"'CONTINUAR ASSIM' É A CATÁSTROFE"
Sobre a actualidade de Walter Benjamin
Herbert Böttcher
1. Porquê Walter Benjamin?
Há cerca de 100 anos que Walter Benjamin escreveu o fragmento "O capitalismo como religião" (Benjamin 1991, 100-103). Este aniversário foi uma oportunidade para voltar a olhar para Benjamin. A relação entre a frase de Benjamin "'Continuar assim' é a catástrofe" (Benjamin 2015d, 592) e a crise do capitalismo que se agrava nas chamadas crises múltiplas emergiu numa constelação. Esta constelação ilumina o carácter explosivo da crise e o perigo das catástrofes que a acompanham.
Na tentativa de retomar Benjamin, não se pode esquecer que a crítica de Benjamin ao capitalismo se centra no nível cultural, sem incluir o "local oculto da produção" (Marx 1984, 189 [1996, 293]), ou seja, o nível da economia política (cf. Böttcher 2021, 35ss). Além disso, a caraterização de Benjamin do "capitalismo como religião" permanece fenomenologicamente redutora (cf. Kurz 2012, 389ss [2014, 352ss]), requerendo assim uma reflexão adicional correctiva, com vista a uma crítica do fetichismo orientada por Marx. Em ligação com os conhecimentos de economia política e de crítica do fetichismo, o pensamento de Benjamin pode ajudar entender o que ele descreveu como uma catástrofe e que nós reflectimos como a crise final do capitalismo.
2. Sobre a legibilidade da história
Com os perigos iminentes do fascismo e da guerra, o pensamento de Benjamin nas décadas de 1920 e 1930 centra-se na questão da história. O seu último texto escrito sob a forma de teses, "Sobre o Conceito de História" (Benjamin 2015b, 691-704), surgiu – impulsionado pelo pacto entre Hitler e Estaline – "numa corrida contra o aparelho de extermínio de Hitler" (Werner 2011, 7). No centro está a questão da relação entre o passado e o presente. Eles estão ligados através do "núcleo temporal, que está simultaneamente no reconhecido e no reconhecível" (Benjamin 2015c, 578). Este "núcleo temporal" torna a história legível.
Benjamin distingue-se assim de um conceito burguês de verdade, que enfatiza a intemporalidade da verdade. Simultaneamente ele marca o contraste com a ligação de Heidegger de "Ser e Tempo" (Heidegger 1979). No entendimento de Heidegger sobre o tempo a história real não aparece. A história torna-se historicidade, um existencial do tempo. Acima de tudo Benjamin distingue-se do historicismo. Este último pretende na história "conhecer 'como ela foi de facto'" (Benjamin 2015b, 695). Ao fazê-lo parte do presente e tenta explicar como o presente se tornou através da "empatia" com o passado. Benjamin critica o facto de o que ficou vitorioso se tornar o ponto de partida para o questionar da história, e de a propagada "empatia" com o passado se tornar "empatia com o vencedor" (ibid., 696). Só se vê o que sobreviveu vitoriosamente. Desaparecem os fracassos, as ruínas e as catástrofes, bem como as vítimas e os derrotados da história. Benjamin, pelo contrário, insiste no "núcleo temporal" que, na constelação de passado e presente, torna a história legível no "tempo do agora" perante o perigo iminente.
Isto tem implicações epistemológicas. O discurso de Benjamin sobre o "núcleo temporal" não é – como Adorno observa – sobre "a verdade na história, mas sobre a história na verdade" (Adorno 2003b, 141). Então também não pode ser tarefa da filosofia apreender o seu tempo em pensamentos no sentido hegeliano. Pois: a filosofia recompõe-se – segundo Adorno – "numa realidade de que o ordenamento e a forma deitam abaixo qualquer pretensão da razão" (Adorno 2003a, 325). Por isso ela é impedida de se colocar numa relação positiva com a realidade. Se o fizer "não serve senão para obscurecer a realidade e perpetuar o seu estado actual" (ibid.).
