Anti-semitismo de esquerda
Herbert Böttcher
Reacções ao ataque de 7 de Outubro
As primeiras reacções ao ataque terrorista do Hamas caracterizaram-se por expressões cautelosas de empatia com as vítimas, a condenação do terror e a solidariedade com o Hamas lado a lado. Nas manifestações pró-Palestina, no entanto, já não houve qualquer sinal de choque com o terror. A tónica foi colocada na “libertação” da Palestina e no Hamas como parte da luta de “libertação” contra Israel. “Esperança para a Palestina ... Grupos de resistência de esquerda apoiam ofensiva contra Israel”, aplaudiu o 'Junge Welt'.1 Durante tais ofensivas o ódio contra Israel é descarregado em slogans como “Os sionistas são fascistas, assassinam crianças e civis”.2 Nas bancadas da Conferência Rosa Luxemburgo ouviram-se vozes com as quais o programa oficial não se queria identificar, mas que no entanto davam uma ideia do que move os corações e as mentes da esquerda: o Hamas seria necessário para reforçar a “consciência de classe socialista”, o seu ataque seria “uma resposta esperada a décadas de opressão”. Não se trataria de justificar o ataque, mas de ajudar a “entendê-lo”.3
O “entendimento” da esquerda
“Entende-se” que Israel é o perpetrador e que as vítimas se estão a defender contra esse perpetrador. Esta deslocação de vítimas e perpetradores é um dos estereótipos anti-semitas presentes na esquerda. Tal visão ganhou força com o início da ofensiva terrestre. Os números elevados de vítimas e as imagens do sofrimento dos palestinianos podem ser utilizados para mobilizar uma indignação mediática e emocional contra Israel e deslegitimar Israel enquanto Estado. Embora a reacção de Israel perante um ataque terrorista deste tipo fosse previsível, talvez mesmo calculada pelo Hamas, a denúncia de Israel pode ser utilizada para marcar pontos junto de um público em que o anti-semitismo faz ressonância sob a forma de hostilidade para com Israel. Por detrás da indignação com a “catástrofe humanitária” na Faixa de Gaza, desaparece o terror bárbaro do Hamas e o anti-semitismo enraizado na sua carta, que também tem como objectivo estratégico a destruição de Israel e de todos os judeus.
A memória do extermínio dos judeus durante a era nazi é um obstáculo à luta pela “libertação” da Palestina e à concretização do ódio contra Israel. Bloqueia a crítica desinibida a Israel e a solidariedade com os palestinianos. Daí o slogan: “Libertem a Palestina da culpa alemã”. No plano académico parece apoiar-se no ataque do investigador de genocídios A. Dirk Moses à cultura alemã da memória. Esta ter-se-ia tornado uma supervisionada encenação celebrada como culto, e estaria combinada com a desvalorização sobretudo dos crimes coloniais e com uma solidariedade por reflexo para com Israel.4
Anti-semitismo e capitalismo
Judith Butler contextualiza o ataque do Hamas na história da violência no Médio Oriente. Refere-se ao que considera ser a sistemática ocupação de terras e a sua protecção através de medidas arbitrárias, como controlos e detenções.5 É incorrecto culpar apenas o “regime do apartheid” pelo terror do Hamas. O facto de Israel ser um “regime de apartheid” parece ser indiscutível. Categorialmente o colonialismo e o racismo são as variáveis de referência para a contextualização do terror efectuada por Butler. Neste pós-colonialismo de cunho culturalista pós-moderno a referência ao capitalismo permanece vaga e a sua crise passa despercebida. Assim não se consegue ver o anti-semitismo como processamento projectivo das crises capitalistas. Em vez de reflectir sobre o anti-semitismo, o racismo e o colonialismo, nas suas referências recíprocas e nas suas diferenças, bem como no contexto da crise do capitalismo global, Butler denuncia a violência “de ambos os lados”, apela “à verdadeira igualdade e justiça” e deseja “um mundo que resista à normalização do domínio colonial e apoie a autodeterminação e a liberdade dos palestinianos”. A dominação do capitalismo transforma-se em dominação colonial. O que se alucina é “um verdadeiro Éden de direitos humanos inatos”6 que se abstrai da produção de mercadorias e acaba num universalismo abstracto. Contextualmente, no entanto, a crítica universal à violência e os apelos ao seu fim estão relacionados com Israel enquanto potência militar e ocupante, que mantém arbitrariamente a Faixa de Gaza sob controlo como uma “prisão a céu aberto” e que agora também a bombardeia. Não é por acaso que Butler também ataca a cultura alemã da memória. Esta já não permitiria a compaixão por mais ninguém para além dos judeus. No entanto, a particularidade das constelações de conflito não pode ser separada da generalidade das formas capitalistas nem derivada delas em termos de lógica da identidade. Correspondentemente têm de ser tidos em conta diferentes níveis, como as diferenças culturais e o processamento psicológico das crises. O colonialismo, o racismo, o anti-semitismo e o anticiganismo não podem, portanto, ser entendidos “para além” das formas capitalistas, mas também não podem ser derivados delas na lógica de um esquema mecanicista de causa e efeito.
