ISRAEL NA CRISE GLOBAL DO CAPITALISMO
Herbert Böttcher
Expansão da guerra contra o Hamas
O governo Netanyahu decidiu expandir a guerra contra o Hamas. Além da tomada da cidade de Gaza, os planos prevêem também a destruição do Hamas nos campos de refugiados da Faixa de Gaza. É de esperar que os combates pela cidade de Gaza se concentrem nos bairros de arranha-céus a oeste da cidade. Tanto na cidade como nos campos de refugiados, a população civil, instrumentalizada pelo Hamas como «escudo humano», está a ser cada vez mais envolvida nos combates. Em risco estão sobretudo as vidas dos reféns sequestrados pelo Hamas, que se presume estarem na cidade de Gaza. Com a expansão da guerra, aumentará o horror para a população, assim como o número de mortos.
Os planos para expandir a guerra são acompanhados por fortes críticas em Israel. Entre os críticos estão também governos europeus, incluindo o governo federal alemão, que pretende restringir o fornecimento de armas a Israel. Enquanto o apoio a Israel também se desmorona nos Estados da UE, Israel é alvo de críticas da opinião pública internacional, alimentadas pelo anti-semitismo que se manifesta a nível global e afecta directamente os judeus nas suas vidas. Mais ainda: «Desde 7 de Outubro de 2023, os judeus na Europa têm de reconhecer que o anti-semitismo está em alta e que os judeus estão a ser cada vez mais perseguidos. O balanço das últimas semanas: na Áustria, um casal foi expulso de um parque de campismo por falar hebraico; na Grécia, um navio de cruzeiro com turistas israelitas não pôde atracar devido a protestos violentos; em Itália, turistas israelitas foram expulsos de um restaurante; em Espanha, um grupo inteiro de judeus franceses foi retirado de um avião», escreve Benjamin Graumann, presidente da Comunidade Judaica de Frankfurt [1].
As críticas a Israel são legitimadas pelo sofrimento real e pela situação desesperada da população palestiniana. No debate sobre Israel e os palestinianos entram em conflito posicionamentos identitários [2]. Isso deve-se provavelmente à necessidade de um posicionamento claro em termos de conteúdo, bem como ao desejo de uma identificação clara da pertença a um grupo. Trata-se de estar moralmente do lado certo, pertencer aos espectros sociais correspondentes e, ao mesmo tempo, ser capaz de agir. Numa lógica de campo correspondente, parece impossível «solidariedade com Israel» e sensibilidade pelo sofrimento dos palestinianos. E, por último mas não menos importante: sob a pressão da necessidade de clareza, perdem-se de vista as contradições sociais e morais. Reflectir sobre elas, em vez de as ignorar de forma moralizante e identitária, seria um pré-requisito essencial para uma reflexão crítica sobre o horror associado ao ataque do Hamas com o objectivo de destruir Israel e as suas consequências bélicas para a população palestiniana.
A dupla natureza do Estado de Israel
Uma reflexão crítica deve, por um lado, levar em conta a dupla natureza de Israel como projecto de resgate para judeus perseguidos e ameaçados de extermínio, e nesse sentido como projecto contra o anti-semitismo, e, por outro lado, como Estado capitalista num contexto de crise global crescente e com as contradições e aporias destrutivas que isso acarreta. Contra as estratégias do Hamas que visam a destruição de Israel e o apoio que recebem de Estados do chamado Médio Oriente e do anti-semitismo que o acompanha em relação a Israel, é indispensável defender Israel nos conflitos actuais. Isso implica uma crítica do papel do Hamas. Ele não é um movimento de libertação, mas uma organização terrorista que visa a destruição de Israel. A sua estratégia inclui a encenação cínica e ameaçadora da barbárie contra Israel, a instrumentalização da sua própria população como refém na luta contra Israel, a opressão e a fome da sua própria população. A fome e a miséria em Gaza são mais uma vez atribuídas quase exclusivamente a Israel e ao seu actual governo.
