Destruição do mundo como autodestruição

O que há "que pensar" no seguimento de Walter Benjamin

 

Herbert Böttcher

 

 

No processo de crise, a guerra está também a progredir da periferia para os centros capitalistas. Em combinação com os outros pontos quentes da crise, a guerra na Ucrânia e as reacções ocidentais têm o potencial de escalar para uma conflagração mundial. No seu texto "Destruição do mundo como autodestruição – O que há ‘que pensar’ no seguimento de Walter Benjamin", Herbert Böttcher retoma análises de Robert Kurz em "A guerra de ordenamento mundial". Aí ele tinha visto os processos de desintegração e as guerras que os acompanham em ligação com o vazio da forma capitalista de produção e reprodução, que caminha para a destruição do mundo e para a autodestruição. Recorrendo ao entendimento da história de Benjamin, em que o passado e o presente entram numa nova constelação perante as catástrofes como "momento de perigo", Böttcher lança um olhar sobre a crise mundial que se está a agravar perigosamente em direcção à destruição do mundo e à autodestruição. Aqui Benjamin, ao abalançar-se à questão da totalidade como contexto de crise e de fetiche – ainda que de modo criticável como redutor – pode tornar-se um ponto de referência inspirador para a crítica da dissociação-valor. Contra a tendência de, face aos perigos, procurar apoio com orientação imanentemente regressiva na classe, na identidade, no interesse, na conspiração etc., Benjamin pode ser lido de tal modo que a ruptura com as relações fetichistas vigentes se torna reconhecível como pressuposto indispensável para uma perspectiva de salvação. (Apresentação do texto na exit! nº 20, 05/2023)

 

Introdução * 1. O potencial de destruição do mundo analisado por Robert Kurz * 2. Da periferia para o centro: a guerra da Rússia na Ucrânia e as reacções do Ocidente * 3. A autodestruição e a destruição do mundo juntam-se * 4. Sobre a legibilidade de Walter Benjamin * 5. As crises e a questão de "olhar para o todo" * 6. O capitalismo como religião * 7. Pontos de contacto entre Benjamin e a crítica da dissociação-valor * 7.1 "Momento de perigo" * 7.2 Um tempo vazio * 7.3 Ciclos de culpa/dívida sempre nova * 7.4 Falta de saída, endividamento, fetiche * 7.5 Accionar o travão de emergência 7.6 "Metafísica real"* 8. O actual "momento de perigo": perda de si no "estado mundial de desespero" * 9. Interrupção e dialéctica suspensa

 

Introdução

A guerra na Ucrânia e a reacção do Ocidente podem ser a faísca que transforma a crise do capitalismo num incêndio com risco de destruição global. A possibilidade de uma tal catástrofe está cada vez mais próxima porque esta guerra está inserida na crise do capitalismo, também virulenta noutras manifestações que se agravam dramaticamente, como a crise climática, a fuga e a migração e a desintegração dos contextos sociais e políticos. Em A guerra de ordenamento mundial (Kurz 2021), Robert Kurz já tinha assinalado o potencial de destruição do mundo e de autodestruição associado à crise do capitalismo (1.). Na sequência, este artigo reflecte sobre a guerra da Rússia na Ucrânia e a reacção do Ocidente no contexto da crise do sistema mundial capitalista (2.), em que a destruição do mundo e a autodestruição se conjugam (3.). Walter Benjamin abre uma visão da história, em que o presente e o passado entram numa nova constelação perante as catástrofes (4.) e a questão de "olhar para o todo" é colocada de novo (5.). No seu fragmento O capitalismo como Religião, coloca esta questão num contexto em que as relações capitalistas se tornam reconhecíveis como relações fetichistas (6.). Para a crítica da dissociação-valor o entendimento de Benjamin da história como um contexto de catástrofe e o seu abalançar-se à totalidade fazem dele um parceiro de diálogo inspirador (7.), que se centra nas potencialidades de destruição mundo e de autodestruição como "momento de perigo" (8.). Ao contrário da actual procura imanentemente regressiva de refúgio na classe, na identidade, no interesse, na conspiração etc., Benjamin pode ser lido de tal modo que a ruptura com as relações fetichistas vigentes se torna reconhecível como pressuposto indispensável para uma perspectiva de salvação (9.).

 

1. O potencial de destruição do mundo analisado por Robert Kurz

A guerra da Rússia contra a Ucrânia e a reacção do Ocidente estão ligadas a processos que Robert Kurz já tinha analisado na Guerra de Ordenamento Mundial, e que se prolongam na destruição do mundo (Kurz 2021). Os Estados periféricos estão a entrar em colapso, porque as suas tentativas de recuperar o atraso em termos de desenvolvimento falharam e já não conseguem acompanhar a concorrência no mercado mundial. Isto tornou-se particularmente visível no beco sem saída da dívida externa e no auto-abandono das respectivas economias nacionais. No entanto os restos dos Estados falhados não se dissolvem simplesmente num nirvana. Os (antigos) funcionários públicos e os empregados nas infra-estruturas permanecem. Aqueles que não querem ser atirados de volta para uma primitiva economia de subsistência procuram a sua oportunidade no quadro do que resta do Estado ou no crime organizado. Neste último caso a concorrência prossegue nas condições do capitalismo de crise e da conexa desintegração da sua forma estatal. Nas regiões em crise os potentados com a sua clientela e os bandos de saqueadores competem pelo acesso aos recursos – desde os alimentos provenientes da produção de subsistência até aos recursos que são canalizados para o mercado mundial. Nas condições da crise mundial do capital, está a alastrar uma "economia de saque global" (ibid., 48ss. [33ss.]), "já não podendo a concorrência concretizar-se na esfera de realização do mercado, mas apenas na esfera de realização da agressão armada" (ibid., 49 [44]).

O carácter violento da concorrência capitalista, que já não pode ser domado pela forma do direito e do Estado social, é transformado na imediatidade da "guerra de todos contra todos" (Thomas Hobbes), incluindo a barbárie que nela se agrava. Os homens, cuja posição patriarcal entrou em colapso, exercem aqui a sua masculinidade como sujeitos de violência, enquanto as mulheres, no "asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias", têm de assumir funções tradicionalmente masculinas e são "igualmente responsáveis pelo 'dinheiro e pela vida (sobrevivência)'" (Scholz 2011, 143s.), com a consequência de as actividades reprodutivas das mulheres serem vítimas da sua dupla responsabilidade (cf., por exemplo, Maurer 2022, Lotendo 2022).

A guerra de todos contra todos, caracterizada pela concorrência destruidora, implica a destruição dos outros, mas também o risco de se ser destruído. A destruição dos concorrentes e a autodestruição aproximam-se. "A indiferença para com todos os outros converte-se na indiferença para com o próprio eu" (Kurz 2021, 60 [41]). Assim, "a auto-afirmação abstracta dos indivíduos apenas aparentemente se constituiu como princípio supremo dos indivíduos (na sua forma moderna, como sujeitos estruturalmente ‘masculinos’). Pelo contrário, por detrás espreita a não menos abstracta abnegação de si próprio; melhor dizendo: a auto-afirmação e a abnegação, na sua total separação de qualquer comunhão social, são no fundo idênticas, e esta identidade também se manifesta em termos práticos nas grandes catástrofes sociais do capitalismo " (ibid., 61s. [42]).

Com o desaparecimento da variante estatista da produção de mercadorias e a crise da sua contraparte liberal, as constelações geopolíticas também estão a mudar. Desde a década de 1980, os processos de crise "começaram até a devorar os centros do capital" (ibid., 23 [16]). Mesmo nos centros, há cada vez mais sinais de que o capitalismo está a atingir os limites da sua própria reprodutibilidade. As disparidades sociais estão a aumentar e os Estados vêem-se confrontados com a questão da viabilidade financeira dos regulamentos do Estado social e com a montanha de dívidas em crescimento. Os EUA, última potência mundial, estão assentes em pés de barro, com a sua gigantesca dívida interna e externa e a sua dependência do capital monetário privado transnacional. Os limites das estratégias neo-imperiais tornam-se claros não só em relação à Rússia, o Estado sucessor da antiga potência mundial URSS, abalada pelas crises do colapso, mas também em relação aos EUA. Aos EUA resta o contraditório papel de liderança de uma "força policial mundial", que é suposto cumprir como Estado-nação em crise no seio da NATO, face aos colapsos na periferia, para defender as formações sociais capitalistas com "intervenções flexíveis", mesmo que já quase não o consiga fazer, como se pode ver nas retiradas do Afeganistão e da Síria (sobre este e outros desenvolvimentos desde a primeira edição da Guerra de Ordenamento Mundial de Kurz: Böttcher 2021). De acordo com a legitimação propagandística, isto devia servir a "preservação e imposição da 'paz mundial democrática' contra os chamados 'inimigos da paz não democráticos'". "A impiedosa manutenção do sistema, a auto-afirmação do capitalismo a qualquer preço e o fraseado democrático-idealista tornam-se imediatamente idênticos no 'pensamento de polícia mundial', contra os monstros da crise aparentemente surgidos dos abismos da História" (Kurz 2021, 35 [23s.]). Tendo em conta a guerra na Ucrânia, estes germes são personalizadamente concretizados e identificados em novas imagens do inimigo. O resultado é a imagem de uma luta do "Ocidente livre" contra os "inimigos da liberdade", que transforma os pacifistas benfeitores em belicistas da liberdade e dos direitos humanos.

Pode ser negado e/ou recalcado "que o novo inimigo mundial é o produto da decomposição global do seu próprio sistema" (ibid., 45 [31]). Pode ser ocultado que a "auto-afirmação do capitalismo a qualquer preço" (ibid., 35 [24]) está a dar em nada. O que está em causa é "o completo vazio do 'sujeito automático' (Marx) da modernidade que se autovaloriza" (ibid., 69 [47]), o vazio do processo de valorização do capital. É vazio de conteúdo porque não está orientado para as qualidades, isto é, para o conteúdo, mas para a quantidade, isto é, abstractamente, para a multiplicação. Os objectos do mundo não são reconhecidos na sua própria qualidade, mas apenas como material para a valorização do capital. Com a crise imanente da valorização, que já não pode ser ultrapassada, o fim-em-si abstracto e irracional de aumentar o capital/dinheiro por amor de si mesmo só dá em nada. Kurz vê o seu potencial de destruição na impossibilidade de resolver a "contradição entre o vazio metafísico e a 'obrigatoriedade da representação' do valor no mundo sensível" (ibid.). Tudo o que é sensível não tem valor em si, mas é apenas material para o processo de valorização e é vítima da compulsão para representar o valor. "Tal dá origem a um potencial destrutivo duplo: um ‘comum’, por assim dizer quotidiano, que sempre resulta do processo de reprodução do capital, e outro por assim dizer final, quando o ‘processo de exteriorização’ esbarra nos limites absolutos" (ibid., 70 [47]).

O "vazio metafísico" não está apenas associado ao "sujeito automático", como motor do processo de valorização, mas também ao sujeito masculino esclarecido "que põe em movimento o ‘sujeito automático’ através do seu próprio padrão de acção pré-estruturado" (Kurz 2005b, 210). Faz isto porque actua como "portador da acção do trabalho abstracto e das suas funções derivadas" (ibid.). Isto não acontece de forma determinística, mas está enraizado em padrões culturais de interpretação e normalização, bem como em marcas psicossociais que não podem ser derivadas do valor. No entanto, os constrangimentos do "cego contexto sistémico" não podem ser voluntaristamente ignorados (cf. Kurz 2013b, 83ss., 98ss.).

Porque o sujeito também está ligado ao dispêndio de trabalho, quanto mais o "cego contexto sistémico" atinge os seus limites e se torna "vazio", mais as suas vestes caem. Então "torna-se evidente que sob essas vestes NADA existe: que o âmago desse sujeito é um vazio; que se trata de uma forma ‘em si’, sem qualquer conteúdo" (Kurz 2021, 68 [47], ênfase no original). Tornar-se supérfluo ou precário, decair socialmente, ou seja, ficar "nu" quando a valorização do trabalho não é procurada ou só o é em condições precárias, pode ser vivido como afronta e morte social. Os processos de individualização, em que o sujeito é lançado sobre si mesmo, sem perspectiva e sozinho, revelam-se uma ponte entre as formas de socialização e os mecanismos de reacção psicológica. É aqui que entra em jogo uma experiência análoga àquela que Eisenberg formulou a propósito dos amoques: "A auto-estima devastada e ofendida" combina-se com "fantasias de grandeza e de omnipotência", que se enriquecem com raiva destrutiva e sadismo. "A ideia de destruir a vida dos outros torna-se uma fonte de sentimentos de poder e de superioridade" (Eisenberg 2002, 23), que podem ser utilizados para afastar a impotência e a ofensa. "A preservação da auto-estima e da integridade da personalidade pode ser um motivo para o comportamento humano que pesa mais que a salvaguarda da sua própria sobrevivência reduzida" (ibid., 25). Então já não se trata "apenas" da "aniquilação dos ‘outros’, aparentemente com a finalidade da sua autoconservação a qualquer preço", mas também de uma vontade “de auto-aniquilação, que executa a falta de sentido da própria existência na economia de mercado. Por outras palavras: a fronteira entre o assassínio e o suicídio vai-se esbatendo" (Kurz 2021, 71 [48]).

A relação entre a perda de auto-estima e a autodestruição não apenas se manifesta nos amoques individuais, mas também se revela como a base global para a escalada da violência. As diferenças sociais e culturais-religiosas, muitas vezes sobrevalorizadas para atribuir actos de violência a um determinado círculo cultural, por exemplo, ao mundo islâmico, passam para segundo plano (cf. Todorov 2010). Em contrapartida, Kurz sublinha: "A 'sede de morte' não é um motivo especificamente islâmico, mas sim o universal grito de desespero de uma humanidade que se auto-executa na sua forma mundial capitalista" (ibid., 74 [50]). A autodestruição e a destruição do mundo são mediadas pelo vazio do "cego contexto sistémico" e pelo vazio dos sujeitos.

