Militarização, Cortes Sociais, Economia de Guerra... Guerra?

 

Herbert Böttcher

 

Em poucas semanas a Alemanha passou do travão do endividamento para um endividamento gigantesco. Assim se pretende tornar competitiva e pronta para a guerra a arruinada economia alemã. A necessidade da militarização parece tão plausível que nem sequer há um debate sobre cenários de ameaça minimamente realistas. Como «justificação» basta: «O russo está à porta» (Jens Spahn). Quem procura cépticos precisa de recorrer a Habermas. «Em vez de gritos de guerra agitando bandeiras... seria necessário reflectir realistamente sobre os riscos de uma guerra prolongada»,1 escreve ele, recordando o início do ataque da Rússia à Ucrânia. As igrejas estão mais uma vez a comportar-se de maneira bastante conformista. Deveriam apoiar a política,2 adverte um teólogo moral. Como se fosse preciso adverti-las. Da esquerda ouvem-se alertas contra orientações imperialistas: «Uma pretensão europeia de potência mundial seria um erro fatal».3

A questão guerra e capitalismo continua a ser ignorada. Contra a saudade de um «mundo perfeito» de normalidade capitalista, a crítica do capitalismo parece não surgir. No entanto ela seria mais necessária do que nunca – não porém como uma regressão, no âmbito de um «eterno retorno» de invocações da luta de classes ou de personalizações que, contrariamente às análises da dominação abstracta, insistem em que os dominantes podem ser identificados como actores centrais.4 «Um pensamento realista» teria de reconhecer que as crises não são imputáveis aos dominantes – nem à sua ganância, nem ao seu fracasso. Também não se trata de uma expansão imperial do poder nacional ou de blocos unidos, mas sim de um imperialismo de exclusão e de segurança. As «guerras de ordenamento mundial» (Robert Kurz)5 das últimas décadas foram uma reacção do imperialismo de segurança aos Estados em colapso devido à crise do capitalismo e à sua transição para uma situação de asselvajamento, na qual gangues, grupos terroristas e resquícios de actores estatais lutam por restos, nomeadamente pelo acesso a matérias-primas, instalações de produção ainda funcionais e mercados remanescentes. As «guerras de ordenamento mundial» pretendiam criar ordem e assim garantir o funcionamento do capitalismo global. Isso falhou redondamente, como atesta com eloquência a retirada caótica do Afeganistão. O imperialismo de exclusão tem como alvo os migrantes, que são vistos como uma ameaça aos mundos da prosperidade. Perante a necessidade de substituir por tecnologia o trabalho que gera valor e mais-valia, a normalidade capitalista da prosperidade também está a esbarrar nos limites da viabilidade financeira. A resposta da administração das crises é o corte de gastos sociais internamente e a repressão para proteger as fronteiras dos refugiados externamente. Isso corresponde à lógica capitalista de seleccionar as pessoas como material humano valorizável ou supérfluo.

Com o ataque da Rússia à Ucrânia a guerra regressa à Europa.6 Isto mostra que também as antigas grandes potências estão envolvidas nos processos de desintegração económica e política. O colapso da União Soviética e do seu império não foi o colapso de uma alternativa ao sistema, mas sim o colapso da variante estatista da produção de mercadorias.7 Após o fracasso da tentativa da Rússia de superar a crise com medidas neoliberais, sob Putin assistimos a uma viragem nacional-autoritária, com a qual se pretende recuperar o controlo face à desintegração. Já como vice-Presidente da Câmara e presidente do Comité de Relações Externas de São Petersburgo, Putin deixou claro aos representantes da economia alemã que considerava uma ditadura militar ao estilo chileno de Pinochet uma resposta adequada aos problemas da Rússia. A resposta foi um aplauso amigável dos representantes da economia alemã, bem como do cônsul-geral alemão presente.8 O autoritarismo de Putin só se tornou um problema no Ocidente quando a política económica nacionalista da Rússia entrou em conflito com os interesses ocidentais. Inicialmente os EUA conseguiram compensar a sua decadência económica através da sua força militar e do dólar a ela ligado como moeda mundial. A conjuntura económica pôde ser estabilizada através de circuitos de défice, que permitiram manter a dívida exorbitante no quadro de uma economia de bolhas financeiras. Novas crises financeiras recorrentes estão a sinalizar o fim dos circuitos de défice. A economia chinesa também está em crise, como deixa claro designadamente o descarrilamento do projecto hegemónico da Rota da Seda.9 A fase neoliberal, que compensava a crise de acumulação de capital com montanhas de dívidas globais e correspondentes bolhas especulativas, está a chegar ao fim.