Benjamin refere-se à história pelo seu outro lado, sublinhando que o conceito de progresso "deve ser fundado na ideia de catástrofe. 'Continuar assim' é a catástrofe" (Benjamin 2015d, 592). A história não é, como em Hegel, a auto-revelação do Espírito, num processo de progresso em que as relações chegam à "razão". Elas não são orientadas para um objectivo final positivo. Em Hegel isto torna-se uma justificação para o facto de o curso do progresso, que avança no "campo de batalha" (Hegel 1971, 46) da história, envolver sacrifícios. Estes devem ser aceites como danos colaterais inevitáveis, ou pagos como preço do progresso.
Em contraste, a insistência de Benjamin em que "continuar assim" é a catástrofe torna claro que no "continuar assim" a história rola sobre ruínas, esperanças não realizadas, possibilidades não concretizadas, em suma: sobre as suas vítimas. Elas são relegadas ao esquecimento, de modo que "também os mortos... não estarão em segurança se o inimigo vencer" (Benjamin 2015b, 695). Perceber a catástrofe que está a acontecer agora e trazê-la ao pensamento permite que os perdidos e os perdedores, não os vencedores, mas os derrotados, apareçam e entrem no pensamento materialista. Torna-se possível "escovar a história a contrapelo" (ibid., 697).
3. A luta de Benjamin pelo tempo e pela história como luta contra o mito do retorno do mesmo no capitalismo
Benjamin caracteriza o tempo em que passado e presente entram numa constelação como "tempo do agora" (Benjamin 2015b 701). Nele lampeja uma imagem do passado. "Assemelha-se às imagens do próprio passado, que aparecem às pessoas no momento de perigo" (Benjamin 2015c, 1243). Passado e presente entram numa constelação que os torna "legíveis". "Momento de perigo" para Benjamin é a propagação do fascismo e a ameaça de guerra. Perante este perigo, Benjamin deixa claro nas teses "Sobre o Conceito de História" que a luta contra a totalidade das relações de dominação fascistas está ligada à luta pelo passado reprimido, por todos aqueles que ficaram derrotados sem nome na história. Portanto a história como história dos vencedores tem de ser interrompida, o "continuum da história" como tempo homogéneo e vazio de progresso tem de ser rebentado.
A luta contra os perigos que lampejam e podem ser lidos no presente é uma luta pelo tempo e pela história e, portanto, contra o mito. Este não é determinado pelo tempo da história, mas pelo tempo que corre no retorno do mesmo. No mito trata-se do curso da natureza, da harmonia com a natureza e com o seu fluxo uniforme de devir, desaparecer e devir de novo – não integrado em constelações histórico-temporais, mas na eternidade do cosmos e das constelações das estrelas. No mito, o tempo torna-se vazio, uniforme e homogéneo.
Em ligação com as ideias críticas da economia política e do fetichismo, a luta de Benjamin pelo tempo e pela história e contra o mito ganha contornos claros como luta contra o capitalismo.
Por um lado, no capitalismo a história é naturalizada através da concorrência. Nele os fortes são seleccionados de entre os fracos e, no agravamento da crise, cada vez mais os valorizáveis de entre os "supérfluos". Aqueles que provam ser suficientemente fortes em sua capacidade de adaptação têm melhores hipóteses na luta pela sobrevivência. As empresas só podem estar preparadas para o futuro se reagirem da melhor maneira às novas situações económicas. Os indivíduos enfrentam o desafio de se manterem aptos para a luta concorrencial pelo trabalho como um "eu empresarial" (Bröckling 2013) através da auto-optimização permanente – sempre prontos a adaptarem-se sob a sua própria responsabilidade. Quem se mostrar demasiado fraco é expulso da corrida. O que Darwin pensava ter reconhecido como lei de selecção da natureza torna-se lei de seleção da história capitalista, como "biologização da sociedade mundial" (Kurz 2009, 293ss [202ss]).