Por outro lado, para os movimentos de esquerda activistas, a reflexão de níveis diferentes mas interligados pode parecer demasiado complicada e contrariar a desejada auto-eficácia. Mas sem essa reflexão a prática degenera num monótono activismo alimentado pela indignação moral. Esta é dirigida contra Israel, como actor supostamente imperial e colonial, e é vivida no anti-semitismo relacionado com Israel, em intensiva vivência e com a boa sensação de estar do lado certo na luta global pela libertação. Tomar partido classifica as pessoas em imperialistas maus e colonizados bons. Estas certezas ignoram o facto de a luta ser travada no quadro das formas capitalistas em colapso do mercado e do Estado, do capital e do trabalho, do sujeito como agente na concorrência etc., e não tem uma perspectiva emancipatória, porque a libertação é procurada como libertação nacional na forma estatal em colapso. Assim se ignora que o capitalismo com a revolução microeletrónica atingiu um limite que já não pode ultrapassar devido ao desaparecimento do trabalho como substância para a acumulação de capital, e que esse limite se exprime nos vários processos de desintegração, nomeadamente na desintegração dos Estados. São precisamente estes processos de crise que alimentam o anti-semitismo como reacção projectiva da crise que não pode ser separada do capitalismo e das suas crises.
O duplo carácter do Estado de Israel
Contra a classificação unidimensional de Israel como um Estado capitalista, Robert Kurz chamou a atenção para o carácter dual do Estado de Israel. Não é simplesmente um produto colonial, mas essencialmente um projecto de salvação para os judeus ameaçados de perseguição e aniquilação e, como tal, um projecto contra o anti-semitismo. Enquanto Estado capitalista, está exposto a todos os mesmos processos de desintegração social e estatal que os outros Estados capitalistas. Tal como eles, tem de enfrentar estas crises, mas rodeado por um ambiente que ameaça a sua existência e, sobretudo, sem poder recorrer a reservas anti-semitas para enfrentar a crise. Neste contexto entram em acção estratégias de transformação nacional-religiosas e racistas. O sionismo secular e de orientação socialista está a aproximar-se de movimentos e partidos nacionais e religiosos ortodoxos. As tendências identitárias e autoritárias em Israel estão a assumir a forma de movimentos teocráticos e nacional-religiosos que se combinam com projecções anti-árabes. Estas tendências estão a ganhar cada vez mais influência na política governamental e estão institucionalmente ancoradas no governo de Netanyahu. As estratégias racionais da política de segurança para a defesa da existência de Israel misturam-se com o irracionalismo das promessas de salvação ultra-ortodoxas. Mas as mobilizações autoritárias, identitárias e de direita não são simplesmente “tipicamente israelitas”. Podem ser vistas em todos os Estados capitalistas como tentativa de fazer face aos processos globais de decadência. No que diz respeito a Israel é notório que a viragem à direita está a ser enfrentada com uma crítica resoluta e uma luta determinada, que se dirige principalmente contra a reforma judicial destinada a restringir o controlo do governo pelo Supremo Tribunal.
Anti-semitismo em vez de crítica radical do capitalismo
Em vez de avançarem para uma crítica radical do capitalismo face aos processos de crise global, os movimentos de esquerda ficam-se pelo que é conhecido. Continuam a ver-se a si próprios como movimentos de libertação nacional, sem reconhecerem que, tendo em conta o fracasso do desenvolvimento atrasado devido aos limites imanentes do capitalismo, a perspectiva não pode ser um Estado autónomo, e que todos os sonhos de uma “solução de dois Estados” fracassam porque a base do Estado moderno se rompe com os limites da acumulação de capital que já não podem ser ultrapassados. Nesta situação paradoxal, a construção do Estado combina-se com a desestatização, sob a forma de senhores da guerra e estruturas mafiosas. Os processos de crise global há muito que anularam as possibilidades de libertação nacional revolucionária. Isto significa que estão a falhar todas as estratégias que se baseiam num pólo da imanência capitalista – seja na luta de classes ou no Estado como autoridade reguladora ou mesmo como refúgio de libertação.
Assim não se consegue ver uma ultrapassagem emancipatória do capitalismo e o núcleo da crise como limite interno à acumulação de capital tem de permanecer incompreendido. Enquanto a esquerda permanecer cega à crítica da constituição capitalista nas suas formas fetichistas, permanece aberta a uma ideologia de crise, na qual a crise é processada ideologicamente através da sua projecção nos “judeus” e no “Estado judaico”. No anti-semitismo, que se alimenta do inconsciente colectivo, Israel é ridicularizado como “o judeu” entre os Estados e torna-se o objecto do processamento projectivo da crise. Isto pode ser associado a estereótipos como a diferenciação entre capital rapinante e capital criador ligado ao trabalho. O que exprime a separação entre o abstracto (dinheiro) e o concreto (trabalho), sendo que o abstracto pode ser projectado nos “judeus”. Estes tornam-se senhores do dinheiro e da mente. É-lhes atribuído um poder superior, através do qual são capazes de conspirar e dominar o mundo.
