Johannes Vogele
O lado obscuro do capital
"Masculinidade" e "feminilidade" como pilares da modernidade
É frequentemente admitido por muitos críticos do capitalismo que este tende a eliminar todas as diferenças, sejam elas culturais, geracionais ou sexuais. A relação social mediada pela mercadoria não saberia fazer senão arcaísmos, que é o que representam para ela os costumes, as relações hierárquicas e as instituições estranhas à produção e circulação de mercadorias.
O patriarcado seria, para esses críticos, um resíduo pré-capitalista (como o racismo e o anti-semitismo) condenado a desaparecer porque inadaptado ao capitalismo plenamente desenvolvido. A prova disso seria o surgimento da business-woman, da mulher política, etc. Além disso – com a desagregação da família e a redistribuição de tarefas sexuais, a igualdade progressiva de homens e mulheres e a maior tolerância para com outras formas de relação de género para além da heterossexualidade forçada – parece que a questão da relação de género se anularia por si mesma. O capitalismo poderia, pois, existir sem a supremacia do macho branco, ocidental e heterossexual, supremacia que não constituiria o seu centro.
O marxismo tradicional, tal como o movimento operário e a esquerda em geral, nunca consideraram – pelo menos até à década de 1970 – que a relação de género fosse fundamental. Quando a levavam em consideração, a opressão das mulheres era para eles um derivado da opressão em geral – uma "contradição secundária", nas palavras do marxismo tradicional – que estava condenado a desaparecer com ela.
Outros, como certas correntes feministas, vêem o patriarcado como um sistema quase ontológico de exploração, de que o capitalismo seria apenas a mais recente adaptação.
Na Alemanha, Roswitha Scholz desenvolveu a partir da década de 1990 – primeiro na revista Krisis e hoje na revista Exit! – uma concepção do capitalismo como um sistema baseado fundamentalmente na relação social assimétrica entre os sexos. Sem pretender que as sociedades pré-capitalistas ou não capitalistas tenham conhecido (ou conheçam) relações igualitárias entre homens e mulheres, ela define o capitalismo como uma forma social determinada pela divisão sexual entre "masculino" e "feminino", o que ela chama de "dissociação-valor".
"Do ponto de vista teórico, a relação hierárquica entre os sexos deve ser examinada dentro dos limites da modernidade. Não podemos fazer projecções para sociedades não modernas. Isso não significa que a relação moderna entre os sexos não tenha tido uma génese, que também pode ser rastreada até à Grécia Antiga. Mas na modernidade, com a generalização da produção de mercadorias, ela assume em todo o caso uma qualidade completamente diferente. Perante o cenário do "trabalho abstracto que se torna um fim em si tautológico", a "banalidade do dinheiro expande-se" (Robert Kurz) e os domínios da produção e da reprodução são separados. O homem torna-se responsável pelo sector da produção e pela esfera pública em geral e a mulheres sobretudo pelo sector subvalorizado da reprodução " (1)
No presente artigo vou tentar apresentar uma visão geral desta teoria crítica, que não se entende como uma construção acabada, mas como um processo. Para lá das aproximações deste artigo, de que sou o único responsável, esta elaboração foi principalmente de Roswitha Scholz, de Robert Kurz e de alguns outros que se encontram hoje em torno da revista Exit! (2) na Alemanha.
Modernidade: o doloroso nascimento do sujeito masculino, branco e ocidental
A modernidade afirma ter libertado o indivíduo das cangas da família, do clã, da religião e da dependência directa, tendo-o colocado no terreno da liberdade e da igualdade. De algum modo, ainda se orgulha de o ter criado a partir de um ser submetido a uma existência limitada e supersticiosa, perdido no anonimato da manada humana.
Esta afirmação é, naturalmente, de natureza ideológica e apologética, pois todas as sociedades humanas conheceram formas de individualidade, mesmo muito diferentes; na verdade a tensão entre indivíduo e sociedade a esta luz é uma constante de toda a humanização. Pelo contrário, a sociedade das mercadorias criou efectivamente para si um indivíduo que lhe corresponde, o indivíduo abstracto, atomizado, prensado numa forma a priori.
Desviando a famosa declaração de Karl Marx que dizia que toda a história da humanidade teria sido a história da "luta de classes", poderia dizer-se que ela foi uma "história de relações fetichistas", onde os seres humanos objectivaram, em planos sempre novos, a sua própria força, para se lhe submeterem. Em vez da "primeira natureza" feita de instintos imediatos, teria sido instaurada uma "segunda natureza", substituindo os instintos herdados da natureza por reflexos sociais. Sociedades, culturas e religiões nunca foram experimentadas como escolhas, mas sempre como constrangimentos quase naturais.