Tudo isso acontece numa situação global marcada pelo declínio do capitalismo, na qual fica cada vez mais claro que também as antigas grandes potências estão envolvidas nos processos desse declínio. Por um lado, isso questiona as estratégias anti-imperialistas que funcionam segundo o esquema personalista da libertação dos oprimidos dos seus opressores e, nessa perspetiva, partem da luta dos palestinianos oprimidos contra Israel como potência imperial ou como representante do poder imperial-capitalista no chamado Médio Oriente. Ao mesmo tempo, o colapso da dominação capitalista está associado a processos de crise cada vez mais agudos, acompanhados por processos crescentes de barbarização, pensamento identitário e, acima de tudo, anti-semitismo crescente como forma de lidar com a crise. Tais processos, que puderam ser observados nos últimos anos em numerosos Estados em decadência, encontram cada vez mais expressão também a nível global nas acções das antigas grandes potências. Misturas de autoritarismo e militarização, política identitária e repressão determinam as acções dos actores políticos – impulsionadas e acompanhadas por uma «burguesia bruta» e uma fetichização da normalidade, que se pretende que seja protegida da decadência por meio de estratégias social-darwinistas. Na Alemanha o apoio à militarização e à aptidão para a guerra torna-se o teste decisivo da lealdade política. As repressões dirigem-se principalmente contra os migrantes, em última análise contra todos aqueles cuja força de trabalho é «supérflua» no processo de valorização capitalista, bem como contra aqueles que supostamente se esquivam à obrigação de trabalhar. São identificados como uma ameaça, enquanto as ameaças ecológicas reais e cada vez mais mortais para as pessoas são ignoradas, assim como os processos de divisão social. A escalada da violência destrutiva torna-se politicamente «aceitável», socialmente aceite e também executada em vários contextos sociais. Tudo isso está ligado à crise da valorização do trabalho e à crise da reprodução que a acompanha, à desintegração do trabalho e da família ou das relações sociais, que na concorrência se transformam numa luta bárbara e anómica de todos contra todos, na qual reina o «direito do mais forte».
Também Israel, como Estado capitalista, está sujeito a esses processos de crise e às aporias e contradições que os acompanham – e isso numa situação em que Israel, como «judeu» entre os Estados, é cada vez mais atacado pelo anti-semitismo, sem poder recorrer ao anti-semitismo como forma de lidar com a crise. Após a desintegração do Partido Trabalhista, também causada pela crise, estabeleceu-se em Israel um governo autoritário e fundamentalista de direita, que aposta na expansão da colonização de territórios palestinianos – na Cisjordânia – e protege os colonos de forma autoritária e repressiva. O governo Netanyahu minou o Estado de direito, desmantelou estruturas democráticas como a separação de poderes – apesar dos protestos de grande parte da população –, concedeu mais poder aos fundamentalistas de extrema direita, dividindo e fragmentando o país, de modo que hoje as pessoas estão a emigrar do país que pretende oferecer refúgio aos perseguidos. Processos que visam a repressão autoritária e a legitimação identitária têm a sua continuação numa guerra que levanta dúvidas sobre se ela se justifica como autodefesa contra a destruição ou se está mesmo associada a processos de política interna que ameaçam levar à autodestruição de Israel.
Os planos actuais do governo Netanyahu
As decisões do governo Netanyahu de expandir a guerra também enfrentam protestos em Israel. O ex-primeiro-ministro Olmert fala de uma «guerra [...] sem objectivos ou planeamento claro e sem perspectivas de sucesso» [3]. Com isso o governo Netanyahu alinha-se com a actuação irracional dos actores políticos na decadência do capitalismo. Ele está obviamente disposto a colocar em risco a vida dos reféns em bairros de arranha-céus da cidade de Gaza e em campos de refugiados por um objectivo indefinido e genérico como a destruição do Hamas, além de aceitar mais mortes e o agravamento da situação da população civil palestiniana. Numa declaração do gabinete de Netanyahu, o gabinete de segurança «aprovou cinco princípios para pôr fim à guerra [...]: a desmilitarização da Faixa de Gaza, o controlo militar da zona costeira por Israel e a criação de uma administração civil que não esteja subordinada nem ao Hamas nem à Autoridade Palestiniana (AP)» [4]. Ainda não está claro como esses objectivos serão alcançados estrategicamente e o que os princípios mencionados significam em termos de risco para a população civil, para os reféns e para o envio de soldados israelitas. É de temer que mais pessoas fujam. Os campos de refugiados já estão superlotados e as condições de higiene e saúde são desumanas. Com a invasão militar das áreas visadas, o risco para os reféns também aumenta.