Em segundo lugar, como escreve Marx na sua análise do carácter fetichista da mercadoria e do seu segredo, o carácter social do trabalho e a objectividade dos seus produtos aparecem "como propriedades naturais sociais dessas coisas" (Marx 1984, 86 [1996, 187]). O contexto social da produção de mercadorias aparece como um contexto natural, a produção de mercadorias como "natural". Ela gira – avançando na concorrência numa escala cada vez mais elevada – em torno do sempre igual: o fim-em-si da multiplicação do capital. O sempre igual, porém, não é história, mas mito. A modernidade não pode ser descrita como racionalização nem como desencantamento – como acreditava Max Weber – mas é caracterizada pela (re)mitificação e pelo encantamento mágico. Estes têm expressão no fenómeno do enfeitiçado culto das mercadorias. Este não pode ser separado dos contextos de produção, distribuição e consumo de mercadorias, ou seja, do mito que a produção de mercadorias representa no seu conjunto.
No mito da produção de mercadorias, o tempo torna-se um tempo homogeneamente fluido e vazio; pois o tempo concreto do trabalho é subsumido ao tempo abstracto do valor (Zamora 2022, 266ss.). Está integrado no fluxo vazio em termos qualitativos e portanto de conteúdo da auto-valorização do capital como fim-em-si abstracto e vazio. Isto anda de mãos dadas com uma espiral de aceleração em que não há descanso – tal como Benjamin a descreveu ao nível do fenómeno da permanência do culto capitalista sem interrupção por dias de semana (cf. Benjamin 1991, 100). Por detrás disto, a força motriz da inquietação é a tensão para aumentar o nível de produtividade sob os constrangimentos da concorrência. "Para o valor que se mantém em si como valor, ... o aumento coincide com a autoconservação, e ele só se mantém a si próprio pelo facto de que tende continuamente para além de seu limite quantitativo" (Marx 1983, 196 [2011, 332]). Neste processo, a acumulação de capital move-se em circuitos auto-referenciais, vazios e imparáveis, que não podem deter-se em nenhum limite externo. A acumulação é indispensável como processo sem fim por razões de autoconservação.
"O tempo do capital é marcado pelo paradoxo de uma circularidade orientada para o futuro. Mas esse futuro não é outra coisa senão o futuro dos próximos circuitos de acumulação" (Zamora 2018, 215). Portanto o vazio do processo de acumulação em termos de conteúdo é banido para o vazio homogéneo do tempo, que flui como retorno do mesmo – sem um objectivo e sem uma perspectiva de sair do circuito do feitiço do sempre igual. O facto de coisas novas estarem sempre a substituir as velhas, de os novos produtos, marcas, modas e tendências se substituírem uns aos outros só aparentemente contradiz isto. O que é decisivo é "que a face do mundo nunca muda precisamente naquilo que é mais novo, que o mais novo é sempre o mesmo em todos os exemplares" (Benjamin 2015e, 676). Mesmo o novo, na sua permanente mudança, não consegue encobrir o vazio. Não proporciona satisfação e tranquilidade, mas produz o tédio, como expressão do vazio que é suposto ser preenchido pela novidade constante. Para os clientes entediados, existem actualmente ofertas de alívio e de aprofundamento nos mercados relevantes dos eventos, do esoterismo e da espiritualidade. A sua paleta vai desde a intensificação de experiências de felicidade, passando por experiências de profundidade espiritual, até ao entretenimento permanente através de eventos (cf. Böttcher 2023, 81ss). Procura-se e oferece-se cada vez mais do mesmo no ciclo mitológico do "retorno do mesmo".
4. Limites do "retorno do mesmo" e o vazio final do capitalismo
Mas o "retorno do mesmo" não pode continuar indefinidamente. Depara-se com um limite lógico, que Marx descreveu como a "contradição em processo" (Marx 1983, 600 e segs.) do capital. A produção realizada no quadro da concorrência obriga a que o trabalho, fonte do valor e da mais-valia, seja substituído por tecnologia. Assim o capital destrói os seus próprios fundamentos. Com a revolução microeletrónica, a diminuição da substância do trabalho já não pode ser compensada através da expansão da produção, da redução dos custos, do barateamento das mercadorias e da expansão dos mercados etc. Assim o limite lógico também se depara historicamente com um limite que já não pode ser ultrapassado no quadro do capitalismo.