A modernidade, longe de abolir esta relação fetichista, intensificou-a de forma inaudita. Sem querer fazer aqui uma história do capitalismo, lembre-se que para a "crítica do valor" é esta relação fetichista que está no cerne da sociedade capitalista e não a "dominação de classe". No capitalismo, todos os membros da sociedade são dominados por um mecanismo autonomizado: a valorização do valor. Trata-se do aumento sem fim do capital através do processo de produção, isto é, do trabalho. Este é uma invenção puramente moderna e capitalista. Longe de representar a actividade (produtiva) em geral, o trabalho é a actividade alienada dos homens produtores de mercadorias. Ele distingue-se pela absoluta indiferença face ao conteúdo sensível da sua produção.
"Na verdade, todo o trabalho na sociedade capitalista é o que podemos chamar trabalho abstracto, no sentido de Karl Marx. Não se trata de trabalho imaterial, informático. No primeiro capítulo de O Capital, que não começa com as classes, nem com a luta de classes, nem com a propriedade dos meios de produção, nem com o proletariado, Karl Marx começa por analisar as categorias que são, segundo ele, as mais fundamentais da sociedade capitalista e que pertencem apenas a ela: a mercadoria, o valor, o dinheiro e o trabalho abstracto. Para Karl Marx, todo o trabalho num sistema capitalista tem dois lados, ele é simultaneamente trabalho abstracto e trabalho concreto. Não são dois tipos diferentes de trabalho, mas as duas faces de uma mesma actividade. Para dar alguns exemplos muito simples: o trabalho do carpinteiro e o do alfaiate são, no aspecto concreto, actividades muito diferentes, não podemos compará-los, porque um usa tecido, outro usa madeira. Mas ambos são "dispêndio de músculo, nervo ou cérebro." [...] Se qualquer actividade pode ser naturalmente reduzida a um simples dispêndio de energia é um simples dispêndio que se desenrola no tempo. Nesta perspectiva, o trabalho do carpinteiro e o do alfaiate são completamente diferentes do lado concreto, mas do lado abstracto – o lado da energia despendida – eles são absolutamente iguais e a única diferença reside na sua duração e, portanto, na sua quantidade. [...] O que define o valor das mercadorias no mercado capitalista é o trabalho despendido. É por ser igual para todas as mercadorias que o trabalho permite a comparação destas. Em termos simplificados, a lógica básica de Karl Marx é esta: o valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho necessário para criar essa mercadoria, o que permite a abstracção do lado concreto da mercadoria: uma mesa vale duas horas, uma camisa vale uma hora..." (3).
O valor representa-se no dinheiro, que é a sua forma de aparição. O valor não é uma medida aplicada num segundo tempo aos bens já produzidos, a fim de poder trocá-los; ele constitui, pelo contrário, o verdadeiro motor da produção de mercadorias. Ele constitui o capital que, através do trabalho, torna-se uma maior quantidade de capital. Esse movimento autónomo do valor constitui o "sujeito automático" (4), o soberano absoluto ao qual todos os indivíduos da sociedade moderna estão sujeitos. "Ele não o sabem, mas fazem-no..." dizia Karl Marx dos homens que vivem numa sociedade fetichista.
Aqui temos de clarificar rapidamente um equívoco, que consiste em pensar o capitalismo como um simples sistema económico, para enfatizar que se trata de uma relação social. A política (o Estado), assim como outras instituições modernas (ciência, direito, etc.), não lhe são estranhas, mas fazem parte do seu universo. "A unidade na separação" divide funções aparentemente contrárias em esferas que se apresentam separadas, mas que não representam senão as duas faces da mesma coisa. Política e economia, Estado e mercado, o poder e dinheiro, planificação e concorrência, trabalho e capital, teoria e prática constituem um sistema de polaridades dinâmicas: "Não se trata de polaridades estáveis e complementares, como as que existem, por exemplo, nas formas míticas das culturas pré-modernas, mas de polaridades inimigas até ao sangue, conduzindo a uma luta permanente de destruição, quando não formam senão os dois lados da mesma identidade" (5).
Este sistema fetichista produziu uma forma da individualidade que já não se baseia na submissão directa que caracterizava os sistemas de dominação pessoal, mas na internalização das coacções pelos indivíduos. Liberdade e igualdade são princípios abstractos e antes de aí aceder o sujeito deve passar por um sistema de selecção e reconhecimento. Os procedimentos de reconhecimento, obrigatórios para os imigrantes e para os que procuram asilo, são apenas um exemplo evidente. "A alusão à rampa de selecção de Auschwitz não é de má fé, mas toca o coração do problema. Auschwitz foi o último extremo dos "procedimentos de reconhecimento" dos direitos humanos ocidentais" (6). O universalismo ocidental (sic) é um universalismo exclusivo que requer primeiro a solvabilidade e depois a internalização dos imperativos modernos. Estes imperativos são principalmente os do confronto permanente na guerra económica e os da dupla identidade como homo œconomicus e homo politicus.