 

2. Da periferia para o centro: a guerra da Rússia na Ucrânia e as reacções do Ocidente

Com a guerra da Rússia na Ucrânia e as reacções ocidentais à mesma, a crise do capitalismo também está a penetrar da periferia para os centros, sob a forma da guerra e da conexa escalada de violência que acompanham os processos de decadência com a crise da valorização do capital. As antigas potências mundiais estão envolvidas num perigoso conflito para assegurar esferas de influência. Também elas estão apanhadas nos processos de desintegração do sistema mundial capitalista (cf. Böttcher 2022b). No decurso destes processos de desintegração e das reformas neoliberais que lhes estão associadas, a Rússia foi em grande parte desindustrializada, com excepção de áreas como as viagens espaciais e a tecnologia de armamento (por exemplo, mísseis hipersónicos). Após o fim da União Soviética, a Rússia perdeu grande parte da sua competitividade internacional e tornou-se essencialmente um fornecedor de energia e de matérias-primas (ver o artigo de Tomasz Konicz neste número da exit!). O resultado foi, por um lado, o empobrecimento maciço de vastas camadas da população e, por outro, a agora lamentada riqueza dos chamados oligarcas, que ao mesmo tempo ganharam influência política. Putin está associado à reorganização autoritária do capitalismo russo. Os sonhos da Rússia de um bloco eurasiático independente entre a UE e a China estão a ser frustrados pelos processos de erosão social e geopolítica que também são evidentes nos Estados vizinhos da Rússia, a Bielorrússia e o Cazaquistão. Pretendia-se que o estatuto da Rússia como actor global fosse consolidado através da venda de matérias-primas e de energia, bem como do expansionismo militar, como demonstrado nas fronteiras da Rússia (Chechénia, Geórgia, Cazaquistão...), mas também na Síria, na Líbia e no Sahel (cf. Mezzadra 2022, 12s.).

Ao mesmo tempo a Rússia foi confrontada com o facto de a NATO ter expandido sistematicamente a sua esfera de influência, mesmo para Leste. A Rússia tornou-se uma grandeza insignificante no cálculo do poder. As garantias de segurança exigidas pela Rússia foram negadas e, ao mesmo tempo, sob os Presidentes Bush (ABM: Anti-Ballistic-Missile-Treaty) e Trump (INF: Intermediate Range Nuclear Forces), importantes acordos de controlo de armas foram abandonados e o próprio armamento continuou a avançar.

Não é por acaso que a luta da Rússia para garantir esferas de influência está centrada na guerra contra a Ucrânia. Como Estado em erosão, a Ucrânia tinha-se tornado uma loja de serviços para oligarcas de várias cores. Alguns dos oligarcas, e com eles o chamado movimento democrático, viram uma saída para a "luta dos oligarcas e da decadência" numa ligação com o Ocidente. Esta via prometia democracia e direitos humanos, e sujeitava a Ucrânia a um regime de ajustamento estrutural nos moldes habituais, o que empobrecia ainda mais a população já de si empobrecida, ao mesmo tempo que tentava manter os ucranianos à procura de trabalho longe dos mercados de trabalho europeus – com excepção da mão de obra barata nas colheitas, nos cuidados e na prostituição (ver o texto de Tomasz Konicz nesta exit!).

Tendo o Ocidente limitado cada vez mais a esfera de influência da Rússia com a expansão para Leste da UE e da NATO, a Rússia quer obviamente estabelecer um limite – embora ilusório – com a guerra contra a Ucrânia, e impor o seu estatuto de grande potência na sua esfera de influência histórica com força militar e megalomania ideológica. A Ucrânia, que é vista como pertencendo à Rússia devido à sua "identidade", deve ser "trazida de volta" para a área à qual pertencia "originalmente". A megalomania encontra a sua legitimação nos sonhos de um império russo, que se justifica religiosamente com as raízes no cristianismo e se apresenta como um baluarte contra a decadência cultural-religiosa, defendendo as estruturas familiares tradicionais, os "valores" e a religião contra a arbitrariedade e a "decadência" ocidentais, cujo reverso é a demonização da homossexualidade e do feminismo combinada com a exaltação do patriarcado.

Esta posição está ligada aos pontos de vista da Igreja Ortodoxa Russa e conta também com a simpatia e o apoio da cena do pensamento transversal e dos círculos de extrema-direita (ver Bidder 2016, ver também Gensing & Stöber 2016). Segundo Jürgen Elsässer, Putin combate o "'neo-comunismo' de Bruxelas – uma 'UEdRSS' com uma 'economia planificada eco-socialista', o politicamente correcto e a destruição dos valores tradicionais do cristianismo e da família" (citado em Jakob 2022).

O Ocidente também não está a agir a partir de uma posição de força. Desde os anos 70, tornou-se cada vez mais claro que o capitalismo também se deparou historicamente com os seus limites internos à valorização do capital, e que as crises associadas não podem ser compensadas pela globalização, pelo endividamento e pela financeirização. Isto também anuncia o fim dos circuitos de défice, com a ajuda dos quais os EUA conseguiram inicialmente manter a sua posição de grande potência. A força militar dos EUA constituía um "porto seguro" para a entrada de dinheiro,  estabilizando o dólar americano como moeda de reserva mundial. Isto assegurou a dívida exorbitante dos EUA, permitindo ao mesmo tempo a compra de mercadorias como parte do circuito de défice do Pacífico. Esta foi também a base para a China poder exportar mercadorias para os EUA. Em termos de tendência, pode dizer-se que a dívida de uns países é a base para os lucros de exportação de outros, sendo a dívida dos países-alvo a base para a produção e circulação de mercadorias. Que estão dependentes da alimentação endovenosa da acumulação simulada, que cada vez menos consegue estabelecer uma ligação com o processo de valorização real do capital.

Isto tornou-se claro, o mais tardar, quando a bolha imobiliária rebentou em 2007/08. O rebentamento da bolha desencadeou programas de estímulo económico exorbitantes por parte dos governos dos países capitalistas centrais, e uma viragem para uma política de taxa de juro zero por parte dos bancos centrais, a fim de manter o sistema financeiro global com liquidez. O resultado foram bolhas de liquidez "que já não tinham qualquer relação significativa com o desenvolvimento económico real" (Konicz 2016, 84). A economia da China, que era orientada para as exportações no âmbito dos circuitos de défice, também tem sido "orientada para o crédito desde 2008. O crescimento da China, a rápida industrialização da República Popular da China, está a funcionar a crédito" (ibid., 92). As tentativas de estabilizar a crise transferindo-a para outros países estão a chegar ao fim. Konicz descreve assim a aporia da política de crise capitalista: "Tendo em conta a formação de bolhas na esfera financeira, seria necessário abandonar a política expansiva de baixas taxas de juro, mas uma reviravolta efectiva das taxas de juro ameaça graves distorções da política económica [...] O cálculo das elites funcionais capitalistas ao fugir da escalada das contradições internas da máquina económica global para novos excessos do mercado financeiro parece estar a chegar ao fim. Quem deve, quem tem de se endividar ainda mais para manter o sistema mundial a funcionar durante mais alguns anos através da procura gerada pelo crédito?" (ibid., 101).

À primeira vista, pode parecer que a guerra contra a Ucrânia e os conflitos associados com o Ocidente estão a ser travados como uma luta por uma nova ordem mundial – análoga aos ciclos hegemónicos passados liderados pela Inglaterra e, após a Segunda Guerra Mundial, pelos EUA, com a União Soviética como sua contraparte. Para que um novo sistema hegemónico pudesse prevalecer, teriam de se cristalizar novas oportunidades de acumulação para o capital, como foi o caso do fordismo após a Segunda Guerra Mundial. Mas estas não estão à vista (cf. Konicz 2022a). Pelo contrário, a guerra da Rússia contra a Ucrânia e as reacções do Ocidente estão a sobrepor-se às crises que já revelaram os limites das opções políticas de acção: das guerras mundiais, das crises financeiras e da crise climática à crise do coronavírus, com os seus pacotes de ajuda estatal e o comportamento confuso dos actores políticos entre invocar o perigo do vírus e banalizá-lo, entre o confinamento e a liberdade (cf. Böttcher & Wissen 2022), até à "viragem" do Chanceler com as entregas de armas, os programas de armamento e de ajuda à reconstrução, a inflação, as crises de fome etc. O coronavírus e a guerra agravam as tendências já efectivas para a inflação, que se pretende agora que sejam contrariadas através da flexibilização da política de taxas de juro zero. A política monetária chega cada vez mais a um impasse (Konicz 2022b). O combate à inflação através do aumento das taxas de juro directoras abranda o fluxo de dinheiro necessário para compensar a crise. Este abrandamento da economia agrava a crise nos países ditos emergentes, que dependem do crescimento para estabilizar a situação social, nomeadamente num contexto de aumento dos preços dos produtos alimentares. Mas também na Europa o aumento das taxas de juro directoras é susceptível de agravar ainda mais a situação nos países endividados do Sul da Europa. "Na crise capitalista em curso, a política monetária burguesa teria, de facto, de baixar e aumentar as taxas de juro ao mesmo tempo, o que é apenas a expressão da aporia da política capitalista de crise" (ibid.).

O espectro de reacções à crise vai desde a ignorância ao pânico e ao desespero perante catástrofes não percebidas. As tendências autoritárias e ditatoriais estão a alastrar. Muitas vezes combinadas com tendências populistas dos actores políticos, que a opinião pública está bem disposta a aceitar. Quanto mais incerta se torna a existência normal de cada um, maior é a necessidade de explicações claras e de manuseabilidade, de identidade e de normalidade, de clarificar quem é culpado e contra quem se deve fazer alguma coisa. As teorias da conspiração, o anti-semitismo e o pensamento transversal prosperam nesta situação de confusão (cf. Vogele 2022, entre outros). Num espectro mais à esquerda, isto articula-se com recurso ao interesse e à classe, ao sujeito e à prática.

 

3. A autodestruição e a destruição do mundo juntam-se

O que é particularmente ameaçador nesta situação é o facto de a autodestruição e a destruição do mundo estarem a aproximar-se ainda mais. Para compreender o que isto significa a nível psicossocial e individual, é importante começar por fazer uma distinção conceptual entre indivíduo e sujeito. Os indivíduos são confrontados com a forma de sujeito estruturalmente masculina, no sentido em que têm de se valorizar a si próprios como sujeitos, ou seja, como agentes do trabalho abstracto, e agir em conformidade, sem serem absorvidos pela forma de sujeito.

Em condições pós-modernas, as pessoas nesta forma devem adaptar-se aos processos de crise que se intensificam sob a sua própria responsabilidade, em infindáveis processos de auto-optimização, e entendem esta auto-submissão como auto-realização (Bröckling 2013). A autonomia atribuída ao sujeito é simultaneamente negada pela compulsão à adaptação e ameaçada pelo fracasso perante as condições de crise. O fracasso na contradição entre auto-realização autónoma e adaptação confronta-se sempre imediatamente com a "falta de sentido da nossa própria existência na economia de mercado" (Kurz 2021, 71 [48]). A dissociação do feminino inferiorizado é a base para o sujeito masculino dominante se poder imaginar como potente, autónomo e racional. Isto torna ainda mais dramático o confronto deste sujeito masculino com o facto de não ser "nada" nas crises que se intensificam. "É precisamente o acto de equilíbrio que o sujeito masculino tem de realizar, nomeadamente recalcar a sua própria dependência para ter a certeza da sua própria autonomia, que o torna particularmente susceptível às crises" (Wissen 2022). Perante a falta de saída deste acto equilíbrio, a violência pode tornar-se um ilusório meio de defesa contra a falta de saída existencialmente vivida mas não compreendida. A autodestruição, juntamente com a destruição dos outros, pode tornar-se o último recurso do sujeito masculino "para provar a sua própria potência num suicídio alargado, que em última análise imagina a destruição do mundo" (ibid.).

Isto mostra como o vazio de conteúdo descrito por Kurz se pode exprimir nos sujeitos. Mediados pelos processos de crise da pós-modernidade, os sujeitos perdem cada vez mais o seu próprio fundamento, à medida que o trabalho desaparece como base substancial da produção de valor e de mais-valia, porque as formas de produção e reprodução social (trabalho, família, Estado) se desmoronam como suportes. Os fenómenos de crise são acompanhados por processos de individualização e flexibilização que marcam o fracasso na realidade como uma falha individual" (ibid.). A nível psicossocial esta situação de crise a ser enfrentada pelo indivíduo reflecte-se nomeadamente na depressão, em que o indivíduo voltado para o seu fracasso é simultaneamente queixoso e juiz. A proximidade entre a depressão e o narcisismo torna-se evidente quando o deprimido é lançado sobre si mesmo. A referência ao mundo dos objectos é bloqueada pelo círculo em torno de si próprio. "Fazer-se grande, quando na realidade se sente pequeno, é outra variante do lidar com a insuportável ameaça constante (narcisista) além da depressão" (ibid.). O mundo dos objectos cujo acesso é bloqueado inclui também acontecimentos e conteúdos com os quais poderiam ser interpretados e processados. O que resta é "o acesso narcisista imediato ao mundo dos objectos" (ibid.). Este pode tornar-se um terreno fértil para diferentes variantes de "soluções" identitárias, incluindo a procura da própria identidade e "grandeza" numa autodestruição que parece ainda maior quando os outros são arrastados na destruição do próprio.

A guerra da Rússia contra a Ucrânia e as reacções do Ocidente, incluindo as interpretações associadas e as tentativas de as processar, estão integradas em todos os problemas com que as pessoas têm de lidar também psicologicamente na crise do capitalismo. A crise, que já não pode ser ultrapassada capitalistamente, também se aproxima ao nível das constelações políticas globais e das opções de acção cada vez mais reduzidas. A pressão para enfrentar tudo isto a nível ideológico e psicossocial está a tornar-se mais forte, e a margem de manobra individual e política para a crise, já de si reduzida, está a tornar-se ainda mais estreita. Com as guerras de ordenamento mundial, a sua legitimação ideológica está também a entrar nos conflitos globais. A defesa da liberdade ocidental é posta em jogo como legitimação ideológica da acção ocidental. Tal como nas guerras de ordenamento mundial travadas na periferia, também nos conflitos globais a defesa dos direitos humanos se torna uma questão cara aos belicistas. Numa situação de problemas crescentes e de espaço de manobra cada vez mais reduzido, agora pretende-se que se trata de uma luta pelo todo: uma luta do bem contra o mal, do racional contra o irracional, em suma, uma luta de vida ou de morte. Isto também se aplica ao contrário, na perspectiva da Rússia. Estas escaladas não oferecem praticamente nenhum espaço para uma auto-reflexão crítica, mas implicam uma inimizade para a qual já não há limites e que – literalmente – pode escalar para uma "inimizade mortal". "O ‘eu perseguidor’ é projetado no ‘outro’ em vez de se concentrar no que temos em comum com o ‘outro’" (Wissen 2022). Neste processo a democracia ocidental é exagerada e as tendências que a acompanham para a expansão das exigências de dominação, da repressão, do autoritarismo e do asselvajamento são desvanecidas face ao real fracasso das próprias reivindicações de poder e, ao mesmo tempo, projectadas no malvado agressor. No meio desta situação aporética que envolve a Ucrânia, os problemas ecológicos e económicos continuam a intensificar-se.