Ora Benjamin não tinha incluído o "local oculto da produção" (Marx 1984, 189 [1996, 293]) na sua crítica do capitalismo. No entanto, é possível extrair da sua crítica algumas reflexões centradas em fenómenos que são importantes, tendo em vista o confronto com a crise do capitalismo que vivemos actualmente:
1. Benjamin tinha em mente o limite do capitalismo ao nível da culpabilização (1). Ele tinha caracterizado o culto capitalista como um "culto não de remissão, mas culpabilizador" (Benjamin 1991, 100), ou seja, como um culto sem saída salvadora. Nos ciclos de culpabilização, "o próprio Deus ... é para ser incluído" (ibid., 101). Deus não está simplesmente morto, mas "a sua transcendência caiu" e Deus está assim "integrado no destino humano" (ibid). Ele não se opõe às condições – transcendendo-as. Pelo contrário, torna-se a expressão da sua fetichização imanente, a "metafísica real" (Robert Kurz) das relações capitalistas. Quando o capitalismo se torna religião neste sentido, "já não é uma reforma do ser, mas a sua destruição (...), a extensão do desespero a estado religioso do mundo" (ibid.). Na essência desta religião está a perseverança até ao fim, “até à completa culpabilização final de Deus, ao estado mundial de desespero alcançado, que precisamente ainda é esperado" (ibid.). O que parece então concebível é o fim do mundo e não o fim do capitalismo (segundo Frederic Jameson).
2. Segundo Benjamin, o Deus oculto no culto capitalista torna-se reconhecível no zénite da culpabilização (cf. Benjamin 1991, 101). Aqui se torna claro hoje que a acumulação aparente de capital nos mercados financeiros já não pode estar relacionada com a acumulação real, pelo que as bolhas rebentam repetidamente. O fluxo de um tempo homogéneo e vazio que Benjamin tinha associado ao progresso é reconhecível na crise agravada da "metafísica real" capitalista como vazio associado à multiplicação do capital como fim-em-si abstracto. É vazio de conteúdo em dois sentidos. Por um lado, não está orientado para as qualidades, isto é, para o conteúdo, mas para a quantidade, isto é, abstractamente, para a multiplicação. Os objectos do mundo não são reconhecidos na sua própria qualidade, mas apenas como material para a valorização do capital. Em segundo lugar: Com a crise da valorização, que já não pode ser ultrapassada na imanência, o fim-em-si abstracto e irracional, o aumento do capital/dinheiro por amor de si mesmo corre para o vazio. Robert Kurz vê o seu potencial de aniquilação na impossibilidade de resolver a "contradição entre o vazio metafísico e a 'obrigatoriedade de representação' do valor no mundo sensível" (Kurz 2021, 69 [47]). "Tal dá origem a um potencial destrutivo duplo: um ‘comum’, por assim dizer quotidiano, que sempre resulta do processo de reprodução do capital, e outro por assim dizer final, quando o ‘processo de exteriorização’ esbarra nos limites absolutos" (ibid. 70 [47]).
3. A naturalização da história, que Benjamin via na seleção dos fortes de entre os fracos, assume traços aniquiladores à medida que a crise avança. Ela barbariza-se numa social-darwinista luta pela vida, que cada vez menos pode ser domada por regulamentos políticos. Este fenómeno manifesta-se nas chamadas crises múltiplas, como o colapso dos Estados, as guerras e as guerras civis, a destruição dos meios de subsistência, a migração e a fuga, a escalada da violência na repressão estatal e as lutas bárbaras pela sobrevivência. A luta é até à morte. Mas já não há praticamente nada em jogo, porque a luta capitalista pela auto-afirmação social-darwinista está a dar em nada. A catástrofe é inerente ao processo de valorização do capital. Na lógica da valorização do capital como fim-em-si, não pode haver emancipação, apenas ruína e ruínas.
