal para conciliar a proclamada protecção da saúde com as necessidades sistémicas da normalidade capitalista. Uma indicação de que, à medida que a crise avança, a política é cada vez menos capaz de impor um "estado de excepção" pode ser vista no facto de que são justamente os governos populistas-autoritários que estão a ignorar a pandemia. Para além de quaisquer ligações mafiosas que possam ter desempenhado um papel na desintegração dos Estados e nos populismos: dificilmente podem dar-se ao luxo de interromper as possibilidades de assegurar a sobrevivência, sobretudo no contexto da actividade informal – com o resultado de que a população "supérflua" está tão à mercê do vírus sem medidas de protecção como estaria com medidas de protecção. À semelhança da crise dos refugiados, a forma como no coronavírus se lida com os "não rentáveis" nas regiões em colapso mostra o que ameaça os "supérfluos" nos centros se a crise continuar a "seguir o seu curso" também aqui. Neste processo, a questão actualmente ainda recalcada de quem deve pagar a exorbitante antecipação da futura criação de valor no meio da crise também entrará na agenda, e tornar-se-á visível o que isto significa para a "estabilidade" do capitalismo.

 

A ideia de uma "teoria do colapso" é uma batata quente na investigação de Marx. É indiscutível que Marx e Engels assumem em alguns pontos um colapso necessário do capitalismo, levando a uma transição inevitável para uma economia pós-capitalista, sem propriedade privada dos meios de produção e da terra. Mas não será precisamente este um aspecto problemático das suas teorias? Não será um legado da filosofia da história de Hegel e um pedaço de teologia secularizada? Marx era um profeta do apocalipse disfarçado de cientista?

 

De facto, é problemático assumir "uma transição inevitável para uma economia pós-capitalista, sem propriedade privada dos meios de produção e da terra". Tal pressuposto está sob o feitiço de um entendimento hegeliano da história, tendo por fim a realização da razão e da liberdade. Relativamente à questão da propriedade, esquece o facto de a forma jurídica fazer parte do contexto da forma capitalista a ser garantido pelo Estado. Com as mudanças legais na disponibilidade dos meios de produção, não há uma ruptura com a produção de mercadorias nem uma ruptura com as áreas de reprodução que dela são dissociadas e inferiorizadas, e portanto também não há uma ruptura com a relação de género associada ao capitalismo.

Não é o Marx teórico da história burguesa do progresso, mas o Marx da crítica do fetichismo que deve ser retomado. A partir daqui há que perceber que o capitalismo se constituiu a si próprio como a dominação abstracta da finalidade irracional da multiplicação do capital por amor de si mesmo. Com o desaparecimento do trabalho como fonte de valor e de mais-valia, este fim-em-si fetichista corre para o vazio, e com ele o valor, o dinheiro, o Estado / a política... No entanto, este "vazio metafísico" (Kurz) não escapa à compulsão de se representar, mas tem de "realizar-se" em coisas materiais. Isto equivale a que a vida humana e a natureza por maioria de razão sejam 'sacrificadas' ao fetiche quando ele esbarra no 'vazio'. Esta compulsão à aniquilação é expressa de forma mais drástica quando se torna autodestruição. Tal loucura está relacionada com a loucura da normalidade capitalista, na qual os indivíduos devem optimizar-se permanente e interminavelmente como 'eus empresariais', na concorrência pela valorização da força de trabalho para o fim-em-si irracional. A submissão torna-se auto-submissão a uma finalidade que esbarra no vazio e, portanto, auto-sacrifício. Ver a história como a história do progresso, com uma finalização ontológica em liberdade e razão, ou mesmo numa sociedade sem classes, pode ser uma variante da "teologia secularizada", na medida em que reflecte as (pseudo-)certezas teológicas de um sentido universal ontológico ou seguro por Deus e de um bom fim de história. Mas uma diferente relação da teologia com Marx entra em jogo quando a teologia é formulada como "teologia pós-idealista", como em J. B. Metz, que se liga à crítica feita por Benjamin ao entendimento da história como história de progresso e de vitória, bem como à "Dialéctica Negativa" de Adorno. O foco de tal reflexão teológica é aquilo que os seres humanos e a criação tiveram e têm de sofrer sob as respectivas relações de dominação, e o facto de isso não poder ser compensado por certezas universais de sentido, nem por um objectivo final universal garantido da história. No seguimento de tradições bíblicas que, criticando a dominação, distinguem entre o discurso emancipatório de Deus e os ídolos legitimadores da dominação, tal teologia articula-se com a crítica do fetichismo. O que não é possível sem teoria social crítica e ruptura com as relações de fetiche capitalistas.