Ninguém será capaz de prever quando e em que objecto o vazio do valor e da socialização capitalista, que já está a encontrar expressão nos processos de crise em escalada, irá finalmente libertar o seu potencial destruição do mundo. É evidente que a situação real está a tornar-se cada vez mais perigosa e ameaçadora. A única resposta é procurada na força militar. (1) A ligação à realidade desaparece na moralização "entranhada". De princípios correctos derivam máximas de acção perigosas e vinculativas, que encontram expressão em princípios gerais, sabedoria e "senso comum", sem reflectir sobre as condições sociais como objecto da reflexão. Isto pode talvez aliviar temporariamente as entranhas moralmente perturbadas e a impotência sentida como humilhante. Mas não permite escapar à verdadeira impotência.

A moralização é acompanhada por uma heroicização do exército e dos valores que lhe estão associados, como a honra, a bravura e o heroísmo. A objecção ao fornecimento de armas à Ucrânia é que a Ucrânia não pode ganhar a guerra. "É verdade", responde Žižek, "mas para mim esta é a grandeza da resistência dos ucranianos: eles arriscaram o impossível e desafiaram os cálculos pragmáticos, e o mínimo que lhes devemos é apoio total" (Žižek 2022b). A grandeza política aparece nas ilusões associadas à defesa destemida e resoluta que Žižek faz da "liberdade global" ou simplesmente da liberdade ocidental, e manifesta-se na força de não se deixar chantagear pela "encarnação" do mal em Putin. Esquecidas ou ignoradas são a repressão e a aniquilação, com as quais esta liberdade está constitutivamente ligada (ver Scholz 2019).

Isto não só mobiliza pessoas contra "Putin", como também o torna atractivo para os anseios autoritários e para todos aqueles que procuram um homem forte que faça frente aos grandes e poderosos, "aos judeus" como conspiradores mundiais que supostamente estão por detrás das crises. Por outro lado, o que poderá acontecer àqueles que estão agora a exigir apoio ao heroísmo militar na Ucrânia com mais e mais armas, se os preços continuarem a explodir ou se mantiverem elevados e se persistirem os estrangulamentos no abastecimento?

As diferentes reacções às crises agudas caracterizam-se pela ignorância da crise que nelas se manifesta como limite da capacidade de reprodução da produção patriarcal de mercadorias. É um desarmamento conceptual de muitos anos, que culmina actualmente no armamento militar e nas estratégias de falsa imediatidade, incluindo a sua fixação em interesses, autores e conspiradores. Está a criar-se uma situação que se caracterizou pelo desarmamento conceptual ainda antes do armamento militar. Os instrumentos conceptuais que poderiam ajudar-nos a compreender o que "se passa" já tinham sido desarmados em nome de um "'pragmatismo livre de ilusões'" (Kurz 2013a, 66) na aversão pós-moderna a grandes conceitos e grandes teorias capazes de atingir a totalidade da situação e na expansão da hostilidade contra a teoria. O todo, que foi banido do pensamento, reaparece agora em falsa imediatidade, segundo a qual o conflito com a Rússia é suposto ser sobre o todo de maneira irracional. A irracionalidade e o vazio metafísico do fim-em-si capitalista conduzem no seu fracasso a uma loucura vazia e mortal.

Quando se corta a referência do pensamento ao conjunto das relações sociais como totalidade concreta, perde-se a referência à realidade social como objecto do pensamento. "A real contradição social, que no actual estágio não é mais contornável, deve simplesmente ser banida do pensamento" (ibid.). Deste modo deixa de ser possível compreender que, no quadro das polaridades conhecidas do mercado e do Estado, da economia e da política, da liberdade e da repressão, não é possível obter nem uma perspectiva de conhecimento nem uma perspectiva de acção. Uma das respostas óbvias a esta ignorância da realidade social poderia ser a aniquilação nuclear. As armas nucleares representam o potencial de uma aniquilação que é simultaneamente auto-aniquilação. Com a ajuda da sua razão instrumental, a racionalidade imanente da modernidade é capaz de criar este potencial de aniquilação, mas é obviamente incapaz de reconhecer que a crise da reprodução capitalista está a conduzir a uma aniquilação cujo instrumento pode ser o uso de armas nucleares – como defesa contra a impotência real e em alucinada ilusão de grandeza. O que é classificado como "anormal" pela maioria da sociedade nos amoques individuais parece "normal" quando todos o fazem. A constituição do sujeito burguês, no qual "as potencialidades paranóicas, megalómanas e violentas estão firmemente ancoradas e podem ser invocadas a qualquer momento" (Wissen 2022), converge com a constituição de uma forma social vazia e a sua autodefesa como destruição do mundo através da autodestruição.

 

4. Sobre a legibilidade de Walter Benjamin

Um olhar sobre o passado pode rebentar uma constelação histórica fechada. Esta constatação faz parte do legado de Walter Benjamin. A legibilidade de um texto não resulta exclusivamente da imanência dos textos a considerar, mas está ligada "a um núcleo temporal que está simultaneamente no reconhecido e no reconhecível" (Benjamin 2015c, 578). Passado e presente entram numa constelação. Esta é mediada pela imagem. Ela "é aquilo em que o passado e o agora se juntam num relâmpago para formar uma constelação" (ibid.). A imagem pode ser qualquer coisa que se projecte do passado para o presente: desde objectos e obras de arte a textos e documentos, passando por uma memória. Benjamin chama à imagem "dialéctica num impasse" (ibid.). Ele exprime assim a relação entre o passado e o presente. A relação do presente com o passado é puramente temporal, a do passado com o presente é dialéctica. A imagem dialéctica distingue-se das imagens arcaicas que procuram uma ligação ao sempre igual, a uma originalidade que promete identidade e salvação. Pelo contrário, só as imagens dialécticas são "genuinamente históricas [...]. A imagem lida, isto é, a imagem no agora da reconhecibilidade, traz no mais alto grau a marca do crítico momento de perigo que subjaz a toda a leitura" (ibid.). O momento de perigo reside no facto de que, no agora da reconhecibilidade, a "verdade está carregada de tempo até ao ponto de rebentar" (ibid.).

Com este entendimento da verdade e da história, Benjamin distancia-se das ideias de uma "verdade intemporal", por exemplo, da fenomenologia de Husserl, que ascende a uma visão da essência, ou da tentativa de Heidegger de salvar a história ontologizando-a para historicidade, como um estado de espírito existencial. Ao mesmo tempo Benjamin marca o contraste com o historicismo, que procura compreender a história através da "empatia". A visão historicista centra-se no que foi vitorioso na história, enquanto os fracassos, as quedas e as catástrofes e, por conseguinte, as vítimas são "ignoradas". Em contrapartida Benjamin sublinha o "núcleo temporal" de cada texto ou obra do passado e, ao mesmo tempo, o núcleo temporal da sua legibilidade no presente. A constelação em que textos de Walter Benjamin cintilam para nós é a questão das catástrofes na história. Está ligada à questão do messiânico, que representa uma perspectiva de libertação. No tempo de Benjamin foi a catástrofe da Primeira Guerra Mundial que fez com que a história deixasse de ter uma lógica teleológica e de desenvolvimento à luz do progresso. A catástrofe do fascismo também se aproximava.

O índice do tempo de hoje caracteriza-se pelo facto de a história do capitalismo, no seu vazio final, no seu nada final, estar a desenvolver uma dinâmica que vai dar à autodestruição final como destruição do mundo. As reacções vão desde a negação à procura frenética de salvação na busca do culpado e do exequível, dos poderosos e dos seus interesses, da classe e de um novo sujeito revolucionário como contra-movimento, de uma nova práxis... até à procura religiosa de uma suposta salvação. Esta última floresce não só no fundamentalismo religioso de proveniência esotérica ou do positivismo da revelação, mas também na fuga filosófica para um messianismo paulino, como se vê em Badiou e Agamben (cf. Böttcher 2019). Žižek procura – também através da figura de Paulo e com base na imagem de Benjamin do fantoche e do anão para o materialismo histórico e a teologia (Benjamin 2015a, 693) – uma ligação entre a herança cristã e o materialismo histórico (Žižek 2022a). O objectivo é uma oposição comum às estruturas globais de injustiça e às sociedades democrático-liberais que supostamente não têm alternativa. O caminho passa pela ligação da verdade, da universalidade e de um sujeito como combatente militante pela verdade.

 

5. As crises e a questão de "olhar para o todo"

A experiência das crises foi um grande impulso para Benjamin se voltar para questões sobre a história e o seu entendimento "materialista". As suas primeiras obras caracterizavam-se por uma visão histórico-filosófica metafísica da história e da experiência. Benjamin movia-se dentro da "tipicidade do pensamento de Kant" (Benjamin 2014a, 160), mas tentou corrigir o seu estreito foco na empiria de cunho científico. A distinção de Kant entre sensibilidade e entendimento ou entre percepção e conceito devia ser ultrapassada, assegurando que a experiência não é simplesmente externa ao entendimento, mas torna-se um elemento integral do conhecimento. A experiência não deve ser entendida simplesmente como a "soma das experiências", mas como relacionada com uma "unidade da experiência", com uma "totalidade concreta da experiência" (ibid., 170). "Esta totalidade concreta da experiência é a religião" (ibid.). No entanto, esta não é directamente acessível à filosofia, mas apenas "como doutrina". "Só na doutrina é que a filosofia encontra um absoluto, como existência, e portanto essa continuidade na essência da experiência" (ibid.). Assim, porém, a experiência é um conceito idealista transcendental, que se torna a base da continuidade de um contexto epistemológico relacionado com a experiência. Mesmo quando retoma a mónada de Leibniz e a combina com a teoria das ideias de Platão, não consegue escapar ao feitiço do pensamento idealista. Faz a tentativa de determinar a relação entre a totalidade e o indivíduo sem a entender dialecticamente ou na lógica da subsunção como superordinação e subordinação. Essencial para ele é a questão da salvação das coisas individuais. A questão da totalidade torna-se a questão do todo no mais pequeno, a questão do universal torna-se a questão da ideia de uma história universal em que as coisas individuais não perecem mas são salvas. É também o pano de fundo para o papel do messiânico no entendimento da história por Benjamin.

O que é decisivo para o nosso contexto é que a percepção das crises históricas – desde a crise económica dos anos de 1920 até ao perigo do fascismo nos anos de 1930, que se transformou numa catástrofe – relaciona a experiência e o perigo entre si. Esta referência à reconhecibilidade do passado é formulada nas Teses Sobre o Conceito de História, escritas entre fevereiro e março de 1940 (Benjamin 2015a). Foram escritas "sob a impressão do pacto Hitler-Stalin de agosto de 1939" e devem ser lidas "como expressão de um pensamento à beira do abismo" (Gagnebin 2011, 285). A experiência chega ao auge no "momento do perigo" (Benjamin 2015a, 695). Torna-se o momento da "reconhecibilidade" (ibid.), em que a "verdadeira imagem do passado" (ibid.) cintila. Este momento está repleto de "tempo de agora" (ibid., 701) e é capaz de "rebentar o continuum da história" (ibid., 702).

A análise da crise económica expressa-se designadamente no texto sob o título Kaiserpanorama Reise durch die deutsche Inflation [Viagem pela inflação alemã] (Benjamin 1991b, 94ss.). Nele, Benjamin interessa-se sobretudo pelos "efeitos desta situação nas capacidades humanas de percepção e de pensamento" (Eiland; Jennings 2020, 245). Analisa-os do ponto de vista das interpretações da vida quotidiana, tal como se reflectem em opiniões e expressões idiomáticas. O foco está em ditos como "'A pobreza não desonra'" (Benjamin 1991b, 96) e "'Quem não trabalha não come'" (ibid.). Ditos como "A pobreza não desonra" não são reconfortantes, mas "desonram os pobres" (ibid.). O ditado "Quem não trabalha não come" nega-se a si próprio perante o desemprego crescente e a vergonhosa "fome em que nascem milhões, centenas de milhares estão enredados e empobrecem" (ibid., 97). Por isso, ninguém deve "fazer as pazes com a pobreza", mas "deve [...] manter os sentidos alerta para qualquer humilhação [...]" (ibid.). Em vez da "estrada da dor", deve ser aberto o "caminho da revolta" (ibid.). No entanto, Benjamin é céptico quanto ao seu sucesso. É verdade que todos os destinos terríveis e sombrios são "apresentados pela imprensa em todas as suas causas aparentes e consequências aparentes". No entanto, "não há nada a esperar enquanto [...] ninguém ajudar as pessoas a reconhecerem as forças obscuras de que as suas vidas se tornaram dependentes" (ibid.).

Benjamin não reflecte explicitamente sobre questões políticas e económicas, mas analisa as observações sobre o agravamento da crise económica e política a partir de uma perspectiva cultural. Ao fazê-lo ele alcança certamente, ainda que de forma vaga e ambígua, todo um conjunto de desenvolvimentos sociais, quando se interroga sobre o "reconhecimento das forças obscuras" (ibid.) de que a vida está dependente. Num outro contexto, fala do paradoxo entre a insistência num "interesse privado tacanho" e o declínio da sociedade para a monotonia de uma "massa cega", para a qual "a diversidade dos objectivos individuais" se torna irrelevante "perante a identidade das forças determinantes". Em última análise, é o "apego à vida habitual, há muito perdida", que impede a "aplicação humana do intelecto, da previsão, mesmo em situações de perigo drástico" (ibid. 95ss.). Benjamin dá a entender que a pressão para se adaptar às circunstâncias tem a ver com o dinheiro, quando fala do dinheiro como tema dominante da conversa social, que suplanta as preocupações e o sofrimento como temas de conversa. O dinheiro contém "o tema das condições de vida" e nele "a contemplação do todo" (ibid., 98). Mas em vez de se enfrentar a "contemplação do todo", afasta-se a experiência da impotência e do enredamento no todo das relações. "É por isso que o ar está tão cheio de teorias da vida e de visões do mundo, [...] cheio de alucinações e miragens de um futuro que florescerá da noite para o dia apesar de tudo, porque cada um está comprometido com as ilusões ópticas do seu ponto de vista isolado" (ibid., 98ss.).