No entanto nenhuma nova potência hegemónica pode emergir das crises, porque não está à vista nenhuma nova fase de acumulação de capital que possa servir de base para isso. Os EUA estão em declínio, mas nem mesmo a China está em condições de assumir o papel de nova potência hegemónica, como os EUA outrora. O declínio económico é acompanhado pela perda da capacidade de acção política, tanto interna como externamente. No entanto a luta pela dominação continua. Alianças de conveniência e inacções tácticas alternam-se cada vez mais rapidamente. As grandes potências também se encontram numa competição irracional pela auto-afirmação no meio da decadência.

A falta de perspectivas torna as suas acções mais autoritárias, imprevisíveis, irracionais e perigosas. Isso é acompanhado pela ausência de reflexão social sobre a totalidade das relações capitalistas e a sua crise. A falsa imediatidade, como seu reverso, reflecte-se na personalização. A obsessão de Putin pelo poder torna-se então o problema central. Desde Trump os processos de decadência económica e política dos EUA são projectados na loucura de um presidente narcisista que age de forma irracional. A Europa refugia-se no mundo ideal da democracia e alucina-se como um bastião da defesa da liberdade e dos direitos humanos. O que não se leva em conta é que se pretende na realidade defender a liberdade dos solventes, e isso não de forma «liberal», mas sim de forma cada vez mais autoritária, repressiva, carregada de ressentimento e irracional, à medida que os processos de crise ficam fora de controlo.

A militarização como resposta irracional e imediata não se limitará ao armamento. Também a frente interna tem de ser preparada para a guerra. É previsível que a dívida agrave as crises. Os processos de crise cada vez mais graves, que afectam sobretudo a ecologia e a segurança social, bem como a política como nível regulador, podem abrir caminho para algo semelhante a uma economia de guerra. No meio das incertezas crescentes das crises, também aumenta a pressão para garantir o acesso aos recursos e assegurar que seja possível pelo menos uma reprodução social-darwinista. O que resta pode ser uma mistura de regime autoritário e anomia – análoga ao que está a acontecer nas regiões em decadência do globo. Em tudo isso espreita o potencial da autodestruição irracional – talvez até acrescido na Europa, como expressão máxima da defesa da liberdade e da democracia – numa situação em que o objectivo irracional do capitalismo, que é acumular capital por amor de si mesmo, está a atingir limites absolutos.

O desafio central da esquerda consiste em libertar-se de uma realpolitik em que tendencialmente nada é real e tudo é ilusório. Ela teria de olhar para a sociedade como um todo, para a partir daí criticar os desaforos sociais, o ressentimento contra os migrantes e os mais fracos, bem como a ignorância, sobretudo em relação às crises ecológicas. Nesta perspetiva, seria necessário opor-se ofensivamente à militarização e à propaganda da capacidade bélica e contradizer decididamente aqueles que entoam hinos ao heroísmo militar e transformam a disposição para a morte heróica no mais alto «dever cívico», no âmbito de uma ética da responsabilidade. Agem com particular cinismo os ex-objectores de consciência que anunciam que, nas condições actuais, não recusariam o serviço militar. Tais modelos, que já não têm de temer uma ordem de marcha, enviam sem hesitação outros para a morte heróica. Só abordando a totalidade da socialização capitalista como dominação abstracta é possível reconhecer o perigoso e irracional potencial associado à militarização, e que a emancipação só é possível se se romper com a forma capitalista da sociedade e se, com base nisso, forem promovidos processos de transformação. O que implica em primeiro lugar uma pausa para reflectir, em vez de contínuos gritos de guerra.