O chefe do Estado-Maior do Exército israelita também alertou contra uma conquista total da Faixa de Gaza [5]. O objectivo legítimo de Israel de se defender contra a ameaça de destruição, sem mediação com a questão de objectivos e estratégias concretos e determináveis, bem como suas perspectivas de sucesso, corre o risco de se tornar uma legitimação no âmbito da qual todos os meios parecem a priori justificados, porque derivam directamente da necessidade de autodefesa. Os parceiros da coligação fundamentalista de extrema-direita exigem a conquista de todo o território e a expulsão de todos os palestinianos, enquanto os partidos da oposição rejeitam isso. Tais constelações e a recusa de uma discussão reflectida devido às posições identitárias do governo provavelmente continuarão a promover a divisão da sociedade israelita. Um projecto militar irracional e autoritário de ocupação de Gaza correria também o risco de consumir recursos urgentemente necessários para a coesão social e desgastar a própria sociedade. Em vez de considerar isso, parece que, sob a pressão de membros extremistas de direita do governo, além de uma possível ocupação de Gaza, há também planos para a construção de milhares de unidades habitacionais e a expansão de colonatos na Cisjordânia. Um lado dessa actuação irracional parece ser a megalomania nacional. Nesse contexto deve ser cada vez mais difícil reconhecer os limites da acção militar. Esses limites também devem ser marcados – como mostram as experiências das guerras de ordenamento mundial – pelo facto de que as forças armadas só podem ter sucesso parcial no combate às estratégias de guerrilha de grupos terroristas.
Crise global do capitalismo e anti-semitismo
O terrorismo contra Israel, que visa a sua destruição, assim como o foco das críticas em Israel, não podem ser separados da crise global do capitalismo nem do anti-semitismo que se intensifica globalmente no meio dessa crise. A teoria crítica na tradição de Horkheimer e Adorno insistiu que o capitalismo e o anti-semitismo estão interligados, na medida em que o anti-semitismo deve ser entendido como uma reação projectiva às crises e distorções associadas ao capitalismo. [6] Na crise global torna-se claro que o capitalismo atinge os seus limites lógicos e históricos imanentes. O trabalho «eliminado» sob a pressão da concorrência já não pode ser compensado – nem pela expansão dos mercados, nem pela acumulação fictícia nos mercados financeiros. Com a produção de mais-valia entra em colapso simultaneamente a reprodução que lhe está intrinsecamente ligada. Assim também as possibilidades de regulação estatal atingem os seus limites. Nos chamados Estados em colapso a estatalidade dissolve-se na luta entre gangues e mesmo as antigas grandes potências lutam, em plena crise, pela auto-afirmação global. Pretende-se que a sua fraqueza económica seja compensada pela militarização. O imperialismo torna-se um imperialismo de exclusão e delimitação, que não sinaliza força, mas fraqueza na decadência. Por meio do anti-semitismo todas as crises que as pessoas agora sofrem com a decadência do capitalismo podem ser projectadas sobre os supostos culpados. Assim, «os» judeus, que dominam o mundo como senhores do dinheiro e do espírito no âmbito de uma conspiração judaica imaginária, são responsabilizados pelas crises – seja num anti-semitismo manifesto e estrutural, que se expressa numa crítica ao capitalismo reduzida à crítica ao capital financeiro, seja em fantasias da conspiração e personalizações. No contexto da situação no chamado Médio Oriente, o Estado de Israel, como «judeu» entre os Estados, é colocado no banco dos réus e responsabilizado pela situação desoladora, especialmente pelo que os palestinianos têm de sofrer. Os ataques contra Israel oferecem aos activistas políticos, bem como à opinião pública mediática no capitalismo em decadência, a oportunidade de compensar a impotência e processar as crises projectivamente. Se o poder de Israel for quebrado – segundo o anseio que se alimenta do anti-semitismo redentor dos nazis –, os palestinianos poderão ser libertados e o mundo corrupto e socialmente dilacerado poderá tornar-se um mundo pacífico.