A "contemplação do todo" – Benjamin reconhece-o – é indispensável para que a crítica das expressões da vida possa assumir formas de consciência. Acima de tudo é indispensável que haja a possibilidade de nos afastarmos das "alucinações e miragens" e nos aproximarmos de um conhecimento crítico da sociedade, o que por sua vez é um pressuposto para interromper o curso para a catástrofe. No entanto continua a ser um desiderato e problemático nas suas vagas alusões. O historiador Joachim Radkau descreveu o período "entre Bismarck e Hitler" como uma "era de nervosismo" (Radkau 1998). Ele situa o nervosismo da época no contexto de uma situação de tensão, que ganha dinamismo com a mistura de modernização, crises e medo do futuro (cf. também Scholz 2024). Em relação ao mesmo período, Hannah Arendt fala de uma "atmosfera de decomposição geral", que se reflecte na experiência de "perda de si" (Arendt 1991). Está associada ao "sentimento de que o próprio eu não importa, que o próprio eu pode ser substituído por outro em qualquer altura e em qualquer lugar" (ibid. 510, cf. também Kurz 2021, 60ss.). Esta perda de si – Arendt fala de "abnegação" – anda de mãos dadas com a "falta de capacidade de julgar [...] e ambas encontram uma correspondência excessiva no desejo das massas de entrar num mundo fictício", mas também na "indiferença cínica ou entediada com que as massas enfrentaram a sua própria morte" (ibid.). As observações de Hannah Arendt estão ligadas à sua análise do regime totalitário. "O elemento totalitário" – como Robert Kurz esclareceu – "era inerente ao sistema de produção de mercadorias desde o início; formou o seu núcleo, que é um núcleo de violência" (Kurz 2021, 61). Assim não é por acaso que os problemas de perda de si, da percepção e da capacidade de julgar, também registados por Benjamin, são ainda mais exacerbados pelos surtos de crise capitalista e, com eles, a indiferença perante a morte.

 

6. O capitalismo como religião

No fragmento de 1921 "O capitalismo como religião" (Benjamin, 1991d), Benjamin também aborda a questão das formas de consciência e de pensamento. Quando entende o capitalismo como um "culto" (ibid., 100), está a operar sobretudo a um nível cultural, no qual – como pode ser criticado (cf. Böttcher 2021a, 35ss.) – não inclui o "local oculto da produção" (Marx 1984, 189). No entanto, a "consideração do todo" ganha contornos mais nítidos.

De acordo com Benjamin, o capitalismo "serve essencialmente para satisfazer as mesmas preocupações, tormentos e inquietações para as quais as chamadas religiões outrora davam respostas" (Benjamin 1991d, 100). No texto cedo escrito Sobre o Programa da Filosofia Futura (1917), Benjamin – expandindo o conceito empiricamente demasiado estreito de experiência de Kant – atribuiu à religião, enquanto "totalidade concreta da experiência" (Benjamin 2014a, 170), o nível metafísico. A religião é agora definida ao nível da história e compreendida no contexto global das relações capitalistas. Ao contrário de Max Weber, que tinha falado de uma condicionalidade religiosa do capitalismo (Weber 1988), ela torna-se um "essencial", ou seja, uma determinação da forma do capitalismo. "Na estrutura da religião, Benjamin encontra assim o paradigma a partir do qual a essência do capitalismo lhe é descritivamente revelada" (Steiner 2011, 169). O capitalismo assumiu a função da religião, agora tornada completamente prática. A chamada viragem copernicana de Kant, da razão teórica para a razão prática, já tinha atribuído Deus à razão prática como um postulado vazio, e feito dele a legitimação de uma ética que pressupõe sempre as condições vigentes como "metafísica real" (Robert Kurz) (cf. Böttcher 2022a, 157ss., 177ss.).

A dimensão prática do capitalismo, que se tornou uma religião, exprime-se no facto de caraterizar a vida quotidiana como uma "pura religião de culto" – uma religião de "duração permanente" e "endividadora" (Benjamin 1991d, 100). A sua "duração permanente" é celebrada com uma impiedade que não conhece interrupções. "Não há 'dia da semana', não há dia que não seja um dia de festa no terrível sentido da ostentação de toda a pompa sagrada da tensão máxima da adoração" (ibid.). O culto tem de ser celebrado sem interrupção por dias de festa. Como tempo vazio e homogéneo, torna tudo igual e torna-se o "retorno do mesmo". O vazio deste culto corresponde ao facto de não ter conteúdo, ou seja, "nenhuma dogmática especial, nenhuma teologia". Nele, "tudo só tem sentido directamente em relação ao culto" (ibid.).

O vazio deste culto não é um fiasco, mas tem um carácter destrutivo. Benjamin vê-o como a expressão de uma "tremenda consciência de culpa que não sabe como se redimir". Ela "recorre ao culto não para expiar essa culpa, mas para a tornar universal". O capitalismo é, assim, "presumivelmente o primeiro caso de um culto que não expia a culpa, mas que a cria" (ibid.). O culto religioso clássico serve para a expiação da culpa perante uma divindade. O culto capitalista caracteriza-se por um padrão arcaico-pagão de culpa e retribuição, que constitui um contexto de destino do qual não se pode escapar. Este padrão está subjacente à sociedade capitalista enquanto relação coerciva. É "universal" (ibid.). Toda a gente está incluída. Ninguém pode escapar.

Por um lado, o termo culpa refere-se à relação entre origem e culpa. Segundo Anaximandro (c. 610-547 a.C.), a ordem do tempo é caracterizada pela culpa, uma vez que tudo é "devido" à origem de algo anterior e, ao mesmo tempo, algo é retido do que se segue, ou seja, também "devido". Não há "nenhuma história que não lide com culpa, nenhuma que não seja devedora de outra coisa e que não seja, por sua vez, culpada de outra coisa [...]" (Hamacher 2003, 81).

A culpa também tem um significado económico, como se torna claro quando se fala de dívidas. Tem de ser paga ou anulada. Com o seu foco no aumento do dinheiro, o capitalismo está economicamente ligado à dívida, uma vez que os investimentos necessários dificilmente são possíveis sem dívida como antecipação de lucros futuros. O problema da dívida tornou-se cada vez mais visível a partir da década de 1970. É um factor-chave da intensificação da dinâmica da crise (ver Kurz 2005a, em particular).

Para Benjamin, o contexto económico do endividamento é, ao mesmo tempo, um contexto de destino. Assim, Benjamin fala da "ambiguidade demoníaca deste termo" (2) em relação aos "juros compostos" (Benjamin 1991d, 102). Até "o próprio Deus" é "incluído nesta dívida" (ibid., 100ss.). Isto significa que "a transcendência de Deus [...] caiu", contudo Deus não está simplesmente morto, "mas incluído no destino humano" (ibid., 101). A compulsão mítica que caracteriza o capitalismo não está apenas sujeita ao "destino do homem", mas também a Deus, a quem o culto é celebrado. No entanto, Deus tem de ser "escondido" porque ainda não atingiu a maturidade. "Só no zénite da sua culpabilização/endividamento" pode ser "invocado" (ibid.). O Deus escondido no capitalismo tem uma história. Ele atinge a sua maturidade "no zénite da sua culpabilização/endividamento". Até lá, a divindade escondida no culto capitalista também tem de amadurecer. Só então ela se revela, não porém como uma "reforma do ser, mas como a sua destruição" (ibid.).

Não é por acaso que na observação de que Deus não está morto ecoa uma posição contra Nietzsche. O "grande homem" descrito por Nietzsche tinha respondido à pergunta "Onde está Deus?": "Matámo-lo, tu e eu!" (Nietzsche, s.d., 283). Benjamin, por outro lado, reconhece como o Deus morto faz a sua "maldade" destrutiva nas relações fetichistas capitalistas. Para Nietzsche, a consequência da morte de Deus é o super-homem. Ele prova ser digno da grandeza do acto de matar Deus. Benjamin desenvolve esta ideia quando encontra o "tipo de pensamento capitalista [...] magnificamente expresso na filosofia de Nietzsche" (Benjamin 1991d, 101). O super-homem não representa a conversão necessária, mas sim "o aumento descontínuo aparentemente constante, mas que na fase final rebenta" (ibid.). Benjamin incluiu o discurso de Nietzsche sobre a morte de Deus na sua observação da queda da transcendência, da ocultação de Deus e da sua inclusão no destino humano, e inseriu-o no contexto de crise e de fetiche das relações capitalistas, que encontra a sua expressão no "capitalismo como religião".

 

7. Pontos de contacto entre Benjamin e a crítica da dissociação-valor

Embora Benjamin só ocasionalmente tenha sido referido na crítica da dissociação-valor (cf. Kurz 2012, 391ss., Ulrich 2005, 45ss.) há uma série de pontos de contacto: O significado de crise e perigo, a crítica da mitologia capitalista do progresso, a referência à história do capitalismo e à totalidade social, que é entendida como um contexto fetichista autodestrutivo. Os pontos de contacto, mas também os pontos de divergência, centram-se nos perigos de um potencial global de crises e de catástrofe que vai dar à destruição.

 

7.1 "Momento de perigo"

O "núcleo temporal" actual que torna Benjamin "legível" é o "momento do perigo" (Benjamin 2015b, 1243), actualmente concentrado em todas as crises reunidas na guerra da Ucrânia e que podem escalar até ao ponto da destruição do mundo. A consciência exacerbada do "momento de perigo" dirige a atenção para o conhecimento da história, a situação actual e a sua mediação com o passado. A situação de crise e a consciência da mesma são integradas no "espaço histórico, no descontínuo, como espaço de imagem" (ibid., 1175). A ligação entre "espaço histórico" e "descontínuo" já torna claro que o conhecimento não pode ser separado do facto de o contínuo histórico ter de ser rebentado. Rebentados têm de ser também os limites de uma perspectiva idealista do conhecimento baseada na problemática sujeito-objecto e de um conhecimento a adquirir de modo puramente contemplativo e especulativo.

A referência de Benjamin à história real, com as suas catástrofes e o sofrimento dos vencidos, marca uma mudança do pensamento idealista para um pensamento "materialista histórico" (Khatip 2013, 510). É acompanhada por uma crítica da ideia de progresso na história. Segundo esta, a história progride em direcção ao objectivo da realização da liberdade e da razão. É impulsionada pelas acções descoordenadas de grandes figuras da história e dirigida para o seu objectivo nas costas delas através da "astúcia da razão" (Hegel). Apesar de todos os acidentes operacionais e danos colaterais, este objectivo é garantido pela auto-externalização do Espírito no decurso da história. A crítica de Benjamin dirige-se também contra as concepções marxistas materialistas vulgares do pensamento do progresso, segundo as quais o progresso se deve a uma dialéctica inerente à história, que impulsionada pelas lutas de classes conduz à "sociedade sem classes" ou ao "reino da liberdade".

O entendimento de Benjamin sobre um pensamento materialista da história, que se distingue tanto dos entendimentos idealistas como dos entendimentos materialistas vulgares, encontra a sua expressão condensada sobretudo nas supracitadas teses Sobre o Conceito de História (Benjamin 2015a, 691ss.). Nelas a reflexão crítica sobre o passado está indissociavelmente ligada a uma crítica da situação social actual, pois tanto a tradição como os seus receptores estão ameaçados. Para ambos tal situação consiste – como Benjamin argumenta em termos marxistas tradicionais – em "entregar-se como instrumento da classe dominante" (ibid., 695). A ligação perigosa entre a tradição e o receptor é estabelecida através do "método da empatia" historicista (ibid., 696). Este método não é simplesmente um método "inocente", mas cria um contexto de continuidade e de significado históricos como "empatia com os vencedores" (ibid.), reforçando assim a situação social actual, bem como o curso da história como uma história de catástrofes que passa por cima dos vencidos e – idealistamente – corre em direcção a um objectivo, um objectivo que é construído sobre o sofrimento e os cadáveres do passado e do presente – ou, em termos marxistas tradicionais, pelo qual se luta de acordo com o curso da história. A este respeito, "o conceito de progresso [...] deve ser fundado na catástrofe. O facto de 'continuar assim' é a catástrofe" (Benjamin 2015c, 592, destaque no original). Os vencedores são os que estão no poder como "os herdeiros de todos os que já venceram" (Benjamin 2015a, 696).

"Os políticos em quem os opositores do fascismo tinham esperança" (ibid., 698) foram vítimas do perigo iminente. O caminho para isso foi aberto pela "crença obstinada desses políticos no progresso, pela sua confiança na sua 'base de massas' e, finalmente, pela sua integração num aparelho incontrolável" (ibid.). Neste ponto torna-se claro "quanto se torna cara para o nosso pensar habitual uma concepção da história que evite qualquer cumplicidade com aquilo a que estes políticos continuam a agarrar-se" (ibid.). A social-democracia também sucumbiu ao perigo do "conformismo". "Não há nada que corrompa tanto o operariado alemão como a opinião de que ele segue a corrente" (ibid., destaque no original). O "declive da corrente" é o "desenvolvimento técnico" (ibid.). Neste contexto, Benjamin critica a ideia do trabalho como "fonte de toda a riqueza e de toda a cultura", como se afirma no Programa de Gotha. Josef Dietzgen (1828-1888) promoveu esta confusão quando "proclamou [...]: O trabalho é o nome do salvador dos tempos modernos [...]. No [...] aperfeiçoamento [...] do trabalho [...] reside a riqueza que pode agora realizar o que nenhum salvador jamais realizou". Uma tal "concepção materialista vulgar" do trabalho "equivale à exploração da natureza, que se contrapõe com ingénua satisfação à exploração do proletariado" (ibid.).

 

7.2 Um tempo vazio

A falta de conteúdo do culto capitalista, que não conhece "nenhuma dogmática especial" nem "nenhuma teologia" (Benjamin 1991d, 100), corresponde à "duração permanente do culto" (ibid.). Nesta permanência está incluída uma experiência do tempo, a de um tempo que flui indiferentemente. Anula a diferença entre o dia de semana e o dia de festa, pelo que não flui simplesmente sem peso, mas pesa sobre as pessoas. "No sentido terrível do desenvolvimento de toda a pompa sagrada", o culto capitalista coloca o "adorador" sob pressão. Exige a "máxima tensão do adorador" (ibid.). Na sua inquietação com o fluxo permanente do tempo, ele não conhece misericórdia nem saída. Não é tanto – como diz o texto – "a celebração de um culto sans rêve et merci" (ibid.; sem sonho e sem misericórdia, tradução HB), mas – correspondendo à expressão idiomática francesa "sans trêve et merci" – "um culto sem descanso e sem misericórdia, por outras palavras, um culto impiedoso" (Steiner 2011, 170). Representa esse "tempo homogéneo e vazio" do qual "não pode ser desligada [...] a ideia de progresso na história do género humano" (Benjamin 2015a, 701). No historicismo isso corresponde ao entendimento da história como uma "sequência de eventos" que os historiadores "deixam escorregar por entre os dedos [...] como um rosário" (ibid., 704; cf. também Luschach 2019).