 

Afinal há o conhecido dito do marxista americano Fredric Jameson: "É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo". – Marx e Engels podem ainda ter tido razões para acreditar que algo melhor poderia seguir-se ao fim do capitalismo. Será que hoje ainda temos essas razões? Ou existe apenas a ameaça de uma barbárie ainda pior? Na situação mundial actual não seria quase necessário, como comunista, tentar evitar o colapso do capitalismo?

 

No citado dito, torna-se claro sobretudo quanto as pessoas estão fundidas com o capitalismo na sua percepção, sentimento e pensamento, e quanto estão bloqueados precisamente esses conhecimentos analíticos necessários, sobretudo os da crise. Este bloqueio torna-se claro precisamente no conceito de sujeito. No contexto do iluminismo, ele é entendido como um sujeito responsável, autónomo e consciente de si mesmo, ou seja, livre e capaz de agir. O que permanece fora deste auto-entendimento é que o sujeito só pode agir como sujeito autónomo no quadro das relações capitalistas irreflectidamente pressupostas. Tal como a capacidade de acção do Estado depende da multiplicação do capital através do trabalho, também a acção do sujeito permanece vinculada ao trabalho. Robert Kurz descreveu-o como o "agente do trabalho abstracto e das funções dele derivadas". Isto molda a sua "forma de percepção, forma de pensamento, forma de relação, forma de actividade". (4) O sujeito é assim tão pouco "autónomo" quanto o Estado e a política como forma de acção, mas está sujeito a relações que se constituíram – mediadas pela acção humana – como "dominação abstracta", sem que os indivíduos sejam simplesmente marionettes do sistema.

"Um fim do capitalismo" poderá muito bem ser "seguido de algo melhor". Mas isso pressupõe uma ruptura categorial com as relações capitalistas, ou seja, com posturas 'ontológicas' tais como trabalho, dinheiro, Estado, sujeito, iluminismo, isto é, com aquelas categorias com as quais as pessoas estão de tal modo fundidas que mais conseguem imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo e das suas reais categorias abstractas. Se esta rupptura não acontecer, existe de facto a ameaça de "uma barbárie ainda pior" – mesmo que os "comunistas" façam tudo o que puderem para "evitar o colapso do capitalismo". Mesmo eles, com esforços de adaptação cada vez mais solícitos, não podem saltar o limite lógico e histórico.

 

Também nos círculos reaccionários tem havido nos últimos anos cada vez mais avisos de um colapso económico do capitalismo. Aqui, o apocalipticismo parece estar muito mais difundido do que entre as forças de esquerda, a maioria das quais assume que o capitalismo pode ser salvo por uma "viragem verde". Basta pensar no movimento dos "preppers" (do inglês ‘prepared’, preparado) radicais de direita, que, temendo uma catástrofe, armazenam armas e alimentos e constroem abrigos nucleares no jardim à frente da casa. E Ken Jebsen & Cª discutem avidamente que o sistema financeiro é uma enorme bolha que irá rebentar mais cedo ou mais tarde. Nos círculos de esquerda, por outro lado, frequentemente se é considerado anti-semita assim que se quiser começar a discutir criticamente o mercado financeiro. – Como avalia este desenvolvimento? Terá a esquerda de voltar a pensar mais na teoria da crise de Marx?