Quanto menos a crise do capitalismo pode ser superada ou mesmo apenas gerida pelos actores políticos, mais confusa se torna a oscilação entre as polaridades em colapso do mercado e do Estado, da economia e da política. Isso traduz-se em acções cada vez mais irracionais e contraditórias, que se amalgamam com alucinações anti-semitas – e, dependendo do contexto, também anticiganistas, racistas e sexistas.
Nesta situação, em que o objectivo irracional e compulsivo do capitalismo de multiplicar dinheiro/capital por amor de si mesmo ganha cada vez mais importância de forma cada vez mais desregulada, irreflectida e alucinada no meio da desintegração, torna-se cada vez mais difícil uma discussão reflectida sobre Israel, incluindo a crítica às forças nacionalistas de direita e fundamentalistas religiosas que determinam a política do governo. A suposta complexidade da situação «parece despertar um desejo de clareza e pertença». Nas posições tomadas, o foco está menos no objecto e mais «nos rituais de inclusão e exclusão que criam identidade e definem a pertença a um grupo» [7]. A reflexão crítica também é necessária em relação à situação em Israel, para que Israel, como projecto de resgate, não seja empurrado para o turbilhão de acções irracionais que visam a destruição dos inimigos e levam à autodestruição. Nessa reflexão isso deve ficar claro, em vez de colocar Israel no pelourinho como um vilão especial. Em Israel também se manifestam problemas análogos aos de outros Estados capitalistas em crise. A exclusão e a militarização, entre outras coisas, segundo o esquema amigo-inimigo, a estigmatização irracional dos «culpados», a personalização de relações complexas, o irracionalismo nas ações e na governação, a corrupção, o autoritarismo e a orientação para a direita, juntamente com perspetivas identitárias nacionais, unem todos os Estados capitalistas na crise – apesar de todas as diferenças graduais e socioculturais. Uma diferença grave em relação a Israel é que este país está ameaçado por um anti-semitismo que visa a sua destruição e a destruição de todos os judeus e não pode procurar alívio projectivo para a crise no anti-semitismo.
Campos controversos e contradições na discussão sobre Israel e a guerra de Gaza
• «Catástrofe humanitária» como genocídio...?
Discute-se sobre a situação humanitária na Faixa de Gaza. É indiscutível que a população civil sofre com os conflitos militares, bem como com a situação desastrosa do abastecimento. O que é controverso é a «questão da culpa». O governo de Israel aposta, com razão, na defesa contra o terrorismo bárbaro e cínico do Hamas e de outros grupos islâmicos que visam a destruição de Israel. Em Gaza, esse terrorismo também se manifesta como terrorismo contra a população palestiniana, que é usada como escudo humano para proteger os locais onde o Hamas se barricou. Os fundos internacionais destinados à população civil foram usados para a construção de bunkers [8]. A população palestiniana é transformada militarmente numa massa manobrável e explorada propagandisticamente contra Israel – obviamente com sucesso. O terror do Hamas é amplamente ignorado, com excepção de alguns distanciamentos obrigatórios. De acordo com pesquisas, a maioria dos alemães é a favor de mais pressão sobre Israel, enquanto nem sequer se questiona o papel do Hamas. Embora o Hamas exponha parte da população civil ao perigo, em vez de garantir a sua protecção, Israel é o foco das críticas nos media e nos movimentos sociais. Exige-se a libertação da Palestina sem criticar todas as repressões do Hamas, incluindo a opressão – por vezes assassina – das mulheres e das diversidades de género. Os mais diversos actores propagam uma solução de dois Estados como saída universal numa situação em que cada vez mais Estados se encontram em «queda livre» devido à queda da acumulação de capital.