No capitalismo o tempo torna-se "tempo vazio", porque o tempo concreto é subsumido sob o tempo abstracto (cf. também Zamora 2021, 266ss.). A base para isto é que o tempo pode ser comprado e utilizado como tempo para o dispêndio de quanta de trabalho abstracto. Está integrado nos processos de autovalorização do capital como fim-em-si abstracto e vazio. Nestes processos não há descanso. Caracterizam-se pela tensão para aumentar o nível de produtividade sob os constrangimentos da concorrência. A acumulação de capital move-se em ciclos auto-referenciais, vazios e infindáveis, sob a pressão de uma aceleração permanente. "O tempo do capital caracteriza-se pelo paradoxo de uma circularidade orientada para o futuro. Mas esse futuro não é outra coisa senão o futuro dos futuros circuitos de acumulação" (Zamora 2018, 215). A lógica vazia da valorização do capital, que é infindável mas fechada nos seus circuitos, não pode por si parar em nenhum limite externo. A acumulação é indispensável como processo sem fim por razões de autoconservação. "Para o valor, que se mantém em si como valor, o aumentar coincide com o autoconservar, e ele só se conserva precisamente pelo facto de que tende continuamente para além de seu limite quantitativo" (Marx 1983, 196 [2011, 332]).

O vazio do tempo capitalista, inserido no vazio do processo de acumulação, pode ser experimentado no retorno do mesmo, que não tem futuro nem perspectiva de escapar ao feitiço do repetidamente igual. O facto de o novo estar constantemente a substituir o velho, de os novos produtos, marcas, modas e tendências se substituírem uns aos outros, só aparentemente contradiz isto. O factor decisivo é "que a face do mundo nunca muda, precisamente naquilo que é o mais novo, que o mais novo é sempre o mesmo em cada exemplar" (Benjamin 2015c, 676). Mesmo o novo, na sua permanente mudança, não consegue encobrir o vazio. Não proporciona satisfação e tranquilidade, mas produz o tédio como expressão do vazio que é suposto ser preenchido pela novidade constante. Actualmente os clientes entediados podem escolher entre uma vasta gama de ofertas de alívio e aprofundamento nos mercados de eventos, de esoterismo e de espiritualidade. Estas vão desde a intensificação da experiência de felicidade, passando por uma profunda experiência espiritual de significado, até ao entretenimento permanente através de eventos (cf. Böttcher 2020, 213ss.). Não por acaso a indústria dos eventos e do entretenimento fez muita falta como pilar da "normalidade" durante os confinamentos do coronavírus. No entanto mesmo essas ofertas dificilmente proporcionam qualquer alívio, mas em vez disso fazem com que as pessoas peçam sempre de novo e mais rapidamente o retorno de mais do mesmo. "O mais novo" como "o mesmo" "constitui a eternidade do inferno. Determinar a totalidade dos traços em que a modernidade se exprime seria retratar o inferno" (Benjamin, 2015c, 676).

A inquietação, em que é sempre necessário encontrar algo de novo, é a expressão da procura de estabilidade numa identidade que não se pode "ter". Nos processos acelerados – ditos de auto-optimização – de adaptação a desafios sempre novos ditados pelo desenvolvimento da crise, não há paragem e, portanto, também não há estabilidade, não há a estabilidade e a segurança que a identidade parece prometer. O que os indivíduos encontram no culto capitalista da vida quotidiana é o confronto com a sua insignificância, o desencadeado "vazio perfeito que se tornou um turbilhão permanente; precisamente o nirvana do dinheiro, mas não como um dinheiro que finalmente vem para descansar, mas como um dinheiro que lavra o mundo sem sentido nem descanso " (Kurz 2018, 160).

O dinheiro que "permanentemente" lavra o mundo – esvaziado "do último resto sensível dos metais preciosos, que já era conteúdo em decadência" (ibid.) – exige adaptação às condições que agora foram "lavradas" em paisagens de crise. A "mudança imposta, cegamente enraivecida, que segue as leis fetichistas do capital" forma o quadro "para  a estranha reciprocidade entre, por um lado, a mudança institucionalizada e a ruptura permanente da identidade e, por outro, uma ideologia de ‘identidade’ como busca de fixação no processo interminavelmente solto do louco fetiche social" (ibid.). Nesta transformação não acontece nada de substancialmente novo, mas sempre a mesma coisa, num processo sem sentido nem significado, num mundo dessensibilizado em que tudo tem de se dissolver ou perecer no vazio do processo de valorização. Quanto mais a crise se agudiza, mais se torna claro "que o processo identitário do ‘rígido nada’ também se pode superar negativamente a si mesmo, ou seja, de modo nenhum vai continuar infinitamente em processo, mas extingue-se catastroficamente" (ibid., 167). A "autoconservação" do capital através da acumulação (cf. Marx 1983, 196) torna-se a autodestruição e a destruição do mundo. É aqui que tem o seu lugar actual a formulação de Benjamin "'continuar assim' é a catástrofe" (Benjamin 2015c, 592),.

A crise do coronavírus deu por vezes a impressão de um regresso à política. O Estado parecia estar subitamente em posição de amortecer as perdas económicas, fornecendo mais e mais ajuda. A guerra da Rússia contra a Ucrânia e as sanções ocidentais pintam um quadro diferente. Por um lado torna-se visível a fraqueza dos actores, que não estão a agir a partir de uma posição de força, mas como actores impulsionados pela crise. Por outro lado os limites da compensação das perdas económicas tornam-se visíveis: inflação e estagnação, contradições entre as medidas necessárias para "manter a economia a funcionar" e proteger o clima, fomes galopantes – tudo isto torna cada vez mais claros os limites do que ainda é viável no quadro da administração da crise.

Os processos de crise não param; não há paragem nem ponto de paragem à vista. Como reagirão as pessoas que vivem em contextos em que a ignorância ou mesmo a hostilidade em relação à "teoria nas alturas" se tornou tão natural como a insistência no "concreto" e na imediatidade da experiência, que é apresentada como prova de autenticidade? Numa tal situação de conflito pode ser óbvio procurar refúgio na busca de "culpados" e no anti-semitismo que lhe está associado (cf. o texto de Roswitha Scholz sobre Moishe Postone nesta edição da exit!)

A personalização em Putin e a concretização do mal e da irracionalidade na sua pessoa não podem ser ignoradas na abordagem da guerra da Rússia contra a Ucrânia. Inversamente, como imagem num espelho, para os pensadores transversais a concretização do mal é no Ocidente. "O Ocidente" torna-se o culpado que, entre outras coisas, forçou literalmente a Rússia a atacar a Ucrânia, expandindo a NATO para Leste. É possível que estas tendências aumentem se a crise se agravar de tal modo que o gás se torne ainda mais caro, a inflação continue a aumentar etc.

O incompreendido e aparentemente intangível torna-se pseudoconcreto e tangível. A hostilidade à reflexão transforma-se em falsa imediatidade. O objectivo é concretizar problemas complexos e bani-los de forma fetichista, identificando interesses e culpados. As ideologias da teoria da conspiração também se podem associar a esta imediatidade. A banalidade das construções conspirativas substitui então a definição da totalidade social como dominação abstracta e o seu carácter fetichista (cf. Böttcher 2022b e 2022c). Este conglomerado pode inflamar-se em ódio e violência bárbara em qualquer altura. "O feitiço social sob o qual as pessoas submetem as suas próprias acções ao automatismo do dinheiro capitalizado" (Kurz 2001, 233) não é uma "entidade que se encontra fora do mundo", mas é realizado através dos indivíduos. Por esta razão, cada um tem de "accionar as contradições arrepiantes, os medos e os sofrimentos deste feitiço" (ibid.). São também responsáveis pela forma como o fazem. Não ‘têm de’ tornar-se defensores da normalidade dominante, pensadores transversais, anti-semitas, "bárbaros" etc. (cf. Kurz 2001, 232s.).

A reflexão teórica, questionando a ligação entre os fenómenos e o contexto social global, não está em contradição com as experiências, mas permite que estas se tornem então concretas com a ajuda da reflexão teórica. Na sua imediatidade elas "não são 'concretas' em si mesmas, mas mediadas pela abstracção social (na modernidade, pela forma totalitária da mercadoria e suas contradições). A abstracção teórica procura tornar isto compreensível e analisá-lo – só então as experiências podem tornar-se 'concretas' no verdadeiro sentido" (Kurz 2005b, 30). O que importa – para usar as palavras de Benjamin – é a "tomada de consciência das forças obscuras das quais [a vida] se tornou dependente" (Benjamin 1991b, 97) e que, na sua nulidade, conduzem à aniquilação. Mas, quando o pensamento conceptual é substituído pela imediatidade da experiência e do sentimento, nenhuma luz do conhecimento incide sobre as "forças obscuras", permitindo-lhes assim tornar-se mais poderosas.

 

7.3 Ciclos de culpa/dívida sempre nova

Para Nietzsche, o sentimento de culpa está ligado a uma divindade. As pessoas devem-lhe sempre alguma coisa. Quanto mais "o conceito de Deus e o sentimento de Deus cresceram na terra e foram elevados às alturas", mais cresceu "o sentimento de culpa perante a divindade". Com o Deus cristão "como o máximo de Deus", "também apareceu o máximo do sentimento de culpa na terra [...]. A "vitória do ateísmo" (Nietzsche, s.d.b, 305) libertará a humanidade de todo este sentimento de ter dívidas perante o seu princípio, a sua prima causa. Ao contrário de Nietzsche, Benjamin reflecte a secularização da ligação entre culpa e endividamento no culto do capitalismo: este é "provavelmente o primeiro caso de um culto que não redime, mas culpabiliza" (Benjamin 1991d, 100).

Benjamin está consciente da "ambiguidade demoníaca" do termo culpa/dívida [Schuld]. Os "juros e os juros compostos" são uma "função da dívida" (ibid., 102). A dimensão económica da dívida comporta também uma dimensão moral, a saber, a obrigação de pagar a dívida. A dimensão económica de uma dívida que já não pode ser paga torna-se mais clara quando se rompe o vínculo entre a dívida e a acumulação futura e, portanto, entre a produção de mercadorias e o dinheiro. É aqui que se atinge o "zénite" (ibid., 101) do endividamento/culpabilização. A guerra contra a Ucrânia está a conduzir a este "zénite", na medida em que exacerba os processos de crise em curso: já nos anos 80, o peso da dívida global aumentou mais rapidamente do que o desempenho da economia global (Konicz 2016, 11ss.). A agonia do capital pode ser vista nas montanhas de dívidas que já não podem ser "desendividadas". A isto juntam-se agora os aumentos inflacionistas dos preços, nomeadamente nos domínios interligados da energia e da produção alimentar. As tentativas de combater a inflação através do aumento das taxas de juro estão a alimentar os contrastes entre os países que beneficiam parcialmente da crise da dívida e os que são "obrigados" a pagar as suas dívidas cada vez maiores. Esta situação coloca ainda mais pressão sobre as economias de deficit, com as quais os excedentes de mercadorias de uns são pagos com as dívidas de outros e o empreendimento capitalista em colapso pode ser prolongado no tempo. O beco sem saída está patente no facto de a política monetária expansionista dos bancos centrais, com a qual as economias de deficit se mantiveram vivas, estar a ser contrariada pela inflação.

O esgotamento económico que se manifesta a vários níveis não permite uma nova ordem mundial sob a liderança de um novo hegemonista. Referindo-se ao teórico dos sistemas mundiais Giovanni Arrighi, Konicz deixou claro que, perante o contexto de crise, já não é concebível "a alternância entre dois ciclos hegemónicos com a potência hegemónica descendente a endividar-se perante a potência hegemónica ascendente" (ibid.), como no exemplo da dependência da Grã-Bretanha em relação aos EUA durante a Primeira Guerra Mundial. O factor decisivo é o colapso da economia global de deficit, que já não pode ser estabilizada através da oferta de "dinheiro sem valor". A China também não poderá assumir o papel de uma nova potência hegemónica. As reservas de divisas da China diminuíram e os seus empréstimos ao estrangeiro entraram em colapso. Devido ao seu elevado nível de produtividade, não está em condições de valorizar massas de trabalho assalariado e é também obrigada a gerar excedentes de exportação à custa dos países concorrentes (cf. Konicz 2022c, 5). Em última análise, a base para um novo regime de acumulação perde-se, tanto para a China como para outros candidatos a hegemonistas. Conclusão de Konicz: "Uma vez que o capital já não pode continuar a sua vida de zombie financiada a crédito, os monstros estatais do capitalismo tardio estão a cair uns sobre os outros" (Konicz 2022a).

Um ciclo moral de culpa e endividamento tornou-se visível na disputa sobre o fornecimento de armas à Ucrânia, que derivou directamente do sofrimento dos ucranianos e do seu direito à defesa para a exigência moral do fornecimento de armas pesadas. Numa onda de sentimento e convicção, de raiva e indignação, a questão do fornecimento de armas pesadas tornou-se uma questão moral, e qualquer pessoa que se oponha a ela é culpada de se recusar a mostrar solidariedade para com as vítimas. Uma tempestade de indignação moral rebentou depois de ter sido publicada uma carta de publicistas e artistas ao chanceler Scholz, alertando para a escalada da guerra. Os autores teriam falhado moralmente e teriam de ser rotulados como "intelectuais com tendência para o paternalismo" e "combatentes em casa" (provavelmente do lado de Putin?). A queixa de Habermas sobre a "impetuosa insistência moralizadora da liderança ucraniana determinada a vencer" e as exigências de um "compromisso" foram vistas como uma "admissão de falha de liberdade e humanidade" pelos intelectuais alemães, que "não estariam a fazer boa figura ao lidar com a guerra de agressão da Rússia" (Decker 2022). O apresentador de televisão Jan Böhmermann emitiu o veredito antecipado do tribunal mundial: "A carta aberta a Olaf Scholz envia um sinal tranquilizador: se Putin atacar a Alemanha com armas nucleares, os danos intelectuais serão de qualquer modo limitados" (citado em Kölner Stadt-Anzeiger, 3.05.2022).

O facto de afinal não se tratar nem do sofrimento da população nem do direito da Ucrânia à autodeterminação tornou-se claro durante a reunião entre o Secretário da Defesa dos EUA e os seus colegas dos outros Estados da NATO e de 14 países não pertencentes à NATO, em Ramstein. Mesmo antes da reunião, durante a sua visita conjunta à Ucrânia com o Secretário de Estado Blinken, o Secretário da Defesa dos EUA, Austin, tinha estabelecido o objectivo de "enfraquecer a Rússia ao ponto de esta não poder continuar a fazer o que fez quando invadiu a Ucrânia" (citado em Rötzer 2022). No final de abril, o New York Times noticiou que "Washington já não está a lutar pelo controlo da Ucrânia, mas numa luta que coloca os EUA mais directamente contra a Rússia" (citado em Kölner Stadt-Anzeiger, 3.05.2022). Isto equivale a enfraquecer permanentemente a Rússia para que deixe de ser um concorrente na luta por novas constelações geopolíticas. No período que antecedeu Ramstein, já tinha sido decidido que seriam fornecidas armas pesadas à Ucrânia – e não apenas de produção alemã. Estas "servem para travar uma guerra ofensiva por procuração com os objectivos declarados por Biden e pelo seu governo: A mudança de regime e o enfraquecimento estratégico da Rússia" (Mezzadra 2022).

