"Alguma coisa segue seu curso"(1) – ou:
O apito final que ninguém quer ouvir
Carta aberta às pessoas interessadas na exit! na passagem de 2018 para 2019
Já passaram dez anos desde que o crash dos mercados financeiros causou alvoroço a nível mundial. O governo dos EUA deixou o Lehman Brothers ir à falência. Esperava que o banco, relativamente pequeno, desaparecesse dos mercados sem dar muito nas vistas, mas as contas saíram furadas. Com a falência do Lehman, o instável sistema financeiro ameaçou colapsar, ficando completamente fora de controlo. O impacto reflectiu-se na queda das cotações, no adiamento dos investimentos, na redução do crédito, no aumento do desemprego e na diminuição do consumo.
De repente, voltou a ser pedida a política, antes colocada pelo pensamento neoliberal sob a suspeita de bloquear as forças criativas e curativas do mercado, com gastos sociais e regulamentação excessiva. Sua tarefa era agora salvar os 'bancos sistemicamente importantes' – nas palavras de então da chanceler federal – com injecções de dinheiro do Estado, e relançar a economia, através de pacotes de estímulos económicos e medidas como os prémios de abate de automóveis.
Para a Alemanha, tudo parecia correr bem – pelo menos na aparência. Os dados económicos – o menor nível de desemprego há décadas, um orçamento federal equilibrado – parecem estar a condizer. E, no entanto, algo está a ferver na Alemanha. A formação do novo governo, após as eleições, no outono de 2017, revelou-se extremamente difícil, e, em seguida, ele rapidamente caiu num estado cambaleante de uma crise governamental para outra.
Não é por acaso que muita coisa se inflama em torno dos refugiados, definidos pelo Ministro do Interior alemão como a "mãe de todos os problemas". Num raro momento de humanidade, a chanceler tinha aberto as fronteiras, deixando assim que fossem atravessadas por uma pequena parte das pessoas em fuga por todo o mundo. Assim se tornou visível, na figura dos refugiados, a dinâmica da crise social mundial também na Alemanha, a terra do milagre económico aparentemente permanente. A crise que parecera deslocalizada anunciava-se também de volta à Alemanha.
A abertura das fronteiras estava correcta, mas o discurso pomposo da chanceler federal "Nós conseguimos" era ilusório. Com os refugiados vem à tona uma problemática "impossível de conseguir resolver" – pelo menos no quadro das relações capitalistas e das suas estruturas. E assim surgiu o que é consistente com a lógica do capitalismo: O ambiente humanitário de boas-vindas evaporou-se tão rapidamente como o activismo filantrópico. A realidade regressou, sem margem para ilusões: as fronteiras foram fechadas, os fugitivos empurrados para países vizinhos, entregues a ditaduras e a Estados em colapso, concentrados em acampamentos ilegais fora das fronteiras europeias. O foco principal é a Líbia, o país do qual a maioria das pessoas tem vindo de barco, atravessando o Mediterrâneo para a Europa. O que importa à comunidade europeia de valores que na Líbia nenhum Estado funcione mais, estando o país dividido entre várias milícias armadas, que procuram manter as diversas regiões sob controlo? Manter do lado de fora, deportar, trancar é a "última coisa" que ocorre aos democratas para lidarem com a crise. Afinal, as pessoas que têm necessidades, mas não têm dinheiro, não são "sistemicamente relevantes" no capitalismo – a menos que sejam percebidas como uma ameaça.
Mesmo a política de deportação, isolamento e separação, continuada com os meios da polícia e das forças armadas após um breve interlúdio humanitário, não consegue apaziguar os irritados cidadãos indignados. Sua raiva encontra expressão em movimentos que identificam e combatem supostos culpados, suscita amplo apoio no centro da sociedade e encosta-se a partidos estabelecidos, dispostos a servir retórica e politicamente o sentimento dos "cidadãos preocupados". A disputa sobre a melhor maneira de fazê-lo, e, acima de tudo, sobre quem suporta os custos, leva a UE, que é tão orgulhosa do seu tempo de paz, a um violento conflito de todos contra todos, até aos limites da capacidade política. E todos têm o mesmo objectivo: o encerramento das fronteiras externas e o isolamento dos fugitivos.