Face ao terror exterminador do Hamas, Israel defende-se com uma guerra travada numa zona densamente povoada, que foi perfurada por túneis para proteger os combatentes do Hamas e na qual as instalações civis são instrumentalizadas para a guerra terrorista. O governo de Israel parece não estar disposto a reflectir sobre até onde deve ir a autodefesa e a eliminação do Hamas. A alucinação da direita leva a um «mais do mesmo!» irracional e destrutivo, que é derivado do direito à autodefesa de forma abstrata e em falsa imediatidade. Como já foi dito, não se vislumbra um objectivo estratégico que possa ser alcançado com a luta em Gaza. Isto é confirmado também por críticos israelitas, inclusive dentro do Estado e do exército. Em última análise, isso poderia abrir as portas para a realização de planos fundamentalistas de extrema direita para o despovoamento da região, o que por sua vez criaria espaço para colonatos. A intenção expressa por Netanyahu de forçar a emigração voluntária do maior número possível de residentes de Gaza aponta nessa direcção [9]. O ministro das Finanças de extrema-direita, Smotrich, afirmou que Gaza deve ser completamente destruída, a população concentrada em pequenas «zonas humanitárias» no sul e «motivada» a emigrar. O ministro da Defesa, Katz, sonha em construir uma «cidade humanitária» sobre as ruínas da cidade de Rafah, no sul de Gaza [10].
A fome e as doenças, especialmente doenças infecciosas causadas pela falta de higiene, estão a espalhar-se. Os acampamentos superlotados na praia e no centro fazem parte das zonas de evacuação em constante expansão, as chamadas zonas seguras, que nem sequer estão a salvo das bombas lançadas do ar. A responsabilidade pelo desastre é atribuída principalmente a Israel, e não ao terrorismo do Hamas. Discute-se se Israel ou o governo de Israel podem ser acusados de genocídio. Nesse contexto são utilizados conceitos para além da sua definição como termos de combate, ou definições comuns são redefinidas e adaptadas para o uso específico. Isso pode satisfazer a necessidade de descarregar a raiva, expressar indignação e talvez também transmitir a sensação de ser capaz de agir, apesar de toda a impotência. No meio de um debate emocionalizado, em que se luta confusamente com conceitos pouco claros, continua a ser necessário lutar por esclarecimentos conceptuais. Assim, convém recordar que o termo genocídio – segundo a definição do especialista em direito internacional Raphael Lemkin – implica «a intenção sistemática e duradoura de destruir uma comunidade étnica» [11]. Portanto o termo genocídio refere-se à destruição deliberada de um grupo étnico como tal. É exactamente isso que significa genocídio no seu sentido literal. Mas insistir em esclarecimentos conceptuais também não é, por si só, «inocente» ou «objectivo», pois pode servir ao propósito de relativizar uma situação catastrófica ou de declarar que ela não é «tão grave assim».
Com o objectivo de poder criticar Israel sem restrições e manter um «coração puro» em relação ao anti-semitismo, o partido «Die Linke» decidiu não se basear mais na definição de anti-semitismo da «International Holocaust Remembrance Alliance» (IHRA), mas sim na definição da «Jerusalem Declaration on Antisemitism» (JDA) [12]. Por decisão do congresso do partido, «Die Linke» instrumentaliza uma definição que pertence ao contexto de um discurso científico e tem uma função heurística. No contexto político, torna-se um marcador de identidade. Além disso, Wolter refere a problemática da reificação de tais definições e os seus limites: elas não podem fazer justiça aos processos e mudanças sociais no âmbito dos quais o anti-semitismo se articula [13].
• “Fome” como estratégia militar?
Um dos principais pontos de discórdia é a ajuda alimentar. Parece indiscutível que, desde o colapso do cessar-fogo em Março, menos ajuda humanitária urgente chega a Gaza. Além da disputa acirrada sobre estatísticas e as definições em que se baseiam, esta é uma situação desumana e escandalosa. Embora o Hamas seja o principal responsável pela situação desesperada da população, porque, por um lado, tal situação é consequência do seu ataque terrorista e, por outro, instrumentaliza a sua própria população para a sua luta pela destruição de Israel, Israel é confrontado com a acusação de querer matar de fome a população de Gaza e mandar atirar em pessoas que procuram ajuda. Philipp Peyman Engel enumera no Jüdische Allgemeine o que Israel possibilitou e realizou em termos de ajuda e critica o facto de isso não ser levado em consideração na «guerra de informações e imagens» [14]. Centenas de toneladas de ajuda humanitária apodreceram ao sol na fronteira com Gaza porque a ONU e outras organizações não as recolheram. Além disso, o Egipto fechou completamente a fronteira com Gaza e não permite a entrega de ajuda humanitária a Gaza.