 

1. Jürgen Habermas, Ein Appell für Europa (Um apelo pela Europa). Artigo publicado no Süddeutsche Zeitung, 21.3.2025.

2. Segundo o teólogo moral Jochen Sautermeister no Kölner Stadt-Anzeiger de 10.3.2025.

3. Jan von Aken, citado pelo Kölner Stadt-Anzeiger de 10.3.2025.

4. Cf. a este respeito, de forma banal: Yossi Bartal, Warum es richtig ist, Kapitalismuskritik zu personifizieren (Por que é correcto personificar a crítica do capitalismo), em: neues deutschland, 20.3.2025 (https://www.nd-aktuell.de/artikel/1189916.macht-von-multimilliardaeren-warum-es-richtig-ist-kapitalismuskritik-zu-personifizieren. html?sstr=Yossi|Bartal) e, de forma um pouco mais elaborada: Alex Demirovic, Macht der Mächtigen oder anonyme Herrschaft? Zur Konstitution des Ökonomischen (Poder dos poderosos ou dominação anónima? Sobre a constituição da economia), em: Jochen Bung et al. (eds.), Ökonomie als Gesellschaftstheorie, Baden-Baden 2024, 119-153.

5. Ver Weltordnungskrieg. Das Ende der Souveränität und die Wandlungen des Imperialismus im Zeitalter der Globalisierung, edição ampliada e revisada, Springe 2021. Trad port.: A Guerra de Ordenamento Mundial. O Fim da Soberania e as Metamorfoses do Imperialismo na Era da Globalização, online: http://obeco-online.org/a_guerra_de_ordenamento_mundial_robert_kurz.pdf

6. Pelo menos é essa a percepção pública. As guerras da Jugoslávia na década de 1990, em parte declaradas como missões de paz da NATO, são geralmente «ignoradas».

7. Ver Robert Kurz, Der Kollaps der Modernisierung. Vom Zusammenbruch des Kasernensozialismus zur Krise der Weltökonomie, Leipzig 1991. Trad. port.: O Colapso da Modernização. Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial, Paz e Terra, 1992. Online:  http://obeco-online.org/livro_colapsom.html

8. Ver https://www.rf-news.de/2022/kw09/1993-putin-nahm-sich-pinochet-als-vorbild; também disponível em spiegel.de: https://www.spiegel. de/geschichte/wladimir-putin-und-seine-fruehe-sympathie-fuer-diktatoren-und-monarchen-a-ab015f28-a87a-4a6d-ade5-447cf254afd3.

9. Cf. Tomasz Konicz, Mehrfachkrise statt Hegemonie. Wieso die staatskapitalistische Volksrepublik nicht in der Lage sein wird, die USA als Hegemonialmacht zu beerben , em: Netztelegramm. Informações da Rede Ecuménica Reno-Mosa-Sarre, outubro de 2022, 1-7, 1; também online: https://www.oekumenisches-netz.de/wp-content/uploads/2022/10/nt-2022-2-druckversion.pdf. Trad. port.. China: Múltiplas crises em vez de hegemonia. Por que a República Popular capitalista-estatal não herdará o poder hegemônico dos EUA, online: http://www.obeco-online.org/tomasz_konicz32.htm

 

 

Original “Militarisierung, Sozialabbau, Kriegswirtschaft … Krieg?” in exit-online.org (ligeiramente modificado e ampliado). Publicado originalmente em: micha.links 1/2025. Tradução de Boaventura Antunes

 

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