O critério moral pelo qual tudo é medido está a deslocar-se cada vez mais da solidariedade com a Ucrânia para a defesa da liberdade e da normalidade ocidentais face à ameaça representada pela Rússia. Neste processo a Ucrânia está a tornar-se um campo de batalha. A guerra que está a ser travada na Ucrânia está a ceifar cada vez mais vidas, a destruir cidades e aldeias, a destruir meios de subsistência. Aqueles que deveriam ser defendidos são sacrificados à normalidade ocidental. Aqueles que alimentam a guerra a partir de uma distância (ainda segura) e veneram os seus protagonistas e vítimas como heróis estão agora a revelar-se "combatentes em casa" que mandam outros fazer a guerra por procuração. Ao mesmo tempo fazem um juramento de fidelidade ao que significa a liberdade e a normalidade ocidentais: As pessoas tornam-se material estratégico quando são necessárias para a guerra. Os refugiados são bem-vindos se isso servir a guerra e a sua legitimação – desde que tenham a cor de pele "correcta" (ver Torsch 2022; ver também Lenz 2022). Se forem supérfluos por não poderem ser valorizados, podem afogar-se no Mediterrâneo, sangrar até à morte nos arames da NATO nas fronteiras, ser enviados para campos de concentração ou deportados para as mãos de todos os muitos "Putins". A ameaça de fome em resultado da perda de fornecimentos da Rússia e da Ucrânia – mesmo sem um bloqueio naval russo – é vista como lamentável mas infelizmente "inevitável".

Enquanto as contradições morais da liberdade e da normalidade ocidentais são ignoradas, a questão da culpa centra-se em não ter percebido a procura de poder da Rússia e em ter-se tornado ingenuamente dependente dela do ponto de vista económico. A acusação de Putin e a auto-acusação de o ter subestimado e de se ter deixado levar pelas ilusões de uma coexistência pacífica são uma só. Para além do fornecimento de armas pesadas, o boicote económico e mesmo o boicote ao fornecimento energético russo prometem o alívio da culpa. Esta expiação faz lembrar o comércio de indulgências e a oportunidade que oferece de nos livrarmos da culpa. Acima de tudo, porém, é impossível escapar ao ciclo de "culpa e endividamento". O fornecimento de armas implica que essas armas serão utilizadas para matar e destruir, que a Ucrânia se tornará um campo de batalha para a auto-afirmação ocidental, para a qual já não existe qualquer base económica. A compreensão de que um embargo pode ter o carácter de arma de destruição maciça permanece fora do cálculo de um tal comércio de indulgências. Losurdo (2022) sublinhou o significado do embargo no quadro da guerra ocidental e as suas consequências mortíferas. Mais de 500.000 crianças morreram em consequência do embargo imposto ao Iraque. O embargo conduz a uma punição colectiva do inimigo, em que não é feita qualquer distinção entre combatentes e população civil. Atinge mesmo esta última.

Um boicote económico não só ameaça a Rússia, como também se volta contra o Ocidente sitiado, como se pode ver no medo da falta de gás russo, onde se quebra a pompa retórica e a arrogância moral. Os custos destas estratégias de expiação são suportados sobretudo por aqueles que já são as primeiras vítimas da administração neoliberal da crise. E mesmo aqueles que esperavam que o boicote ao gás russo fosse uma ilibação moral pela confiança depositada em Putin têm de reconhecer que a procura de fornecimentos de energia conduz à dependência de outras figuras e potentados moral e politicamente questionáveis. No entanto não se pode escapar ao ciclo de "culpa e endividamento" renunciando ao fornecimento de armas e aos boicotes económicos. Ele continua ligado ao facto de ser infligido sofrimento com violência brutal às pessoas e estas se tornarem vítimas de ilusórios objectivos e estratégias russos, para cuja realização existe tão pouca base económica ou legitimidade de qualquer tipo como para as estratégias ocidentais. Nem mesmo aqueles que acreditam que podem "lavar as mãos da situação" ou ter a "consciência tranquila", fazendo referências bastante justificadas a estratégias de defesa social, podem escapar ao ciclo de culpa e endividamento, uma vez que tais estratégias tendem a permanecer tigres de papel na constelação actual, devido à falta dos correspondentes actores e práticas. "O que quer que façamos ou deixemos de fazer, tornamo-nos inevitavelmente culpados", afirma Stephan Grünewald (2022).

 

7.4 Falta de saída, endividamento, fetiche

Benjamin vê a razão do ciclo de culpa e endividamento no capitalismo na falta de saída: "Uma situação [...] sem saída está em endividamento" (Benjamin 1991d, 100). Obriga-nos a entrar no ciclo da culpa e do endividamento. "Uma imensa consciência de culpa que não sabe como se redimir, apodera-se do culto não para redimir essa culpa, mas para a tornar universal [...] e sobretudo para incluir o próprio Deus nessa culpa" (ibid. 100s.). Com a referência a Deus fica à vista a totalidade do contexto do endividamento sem saída. Mas o Deus de que estamos a falar já não é transcendente ao mundo e à história em esferas metafísicas. Ele está incluído na falta de saída do contexto do sistema capitalista e dos seus ciclos de dívidas sem perspectivas. Embora a "transcendência de Deus" tenha assim "caído", Deus "não está morto", mas fundiu-se com a imanência das relações fetichistas. Assim, a transcendência descartada não desaparece, mas torna-se o fetiche da imanência capitalista (cf. Böttcher 2021a). A metafísica "celestial", apenas ilusoriamente eliminada com o ateísmo iluminista, é reencontrada como a "metafísica real" (cf. Kurz 2021, 68ss.) das relações capitalistas "terrenas".

Esta "metafísica real" não é um "estado ontológico real" de uma essência capitalista fixa, mas tem uma história que é impulsionada como "contradição em processo" (Marx), cujo limite lógico interno conduz à crise e à destruição. A essência do capitalismo que Benjamin pretende apreender não é intemporal nem independente das suas manifestações. Torna-se reconhecível na mediação de essência e desenvolvimento histórico, de forma social e aparência. Benjamin não tem em consideração a "contradição em processo" de Marx. No entanto, regista que "Deus", enquanto expressão da imanência das relações fetichistas, atinge a maturidade "no zénite da sua culpabilização/endividamento" (Benjamin 1991d, 101).

Esta maturidade está ligada a duas dimensões: A "perseverança até ao fim, até à completa autoculpabilização/endividamento final de Deus" (ibid). Benjamin caracteriza este fim como um "estado de desespero do mundo a que ainda se aspira" (ibid., ênfase no original). É aí que reside o absurdo deste fetiche religioso: não se trata simplesmente de uma transfiguração ilusória das relações com o objectivo de alívio e estabilização, mas de "uma expansão do desespero para um estado religioso do mundo do qual se espera que venha a salvação" (ibid.). Contrariamente a estas expectativas, Benjamin vê "o aspecto historicamente inédito do capitalismo" no facto de a sua "religião já não ser reforma do ser, mas destruição" (ibid.). Em segundo lugar, Benjamin vê o traço final da religião capitalista no facto de "o seu Deus ter de ser escondido" e "só poder ser invocado no zénite da sua culpabilização/endividamento". Por isso, o culto é celebrado "perante uma divindade não amadurecida" e "cada ideia, cada pensamento sobre ela ofende o mistério do seu amadurecimento" (ibid.).

O "zénite da culpabilização/endividamento", que se apresenta actualmente como o "momento do perigo" da crise que se aproxima da aniquilação mundial, poderia – como "o agora da reconhecibilidade" – permitir reconhecer o fetiche ou a "metafísica real" das relações fetichistas capitalistas. Seria o reconhecimento do "Deus" que "não está morto", mas "incluído no destino humano" e que mergulha no abismo com a destruição das pessoas e dos fundamentos da vida. Torna-se reconhecível: O "Deus" que se funde com a imanência das relações fetichistas, que não tem conteúdo sensível nem social, actua como uma dinâmica negativa de "destruição". É aqui que nos conduz o vazio metafísico da sua forma auto-referencial, que está sujeita à compulsão de se exteriorizar no mundo sensível e social para nele se representar. "Só no nada e, portanto, na aniquilação" pode ser resolvida ‘a contradição entre o vazio metafísico e a 'compulsão para representar'" (Kurz 2021, 69).

Este sacrifício de aniquilação de si e do mundo é devido ao fetiche. O fim-em-si da metafísica real da valorização do capital constitui uma verdadeira "'relação de dever'" (Kurz 2012, 407 [368]) juntamente com a dissociação das esferas da reprodução. O seu "assento na vida" não é simplesmente o sistema de crédito, mas a "compulsiva submissão e auto-submissão ao princípio do 'trabalho abstracto' como fim-em-si, que começa a devorar o mundo da vida", e, com ele, "o ser humano, literalmente no dispêndio da sua energia vital, sobre cuja finalidade já não tem qualquer controlo" (ibid., 407s. [366s.]). Bem no sentido da ética kantiana, os sujeitos são obrigados a realizar a sua autonomia moral no quadro das relações fetichistas. Devem esta submissão em liberdade às relações ou a esse Deus inerente a essas relações como postulado da razão prática. Isto é expresso no imperativo categórico, que permanece vazio de conteúdo, mas insiste em que as máximas da acção individual sejam harmonizadas com a generalidade das relações pressupostas, ou seja, insiste na mediação das próprias acções com as relações (cf. Böttcher 2022a, 157ss., 179ss.). As próprias relações que teriam de ser objecto de crítica são moralmente pressupostas. Neste quadro de pensamento, a defesa da liberdade ocidental e da sua normalidade torna-se um imperativo categórico de autodestruição e destruição do mundo. É aqui que a submissão devida atinge o seu ponto final, que não é um acto único, mas deve ser constantemente actualizado naqueles processos inacabáveis em que os sujeitos, como "eus empresariais" (Bröckling 2013), têm de se orientar nos respectivos processos de crise sob a sua própria responsabilidade. Tendo em conta o agravamento dramático da crise global, isto aplica-se não só a nível económico, mas também como submissão aos ajustamentos político-militares que a liberdade e a democracia ocidentais tornam agora indispensáveis face ao ponto de viragem.

A obrigação devida ao "fetiche reificado da 'riqueza abstracta'" (Kurz 2012, 395 [356]) não é apenas económica, mas também está inserida numa estrutura institucional de política e administração e, não menos importante, no direito. Benjamin reflecte sobre isto no seu texto Zur Kritik der Gewalt  [Para a crítica do poder/violência] (Benjamin 2014b). Segundo este, a "criação de leis" como "comutação" e a "preservação das leis" como "violência administrada" (ibid., 203) baseiam-se na violência mítica, que é "violência sanguinária sobre a vida" (ibid., 200) e que, de uma "forma demoniacamente ambígua, proporciona 'direitos iguais'" tanto aos pobres como aos ricos, o que – como diz Benjamin, seguindo Anatole France (1844-1924) – proíbe "pobres e ricos" de "dormir debaixo das pontes" (ibid., 198). Este formalismo jurídico desprovido de conteúdo, que em caso de dúvida é mortal, faz parte da constituição do sistema operativo capitalista. Nele, a "manifestação mítica da violência imediata [...]” descrita por Benjamin “é no mais profundo sentido idêntica a todo poder jurídico" (ibid., 199).

O fim-em-si vazio e irracional da produção capitalista e a forma jurídica igualmente vazia que lhe está associada implicam algo de arcaico e mítico: o sacrifício humano devido à divindade em termos económicos e jurídicos. Aqui, porém, Deus não é uma entidade metafísica transcendente, mas manifesta-se num contexto de dominação abstracto, reificado e criado pelo ser humano, que – agora transcendentalmente reificado – confronta as pessoas com as suas exigências de "sacrifício", ao ponto de destruir toda a vida. Nele regressa o sacrifício humano arcaico, "mas numa nova forma objectivada [...] como auto-sacrifício da energia vital abstracta" (Kurz 2012, 408 [369]), como destruição daqueles que para o efeito são "supérfluos", bem como dos fundamentos naturais da vida.

Em termos laicos, o formalismo jurídico, juntamente com o aparelho de Estado que o executa, assegura a realização do sacrifício. Mas nenhum sacrifício pode apaziguar o Moloch e, assim, parar o curso mortal da crise. Pelo contrário, quanto mais a acumulação de "riqueza abstracta" se desmorona nos ciclos de culpa e endividamento, mais a dívida se acumula e mais o processo de sacrifício "ordenado" conduz à barbárie. Mas onde a religião insiste na distinção entre transcendência e imanência e na sua mediação na história, o capitalismo "não é nenhuma religião, mas como fetiche da metafísica real a dissolução de toda a religião num movimento sacrificial autonomizado" (ibid., 404 [366]), que empurra imanente e inexoravelmente para a "destruição", para a aniquilação do mundo.

 

7.5 Accionar o travão de emergência

Na sua discussão sobre as As lutas de classes em França em 1848-1850, Marx afirma que as "revoluções" são "a locomotiva da história" (Marx 1990, 85). Benjamin, por outro lado, conjectura: "Talvez as revoluções sejam o género humano que viaja neste comboio a accionar o travão de emergência" (Benjamin, 2015b, 1232). A sua visão do curso catastrófico da história proíbe o tipo de optimismo sobre o progresso que corrompeu a social-democracia (cf. Benjamin, 2015a, 698s.). Mas mesmo a "sociedade sem classes não deve ser concebida como o ponto final de um desenvolvimento histórico" (Benjamin, 2015, 1232). Em vez disso Benjamin defende que o conceito de conversão seja analisado pelas suas implicações políticas e histórico-filosóficas (Benjamin 2015b, 1232s.). Em Marx, observa, o "capitalismo sem conversão" transforma-se em "socialismo" (Benjamin 1991d, 101ss.). Este tinha emergido do capitalismo sem conversão e tinha-o continuado. Com este horizonte de continuidade, o pensamento marxista converge com o entendimento historicista da história como "um progresso do género humano". Implica um entendimento do tempo em que o progresso da história está inserido num "tempo homogéneo e vazio" (Benjamin 2015a, 701) como continuum da história. Isto corresponde ao método do historicismo, no qual "a massa dos factos" é oferecida "para preencher o tempo homogéneo e vazio" (ibid., 702). O tempo vazio é assim preenchido pela "empatia com os vencedores" (ibid., 696), e os vencidos são tornados invisíveis.

