A repressão e o ressentimento racista contra os refugiados: Uma saída ilusória para a crise

 

Herbert Böttcher

 

Já chega...”

Após o atentado de Solingen, a 23 de Agosto de 2024, Friedrich Merz utilizou este slogan para exigir como acto reflexo uma política de deportação e de asilo mais rigorosa, sem qualquer pausa nem respeito pelos enlutados. Os criminosos devem ser deportados para o Afeganistão e a Síria. O facto de não existirem requisitos legais para o efeito – por boas razões – não desempenhou qualquer papel, nem muito menos o facto de isso exigir a cooperação com os regimes terroristas afegão e sírio. Merz consegue levar os outros partidos à sua frente à maneira populista. Numa competição para se superarem uns aos outros, os partidos democráticos estão a lutar pelo título de campeões nacionais na deportação de refugiados. São elogiados pela AfD por terem finalmente feito aquilo que a AfD sempre exigiu.

 

Tentações autoritárias”

Já em 2018 o estudo “Tentações Autoritárias” diagnosticou a “manifestação de uma ‘burguesia bruta’1 e constatou “que as atitudes autoritárias estão escondidas sob uma fina camada de maneiras civilizadas e gentis (’burguesas')…”2 São evidentes no desprezo pelos grupos fracos, na exigência de privilégios para os estabelecidos e na orientação para a “concorrência e responsabilidade pessoal”3. “As tentações autoritárias... devem ser interpretadas sobretudo como reacções à perda de controlo individual ou social. Criam uma procura de ofertas políticas destinadas a restaurar o controlo através do exercício do poder e da dominação, bem como através da marginalização e da discriminação ou da misantropia de grupo.”4

O terreno fértil para essas “tentações autoritárias” é a intensificação das experiências de crise. Estas vão desde a guerra e a destruição ambiental, o terror, a pobreza e a divisão social até ao declínio social. Perante tais experiências, o conselho neoliberal de que tudo correrá bem com trabalho árduo e auto-optimização permanente perde a sua plausibilidade. Surge a impressão de que tudo está a ficar “fora dos eixos” e fora de controlo. Atitudes autoritárias, identitárias e ressentidas ganham força e são combinadas com a ilusão de que isso pode reverter a perda de controlo e restaurar a normalidade ameaçada. São exigidas soluções “concretas” para problemas “concretos”. Estas são determinadas pela procura de estabilidade numa mistura de estratégias autoritárias-repressivas e identitárias. São marcadas fronteiras identitárias entre alemães e não-alemães, trabalhadores e parasitas, amigos e inimigos e, sempre que possível, são aplicadas de forma autoritária-repressiva.

 

Alemanha, mas normal” (AfD)

As relações capitalistas de produção e reprodução dissociada, de trabalho e preocupação com a vida, de produção e consumo, de tensão e lazer relaxante são assumidas como normais. Este entendimento de normalidade, que também se aplica aos defensores da democracia, é imposto para a direita com o que a AfD entende por “Alemanha, mas normal”. Trata-se sobretudo da identidade étnica e cultural. Inclui essencialmente a bissexualidade tradicional e a família burguesa, bem como uma visão dicotómica do mundo que diferencia claramente entre aqueles que pertencem e aqueles que devem permanecer fora. A “raça” é substituída pela identidade étnica e cultural como marcador de exclusão – ocasionalmente ocultada pelo discurso eufemístico de uma pluralidade de etnias. Mas mesmo isto não elimina a exclusão marcada pela identidade, porque cada grupo étnico deve permanecer ou ser “devolvido” ao lugar a que pertence. A política identitária de exclusão torna-se a base da “misantropia de grupo” (Wilhelm Heitmeyer). As estratégias de exclusão visam regressar a uma normalidade confusamente imaginada através da recuperação do controlo.

Uma “guerra cultural” de direita, segundo o lema “ninguém nos pode tirar a nossa germanidade”, substitui de certo modo a “luta de classes”. Os socialmente desfavorecidos, que se sentem respeitados e entendidos no seu desejo de normalidade alemã, ignoram o facto de também eles estarem a ser ainda mais marginalizados de acordo com as ideias de política económica da AfD. A Aliança Sahra Wagenknecht” (BSW) fecha este flanco sociopoliticamente aberto. Combina a questão das disparidades sociais e da marginalização social com uma orientação nacional alemã, segundo a qual a primeira prioridade tem de ser a justiça social para os alemães que foram deixados para trás. Com eles competem pessoas que têm de fugir por serem vítimas de todas as crises que destroem as bases da vida – seja a pobreza, as crises económicas, o colapso dos Estados, as guerras ou os processos de destruição ecológica.

 

Juntos contra os “supérfluos”

As actuais tentativas de restabelecer o controlo centram-se nos migrantes. Estes são estigmatizados como a “mãe de todos os problemas” (Seehofer). Tanto o centro democrático como as orientações identitárias alemãs de direita e de esquerda estão de acordo com este facto. Ao contrário dos inqualificáveis debates sobre asilo dos anos 90, que foram acompanhados de ataques a centros de acolhimento de refugiados, já nem sequer se fala em combater as causas da fuga. Na altura este discurso também não era levado a sério. No entanto foi obviamente utilizado para relativizar o chamado compromisso de asilo, referindo os problemas “reais” que levam as pessoas a fugir. Entretanto a visão tornou-se tão nacional e concretamente estreita que já nem sequer se vê a dinâmica global da destruição.