Outro problema relacionado com a fome é que, na distribuição de alimentos e medicamentos anteriormente organizada sob a responsabilidade da ONU, a ajuda humanitária foi sequestrada pelo Hamas, desviada para alimentar os seus próprios combatentes ou vendida a preços exorbitantes para refinanciar a sua própria organização. Para neutralizar o Hamas e os seus colaboradores, foi criada a «Fundação Humanitária de Gaza!» (GHF). O seu objectivo é distribuir alimentos sem passar pelo Hamas. Durante a distribuição, ocorreram repetidamente cenas caóticas, que resultaram em mortes. Para o caos contribui o facto de o Hamas sabotar a distribuição através da GHF, a fim de impor a antiga prática de distribuição. Para isso, pressiona as pessoas que recorrem à ajuda da GHF. Nas lutas em torno dos centros de distribuição, o exército israelita feriu mortalmente pessoas com tiros num centro de distribuição. Nos meios de comunicação isso circula sob o título «Israelitas disparam contra pessoas que procuram ajuda». Mais próxima da verdade poderia estar a versão segundo a qual os soldados, numa situação caótica e que lhes parecia ameaçadora – comparável a outras situações militares –, dispararam tiros de aviso na direção de uma multidão [15]. Isso também é mais do que problemático e deve ser criticado, mas é algo diferente das explicações que sugerem que os militares israelitas atiram indiscriminadamente contra pessoas que procuram ajuda.
As situações são caóticas e difíceis de desvendar. Elas reflectem a anomia que também pode ser observada em outras regiões em decadência do sistema mundial global, mas que dificilmente recebe atenção dos media. As «atrocidades» são obviamente piores e mais escandalosas quando podem ser associadas aos judeus ou ao Estado judeu. É importante deixar claro que, nessas percepções e representações, é virulento o estereótipo anti-semita do duplo padrão. O problema surge quando isso é instrumentalizado para justificar de forma simplista as acções do exército israelita. Da mesma forma, as acções criticáveis do Hamas não podem ser utilizadas como justificação imediata das acções do exército israelita, nem isentar o governo de Israel da sua responsabilidade humanitária. Este tem a responsabilidade de melhorar a distribuição de alimentos e a ajuda humanitária, evitando vítimas civis.
Confusão política
Entretanto, por iniciativa do Reino Unido, os governos de 26 países exigiram o fim imediato da guerra em Gaza. Só os cínicos podem ignorar o impulso humanitário que ressoa em tal exigência. Ao mesmo tempo, é notável que exigências como cessar-fogo, retorno ao antigo sistema de distribuição de ajuda humanitária, respeito ao direito internacional, fim dos planos de reassentamento etc. sejam dirigidas principalmente a Israel. O Hamas, com os seus planos de destruição de Israel, a sua estratégia terrorista desumana em todos os níveis do conflito e a sua repressão contra a população palestiniana, permanece de fora. O governo federal alemão – que, de resto, não é conhecido por ser particularmente escrupuloso no que diz respeito ao fornecimento de armas a regimes terroristas ou à militarização – restringe o fornecimento de armas a Israel, independentemente da razão de Estado alemã. Em uníssono invoca-se o direito internacional. Também em anos anteriores o direito internacional já era tratado de forma bastante arbitrária. Lembremo-nos, por exemplo, da guerra da NATO na antiga Jugoslávia ou da guerra dos EUA no Iraque. Com a progressiva desintegração das estruturas hegemónicas e os conflitos associados entre as grandes potências, que competem cada vez mais acirradamente pelas suas bases económicas e lutam militarmente pela sua importância política – seja na guerra, seja através da militarização com o objectivo de se tornarem «aptas para a guerra» –, o direito internacional torna-se completamente obsoleto [16]. O mesmo se aplica à solução de dois Estados, repetidamente exigida por diferentes actores. O seu poder aparentemente mágico só pode ser desenvolvido enquanto não for desmistificado pela questão de saber de onde virão os recursos financeiros para a construção de um Estado no meio do colapso dos Estados, num capitalismo em fracasso nos seus limites lógicos e históricos.