A forma do valor, como "abstracção real" (7), é indiferente ao seu conteúdo, e também a forma do indivíduo moderno, do sujeito, está separada do mundo dos objectos, dos quais faz parte o indivíduo real. O sujeito confronta-se com o mundo dos objectos inertes, que ele examina e transforma à sua própria maneira, equipado com a sua razão e o seu "livre arbítrio". A consciência, a razão e este famoso livre arbítrio não podem ter o próprio sujeito em seu campo de visão. A própria forma da consciência permanece inconsciente. A modernidade produtora de mercadorias levou esta separação entre sujeito e objecto, que constitui o fetichismo, até ao paroxismo, e justamente no próprio corpo dos indivíduos: por um lado, há o sujeito, como forma abstracta daquele que age e pensa e, por outro, há o objecto inerte, oferecido ao estudo e à valorização. Este dualismo deve ser entendido como constitutivo do "patriarcado produtor de mercadorias” (Roswitha Scholz) e a sua abolição não é uma das "promessas não cumpridas" da modernidade, pelo contrário, ele deve ser atacado como o próprio fundamento desta forma social, que densificou e sistematizou a submissão do ser humano e o fetichismo. O que fora opressão pessoal tornou-se "servidão voluntária" dos homens e o pior adestramento da história humana conseguiu a proeza de ser chamado de liberdade.
"A humanidade teve que se submeter a terríveis provações até que se formasse o eu, o carácter idêntico, determinado e viril do homem, e toda infância ainda é de certa forma a repetição disso" (8).
Mas os indivíduos reais que encontramos todos os dias, como nós, nunca realmente se encaixam nessa definição da forma de sujeito, à qual eles se submetem durante um longo e doloroso processo de socialização e de interiorização.
Há uma tensão entre o modelo e a cópia particular, entre a essência e a aparência, tensão que se trata de compreender hoje sem pretender encontrar soluções simples, seja do lado dum monismo ou determinismo absoluto, seja do lado dum relativismo absoluto. Pois se uma teoria totalizante não pode senão descartar o que é diferente, não idêntico, isto é, o que lhe escapa e não pode ser apreendido pelas suas categorias, o pensamento pós-moderno, que conhece apenas particularidades, renuncia à partida a toda a possibilidade real de crítica e acaba por criar uma "ontologia da diferença".
Dissociação-valor, uma totalidade quebrada
O processo de formação do capitalismo (9) é intrinsecamente o processo da dissociação sexual. Enquanto a máquina de valorização do capital e suas categorias se formam, as actividades de reprodução doméstica, assim como os sentimentos, traços de carácter e atitudes com ela relacionadas (por exemplo, sensualidade, emotividade, solicitude) são estruturalmente dissociados do valor, do trabalho abstracto, do sujeito e são projectados na "feminilidade". "As actividades de reprodução atribuídas às mulheres, tanto pelo seu conteúdo qualitativo como pela sua forma, têm um carácter diferente do trabalho abstracto. É por isso que não podem ser simplesmente subsumidas no conceito de trabalho" (10).
Para adoptar a forma de sujeito, o indivíduo masculino foi obrigado (e continua a sê-lo sempre, em cada geração) a passar pelo leito de Procrusto da dissociação e da repressão. O sujeito da racionalidade instrumental, de "liberdade, igualdade, fraternidade" abstractas, deve ser amputado de tudo o que não corresponda a esses imperativos. O menino em vias de assujeitamento deve, através do processo de Édipo freudiano, desidentificar-se da mãe para se tornar homem, enquanto a menina, para desenvolver uma identidade feminina e estar pronta a tomar o seu lugar – subordinado – passa pelo processo inverso de identificação com a mãe.
O sujeito, estruturalmente masculino, branco e ocidental, para atender às necessidades da concorrência e da guerra de todos contra todos, deve dissociar os traços de carácter e os sentimentos não correspondentes à racionalidade abstracta e classificados como fracos, irracionais, etc. De seguida, estes são relegados à "feminilidade", à esfera privada da família, à " mulher".
É importante salientar que estes traços de carácter e estes sentimentos dissociados não representam uma natureza “verdadeira” ou “boa”, susceptível de ser oposta ao monstro frio, mas são construções culturais: eles constituem a "feminilidade" moderna, o reverso da "masculinidade". São constitutivos da totalidade negativa do patriarcado produtor de mercadorias e não representam o que lhe escapa ou um ponto de apoio arquimediano através do qual seria possível levantar o mundo da mercadoria. Não é pelo facto de ser oprimida e desclassificada que a "feminilidade" pode ser o ponto de apoio ou princípio positivo de uma revolução social; esta não é concebível senão como a eliminação simultânea das duas cangas que são a "masculinidade" e a "feminilidade".