Mas o olhar estende-se para lá das fronteiras da Alemanha quando se trata de recrutar migrantes que são necessários para compensar a falta de mão de obra qualificada na produção e no comércio, bem como no sector dos cuidados de saúde. O capital humano estrangeiro é importante para que a Alemanha não fique ainda mais para trás na concorrência global. Assim o terror da deportação contra pessoas “inúteis” que nos exploram é combinado com a caça global a material humano valorizável que nos beneficia. A selecção dos “parasitas” supérfluos e dos “trabalhadores honestos”, mesmo entre os locais, faz parte de um consenso que é partilhado até ao “centro” democrático da sociedade. Esta seleção também se aplica internamente, embora em menor grau. À semelhança do debate sobre o asilo nos anos 90, a rejeição dos migrantes está hoje também ligada a cortes sociais para os nativos e à sua estigmatização como “avessos ao trabalho”.

 

A fetichização do trabalho como consenso social

O ódio aos migrantes que não trabalham e aos “nativos avessos ao trabalho” é uma expressão da fetichização do trabalho no capitalismo. O trabalho não é uma contradição com o capital, mas sim a sua substância, como fonte indispensável de valor e de mais-valia. Por isso, o trabalho não deve ser afirmado, mas sim criticado. Não é por acaso que a palavra de ordem “quem não trabalha não come” constitui um consenso social transversal a todas as classes sociais. O anticiganismo estrutural manifesta-se no ódio aos não-trabalhadores. O anti-semitismo estrutural é virulento na rejeição do “capital financeiro rapinante” em detrimento do capital criador, ou seja, numa crítica do capitalismo reduzida à esfera da circulação à la “Fechem o casino” (Attac). Ambas as ideias estão ligadas na fetichização do trabalho. Encontram-se na necessidade de concretizar irracionalmente as situações de crise em termos de indivíduos e grupos e da sua exclusão, bem como na ilusão de poder compensar a perda de controlo político e recuperar a capacidade de acção política através de medidas e ordens reguladoras e até autoritárias.

Esta última é uma ilusão delirante. Nem mesmo os governos autoritários conseguem recuperar os controlos perdidos. O limite que nem mesmo eles podem ultrapassar é o limite lógico e histórico da valorização do capital. Ele é estabelecido pelo facto de – por meio da concorrência – ser utilizado cada vez menos trabalho na produção de mercadorias como substância da produção de valor e de mais-valia, e isso já não poder ser compensado por mecanismos de compensação como a produção mais barata e a expansão dos mercados. No entanto, a capacidade de agir politicamente está ligada a uma acumulação de capital que funcione. Quanto mais esta se desmorona, mais claramente a capacidade de acção política e a capacidade jurídica, incluindo os direitos humanos, atingem os seus limites. A medida em que a capacidade jurídica está ligada à capacidade de valorizar o trabalho como “capital humano” está a ser drasticamente demonstrada na política de migração. A protecção da lei está aberta aos e às migrantes valorizáveis, enquanto aqueles que são supérfluos para a valorização do seu trabalho recebem direitos inferiores, se tiverem sorte, ou acabam sem direito a viver, entregues a regimes terroristas, fechados em campos ou afogados no Mediterrâneo, enquanto o salvamento no mar é criminalizado.

 

Liberdade, mas diferente

No contexto acima descrito, as políticas democráticas e as políticas repressivas-autocráticas estão a aproximar-se. Em termos de conteúdo, ambas as variantes são confusamente semelhantes, tanto mais quanto se trata de tentativas desesperadas de alargar as opções de controlo pós-democrático sobre a crise. Diferem sobretudo no nível formal de hostilidade ou respeito pelos processos e instituições democráticas. Este último aspecto não é de somenos importância e deve ser defendido contra as tentativas de minar a democracia. No entanto isso não deve obscurecer o facto de que há mais em jogo se se quiser evitar o colapso, nomeadamente a libertação da subjugação ao mortal e irracional fim-em-si da socialização capitalista, ou seja, de multiplicar o capital por amor de si mesmo. A liberdade consistiria em obter o controlo da reprodução da vida no quadro de uma “associação de pessoas livres”, em vez de viver ou morrer como um apêndice da máquina da valorização. “Sob o feitiço da tenaz irracionalidade do todo” (Theodor W. Adorno), isto pode parecer ilusório. Mas, para lá desse feitiço, nada é mais irrealista do que o suposto “pragmatismo sem ilusões” (Robert Kurz) com que a chamada Realpolitik se comprometeu perante a escalada da realidade mortífera da crise. Quanto mais isto continua, mais a catástrofe se acelera, em vez de – irritados com o sofrimento das pessoas e com uma visão crítica da totalidade social da socialização capitalista – o “curso dos acontecimentos” ser interrompido e quebrado. Então “a liberdade consistiria apenas no facto de as pessoas que se reunissem para reproduzir as suas vidas não só o fazerem voluntariamente, mas também deliberarem e decidirem em conjunto sobre o conteúdo, bem como sobre o modo de proceder. ... Tal liberdade, que seria exactamente o oposto da servidão universal liberal sob os ditames dos mercados de trabalho, é em princípio praticamente possível a todos os níveis e agregados da reprodução social – desde o agregado familiar até à rede transcontinental de produção” (Robert Kurz). [http://www.obeco-online.org/o_livro_negro_do_capitalismo_robert_kurz.pdf , p. 462].

 

Notas

1. Wilhelm Heitmeyer, Autoritäre Versuchungen, Berlim, 2018, 87.

2. Ibid, 310.

3. Ibid

4. Ibid. 84.

 

Original “Repression und rassistische Ressentiments gegen Fliehende: Ein wahnhafter Weg aus der Krise” in exit-online.org. Antes publicado em konkret 11/2024. Tradução de Boaventura Antunes

 

http://www.obeco-online.org/

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