5. O actual momento de perigo: aniquilação do mundo e auto-aniquilação
Um "momento de perigo" actual (Benjamin 2015c, 1243) é provavelmente a guerra na Ucrânia. Nela lampejam as guerras de ordenamento mundial que são travadas principalmente em regiões onde os Estados estão a entrar em colapso. São uma resposta ilusória à desintegração do "sistema da soberania territorial que começa a dissolver-se diante dos olhos e com a involuntária cumplicidade dos aparelhos capitalistas democráticos " (Kurz 2021, 414 [279]). Na guerra na Ucrânia, torna-se claro que as chamadas grandes potências, com armas nucleares de aniquilação, também estão envolvidas nos processos de desintegração capitalista. Estão a lutar pela sua auto-afirmação nos processos de decadência. Também esta luta é inútil porque não há perspectivas de um novo regime de acumulação que possa servir de base a uma nova "ordem mundial" hegemónica (cf. Konicz 2022).
Ao mesmo tempo os indivíduos isolados, sem apoio nem orientação, são levados a uma luta concorrencial pela auto-afirmação. Sob a pressão de uma auto-optimização permanente e infindável, trata-se de uma auto-submissão a ser alcançada sob a própria responsabilidade. Aqui a "auto-referencialidade da vazia forma metafísica" (Kurz 2021, 69 [47]) não permanece exterior aos sujeitos. Pelo contrário, estes são forçados a processar nesta forma os processos de crise a que estão expostos. Estas lutas também são tanto mais inúteis quanto mais o trabalho se desintegra como base da capacidade de acção individual e da autoconsciência autónoma.
O "estado mundial de desespero alcançado, que precisamente ainda é esperado" (Benjamin 1991, p. 101), comunica-se com o "estado" em que os indivíduos têm de processar os acontecimentos da crise. Aqui a defesa contra as experiências de impotência e mortificação através de alucinações de grandeza e poder também pode assumir a forma de auto-aniquilação (cf. Böttcher, Elisabeth 2022). As tentativas de proteger o eu vazio e de o defender identitariamente podem ser uma ponte através da qual ganham plausibilidade a defesa da liberdade ocidental e a vontade de aceitar o preço da aniquilação do mundo por ela face à desesperança. A "grandeza" do mundo ocidental seria então demonstrada pela vontade de dar a vida por ele.
Como última promessa de grandeza auto-eficaz está à espreita a disposição de auto-aniquilação e de aniquilação do mundo. Ela oferece-se como possibilidade de mostrar grandeza e demonstrar poder na aniquilação. Também a nível social o amoque está ao alcance. Robert Kurz deu a entender isso mesmo quando escreveu: "O conceito de amoque democrático ... bem pode ser levado à letra, no plano da acção militar. ... Quanto mais a situação mundial se tornar insustentável e perigosa, mais o aspecto militar toma a dianteira e menor se torna o constrangimento em recorrer à violência de alta tecnologia em grande escala, sem sequer fazer grandes perguntas" (Kurz 2021, 429 [290]). O "mundo desobediente" e o "carácter elusivo dos problemas" podem mobilizar uma "difusa fúria de aniquilação" (ibid.).
Os Estados-nação que se confrontam belicamente ou em perigosas constelações de blocos são partes do insano sistema fetichista capitalista que atingiu os limites da sua capacidade de reprodução e em cujo quadro não pode haver coexistência pacífica. "No mundo do capital consumado apenas a franca insanidade é realista. Sob estas condições, o chamado pragmatismo assume necessariamente traços escatológicos" (Kurz, 2001, 343 [196]).
6. A questão do que deve ser salvo
6.1 Interrupção e dialéctica suspensa
No "momento de perigo" que Benjamin reconhece no fascismo e na guerra iminentes, torna-se premente a questão do que poderia salvar do fluxo catastrófico do tempo vazio e homogéneo no continuum do progresso capitalista. Para Benjamin, a possibilidade de salvação depende da possibilidade de interrupção do fluxo vazio e homogéneo do tempo e do rebentamento do "continuum da história" (Benjamin 2015b, 701). Isto anda de mãos dadas com a recusa de esquecer e desconsiderar aquilo sobre que rolou o tempo vazio, nomeadamente os "nomes das gerações dos vencidos" (ibid., 700). A constelação que se torna reconhecível "no momento de perigo" não prepara o caminho para uma transição suave, uma transformação suave em algo novo, mas descarrega-se num "calço" (ibid., 703) que se torna uma interrupção do "sempre igual" no decurso da catástrofe.