Historicamente, a introdução desta separação foi de par com o ódio ao aspecto "irracional" dos conhecimentos populares pré-capitalistas. A Inquisição e a caça às bruxas são certamente o primeiro grande acto violento contra a "natureza", para erradicar o que era designado como irracional. Elas atingiram o paroxismo num ódio (e medo) à mulher que foi designada como sua versão demoníaca, e de que a "mulher moderna" deveria tornar-se a versão domesticada. O amor e a admiração do feminino, como por exemplo da mãe idealizada, são apenas a expressão invertida disso, tal como o culto do "bom selvagem" é apenas um racismo invertido.
Na modernidade, o ser humano está repartido entre uma esfera pública, caracterizada pela confrontação permanente entre os concorrentes, e uma esfera privada, doméstica e limitada que "reproduz", cuida, repara, e fornece o repouso do "guerreiro". O macho é chamado a ocupar-se da comunidade, do universal, do abstracto, e a mulher do particular e do sensível. Nos domínios estruturalmente masculinos da ciência, da economia e da política prevalece um pensamento de classificação que não pode ter em consideração a qualidade particular; a preocupação com esta é relegada para o "privado", ou mesmo para a "natureza" e não acede às honras da Razão.
"Na ordem simbólica do patriarcado produtor de mercadorias, a política e a economia estão atribuídas ao homem; a sexualidade masculina, por exemplo, é definida como individualista, agressiva, violenta; as mulheres, pelo contrário, são definidas como objectos, ou mesmo simples corpos. O homem é assim visto como ser humano, como pessoa de espírito, que domina e submete o corpo; a mulher, pelo contrário, como não humana, como corpo. A guerra tem conotação masculina; as mulheres, inversamente, são tidas como disponíveis para a paz, passivas, sem vontade, estúpidas. Os homens devem aspirar à fama, à coragem, às ‘obras imortais’.
A questão fulcral é sempre a dominação da morte. Às mulheres cabem os cuidados tanto com os indivíduos como com a humanidade. Os seus actos são sempre socialmente desvalorizados e esquecidos na elaboração teórica, pelo que no processo de sexualização da mulher fica decidida a sua subordinação ao homem e está inscrita a sua marginalização social. O homem é pensado como herói e como trabalhador. Isso implica a exploração e a dominação produtivas da natureza. O homem está constantemente em concorrência com os outros” (11).
Enquanto na esfera pública reina uma "economia de tempo", na esfera privada prevalece a "lógica de esbanjar tempo". Afecto, amor, educação das crianças etc. nunca podem ser racionalizados como o processo de produção e valorização, porque aí subsiste sempre uma prioridade ao sensível que na economia, pelo contrário, é reduzida ao mínimo
Certas correntes feministas reivindicaram durante muito tempo o reconhecimento do trabalho das donas de casa como "verdadeiro trabalho". Mas, pela sua natureza, essas actividades estão em contradição com a natureza do trabalho na produção de mercadorias. Esta reivindicação não pode senão falhar perante a diferença fundamental entre estas actividades, que no entanto se condicionam e são mutuamente necessárias. Além disso, convém notar que falta aqui uma noção crítica de trabalho. Este (como trabalho abstracto e concreto) não pode deixar-se ir na "lógica de esbanjar tempo". Sob pena de desclassificação imediata, ele exige uma certa força (física ou de carácter) – "Nada de sentimentalismos!" – adaptada ao processo produtivo e ao cálculo racional. A actividade doméstica nunca é possível na lógica da "economia de tempo", ela pede doçura, compreensão e não pode ser organizada exclusivamente com base em imperativos racionais ou económicos – nem, de resto, de acordo com os princípios abstractos da política.
O outro lado do valor e do seu mundo, que é dissociado e projectado na feminilidade, não pode continuar a ser considerado um derivado – um subproduto – da relação de valor e das suas categorias. Impõe-se, portanto, um novo conceito da sociedade moderna para poder explicá-la na sua “totalidade quebrada”. O homem, preso em sua forma de sujeito, não é concebível sem esta parte separada, que é criada com ele, que o produz, o reproduz e é reproduzida por ele e está encarnada na mulher. A "feminilidade" não é um subproduto da "masculinidade", mas ambas se condicionam e determinam reciprocamente. O reino absoluto do valor, como abstracção, não é possível e ele precisa sempre do seu contrário, desprezado, mas necessário, que constitui a sua face escondida, o seu lado obscuro.