Por isso a tarefa do materialista histórico é "escovar a história a contrapelo" (ibid. 697). Faz parte da luta pelo passado reprimido, que não pode ser separada da luta contra os perigos que ameaçam o presente, especialmente com o fascismo. Por isso a reflexão sobre o passado e sobre o presente, enquanto luta pelo passado reprimido e a defesa contra as catástrofes que ameaçam o presente, não devem ser separadas uma da outra.

Passado e presente estão ligados no entendimento da catástrofe, que consiste em "continuar assim" (Benjamin 2015c, 592) no fluxo vazio do tempo e no retorno mítico do mesmo. Este continuum tem portanto de ser rebentado. É este o objectivo do conceito de interrupção de Benjamin. O que ele tem em mente é uma interrupção tripla e interligada: a do ciclo destrutivo da culpa e do endividamento, a da ideia de progresso tanto na sua forma historicista como marxista, e a do tempo vazio e homogéneo com ela mediado. Tal interrupção ocorreu quando, na noite do primeiro dia da Revolução de Julho de 1830, "em vários locais de Paris, houve disparos contra os relógios das torres, simultâneos e independentes uns dos outros" (ibid., 702). Aqui o continuum da história e da dominação foi "rebentado" no fluxo do tempo. O filósofo Maurice Blanchot interpreta este facto como uma paragem, como uma interrupção no curso do tempo. "Por um momento, reina a inocência; a história interrompida" (Blanchot 2007, 135). A "paragem" do fluxo do tempo na história tem como objectivo a mudança revolucionária. Isto torna-se claro quando Benjamin escreve: "A consciência de rebentar o continuum da história é própria das classes revolucionárias no momento da sua acção" (Benjamin 2015a, 701). Nas notas sobre epistemologia e teoria do progresso, a tónica é colocada no pensamento que inclui "tanto o movimento como a quietude do pensamento" (Benjamin 2015c, 595). Benjamin caracteriza-o como uma "cesura no movimento do pensamento" (ibid.). Onde "o pensamento se imobiliza numa constelação saturada de tensão, surge a imagem dialéctica" (ibid.). É "a dialéctica suspensa" (ibid., 577s.) e, ao mesmo tempo, "aquela em que o passado e o agora se juntam num relâmpago para formar uma constelação" (ibid., 576, 578). Esta constelação só pode ser vista dialecticamente "como uma constelação de perigo" (ibid., 587).

Benjamin entende "a reacção a uma constelação de perigo" como "o elemento destrutivo (3) da historiografia materialista" (ibid., 594). Daí a sua insistência na "cesura", na ruptura com a continuidade da história, no rebentar desse continuum. Há uma ruptura com a relação linear do tempo cronológico com o passado, com a lógica do desenvolvimento, bem como com a lógica da origem que quer regressar a uma origem intacta, quer esta seja procurada mais idealistamente num paraíso perdido ou mais materialistamente num comunismo primordial novamente idealizado. A orientação para um ideal impede a ruptura necessária, incluindo o "ideal dos netos libertados", com o qual a "classe operária desempenhou o papel de salvadora das gerações futuras" (Benjamin 2015a, 700, destaque no original). Em vez disso, "o trabalho de libertação" permanece vinculado aos "nomes das gerações dos vencidos" (ibid.), à recusa de esquecer ou desconsiderar aquilo sobre que o tempo vazio rolou. Na estrutura da mónada, que Benjamin associa à imagem dialéctica (cf. ibid., 703), exprime-se a ruptura com a ideia de um entendimento linear cronológico e causal da história. "O verdadeiro tempo histórico não é retorno, nem repetição, nem continuidade homogénea, mas intensidade destrutiva e salvífica, que realiza no presente a promessa esquecida do passado". Inclui "destruição e construção, rebentamento e salvação" (Gagnebin 2011, 295, ênfase no original).

Contra o tempo contínuo, vazio e destrutivo, Benjamin recorre às tradições messiânicas transmitidas no judaísmo. A constelação na qual o passado e o presente podem entrar no momento do perigo, mediada pela imagem dialéctica, é o "'agora' no qual se infiltraram estilhaços do messiânico" (Benjamin 2015a, 704). Porque o pensamento judaico inclui "a rememoração do tempo passado", também o futuro "não se tornou um tempo homogéneo e vazio. Pois nele cada segundo tornou-se a porta pela qual poderia entrar o Messias" (ibid.). Seja como for que se interprete o recurso de Benjamin ao "messiânico", ele significa pensar a história como um contexto em que o presente está ligado ao passado através de "uma frágil força messiânica [...] a que o passado tem direito" (ibid., 694, ênfase no original). Trata-se da expressão de "um encontro secreto entre gerações", de "um índice misterioso", pelo qual "o passado" é também "impelido para a redenção" na ideia de felicidade (ibid., 693). As referências de Benjamin ao messiânico visam relacionar o passado e o presente em "rebentamento e salvação" (Gagnebin 2011, 295) e, assim, "não dar por perdido para a história nada do que já aconteceu" (Benjamin 2015a, 694) ou "despertar no passado as centelhas da esperança de que ele está imbuído: também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer" (ibid., 695).

 

7.6 "Metafísica real"

A caraterização que Benjamin faz do "capitalismo como religião" é interessante sobretudo porque nela tenta perceber o capitalismo como totalidade. Afinal a religião não se caracteriza apenas por aquilo a que Benjamin se refere explicitamente: "as preocupações, os tormentos, as inquietações" (Benjamin 1991d, 100) que movem as pessoas. Pelo menos nas religiões em que a referência a Deus é central, o conceito de Deus põe em jogo uma dimensão na qual é feita uma distinção entre transcendência e imanência. O conceito de transcendência é uma categoria metafísica, na medida em que transcende não apenas a imanência de uma constelação histórica, mas toda a imanência, e nela a história como um todo. No entanto, quando o capitalismo se torna religião, a distinção entre transcendência e imanência é abandonada e a dimensão metafísica associada à religião funde-se com o capitalismo, mas não desaparece. O capitalismo tornou-se a "metafísica real" de uma imanência fechada em si, a constituição de relações sociais fetichizadas (cf. também Böttcher & Kloos 2022).

A visão de Benjamin das relações fetichistas capitalistas é redutora, na medida em que tenta apreendê-las a partir da perspectiva do culto ou da cultura. Alcança assim uma totalidade social, mas ignora largamente a dimensão económica do valor e da valorização – à excepção dos ecos dela na sua reflexão sobre a culpa e o endividamento – e ignora completamente a esfera dissociada da reprodução. O que fica claro, no entanto, é que ele não entende o capitalismo como uma "metafísica real" estática, mas como um processo. Sem se deter no conceito de "contradição em processo" de Marx, ele vê que o capitalismo – mediado pelos processos de culpa e endividamento – caminha para a "destruição". Neste processo está envolvido Deus ou o fetiche.

Lida no horizonte da crítica da dissociação e do valor, a "destruição" é uma manifestação da orientação da sociedade capitalista para a finalidade vazia e irracional de produzir riqueza abstracta por amor de si mesma, que anda de mãos dadas com o vazio metafísico do valor e com a dissociação da reprodução. À medida que os processos de crise avançam, o objectivo abstracto e irracional da produção e a satisfação das necessidades através da riqueza material vão-se distanciando cada vez mais, destruindo as bases económicas da produção e da reprodução, bem como as bases da existência social e política e, dentro destas, a base da existência dos Estados, que se desintegram e se transformam em monstros imprevisíveis na luta pela autoconservação.

Este processo é acompanhado pela "adoração da abstracção vazia de 'uma forma enquanto tal'" (Kurz 2021, 70 [48]). Pensado em termos da experiência de crise e nas palavras de Benjamin, isto significa que é adorado "o estado de desespero do mundo a que ainda se aspira [...], uma expansão do desespero para um estado religioso do mundo do qual se espera que venha a salvação" (Benjamin 1991d, 101, ênfase no original). O desespero como perda de si e a autodestruição conjugam-se nos amoques. Mas não caracterizam simplesmente uma irracionalidade fora da existência capitalista normal e das condições normais. A perda de si é uma caraterística da forma de sujeito, que se torna instável nas relações em desintegração, mas que no entanto obriga as pessoas a moverem-se dentro delas. Encarna o "vazio metafísico do valor" e constitui "eu o interior dos indivíduos, como essência totalmente incolor e mesmo sem quaisquer qualidades" (Kurz 2021, 73 [49]). Na perda de si da irracionalidade de um "estado mundial de desespero" (Benjamin 1991d, 101), a autodestruição e a destruição do mundo podem tornar-se a esperança perversa de mostrar grandeza na destruição de um eu vazio num mundo vazio. A dimensão religiosa da aniquilação capitalista do eu e do mundo seria expressa no facto de ser o último acto desesperado de "adoração da abstracção vazia, 'uma forma em geral'", a que "ainda se aspira" no desespero (ibid., ênfase no original). Seria o último "sacrifício" que é "devido" ao fetiche. O ciclo sem esperança da culpa e do endividamento terminaria na aniquilação. Seria a expressão metafísica real da fidelidade à "manifestação da majestade de Deus e da sua ordem, que lhe devemos como seres humanos" – como escreveu o especialista católico em ética social Gustav Gundlach para justificar a incondicionalidade do direito e do dever de defesa, mesmo com armas nucleares (!) (Gundlach 1959, 13).

 

8. O actual "momento de perigo": perda de si no "estado mundial de desespero"

A natureza explosiva do actual "momento de perigo" reside provavelmente no entrelaçamento da perda de si e do "estado mundial de desespero". Esta constelação é o resultado actual do ciclo sem saída de culpa e endividamento, o estádio que atingiu "o endividamento final e completo de Deus" (Benjamin 1991d, 101) na imanência do contexto fetichista.

As anteriores guerras de ordenamento mundial foram uma resposta ilusória à desintegração do "sistema da soberania territorial que começa a dissolver-se diante dos olhos e com a involuntária cumplicidade dos aparelhos capitalistas democráticos " (Kurz 2021, 414 [279]). Com a guerra da Rússia contra a Ucrânia, o conflito sobre a ordem mundial em desintegração está a ser travado entre "blocos" que possuem armas nucleares, cuja soberania está simultaneamente a ser corroída pelos processos de decadência da produção de mercadorias. Nos EUA os processos de desintegração socioeconómica aproximam-se dos da Rússia. Esta é também uma das razões pelas quais já não podem desempenhar o seu papel de polícia do mundo como outrora. Actualmente a Rússia parece também estar encostada à parede em termos militares (Konicz 2022). Em todo o caso os sucessos rápidos esperados da "operação militar especial" não se concretizaram. A NATO, que espera obter vantagens geopolíticas através do enfraquecimento da Rússia, está a conduzir a Rússia e a si própria para uma situação da qual é difícil imaginar um alívio, mesmo que temporário. As sanções económicas estão a sair pela culatra ao Ocidente: cadeias de abastecimento interrompidas, aumentos de preços inflacionários, uma economia estagnada – por outras palavras, estagflação. A longo prazo será difícil esconder o facto de que a guerra e as suas consequências estão ligadas à crise sistémica capitalista. A sua aporia é reconhecível no facto de se reduzir a oferta monetária necessária à economia em crise para combater a inflação, ou com mais oferta monetária alimentar a inflação. Por fim vêm os mecanismos de compensação conhecidos: globalização, oferta de "dinheiro sem valor" (Kurz), pacotes de salvamento do Estado etc. Não existe qualquer base para um novo regime de acumulação, a partir do qual se possa cristalizar uma nova hegemonia. O processo de valorização está cada vez mais a rodar em falso. É precisamente isso que por sua vez está a fazer com que a soberania do Estado rode em falso e que os Estados se transformem em monstros irracionais à medida que se desintegram. A espiral de escalada em que os adversários estão a manobrar está a revelar-se cada vez mais perigosa. Com a anexação do território ucraniano pela Rússia, esta zona tornou-se um território para o qual a doutrina militar russa prevê a utilização de armas nucleares como defesa nacional, mesmo contra forças armadas convencionais (cf. Konicz 2022d). Putin está sob pressão em termos de política de poder e tem de mostrar ganhos, enquanto os governos ocidentais estão a alimentar a pressão sobre Putin para pôr a Rússia de joelhos enquanto concorrente, mas estão eles próprios sob pressão em resultado das crises.

Ao mesmo tempo, os indivíduos que estão inseguros e desorientados no seu isolamento são "empurrados" para o vazio da perda de si. A "auto-referencialidade da vazia forma metafísica" (Kurz 2021, 69 [47]) não permanece exterior aos sujeitos; pois a forma de sujeito está integrada nesta auto-referencialidade da forma metafísica vazia. Nesta forma de sujeito, os indivíduos têm de lidar com as situações problemáticas descritas no capítulo 3. Embora estas situações problemáticas se apresentem ao nível micro da vida e das acções dos indivíduos, o nível macro das constelações e estratégias geopolíticas não deixa de ser afectado. Estas são percepcionadas e ordenadas de forma avaliadora pelos indivíduos enfeitiçados na forma de sujeito em desintegração. As tentativas de defender o eu identitário vazio até ao ponto da autodestruição podem ser uma ponte através da qual ganham plausibilidade a defesa da liberdade ocidental e também a vontade de pagar ou aceitar o preço da aniquilação do mundo perante a falta de saída. A "grandeza" do mundo ocidental mostra-se então na disponibilidade para dar todas as vidas por isso.

Não se reconhece que o vazio que caracteriza objectivamente o "estado do mundo" é a causa do "desespero" e dos impulsos para a "destruição". Isto pode levar a perigosas sobreposições entre experiências a nível individual e global. A nível individual, a defesa contra experiências de impotência e insulto através da alucinação de grandeza e poder também pode levar à autodestruição. A nível global, existe o perigo de que o impasse das constelações geopolíticas, que agora também estão a irromper, seja empurrado para um estado mundial de desespero, se necessário sob a forma de destruição de si próprio e do mundo, que aparece como expressão de lealdade à liberdade ocidental e à "majestade" (Gundlach) da sua metafísica real.