Numa "imagem dialéctica", "o que foi lampeja juntamente com o agora para formar uma constelação" (Benjamin 2015d, 587). Aqui o passado "tem a marca do elemento criticamente perigoso no mais alto grau" (ibid.). Aquilo que "foi pode tornar-se a reversão dialéctica, a ideia de consciência desperta" (ibid., 491). O despertar é um despertar do sono e do devaneio mítico, do capitalismo, que veio para a Europa como um "fenómeno natural e provocou nela uma reactivação das forças míticas" (ibid. 494).
A "imagem dialéctica" permite despertar do sonho e traz à luz o "conhecimento ainda não consciente do que foi". O despertar está ligado à recordação do que pereceu na história, sobretudo às vítimas sobre cujos cadáveres rolou o progresso. O seu objectivo é "salvar a história em tudo o que ela tem de inoportuno, doloroso e errado desde o princípio" (Benjamin 2015a, 343).
6.2 A questão do que deve ser salvo na crise do capitalismo enquanto actual "momento de perigo”
No actual "momento de perigo" torna-se legível a tendência para a aniquilação do mundo e a auto-aniquilação. O potencial para a "reforma do ser (capitalista, H.B.)" (Benjamin 1991, 1010) está esgotado. Esta falta de saída vai dar à "destruição" (ibid.), à destruição da coexistência das pessoas e da natureza como base de toda a vida.
Na constelação actual, a "imagem dialéctica" que lampeja poderia ser decifrada como uma interrupção do "continuar assim" no quadro das relações fetichistas capitalistas e da sua "metafísica real". O Deus ou fetiche escondido no decurso do capitalismo torna-se reconhecível no zénite da crise. Seria necessário romper com ele, ou seja, com as categorias que constituem o capitalismo: com o valor e a dissociação ao nível mais abstracto, bem como com a sua mediação no dinheiro enquanto expressão mais abstracta do vazio do processo capitalista de valorização do capital, com a sua incorporação nas polaridades do mercado e do Estado, da economia e da política, com o sujeito e com o iluminismo... O desafio consiste numa crítica consequente das relações de fetiche capitalistas, que envolve ao mesmo tempo uma desmitificação do mito capitalista. Tem de resistir às tentações de voltar a recorrer a imediatidades materialistas (vulgares) – seja sob a forma de um recurso à classe, ao interesse, a um agente identificável ou a uma práxis que visa a transformação e alternativas em falsa imediatidade (cf. Kurz 2021, 365ss [244ss]). Se examinarmos melhor, estas últimas revelam-se frequentemente pseudo-alternativas que não envolvem uma ruptura com as categorias capitalistas, mas permanecem nas formas fetichizadas da sua constituição (cf. Meyer 2022).
A "imagem dialéctica" que passa no meio do agravamento da crise do capitalismo (Benjamin 1991, 101) faz lampejar o que o capitalismo percorre e o que já percorreu, o que pereceu na sua história e está condenado no presente. Implica uma objecção ao carácter social-darwinista da história do capitalismo, que selecciona os vencedores de entre os vencidos na luta pela existência, e que, quando já não se trata de "nada" na crise crescente, vai dar à aniquilação. Visa uma "cesura no movimento do pensamento" (Benjamin 2015b, 695), uma "dialéctica suspensa". Ela permite aos "dialécticos da história" "encarar" a constelação de perigos, "seguir o seu desenvolvimento no pensamento" e "evitá-los" "a qualquer momento rapidamente" (Benjamin 2015d, 595). Isto continua a ser impossível sem pensar nas ruínas e sem romper com as relações de fetiche capitalistas, incluindo a tentação de procurar saídas imanentes no quadro das categorias capitalistas num "continuar assim" sem interrupção.
(1) O termo alemão aqui usado, Verschuldung, pode significar tanto «culpabilização» como «endividamento» (Nt. Trad.)
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Original “Dass es ‚so weiter‘ geht, ist die Katastrophe”, conferência proferida em Paris em Maio de 2023, in www.exit-online.org e www.oekumenisches-netz.de. Tradução de Boaventura Antunes