 

Em tempos de crise, o apocalipticismo torna-se uma metáfora em flutuação livre, na qual se expressam os medos da desgraça. A conversa sobre distopia, que goza hoje de grande popularidade, também pertence a este contexto. Nos círculos ideológicos de direita, a metáfora do apocalipticismo torna possível manter as condições, oferecendo uma defesa violenta contra judeus, pessoas não trabalhadoras, estrangeiros. Oferece formas de processamento da crise em que, acima de tudo, o sujeito masculino parece encontrar uma base de apoio. As críticas aos mercados financeiros são combinadas com um anti-semitismo estrutural em que não é vista a ligação entre a economia das bolhas e a crise da economia real, sendo o capital criador jogado contra o capital rapinante associado ao poder do dinheiro conotado como "judeu". Alguns iludem-se com um certo poder na impotência, quando pensam ter conhecimento de cenários apocalípticos dos últimos dias e acreditam que podem mesmo armar-se individualmente ou em grupos com alucinações, até à preparação de uma guerra civil. 'Apocalípticos' em círculos de pensamento transversal (incluindo Markus Krall, Christian Kreiß, Matthias Weik, Marc Friedrich, Dirk Müller), que não raro estão próximos das teorias da conspiração, não querem que o capitalismo seja ultrapassado, mas querem um capitalismo 'certo' no seu sentido. Aqui está a ser preenchida uma lacuna deixada por uma esquerda que não se importa nada com a teoria marxiana da crise, no centro da qual está a ligação entre contradição em processo e trabalho e, portanto, o declínio do capitalismo.

Em tudo isto não desempenha qualquer papel aquilo que constitui o núcleo do apocalipticismo quando entendido a partir dos seus contextos bíblicos. Não se trata aqui de uma reportagem antecipada sobre acontecimentos terríveis no final dos tempos, mas do confronto com a dominação grega no século II AEC e com a dominação romana no século I AEC. As tradições apocalípticas dão voz àqueles que sofrem sob esta dominação e dela são vítimas. No sentido da palavra apocalíptico, estão preocupadas em revelar algo escondido. São reveladas as vítimas da dominação e o carácter mortal desta. Apocalíptico entendido deste modo é contra os disfarces míticos do "sempre o mesmo", bem como contra apaziguamentos metafísico-ontológicos, através duma atribuição de sentido em que o sofrimento das vítimas se torna invisível. Ao fazê-lo recorre certamente a imagens míticas. Em imagens de predadores, por exemplo, expressa o carácter bestial da respectiva dominação. Esta não é colocada no ciclo do "sempre igual", mas confrontada com a sua temporalidade na história e, portanto, com o seu fim. Esta forma de pensar sobre a história e sobre o tempo está enraizada no entendimento judaico de Deus, que rompe com a dominação e abre caminho para a libertação. Ela acredita que o apocalíptico bíblico tem a "última palavra" que julga "governantes e poderes". Isto dá aos visionários do apocalipse a força para resistir contra a exigência de submissão.

Neste sentido, o apocalíptico desmitologiza o carácter fetichista da dominação, que aparece como final e abrangente ("totalitária") e se encena como um culto. A salvação só pode vir com uma ruptura, ou seja, com o fim 'radical' da dominação. São excluídas viragens imanentes, por exemplo, um governante melhor, um 'pouco' mais de justiça e paz. Neste contexto, Marx não seria um "profeta do apocalipse disfarçado de cientista", mas poderia ser chamado "apocalíptico" precisamente como cientista, na medida em que, na continuação da sua crítica da religião, fez uma crítica da dominação como análise e crítica das relações fetichistas capitalistas.

Na sua crítica da dominação histórica específica, o apocalipticismo contradiz simultaneamente a dominação do tempo sob a forma da sua perpetuação. Contra o adeus pós-moderno à história e a sua fuga para mitos aparentemente consoladores que tornam a dominação invisível, o pensamento apocalíptico proclama a contestação contra uma imanência identitariamente fechada, actualmente contra o carácter definitivo do capitalismo, mas também contra o carácter definitivo da morte das vítimas na história – muito próximo da explosão de Benjamin do continuum da história como a continuação de um tempo homogéneo e vazio, (5) bem como da "Dialéctica Negativa" (6) de Adorno.

 

Para concluir, vamos ser muito específicos: O que acha que nos espera nas próximas décadas? E como nos devemos comportar em relação a estes processos?