"Em vez disso trata-se de, num plano muito mais fundamental, ver a dissociação-valor como princípio formal, no sentido de essência social que estrutura fundamentalmente a sociedade como um todo, e como tal tem de ser criticado e posto em causa nos seus próprios fundamentos." (12)
Mas este princípio formal indica, por conseguinte, a unidade fundamental da forma com o seu contrário, com o que não está na forma, mas que não deixa de lhe ser essencial. Roswitha Scholz fala do paradoxo da forma da não-forma. Essa "necessidade vergonhosa" pode ser entendida como a razão do ódio e do desprezo que pode mobilizar a "razão instrumental" contra o feminino e tudo o que lhe está associado e, claro, concretamente contra aquela que é a sua portadora. O universo masculino, económico, político, e científico tende, evidentemente, à dominação absoluta, e não sabe que fazer com o que está fora dele. No entanto, a sua realização completa seria imediatamente idêntica ao nada. Se a "abstracção real" se tornasse a única realidade ocorreria uma "realidade abstracta". Esta dependência do seu contrário e da vergonha que ele inspira, que facilmente se transforma em desprezo e ódio, articula-se em actos violentos contra mulheres reais, sob a forma de assédio, violência doméstica, violação etc., e condiciona também a identidade feminina na submissão, na passividade, na sensibilidade etc.
"Esta relação entre esfera privada e esfera pública explica também a existência de ‘associações masculinas’ fundadas no ressentimento contra o ‘feminino’. Também o Estado e a política no seu conjunto são constituídos desde o século XVIII à maneira de ‘associações masculinas’, através dos princípios de ‘liberdade, igualdade, fraternidade’” (13).
Assim entendido, o sexismo, longe de ser um reflexo arcaico contrário à civilização, pode ser definido, nas suas múltiplas formas de aparência, como consubstancial ao modo de vida e ao psiquismo modernos.
É a constituição dupla deste modelo de civilização, com, por um lado, o reino da racionalidade da mercadoria e das suas categorias como "masculinidade" e, por outro, o lado obscuro e "envergonhado" da feminilidade que Roswitha Scholz designou como a "dissociação-valor". O que é importante para entender este conceito é que ele é analisado justamente como princípio formal, como essência da relação social moderna, que não existe “em si”, mas deve aparecer sob aspectos históricos sempre novos, os quais por sua vez transformam este princípio continuamente. Ele não existe como verdade a priori, mas já sempre como construção social.
A crítica da dissociação-valor refere-se à concepção da dialéctica entre o indivíduo e a sociedade proposta por Adorno. "Em Theodor W. Adorno, a sociedade é definida como uma relação de coerção que se estabelece nas costas, mas também através das cabeças e dos corpos dos indivíduos. Isto significa que a sociedade não é um conglomerado de todas as pessoas que vivem no seu seio, nem qualquer coisa que lhes seja simplesmente exterior. Assim, a sociedade atravessa todas as esferas da vida do indivíduo. Cada indivíduo é determinado pelas leis objectivas do movimento da sociedade em que ele infelizmente se encontra. Os indivíduos reproduzem essas leis, assim as alterando. Porque criam algo de que eles mesmos não sabem nada, o contexto global tem de permanecer-lhes velado. Mas eles não o fazem senão em pequenos segmentos, enquanto o processo global se torna independente deles, para de seguida se executar sobre eles" (14). Roswitha Scholz define três níveis de análise:
1) O nível “meta”, que designa a dissociação-valor como essência da sociedade moderna, ou seja, do patriarcado mercantil.
2) O nível “meso” (meio), composto de diferentes culturas, grupos sociais, géneros, etc., atravessados pela dissociação-valor, sem nunca a reproduzir da mesma maneira. É importante considerar estas diferenças para evitar o determinismo que faz decorrer todos os fenómenos e todas as diferenças de um único princípio, o qual, no resultado final, não poderia ser compreendido senão como um dado ontológico, metafísico ou divino.
3) Finalmente, o nível micro, do indivíduo, com a sua constituição peculiar, que nunca se conforma completamente às exigências e imperativos do princípio formal da dissociação-valor nem aos da sua pertença social, cultural ou sexual.
Estes três níveis devem ser considerados cada um na sua diferença e na sua relação de dependência. Eles produzem-se e reproduzem-se continuamente uns aos outros em novos planos históricos. A dissociação-valor é concebida à partida como produto de uma certa relação social – na verdade, ela não tem nada da "natural". Os grupos sociais e culturais, assim como os géneros, são atravessados por esta "totalidade quebrada", dando-lhe corpo de maneiras diversas, mas também contraditórias. Os indivíduos nascidos nesta constelação adoptam a forma prevista para a sua existência, mas sem nunca se conformarem totalmente com ela. É também por isso que a dissociação-valor não coincide com a divisão entre as esferas pública e privada, como veremos mais abaixo, mas participa historicamente na sua criação e dissolução.
