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AS DORES DE UMA ÉPOCA FANTASMA
A teoria marxista tem dificuldades nas universidades alemãs. Depois de um boom na década de 1970, em que os departamentos podiam ser conquistados pela tentativa de mediar uma ou outra corrente do marxismo ocidental com uma ou outra moda de então na academia, há muito tempo que domina a simples ignorância por parte da doutrina oficial. As carreiras de então desenvolveram-se no sentido da adaptação e da reforma, à semelhança da história da oposição extraparlamentar.
Entre as correntes de esquerda remanescentes a teoria da regulação é das mais populares. Se alguns de seus representantes actuais publicam as actas de uma convenção com o título Fit für die Krise? Perspektiven der Regulationstheorie [Em forma para a crise? Perspectivas da teoria da regulação], haverá, naturalmente, que contar com uma quantidade de auto-promoção, que se limita à auto-garantia, porque fora do próprio pessoal de qualquer maneira dificilmente alguém se interessaria. A maioria das contribuições visa, não em último lugar, o objectivo de mostrar que os paradigmas da sua própria teoria tornam a realidade de hoje ainda compreensível, se forem actualizados. Segundo o texto de badana, o volume procura responder à questão de saber “se os conceitos e ferramentas desenvolvidos, que foram elaborados durante a crise do fordismo, são capazes de explicar a actual crise múltipla, e onde é preciso ligar a outras teorias e discussões”. A resposta dada é “sim”, mas também inclui o apelo a manter-se fiel às motivações políticas. Esta é uma implicação de todas as argumentações que dificilmente pode passar em claro.
As contribuições ou passagens fornecem em abundância jargão académico. Em conformidade com ele, não têm substância nem interesse e a sua leitura é cansativa. A coisa é então muitas vezes “posta à vista” ou “pensada em conjunto” e constantemente se exige conceptualizar formas específicas de algo, no contexto de processos ainda mais específicos de discussão, como outro algo contingente. Assim, afirmações verdadeiramente específicas, determinadas pelo objecto, nunca se materializam. Em vez de análises encontram-se aqui promessas de análises, e a teoria da regulação também é desenvolvida num quadro em que isso não é diferente. Nele os cientistas sociais asseguram uns aos outros que todos podem ter os seus próprios passatempos e ninguém tem de temer uma interferência demasiado intensa no seu próprio campo de pesquisa. No caso da teoria da regulação a coisa não é diferente.
O mais interessante é quando são descobertas relações que chamam para si a merecida atenção, para lá dos participantes nos joguinhos académicos. O conteúdo atraente da teoria da regulação resultou sempre de lidar com a questão de como as mudanças da forma do modo de produção capitalista, que este tem experimentado na sua história, podem ser teoricamente entendidas. Não se trata aqui de uma teoria que de algum modo deva ser considerada concluída desde Marx, Lenine ou Trotsky e que agora apenas tenha de ser fornecida com um aparelho de partido e/ou uma oposição extra-parlamentar. Os seus conceitos centrais são “regime de acumulação” e “modo de regulação”. Embora em última análise haja sempre acumulação de capital, no entanto em todas as épocas do capitalismo as diversas esferas da sociedade desenvolveram propriedades específicas da época. O caminho de uma época para outra não é entendido como uma transição determinável lógica e teoricamente, mas como uma ruptura provocada por uma crise.
O que resumidamente se apresenta de forma clara e bem ordenada é actualmente motivo para grandes confusões entre os seus representantes, que atravessam os vários textos do volume. Pois o fim de uma época, em que a teoria teve a sua origem, foi o fim do capitalismo do pós-guerra, denominado “fordismo”, com a crise dos anos 1970. Para marcar a ruptura associada foi cunhado o conceito de pós-fordismo. Este deveria ser um conceito auxiliar, a ser substituído por outro mais adequado, uma vez surgidas novas formas a partir da confusão da mudança.