 

Nenhuma previsão pode ser derivada da teoria social crítica relativamente ao curso da crise, mas é possível identificar tendências. Uma vez que não estão à vista forças a pressionar para uma ruptura com as condições, e, mesmo quando se fala em transformar o capitalismo, ainda é suposto continuar com o trabalho, o Estado, o dinheiro ou os seus derivados, ou procuram-se alternativas nas esferas dissociadas da reprodução, há muito a sugerir que o processo de crise se irá intensificar – especialmente tendo em conta o coronavírus. Isto também é verdade no que diz respeito às crises ecológicas, cuja solução exigiria, entre outras coisas, uma utilização racional dos recursos, incluindo uma transformação do aparelho produtivo. Assim estão 'pré-programadas' formas de barbarização que são alimentadas pela negação das crises.

Os movimentos sociais estão mais ansiosos em tomar um lugar na administração da crise na mesa das crianças do que em perder a sua suposta atenção por meio de uma crítica radical. Em vez disso, seria importante tornar objecto de crítica as condições como "totalidade concreta", a fim de tornar clara a necessidade de uma ruptura categorial, como pré-requisito para alternativas ao capitalismo.

Isto não retira da mesa a questão da práxis. Só quando o discernimento analítico é combinado com intervenções práticas é que os processos de mudança podem ocorrer. Uma perspectiva neste caminho seriam os protestos contra imposições sociais sempre novas ou intervenções contra formas bárbaras de sexismo, racismo..., bem como exigências que visem a satisfação de necessidades básicas e que não façam depender a formação de relações interpessoais da submissão a relações fetichistas, mas que conscientemente as coloquem sob controlo e as moldem no quadro de uma "associação de pessoas livres" (Marx). Os protestos contra imposições e exigências não devem depender de questões de viabilidade, mas devem insistir numa "redistribuição do ónus da prova". Se, face à riqueza material, nem sequer a satisfação das necessidades básicas é possível, isso fala contra um sistema em que a riqueza material só conta sob a forma de riqueza abstracta, cuja constituição inclui a contradição entre matéria e forma. (7)

 

Muito obrigado pelo tempo desta conversa.

 

 

(1) Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Frankfurt a. M. 1999. Trad. port.: O livro negro do capitalismo, online: http://www.obeco-online.org/o_livro_negro_do_capitalismo_robert_kurz.pdf

(2) Karl Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie. MEW Bd. 42. Berlin 1983, S. 601. Trad. port.: Grundrisse, Boitempo, São Paulo, 2011.

(3) Ver, por exemplo, Jakob Schäfer, Ist die Corona-Pandemie Grund für die beginnende Wirtschaftskrise? [Será a pandemia de coronavírus a razão do início da crise económica?] https://intersoz.org/ist-die-corona-pandemie-grund-fuer-die-beginnende-wirtschaftskrise/ (acesso 24.04.2021).

(4) Robert Kurz, „Die Substanz des Kapitals. Teil II“. In: EXIT! Krise und Kritik der Warengesellschaft 2 (2005), p. 210. Trad. port. parcial: A substância do capital, Segunda parte, online: http://www.obeco-online.org/rkurz226.htm

(5) Walter Benjamin, Über den Begriff der Geschichte [Sobre o conceito de história]. In: Abhandlungen. Gesammelte Schriften Bd. I.2. Frankfurt a. M. 2015, S. 69–704, v. a. 701–703. Trad. port.: Teses sobre o conceito de história, online: http://guy-debord.blogspot.com/2009/06/water-benjamin.html

(6) Vgl. Theodor W. Adorno, Negative Dialektik. In: Gesammelte Schriften Bd. 6. Frankfurt a. M. 1970, S. 356–400, v. a. S. 394–397. Trad. port.: Dialetica negativa, Zahar, Rio de Janeiro, 2009.

(7) Vgl. Claus Peter Ortlieb, „Ein Widerspruch von Stoff und Form“. In: EXIT! Krise und Kritik der Warengesellschaft 6 (2009). Trad. port.: Uma contradição entre matéria e forma, online: http://o-beco-pt.blogspot.com/2010/06/claus-peter-ortlieb-uma-contradicao.html

 

 

Original “No exit? – Ökonomische Zusammenbruchstheorien im Anschluss an Marx. Ein Interview der Redaktion der Narthex mit Herbert Böttcher” em www.exit-online.org, 10.04.2022. Publicado em Narthex – Heft für radikales Denken nº 7 (2021), pp. 20-25. Tradução de Boaventura Antunes

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