A dissociação sexual atravessa, portanto, a sociedade no seu conjunto e a todos os níveis, mesmo não o fazendo de modo petrificado. É muito mais do que uma organização social, afectando também os níveis psicossociais, simbólicos e culturais, até à constituição psíquica dos indivíduos.
O conceito de dissociação-valor não representa, nestas transformações, a totalidade conceptual da qual os fenómenos seriam apenas uma encarnação, mas representa, pelo contrário, uma conceptualização da totalidade – uma conceptualização que aceita à partida os seus limites. Ao incorporar o facto de que o conceito faz abstracção por natureza, o crítica da dissociação-valor quer pensar essas diferenças, sabendo que a abordagem conceptual por si não é suficiente.
Hoje, quando o modelo da civilização moderna está em crise e se desconjunta nos seus diferentes planos, tanto no individual, como no da pertença identitária, económica, política e ideológica, o meta-nível da dissociação-valor passa novamente por transformações importantes.
Pós-modernidade: Decomposição sem abolição
O patriarcado moderno é uma forma social instável. Ele transforma-se sem cessar, transformando o mundo. É impossível compreendê-lo com conceitos petrificados que simplesmente nunca dão conta desta "natureza" em movimento do "progresso" capitalista.
"Uma inovação fundamental no sentido da crítica da dissociação-valor estaria a este respeito na tradição da Escola de Frankfurt que, como teoria dialéctica, per se parte do ponto de vista de que a teoria também deve mudar quando as relações sociais se transformam; a "teoria crítica" tem portanto sempre um "núcleo temporal" (mesmo no interior da história patriarcal-capitalista), como se diz por exemplo na Dialética do Esclarecimento" (15) (16).
Hoje, no tempo da pós-modernidade, pode não só observar-se o declínio da família tradicional e dos papéis atribuídos aos dois sexos, mas também ver diluir-se a separação entre "esfera pública" e "esfera privada".
Aqui, não estão em questão apenas as sociedades ocidentais: no processo de globalização, das destabilizações que provoca e da flexibilidade que exige, criam-se por todo o mundo cenários de crise que, obviamente, se apresentam de muitas maneiras. Maiores movimentos de migração, por exemplo, estão associados a mudanças significativas nas estruturas familiares e nos papéis atribuídos a cada um dos sexos nos países de emigração.
Tanto em África, como na Ásia, na América Latina ou na Europa se pode observar uma gradual "dupla socialização" das mulheres, cada vez mais responsáveis tanto pela (sobre)vivência no lar como pelos recursos financeiros. Escusado será dizer que esta "dupla socialização" se apresenta, segundo os países e regiões, de maneiras muito diferentes e até mesmo opostas. Nos países industrializados e democratizados, por exemplo, podem observar-se "duplas socializações" de luxo e outras de miséria. E é também aqui que devemos levar em conta as diferenças culturais e históricas e não classificá-las muito esquematicamente em metacategorias. A história da colonização, por exemplo em África, teve certamente consequências particulares a nível social, comunitário e individual, que não são a mera repetição da história europeia. A rapidez da integração no mundo capitalista-patriarcal certamente depende da profundidade da assimilação e da hibridação com formas de socialização anteriores. E se tivermos presente que a forma moderna de sujeito é substancialmente masculina, branca e ocidental, a integração desta forma por africanos deve produzir formas específicas de recalcamento, já notadas por Frantz Fanon, em seu livro Peau noir, masques blanches [Pele negra, máscaras brancas]. A mulher africana, por sua vez, sofre certamente uma "dupla dissociação". As consequências do racismo, da escravidão e da colonização não podem ser metidas à força em grelhas de interpretação gerais, mas devem ser vistas na sua particularidade e na sua dinâmica próprias – sem por essa razão as "dissociar" de uma teorização geral. Uma teoria crítica eurocentrista simplesmente prolonga os erros e horrores que são alvo da sua crítica, nada menos que uma visão que apenas conhece diferenças e relativizações.
O mesmo se passa com uma explicação materialista e utilitarista do anti-semitismo que não consegue apreender o irracionalismo consubstancial ao racionalismo ocidental e a estas consequências. A história do Holocausto, como sabemos, não pode ser analisada apenas com as ferramentas da crítica da economia política, embora ele pertença fundamentalmente à história do capitalismo.
Ao compreender a história capitalista como um desdobramento lógico, quase planificado, passa-se forçosamente ao lado do essencial. Vou avançar aqui a ideia de que essa história é a história da aceleração de situações de urgência e de um "progresso" incessante, que continua como uma corrida infernal, uma eterna fuga para a frente. Como "nova segunda natureza", a forma social fetichista e patriarcal representa um quadro no interior do qual os indivíduos fazem suas escolhas, mas que como quadro lhes permanece inacessível. Eles sofrem a sua própria forma – social ou individual – como uma lei natural.