Permanece totalmente sem resposta a questão de como Israel poderá sobreviver numa situação mundial cada vez mais anómica, face às ameaças e estratégias de extermínio que continuam a existir – e isto no contexto de uma situação de crise global que dá espaço à alucinação anti-semita, chegando mesmo à alucinação de um anti-semitismo redentor. O que leva os actores políticos a se posicionarem contra Israel, tanto no âmbito estatal como na sociedade civil, (quase) sem dizer uma palavra sobre os objectivos e estratégias do Hamas? Por que não há pressão sobre os apoiantes do Hamas, por exemplo, no Irão e no Catar? Por que o governo federal alemão não exige a libertação dos reféns do Hamas, embora haja cidadãos alemães entre eles? Diante do aumento dos conflitos globais, será que os actores políticos querem pelo menos tirar esse conflito da agenda? Será que eles podem se dar ao luxo de agir de forma ignorante em relação ao Hamas e às suas vítimas porque não conseguem ou não querem resistir à pressão pública mundial do anti-semitismo como forma de projecção da superação da crise? Acima de tudo, o presidente francês Macron parece ter cedido à pressão pós-colonial da opinião pública francesa ao reconhecer a Palestina. Talvez a ignorância em relação ao Hamas tenha a ver com o facto de Israel ainda ser considerado responsável, enquanto o Hamas parece estar para além do bem e do mal. Em última análise, o foco das críticas e exigências em Israel contribui para legitimar o Hamas e deslegitimar Israel. No fim das contas a estratégia do Hamas dá certo. No meio de uma tempestade de indignação anti-semita, ele indirectamente ganha razão. Seu terrorismo valeu a pena, pelo menos nos media, e é recompensado. Na opinião pública global, sua propaganda é bem recebida, tal como suas estratégias bárbaras são ignoradas.
E no final: aniquilação do mundo e autodestruição de Israel?
Robert Kurz deixou claro em seu livro “Weltordnungskrieg” (A Guerra de Ordenamento Mundial), publicado pela primeira vez em 2003, que “num clima mundial de concorrência de aniquilação mútua, de ameaça permanente da existência social e, ao mesmo tempo, de uma precária riqueza monetária especulativa que a qualquer momento se pode desvanecer, floresce uma vontade de aniquilação difusa, que actua para além de ‘situações de risco’ exteriores, e que é tão abstracta e tão vazia de conteúdo como a forma social que constitui a base do processo de valorização do capital» [17]. Entretanto o processo de crise já se arrasta há quase 25 anos. A crise do processo de valorização do capital agrava-se no contexto de todas as chamadas crises múltiplas. O motor da acumulação roda em falso, porque o trabalho como seu «combustível» está a esgotar-se cada vez mais. O vazio metafísico do processo de valorização torna-se realmente tangível historicamente. Mesmo no seu vazio, o processo de valorização do capital está sujeito à compulsão de se representar no mundo real sensível. Esta contradição não pode ser resolvida – a menos que se chegue a uma ultrapassagem emancipatória do capitalismo, na qual esta contradição se tornaria obsoleta. Mas,a continuar assim, o mundo sensível corre o risco de ser arrastado para o turbilhão da aniquilação.
Não é por acaso que, nos processos de crise actualmente agravados e multiplicados, também se espalham diversos temas relacionados com a morte: desde a morte heróica, sustentada pela disposição de dar a vida pela liberdade e pela democracia, passando pelos atentados suicidas glorificados como martírio, até à deslegitimação da existência humana em discussões malthusianas sobre política populacional e à deslegitimação fundamental da vida humana no antinatalismo. A morte não pode ser confinada a discussões, mas ocorre realmente no meio das crises e é executada principalmente contra os «supérfluos», nas tentativas desesperadas de gerir as crises do capitalismo e manter vivo o seu cadáver voraz, mesmo depois de morto.