Como última saída, a autodestruição associada à destruição de outros espreita como a derradeira promessa de grandeza por si eficaz, como se pode ver analogamente ao nível das acções dos indivíduos nos amoques. Apresenta-se como uma oportunidade para mostrar grandeza e demonstrar poder através da destruição. A matança também está ao alcance de todos a nível social. É o que Kurz sugere quando escreve: "O conceito de amoque democrático ... bem pode ser levado à letra, no plano da acção militar. ... Quanto mais a situação mundial se tornar insustentável e perigosa, mais o aspecto militar toma a dianteira e menor se torna o constrangimento em recorrer à violência de alta tecnologia em grande escala, sem sequer fazer grandes perguntas" (ibid., 429 [290]). O "mundo desobediente" e o "carácter elusivo dos problemas" podem mobilizar uma "difusa raiva destrutiva" (ibid.). Que pode levar à disposição de aceitar mesmo a destruição nuclear, tornando-a assim concebível e exequível.

Os Estados nacionais, que se enfrentam em guerras ou em perigosas constelações de blocos, fazem parte do insano sistema fetichista capitalista, que está a atingir os limites da sua capacidade de reprodução e no seio do qual não pode haver uma coexistência pacífica dos povos. Como defesa contra o vazio e a impotência experimentados, um último recurso poderia ser a busca da própria grandeza na aniquilação nuclear como expressão máxima de uma poderosa auto-afirmação, a fim de afastar a dolorosa impotência. "No mundo do capital consumado apenas a franca insanidade é realista. Sob estas condições, o chamado pragmatismo assume necessariamente traços escatológicos" (Kurz, 2001, 395 [196]).

 

9. Interrupção e dialéctica suspensa

Na sua crise final o potencial para a "reforma do ser (capitalista)" (Benjamin 1991d, 101) está esgotado. A falta de saída da sua lógica imanente equivale à "destruição" do seu ser. Com a guerra na Ucrânia os fenómenos de crise são mais uma vez dramaticamente exacerbados. Mas será que eles também se tornam "reconhecíveis", compreensíveis na lógica que leva à dessubstanciação da valorização do capital, ao esvaziamento dos Estados e dos sujeitos, que se arrastam para o vazio, para o nada, para a aniquilação? "As preocupações: uma doença mental própria da época capitalista" (ibid., 102) parecem constituir um obstáculo. Caracterizam-se pelo "medo da falta de saída no âmbito colectivo" (ibid.). O seu objecto – como se torna cada vez mais claro hoje em dia – é a normalidade, não a procura do manípulo do travão de emergência e muito menos o que poderia quebrar a normalidade. Pelo contrário, estão sob o feitiço da questão de saber como é que as coisas podem continuar na e com a normalidade capitalista – sob a obrigação de se (auto)disciplinarem perante as circunstâncias, e divididas entre a obrigação de consumir e ao mesmo tempo de poupar e medir o que a crise exige ou permite. Quanto mais insustentável, mais maciçamente parecem agarrar-se à normalidade que deveria ser objecto de crítica.

Não há automatismo que conduza à "reconhecibilidade" "no momento do perigo", nem mesmo na "imagem dialéctica". Ao recorrer aos sonhos e às constelações do despertar, Benjamin procura ligações à psicanálise para dissolver a ilusão e a "'mitologia' no espaço histórico" (Benjamin 2015c, 571). Isto distingue-o do recurso a arquétipos de Jung, arquétipos que não rebentam nada mas que são compatíveis com o "'espírito do tempo'" (ibid., 590). O "despertar", por outro lado, poderia ser "a síntese da tese da consciência do sonho e da antítese da consciência desperta" [...]. Então o momento do despertar seria idêntico ao 'agora da reconhecibilidade'" (ibid. 579). A imagem dialéctica, no entanto, "passa a voar" (ibid., ênfase no original); ela relampeja e desaparece. É por isso que tem de ser parada, agarrada. Isto também significa que tem de ser ligada à reflexão e ao conhecimento sócio-críticos. Para se poder encontrar socialmente o correspondente conhecimento pode ser um factor decisivo se uma "imagem dialéctica" puder relampejar e ser capturada, de modo a tornar-se eficaz como contestação e resistência salvadoras contra as constelações de perigo.

Perante a escalada dos perigos, o tempo urge para agir. A reflexão teórica pode parecer para alguns um luxo nestes momentos de necessidade. Parece mais óbvio agarrar-se à normalidade da situação. O problema central aqui é que, na procura de saídas dentro do quadro da normalidade, as relações fetichistas dentro das quais ocorrem os processos de destruição e aniquilação permanecem estabelecidas como pressupostos do conhecimento e da acção. Em contrapartida, perante o perigo iminente, Benjamin insiste numa ruptura com as relações, numa cesura indispensável para que a história não "progrida" ainda mais na sua trajectória para a catástrofe. A razão para isto é a sua percepção da totalidade do contexto de destruição. Embora a sua análise necessite de ser completada – sobretudo em termos de economia política – identifica claramente o carácter fetichista e catastrófico no processo da sua progressão. Ao relacionar este contexto com o Deus entrado na imanência das relações, traz à discussão o carácter fetichista da modernidade. Do alto das ilusões iluministas que legitimam as relações fetichistas, a modernidade acredita ter visto o carácter ilusório da religião e ter-se livrado dela, mas na realidade permanece cega ao facto de que o Deus transcendente, que legitimou as relações de dependência pessoal-feudal, apenas caiu da sua transcendência para a imanência das relações fetichistas capitalistas e se tornou a metafísica real destas relações. Na imanência destas relações fetichistas e na sua transformação em catástrofes sempre novas até à catástrofe final concebível, não pode haver salvação, não pode haver – para usar as palavras de Benjamin – a "pequena porta pela qual pudesse entrar o Messias" (Benjamin 2015a, 704).

O "Marx esotérico" (cf. Kurz 2001) levou mais longe a sua crítica da religião para criticar o fetichismo do capitalismo. Isto permitiu-lhe reconhecer o fetiche que "mantém estas relações unidas no seu âmago": o "irracional fim-em-si" (ibid., 56) da produção capitalista de riqueza, cuja base é o "reacoplamento do dinheiro a si mesmo" (ibid., 57) mediado pelo trabalho. Neste quadro, a riqueza material é apenas um meio para este fim-em-si irracional, que impele à destruição e à autodestruição na compulsão de constantemente "expandir a produção por por amor de si mesma" (ibid., 56). Para isso não há remédio imanente: nenhuma luta de classes nem nenhum sujeito (revolucionário), nenhum interesse que precise de ser visto ou que possa ser mobilizado para derrubar os governantes, nenhuma política nem nenhuma negociação democrática de diferentes interesses, nenhum nicho de "alternativas" que possam ser organicamente desenvolvidas a partir de formas germinais em transformações. (4) Nenhuma prática que esteja comprometida com a urgência da mudança, mas ao mesmo tempo com a imanência das saídas, pode desenvolver uma força emancipatória.

O mesmo se aplica, analogamente, às tentativas filosóficas de se ligar às referências de Benjamin ao Messias ou às tradições messiânicas e paulinas da Bíblia no "interesse" da salvação. Não conseguem romper com a imanência das relações fetichistas. Agamben vai dar a uma vida messiânica "no modo de como se não" (Böttcher 2019, 147). Assim como Paulo aconselhou os escravizados sob a dominação de Roma a viver "como se" esta dominação "não existisse" em vista do tempo urgente, também é possível viver sob o capitalismo "como se" ele não existisse (cf. Agamben 2015, para crítica Böttcher 2019). Žižek critica Agamben por negligenciar as tensões associadas ao messianismo, que se situam no facto de, no entendimento cristão do universalismo, "os excluídos [...] representarem o todo" – "em contraste com todos os outros que representam apenas os seus interesses particulares" (Žižek 2022a, 112). Neste contexto sublinha contra Agamben a atitude militante do cristianismo em relação ao seu ambiente, mas termina com o sujeito concreto como combatente militante contra o neoliberalismo, que parece não ter alternativa. A busca de um messianismo sem romper com as relações fetichistas liga ambos à recepção de Paulo por Badiou (2009) – mesmo que este último não se refira a Benjamin. O que têm em comum é o facto de pensarem Paulo e o seu messianismo a partir de um vazio metafísico. Mas este vazio não é uma porta através da qual o Messias pudesse entrar pelo acontecimento (Badiou), pela vida no modo de "como se" ou num sujeito militante redescoberto (Žižek), porque tal messianismo se move no quadro das relações fetichistas, cujo continuum teria de ser rebentado de acordo com Benjamin.

A ruptura do continuum do tempo vazio que flui para a catástrofe é o horizonte em que se situam as categorias de Benjamin da interrupção e da imagem dialéctica. A interrupção tem a ver com o "conceito de um presente que não é uma transição, mas pára no tempo e se imobiliza" (Benjamin 2015a, 702). O que está em causa é "a desastrosa auto-execução do progresso" (Kramer 2003, 118), que, como um continuum da história, é rebentado no "tempo do agora". Isto altera a relação entre o passado e o presente. O presente não está à mercê do passado no fluxo do tempo vazio. E ao olhar para o passado, o que nele foi derrotado e desfeito pode vir à tona. As constelações do passado e do presente tornam-se legíveis e reconhecíveis. Isto encontra expressão na "imagem dialéctica". Marca uma ruptura, uma cesura no pensamento. O movimento do pensamento já não se efectua no quadro de uma continuidade fechada, mas marca a descontinuidade. O passado e o "presente" podem entrar numa nova constelação. Por um lado esta constelação não é arbitrária, mas está ligada à desconstrução da história transmitida em continuidades como um tempo avançando vazio. Por outro lado ela não pode ser produzida, mas surge nas interfaces do sonho e do despertar (cf. Benjamin 2015c, 579s.). A sua relação com a história não é "puramente temporal, contínua", mas "dialéctica: não é progressão, mas imagem, repentina" (ibid., 577). Neste aspecto distingue-se dos reflexos. No seu ensaio sobre a "Tarefa do Tradutor", Benjamin já tinha assinalado que a relação entre original e tradução não podia ser representada de acordo com o esquema imagem-reflexo – analogamente à tarefa da crítica do conhecimento de "provar a impossibilidade de uma teoria do reflexo" (Benjamin 1991a, 12).

Embora Adorno pense na direcção de um materialismo sem imagem (Adorno 2003, 204ss.), as convergências com Benjamin não podem ser ignoradas. A crítica de Adorno à imagem inflama-se no pensamento como reflexo. Ele sublinha: "O pensamento não é um reflexo da coisa – somente uma mitologia materialista ao estilo de Epicuro o transforma em algo assim, uma mitologia que imagina que a matéria emite pequenas imagens [...]". Aqui aplica-se o seguinte: "Aquilo que se vincula à imagem permanece miticamente cativo, culto aos ídolos." (Adorno 2003, 205). Sem reconhecer que a dialéctica "está nas coisas, mas não seria nada sem a consciência que a reflecte", o conhecimento materialista "transforma-se em imediatidade dogmática" (ibid.).

A imagem dialéctica de Benjamin, no entanto, não é um reflexo, mas uma imagem que rompe o continuum da história e marca uma cesura no pensamento. Quanto esta cesura "escova a história a contrapelo" (Benjamin 2015a, 697) torna-se claro no deslocamento do conceito de "estado de excepção". Contra o "estado de excepção" que o curso da história representa, o que importa é "originar um verdadeiro estado de excepção" (ibid.). Este está no "sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos" (ibid., 703) como o "'agora' no qual se infiltraram estilhaços do messiânico" (ibid., 704). Onde há uma ruptura, uma "cesura no movimento do pensamento" (Benjamin 2015c, 595), pode abrir-se a "pequena porta" pela qual o Messias pode entrar. Seja qual for a interpretação que se faça da figura deslumbrante do Messias ou do messiânico, ela representa uma ruptura salvadora com o curso da história. "O Messias rompe com a história; o Messias não aparece no fim de um desenvolvimento" (Benjamin 2015b, 1243).

A constelação em que Benjamin e a crítica da dissociação-valor se encontram no "agora da reconhecibilidade" é a situação de crise catastrófica que se precipita num caminho de autodestruição. Aqui é importante resistir à tentação de recair em imediatidades materialistas (vulgares) – quer sob a forma de um recurso desesperado à classe, ao interesse, a agentes identificáveis, quer sob a insistência na urgência de uma prática imediata de transformações e alternativas (cf. Kurz 2021, 365ss.). Numa análise mais atenta, estas últimas revelam-se frequentemente pseudo-alternativas, que não podem cumprir a pretensão de ultrapassar o capitalismo porque não envolvem uma ruptura com as categorias capitalistas, mas permanecem em formas da sua constituição (cf. Meyer 2022). Criticar as supostas alternativas e enfatizar a necessidade de uma ruptura categorial não significa, evidentemente, renunciar a combater os constantes desaforos da administração da crise. Pelo contrário, isto torna-se tanto mais importante quanto mais a normalidade social é deslocada para o extremismo do centro.

As "recaídas" movem-se no quadro da metafísica real das relações, com o qual teria de se fazer uma ruptura. A "cesura no pensamento" inclui, antes de mais, a crítica do Deus cujo desenrolar dinâmico na história do capitalismo conduz ao "desespero" e à "destruição" – como "crítica da metafísica real terrena [...] e da sua constituição fetichista" (Kurz 2021, 434s.). Só assim se pode continuar a enfrentar "a exigência historicamente amadurecida de rebentar a ontologia capitalista" (Kurz, 2007, 23).

Ainda que a constelação actual favoreça uma recaída na imediatidade do pensamento e da acção – de proveniência burguesa ou materialista vulgar –, a destruição da história capitalista na crítica das suas categorias reais e o relampejar de "imagens dialécticas" também poderiam ser possíveis: Assim se poderiam abrir horizontes para uma prática emancipatória, que não reflectisse a imediatidade da existência quotidiana e a sua incorporação na constituição fetichista das relações, mas pelo contrário as "rebentasse" negando-as e "saltasse para além" delas.

 

Bibliografia

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Notas

(1) O Ministro-Presidente "de esquerda" Bodo Ramelow queria aparentemente assumir a liderança do movimento de militarização e apelou à reintrodução do serviço militar obrigatório.

(2) A palavra alemã Schuld significa tanto culpa como dívida (Nota do Tradutor).

(3) Benjamin fala de "elemento destrutivo" porque está preocupado em destruir o progresso, entendido como construtivo pelos seus protagonistas. Cf. Benjamin 1972.

(4) Na série organizada pela Rede Ecuménica e pela exit! "Alternativas ao Capitalismo – Em teste", Thomas Meyer analisou em particular as propostas que pretendem ser alternativas ao capitalismo e, neste contexto, reflectiu sobre a questão dos limites e possibilidades das alternativas. Ver, entre outros, Meyer 2022 para um resumo.

 

Original „Weltvernichtung als Selbstvernichtung – Was im Anschluss an Walter Benjamin ›zu denken‹ gibtin revista exit! nº 20, 2023, p. 159-207. Tradução de Boaventura Antunes (01/2025)

 

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