O capitalismo patriarcal pós-moderno agrava enormemente esta inconsciência e as suas consequências. Embora esteja em vias de destruir o mundo e sejam conhecidas as consequências sociais desastrosas do seu desenvolvimento, nunca o capitalismo como forma social pareceu tão insuperável aos seus súbditos. A uma velocidade exponencial, ele continua a atomizar os indivíduos e a embrutecê-los, a ponto de torná-los imprestáveis, mesmo para os seus próprios fins. Basta uma observação um pouco mais lúcida para saber que os políticos, no seu agir, já não têm nenhuma outra opção senão a do espectáculo. Os decisores económicos estão de tal modo presos por mecanismos que as suas escolhas já não têm grande coisa de estratégico. Assim, com a dissolução da política e a autodestruição da economia (a concorrência obriga a reduzir cada vez mais a própria substância da valorização: o trabalho), sem nenhuma perspectiva de sair dos seus imperativos, o sujeito moderno "barbariza-se" (17) na sua forma, em vez de a romper. E, nesta tendência, todas as categorias e esferas sociais (público/privado, trabalho/lazer, jovem/velho, homem/mulher) se decompõem, permanecendo em constrangimentos intransponíveis.
Claro que a relegação das mulheres para esfera privada nunca correspondeu inteiramente à realidade. As mulheres sempre trabalharam, houve mulheres políticas, revolucionárias, cientistas, militares, escritoras, etc. (18). Na actual desintegração dessas esferas, quando o privado se torna um assunto público e o público está sendo privatizado, o dissociação-valor não é abolida, mas desloca-se e aparece em formas cada vez mais complexas: no interior das instituições, dos grupos sociais, dos indivíduos. Assim, vemos surgir cada vez mais "identidades múltiplas e flexíveis" que poderiam sugerir que a relação assimétrica entre os sexos se teria tornado agora um problema ultrapassado. Alguns vêem aí a emancipação já realizada, ou pelo menos o surgir de "chances" ou "possíveis".
Mas, por trás desta aparente libertação das cangas da identidade, um olhar sobre as realidades sociais permite descobrir a nova flexibilidade forçada e decifrar os "possíveis" da globalização como a decomposição anómica das categorias capitalistas. A crise do capitalismo está longe de representar a sua abolição e não promete nada senão destruição. Não é a "redução do papel do Estado" face à concorrência globalizada que nos faz acreditar na sua ultrapassagem; e o sujeito, como forma de colete-de-forças do indivíduo, não desaparece, mas realiza-se na sua barbarização, enquanto masculino, branco e ocidental.
É já evidente – a nível mundial – que são em primeiro lugar as mulheres as vítimas do desenvolvimento actual, tanto enquanto alvo do ódio e da violência desencadeados pela barbárie avançada, como enquanto gestoras da crise em sua "dupla socialização".
Quem se atreveria a afirmar com seriedade que sob a bandeira do neocapitalismo pós-moderno desaparecerão a submissão das mulheres, a inferiorização da “feminilidade” e o conflito entre uma sexualidade agressiva do sexo masculino (violações, mas também formas quotidianas mais soft, tais como imagens mediáticas, publicidade, pornografia) e uma sexualidade feminina passiva? Acabou o papel subvalorizado das mulheres na economia e na política graças a Ségolène Royal e a algumas business-women? Acreditar-se-á ter chegado o fim do modelo da heterossexualidade forçada devido a alguma flexibilização perante outras categorias sexuais, ou por causa de jogo espectacular com identidades perturbadas? De resto não é a flexibilidade pós-moderna das identidades que impede o "rearmamento moral e repressivo" de surgir, apesar dos divertidos jogos de sociedade em que se trata de assumir papéis. Tal flexibilidade tão pouco impede que o cuidado com os enfermos e com as crianças seja de novo "privatizado" e entregue à terna solicitude das mulheres, nem que as profissões "femininas" na área social sejam hoje as primeiras a ser afectadas pelas "reformas" nas sociedades “mais avançadas”. Além disso, pode-se observar a nível mundial um ódio renovado contra as mulheres, duma virulência feroz e incomum, seja no caso dos muitos focos da "guerra civil mundial" que por toda a parte se apresentam como uma espécie de guerra bandos pela apropriação dos fragmentos e ruínas da sociedade mercantil, ou no caso das explosões de desespero hiperviolento nos velhos centros da modernidade.