A imaginação de uma conspiração mundial foi um elemento central da propaganda anti-semita dos nazis. Pode ser encontrada de novo na carta do Hamas de 1988 e torna-se eficaz em batalhas que visam a destruição de Israel e de todos os judeus. Na visão anti-semita do mundo, a existência de Israel defendida militarmente é pior do que qualquer opressão e violência vividas globalmente. Isto leva à ilusão de que o mundo seria libertado se fosse “livre dos judeus”. A dominação abstracta do capitalismo pode ser concretizada nos “judeus” e no “Estado judaico” como perpetradores e nos seus actos conspiratórios, que podem ser identificados como os mentores da opressão e da dominação. A libertação dos “judeus” toma o lugar da libertação da socialização capitalista constituída no contexto fetichista de valor e dissociação, de capital e trabalho, de economia e política. O irracional fim em si capitalista, vazio e estranho de transformar dinheiro em mais dinheiro pode supostamente ser identificado e tornado tangível. A impotência transforma-se em capacidade de acção imaginada. O capitalismo parece transformável sem que seja necessário tocar na sua estrutura fetichizada. O dinheiro e o trabalho, um Estado que regula o mercado etc. podem ser mantidos e a dissociação da reprodução conotada como feminina permanece na cozinha da contradição secundária. A transformação pode tornar-se o regresso a um capitalismo “original” de bom trabalho e boa regulação política que também controla as crises. A normalidade parece estar salva. “Sob o feitiço da irracionalidade tenaz do todo, a irracionalidade das pessoas também é normal.” Está sempre com a pressa de “inundar a racionalidade instrumental de comportamento político”.7 Em tempos de escalada da crise é tentador agarrar-se à normalidade do todo social irracional e defendê-la, afastando e destruindo tudo o que supostamente a ameaça – sejam os refugiados, os estrangeiros, os pretensamente “avessos ao trabalho” ou sobretudo os judeus.
O anti-semitismo de esquerda reflecte os défices da crítica de esquerda ao capitalismo. O factor decisivo é que, apesar do fracasso da produção de mercadorias e da sua promessa de emancipação imanente, ela se esquiva a criticar o contexto fetichista da constituição capitalista, que confronta os indivíduos como dominação abstracta. Em vez de fazer desta o objecto da crítica emancipatória no seu contexto de valor e dissociação, produção e circulação, capital e trabalho, mercado e Estado, procura identificar a dominação nos actores. Isto abre caminho à personalização, à emocionalização e à indignação, incluindo as fantasias da conspiração – um conglomerado que pode ser “desencadeado” e descarregado agressivamente a qualquer momento no anti-semitismo projectivo.
Numa situação em que as contradições sociais já não podem ser tratadas na imanência da forma, a esquerda, numa mistura de pensamento de luta de classes, fetichismo da práxis e hostilidade à teoria, também contribuiu para o facto de a crítica categorial poder ser desarmada e o supostamente “concreto” poder ser colocado contra o supostamente “abstracto”. Ao contrário dos nazis, cujo anti-semitismo conseguiu ligar-se à acumulação fordista, a acumulação capitalista nas crises actuais não dá em nada e também deixa os sujeitos “nus” na sua falta de perspectivas. Foi-lhes retirada a capacidade de concorrer. Neste estado de desespero as fronteiras entre o assassínio e o suicídio correm o risco de se esbater. A ilusão da digestão projectiva da crise pode misturar-se com tendências que conduzem à autodestruição e à destruição do mundo na forma capitalista, numa situação imanentemente sem saída. No “Médio Oriente” a desintegração do capital mundial está a atingir o seu ponto mais alto nas acções pouco promissoras e simultaneamente perigosas dos actores estatais que, no meio dos processos de desintegração, procuram, não só militarmente, um “apoio” e ao mesmo tempo vantagens estratégicas nas constelações estatais em desintegração.
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1. junge Welt de 9.10.23
2. Jüdische Allgemeine de 9.2. 24
3. Tagesspiegel de 13.1.24
4. Der Katechismus der Deutschen
5. Freitag 42/2023
6. Marx, Das Kapital, Berlin 1984, 189.
7. Adorno, Meinung, Wahn, Gesellschaft [Opinião, ilusão, sociedade], GS 10.2, Frankfurt am Main 52015, 587.
Original “Antisemitismus von links” in www.exit-online.org. Antes publicado com ligeiras modificações em konkret 4/2024. Tradução de Boaventura Antunes