O ambiente foi mais uma vez aquecido pelo aceso debate e concomitantes agitações, em torno do caso de um alemão morto por requerentes de asilo em Chemnitz. Numa sinistra coligação, reuniram-se distúrbios de direita, 'cidadãos preocupados', membros do Departamento de Protecção da Constituição, incluindo o seu Presidente, a brincar com o fogo, o Ministro do Interior do Estado federado, a olhar para o lado, e um Ministro do Interior federal, a atiçar a escalada até à crise governamental. A crise não percebida, mas difusamente sentida do capitalismo, com seus complexos níveis de mediação, é ignorada, e ao mesmo tempo agressivamente recusada, sendo reduzida, com o foco nos refugiados, a uma suposta "mãe de todos os problemas", que também se pode ainda "tratar" e vender bem, por meio da política simbólica. Não importa que o número de refugiados, sobre cujo 'retorno' se tem discutido até à possível queda do governo, nem sequer seja muito alto. Este facto não impediu que o debate sobre o registo, deportação e "centros âncora" tivesse agitado toda uma sociedade, sem ninguém se deter um momento a pensar sobre o que é que "segue seu curso".
Em tudo isso, mais uma vez é claro como se pode marcar pontos politicamente, até bem ao interior do chamado "centro da sociedade", manobrando opiniões racistas e anticiganas. Até os voluntários que resgatavam refugiados naufragados no Mediterrâneo acabaram por ser envolvidos na agitação e na rejeição. As máscaras burguesas começam a cair quando, numa lógica de barbárie, se pretende fazer passar por normal a exigência, berrada pela direita em Chemnitz, de que as pessoas "se afoguem" no Mediterrâneo. Deverá então ser punida a prestação da assistência não interrompida. A punição ameaça aqueles que salvam os refugiados do afogamento. Até que ponto se tornou possível discutir civicamente a aniquilação por "afogamento" é o que se torna claro numa discussão no semanário Die Zeit com o título: "Voluntários privados salvam refugiados e pessoas em perigo no mar. Será isso legítimo? Prós e contras".
O ministro do Interior da Renânia do Norte-Vestefália, Reul, deixou clara a pretensão de que o Estado de direito tenha por fundamento o atoleiro de um sistema baseado num "sentimento popular saudável". O acórdão do Tribunal Administrativo de Recurso de Münster, de mandar regressar à Alemanha o islamista Sami A. em situação vulnerável, deportado injustamente para a Tunísia com artifícios das autoridades e do Ministério da Justiça, foi colocado por Reul sob reserva do sentimento de justiça popular, como ele tornou público: "Os juízes devem ter sempre em vista que as suas decisões estejam em conformidade com o sentimento de justiça da população." (2) Também o Ministro da Justiça, Stamp, responsável pela deportação ilegal, agiu aparentemente de acordo com o sentimento alemão dominante no outono de 2018. "Mantém-se firme o apoio popular à actuação de Stamp, indo até aos limites do Estado de direito ao lidar com os vulneráveis", observa o jornal Kölner Stadt-Anzeiger (3).
Enquanto isso, os movimentos de esquerda regozijam-se com o regresso da "questão social". Nos tempos áureos da pós-modernidade, as questões sociais e político-económicas passaram para segundo plano, perante as orientações culturalistas. A questão da desigualdade social foi prejudicada pelo foco sobre a desigualdade tematizada no contexto de racismo e sexismo, que foi amplamente discutida, sem referência ao contexto político-económico, nem reflexão sobre a totalidade social. Dadas as tendências de precarização e empobrecimento, que dificilmente podem ser ignoradas, a óbvia queda ou medo da queda da classe média, bem como a imagem do arco-iris pós-moderno bastante atirada para a direita por Trump e pelo surgimento de AfD, PEGIDA etc., anuncia-se na esquerda o regresso da familiar "questão social". E com ela estão associadas inúmeras tentativas de voltar a tematizar as disparidades e exclusões sociais no quadro – embora modificado – das relações de classe, bem como esperanças de conseguir reanimar a esmorecida, boa e bem conhecida luta de classes.
O seminário da exit! deste ano deixou claro como são obsoletas essas tentativas, e em que contextos elas permanecem. Embora as análises fenomenológico-sociológicas das disparidades sociais pareçam bastante acertadas, o recurso ao conceito de classe não deixa de ser anacrónico. Ele esquiva-se precisamente ao que seria necessário reconhecer: o fim do sujeito patriarcal do trabalho. Sem esse reconhecimento, fica-se na situação em que agora se vive: a pedalar para manter a sua posição, na escada rolante em movimento descendente. E, se "tiver de" ser, também defendendo-se agressivamente dos concorrentes. Isto, por sua vez, pode ser acompanhado de discriminação social e racial que, perante o agravamento da viragem da modernidade social para a modernidade repressiva, na forma da autoritária administração da crise, leva a que a atmosfera pequeno-burguesa e de direita seja servida de tal modo que os/as irritados/as cidadãos/ãs alcancem, literalmente, a direita. Nestes ambientes podem juntar-se a luta de classes e a crítica das elites, articuladas em falsa imediatidade no espectro de direita, sem se perceber o que está a acontecer socialmente nas manifestações de crise.