A alucinação anti-semita como forma projectiva de superar crises acompanhou o capitalismo em todas as suas crises, até à exterminação dos judeus no nazismo. A crise actual, que se agrava dramaticamente, também é acompanhada por uma alucinação anti-semita dirigida contra todos os judeus e, não menos importante, contra Israel como Estado. Este Estado foi criado para proteger os judeus do anti-semitismo e do extermínio a longo prazo. É um projecto real para salvar judeus, mas não paira acima das relações capitalistas, sendo parte delas e estando envolvido na dinâmica de crise capitalista e no seu potencial de extermínio. Neste contexto, a defesa de Israel como projecto de salvação dos judeus tem algo de uma tentativa de salvar o globo e a vida das pessoas de serem entregues ao vazio do nada. Ao mesmo tempo, a política de extrema direita e fundamentalista em Israel revela potenciais que levam Israel à autodestruição. Se isso acontecesse, a autodestruição de Israel seria uma expressão da autodestruição do mundo no capitalismo – impulsionada pela alucinação anti-semita, que alucina a destruição de Israel como sendo a salvação do mundo.
[1] Benjamin Graumann, Die Juden sind allein in Europa [Os judeus estão sozinhos na Europa], em: FAZ de 18.8.25, https://www.faz.net/aktuell/politik/inland/antisemitismus-in-europa-juden-fuehlen-sich-bedroht-110642849.html.
[2] Cf. Udo Wolter, Moralischer Maximalismus [Maximalismo moral], em: Jungle World 26/2025, https://jungle.world/artikel/2025/29/kritik-des-antisemitismus-israel-solidaritaet-moralischer-maximalismus.
[3] Kölner Stadt-Anzeiger de 6.8.25.
[4] Cf. Kölner Stadt-Anzeiger de 9.8.25.
[5] Kölner Stadt-Anzeiger de 15.8.25.
[6] Cf. para mais detalhes Herbert Böttcher, Projektiver Antisemitismus, «rohe Bürgerlichkeit» und gesellschaftlicher Wahn [Anti-semitismo projectivo, “burguesia bruta” e alucinação social], em: exit! Krise und Kritik der Warengesellschaft, n.º 22, Springe 2025, 50-85.
[7] Udo Wolter, ver nota 2.
[8] Cf. Contantin Wißmann, Tragödie und Farce, em: Publik-Forum n.º 15/2025.
[9] Ainda em Maio, Netanyahu tinha feito da realocação uma condição para um cessar-fogo. Cf. Kölner Stadt-Anzeiger de 11.7.25.
[10] Cf. ibid.
[11] Paul James, Völkermord oder schlimmer? [Genocídio ou pior?] Em: Frankfurter Rundschau de 26.7.25, https://www.fr.de/politik/schlimmer-voelkermord-oder-93853337.html.
[12] Cf. Katharina König-Preuss: «Mir geht das Schwarz-Weiß-Denken auf die Nerven» [Estou farta do pensar a preto e branco], em: nd-aktuell.de de 25.7.25, https://www.nd-aktuell.de/artikel/1192760.israel-und-palaestina-koenig-preuss-mir-geht-das-schwarz-weiss-denken-auf-den-zeiger.html.
[13] Cf. Wolter, nota 2.
[14] Cf. Philipp Pexman Engel, Gaza. Israel und der Hunger [Gaza. Israel e a fome], em: Jüdische Allgemeine de 31.7.25.
[15] Cf. „Erschießen die Israelis Hilfesuchende?“ [«Os israelitas disparam contra quem procura ajuda?»], https://steady.page/de/u-m/posts/9c479899-67e1-47f9-aaef-d8e11b0ee1e7, 30.6.25.
[16] Cf. Herfried Münkler, Welt in Aufruhr [Mundo em tumulto], Reinbeck bei Hamburg 2023.
[17] Robert Kurz, Weltordnungskrieg. Das Ende der Souveränität und die Wandlungen des Imperialismus im Zeitalter der Globalisierung, Bad Honnef 2003, 69. . Trad. port.: A Guerra de Ordenamento Mundial. O Fim da Soberania e as Metamorfoses do Imperialismo na Era da Globalização, online: http://www.obeco-online.org/a_guerra_de_ordenamento_mundial_robert_kurz.pdf, p. 47
O original “Israel in der globalen Krise des Kapitalismus” faz parte do Netztelegram a publicar em Outubro 2025. Divulgado antecipadamente em oekumenisches-netz.de, 02.09.2025. Tradução de Boaventura Antunes (09/2025)