A fé numa ultrapassagem quase automática do patriarcado capitalista e das suas categorias em última análise não é senão o antigo "materialismo histórico" revisto. O que hoje é aplaudido pelos progressistas como emancipação e lamentado pelos conservadores como revolução antropológica por baixo (em relação aos benefícios da modernidade) nada tem realmente de mudança radical (isto é, categorial). Não representa senão a barbarização das próprias categorias capitalistas. Esta transformação não ocorre num sentido único; hoje, quando os cofres estão vazios e as preocupações voltam a ser cada vez mais materiais, vêem-se as antigas cangas autoritárias a reaparecer, sob formas talvez ainda mais coercivas.
Isso não significa que uma crítica radical possa repetir exactamente os velhos esquemas, dizendo que "no fundo nada mudou". As transformações do capital-patriarcado não podem ser consideradas nem como o eterno retorno do mesmo nem como a sua abolição.
NOTAS
1. Roswitha Scholz, Das Geschlecht de Kapitalismus [O sexo do capitalismo], Bad Honnef, Horlemann, 2000, p. 108.
2. As teses desta corrente da teoria crítica alemã, conhecida como "crítica do valor", começam a ser parcialmente acessíveis em francês. Ver, entre outros, sobre este assunto, Anselm Jappe, Les Aventures de la marchandise. Pour une nouvelle critique de la valeur, Paris, Denoël, 2003 [As aventuras da mercadoria. Para uma nova crítica do valor, Lisboa, Antígona, 2006].
3. Anselm Jappe, Conferência 2005 no Fórum Social Basco", acedido em 01 de maio de 2007 em: www.forumsocialpaysbasque.org.
4. Ver sobre este assunto Karl Marx, O Capital, Livro 1, Tomo 1, Paris, Éditions Sociales, p. 157: "Na circulação D-M-D’, dinheiro e mercadoria funcionam apenas como diferentes formas do valor em si, de modo que um é a forma geral e a outra é a forma especial e, por assim dizer, dissimulada. O valor passa constantemente de uma forma para outra sem se perder nesse movimento." Isto é o que Marx chama a transformação do valor em “sujeito automático" (o termo não aparece na tradução de Joseph Roy, que cortou o final da frase).
5. Robert Kurz, Blutige Vernunft [Razão Sangrenta], Bad Honnef, Horlemann, 2004, p. 70. [Razão sangrenta, S. Paulo, Hedra, 2010]
6. Ibid, p. 64.
7. O conceito de "abstracção real" foi introduzido por Alfred Sohn-Rethel, um filósofo alemão escandalosamente ignorado em França, num ensaio de 1961 intitulado Forma de mercadoria e forma do pensamento. [Foi entretanto editado em França, deste autor, La pensée-marchandise, éditions Le Croquant, 2010 (Nt. Trad.)]
8. Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, La Dialectique de la raison. Fragments philosophiques, Paris, Gallimard, 1974, p. 49. [Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1985]
9. Dado o seu carácter dinâmico, é difícil distinguir o processo de formação do capitalismo da sua instauração definitiva. Poder-se-ia até ser tentado a descrevê-lo como um processo contínuo do seu próprio estabelecimento, até no período actual de dissolução. O estabelecimento definitivo do capitalismo corresponderia então à sua crise final. Acrescente-se que a crise final do capitalismo não é sinónimo de emancipação e há um elevado risco de que corresponda à crise final e ao desaparecimento da humanidade e do seu mundo. A emancipação exige um esforço muito mais importante do que a execução dum mecanismo capitalista.
10. Roswitha Scholz, Das Geschlecht de Kapitalismus, op. cit., p. 109.
11. Ibidem, p. 110.
12. Idem. p. 108.
13. Ibid., p. 114.
14. Micha Böhme, O conceito de sociedade de Adorno, conferência inédita.
15. "Não nos agarramos sem modificações a tudo o que está dito no livro. Isso seria incompatível com uma teoria que atribui à verdade um núcleo temporal, em vez de opô-la ao movimento histórico como algo de imutável." Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, op. cit., p. 9.
16. Roswitha Scholz, Das Geschlecht de Kapitalismus, op. cit., p. 181.
17. Os termos barbárie, barbarização e bárbaro relevam certamente de uma visão eurocêntrica. Eles são usados aqui com conhecimento da sua ambiguidade. No entanto, é interessante fazer notar que a recusa, o medo e o ódio ao "outro" que estão contidos neste conceito, nada mais são afinal do que a recusa, o medo e o ódio que o Ocidente incuba em relação a si mesmo, incluindo o pressentimento e o medo da sua própria destrutividade, projectado em alguém designado como exterior.
18. Mas será preciso lembrar aqui que isso nunca aconteceu senão como homens de segunda classe e que geralmente elas mantinham ao mesmo tempo o seu papel de mulher?
Original Le côté obscur du capital. «Masculinité» et «féminité» comme piliers de la modernité in www.exit-online.org .Publicado na revista francesa Illusio, nº 4