A imagem duma história bíblica poderá ajudar a ilustrar um problema social actual. Trata-se da cura do cego Bartimeu (Mc 10, 46-52). Antes de poder voltar a ver, Bartimeu "deitou fora a sua capa", como diz a história (v. 50). Há boas razões para entender a capa deitada fora como uma indicação da necessidade de abandonar os sonhos da restituição do grande reino de David, que provocam cegueira. Na confusão da actual situação de crise, para alguns muita coisa parece concebível e viável, menos uma coisa: uma ruptura reflectida com os sonhos de um capitalismo eternamente ressurgindo de todas as crises. Esta capa é que eles não querem largar de maneira nenhuma.
E assim se deveria, para já, esperar que a crise ganhasse expressão nas vias emergentes dos movimentos de direita, e que aos movimentos do espectro de esquerda ou liberal de esquerda não ocorresse outra coisa senão as receitas familiares, mas infelizmente não comprovadas, em que os sonhos de restituição do capitalismo social e democrático continuam a ser sonhados. Além da luta de classes reanimada, a ATTAC e os seus promotores, dez anos após o crash de 2008, imperturbáveis perante qualquer discussão sobre "anti-semitismo estrutural", trazem de novo à baila as velhas ideias sobre a exigência do encerramento do casino, vendendo-as "como alternativas emancipatórias ao grande casino". São apregoadas ofertas viáveis – "desde reformas de realpolitik viáveis com relativa facilidade, até visões do futuro de maior alcance dum sistema financeiro que funcione para o interesse do grande público". (4) Uma vez que cada ideia parece só poder ser verdadeira se também encontrar expressão na prática, o ex-activista da ATTAC promovido a eurodeputado, Sven Gigold, fundou um "Movimento de Cidadãos para a Mudança Financeira, associação registada". Nela, ele vê "uma grande oportunidade de deslocar a relação de forças na Alemanha entre os poderosos interesses do mercado financeiro, por um lado, e os objectivos do bem comum, por outro". (5)
O apelo à democracia vindo do campo dos iluminados – seja de proveniência burguesa ou de esquerda – especialmente contra as escapadas da extrema-direita, é de todos os tipos. Até o "dinheiro democrático" é promovido, o que Christian Felber designa como "grande alternativa, que não é alternativa nenhuma", propagada e aceite de bom grado, como saída ilusória do beco sem saída do capitalismo. (6) Perante a actual situação de conflito, Roswitha Scholz pegou no texto de Robert Kurz publicado em 1993 "A Democracia devora os seus filhos. Notas sobre o extremismo de direita", comentando-o perante os desenvolvimentos havidos desde então, e deixando claro que: "A democracia ainda devora os seus filhos – e hoje mais do que nunca!"
A democracia não é uma cura eficaz para os processos de barbarização que se estão a espalhar no capitalismo de crise global. Pelo contrário, como forma de organização social e política da sociedade produtora de mercadorias, ela faz parte da socialização capitalista. É ela que produz as fanasmagóricas forças autoritárias, racistas e anti-semitas que depois a farão desaparecer. Fazer esta ligação não implica de modo nenhum a afirmação de uma continuidade ininterrupta. Em vez disso, pode-se supor que o desenvolvimento da crise desde o crash de 2008 e o subsequente encolhimento das possibilidades de acção política voltaram a alimentar os movimentos de direita: "Entre 2009 e 2011 aumentou claramente [...] a percepção da falta de influência, como elemento básico da raiva, a disponibilidade para participar em manifestações, bem como a disponibilidade individual para a violência. Isso foi antes de aparecerem os Pegida ou a AfD. Os actores da mobilização conseguiram transformar os sentimentos individuais de impotência em sentimentos de poder colectivo", constata Wilhelm Heitmeyer. (7) Assim se possibilita aos actores "constituírem-se como actores nas relações a que eles foram entregues". (8)
Apegar-se, quase a todo custo, às relações cuja crise progressiva destrói os fundamentos da vida e barbariza a coexistência dos seres humanos, parece ser um denominador comum que une movimentos de esquerda e de direita. Voltando à imagem bíblica, a capa tem de ser segurada – mesmo quando já não serve e está toda rota. Pretende-se que o firme agarrar da capa não seja afrouxado, ou mesmo resolvido, por uma teoria que se estende dos fenómenos à totalidade social. Continuando assim, as relações não compreendidas continuam o seu curso, em direção a um "Fim de Partida" que não é nenhuma final. "Alguma coisa segue seu curso", observa Clov, na peça de Samuel Beckett Fim de Partida. (9) Suspeita-se e sente-se, mas não se compreende onde é que isto pode ir parar. Beckett começa a peça com Clov, “olhar fixo, voz neutra”, a dizer: "Acabou, está acabado, quase acabando, deve estar quase acabando”. (10)
Se 'a coisa' está a acabar, estará definido nela. Chegada ao seu fim lógico e histórico está a socialização capitalista da dissociação-valor, que no auge da pós-modernidade ainda conseguia encenar-se como uma partida sem fim. O apito final soa, mas é ignorado com determinação. E assim prosseguem a sua marcha os incompreendidos processos de crise, produzindo sempre novas dinâmicas de destruição e barbarização.
A posição da exit! é no sentido de que se compreenda o que está a "seguir seu curso". O reconhecimento dos fenómenos da crise social como uma "totalidade concreta" é um passo essencial para acabar com a entrega a processos não compreendidos, que nos tornam impotentes. Torna audível o apito final, abrindo um horizonte para, na crítica consistente e em ruptura com as formas que constituem a sociedade capitalista, poder tornar pensáveis e viáveis formas de coexistência das pessoas, para lá da submissão a relações fetichistas. Agradecemos a toda a gente que nos apoia nesta via, e mais uma vez pedimos, como "todos os anos", o apoio necessário – sem esquecer o apoio financeiro.
Herbert Böttcher pela Direcção e pela Redacção, Novembro de 2018
(1) Samuel Beckett: Fim de Partida, Cosac Naify, São Paulo, 2001, p. 55.
(2) Kölner Stadt-Anzeiger de 18/19.8.2018.
(3) Kölner Stadt-Anzeiger de 18.8.2018. Devido a uma nota verbal da Embaixada da Tunísia, em que é garantido que o requerente de asilo deportado não terá de recear tortura ou outras violações dos direitos humanos no seu país, foi entretanto cancelada a proibição de deportação. Mas isso não altera a avaliação política do comportamento e das declarações dos ministros.
(4) É o que se diz na apresentação do livro de Isabelle Bourboulon, Kommt der Finanz-Crash 2.0? Zehn Jahre nach der Lehman Pleite: Für ein Finanzsystem im Interesse der Vielen [Vem aí o crash financeiro 2.0? Dez anos após a falência do Lehman: Por um sistema financeiro no interesse dos muitos], a publicar na série "AttacBasisTexte53 na editora VSA-Verlag.
(5) Do texto dum apelo de apoio ao movimento "Bürgerbewegung Finanzwende e.V.
(6) Ver Dominic Kloos: Alternativen zum Kapitalismus. Im Check: Gemeinwohlökonomie [Alternativas ao capitalismo. Em xeque: a economia do bem comum], in: Ökumenisches Netz Rhein-Mosel-Saar (Hg.): Die Frage nach dem Ganzen – Zum gesellschaftskritischen Weg des Ökumenischen Netzes anlässlich seines 25-jährigen Bestehens [A questão da totalidade – Sobre a via de crítica social da Rede Ecuménica, por ocasião do seu 25º aniversário], Koblenz 2018, 299–357.
(7) Entrevista a Wilhelm Heitmeyer »Der Erfolg der AfD wundert mich nicht [O sucesso da AfD não me surpreende]«, berliner-zeitung.de de 22.10.2016.
(8) Nora Rähtzel, Rebellierende Selbstunterwerfung. Ein Deutungsversuch über den alltäglichen Rassismus [Auto-submissão rebelde. Uma Interpretação do racismo quotidiano], in: links Nr. 12 (1991), 24–26, 25.
(9) Samuel Beckett: Fim de Partida, Cosac Naify, São Paulo, 2001, p. 55.
(10) Ibidem, p. 38.
Original »Irgend etwas geht seinen Gang.« – oder: Der Abpfiff, den niemand hören will. Offener Brief an die InteressentInnen von exit! zum Jahreswechsel 2018/19 Publicado na homepage da revista EXIT! www.exit-online.org/ em 22.12.2018. Tradução de Boaventura Antunes