No entanto estas não apareceram. Assim, o motivo para a confusão é que o pós-fordismo está agora em crise, sem que o conceito auxiliar tenha sido substituído. Não se pôde abandonar o termo “pós-fordismo” porque, de acordo com a teoria, um novo conceito só é devido se a nova época chegou a um estado de “estabilidade relativa”. Mas até para os teóricos da regulação o tempo decorrido desde a década de 1980, visto a partir de hoje, se apresenta como instável. Por isso se diz na introdução: “A avaliação da constelação actual depende de saber se a fase do desenvolvimento do capitalismo até 2008 é entendida como parte da crise do fordismo ou como realização de um modo de desenvolvimento financiarizado” (p. 16)
Aqui está o grande dilema e as reacções a ele que se podem ler no livro são diferentes. Joachim Hirsch, co-autor com Roland Roth do livro de 1986 Das neue Gesicht des Kapitalismus. Vom Fordismus zum Postfordismus [A nova face do capitalismo. Do fordismo ao pós-fordismo], relevante para a recepção da teoria da regulação na Alemanha, apoia a segunda variante. A crise actual seria “a ‘crise final’ da formação [...], que à falta de melhor foi designada como pós-fordismo e por isso se vem tentando identificar conceptualmente a reestruturação neoliberal do capitalismo global [...].” (p. 383). Uma tese, é claro, que o obriga a fundamentar como é que uma “reestruturação” já pode ser um resultado com “estabilidade relativa”. A sua designação do pós-fordismo como “capitalismo de mercado radicalmente desregulamentado” não é adequada para libertá-lo dessa necessidade. Pois um modo de regulação desregulamentador é como um cavalo-branco preto. Por isso a sua contribuição está marcada pelo cansaço da discussão. A questão de saber se “o pós-fordismo como formação histórica particular [...] nunca existiu, chegou ao fim, ou ainda existe” é, “estritamente falando, irrespondível”. Só poderia ser “uma disputa académica infinda e verdadeiramente inadequada sobre a existência de formações e crises.” (p. 381 sg.)
Roland Henry e Vanessa Redak argumentam cautelosamente no outro sentido: “Falhou a estratégia para enfrentar a crise de rentabilidade da década de 1970 com um aumento do crédito, entre outras coisas.” (p. 254) O facto de uma estratégia falhada não poder servir de fundamento a nenhuma formação é aqui evidente. No entanto, Henry e Redak não se atrevem a levar até ao fim esta constatação. Limitam-se a concluir evasivamente que não há actualmente uma crise financeira, mas uma crise do capitalismo. O que, de qualquer maneira, ninguém nega no espectro em que aqui se discute.
O ensaio de Alex Demirovic e Thomas Sablowski pode ser entendido como uma espécie de síntese de ambos os lados. Da necessidade de Hirsch eles fazem uma virtude, não se referindo já ao discurso da estabilidade relativa de épocas identificáveis cada uma à sua maneira. Para eles trata-se apenas de “distinguir os padrões [de] mudança que são relativamente estáveis por um período mais longo.” Assim também estratégias falhadas podem constituir uma época, desde que os falhanços se tenham repetido com a frequência suficiente. Em conformidade, eles pretendem ter descoberto um “modo de regulação do mercado financeiro capitalista baseado na incerteza desde os anos de 1980” (p. 192).
As contorções tornam claro que a teoria da regulação perdeu a perspectiva nos últimos 20 anos. O problema está na sua participação passada nos esforços para dar uma estrutura conceptual marxista à conversa amplamente não-conceptual sobre “capitalismo neoliberal” e “mercados financeiros descontrolados” sem assustar o público com a crítica da ideologia. Em vez de apurar o fim do fordismo em termos de teoria da crise, fim possivelmente datado um pouco cedo mas afinal percebido de forma perfeitamente correcta, ensaia-se de novo uma tentativa de mediação com o espírito do tempo. Agora se vê claramente que isso seria mais bem feito contra tal espírito. Pois qualquer nova tentativa de mediação também termina com uma declaração de falência do mediador. Noutro ponto falam Demirovic e Sablowski, em vez de do “modo de regulação do capitalismo de mercado financeiro”, de um “regime de acumulação dominado pela finança” e nada torna mais claro como são iguais ambos os fundamentos conceptuais da sua própria teoria. Já nas suas próprias notas de rodapé é óbvio que pelo menos uma das duas designações pode não ser no sentido da própria teoria. Porque enquanto uma nota de rodapé explica: “Um regime de acumulação é um modo de distribuição e redistribuição sistemáticas do produto social”, diz a seguinte que o modo de regulação designa “o conjunto de formas institucionais, redes e normas explícitas ou implícitas que asseguram a reconciliação de comportamentos no quadro de um regime de acumulação”. Assim assegura o capitalismo de mercado financeiro a compatibilidade das práticas no âmbito da dominação das finanças ou algo parecido.
São particularmente marcantes tais não-diferenças conceptuais na comparação entre o estado actual do desenvolvimento da teoria da regulação e o potencial de previsão por ela conseguido na Alemanha no início do seu desenvolvimento. Em Das neue Gesicht des Kapitalismus [A nova face do capitalismo] há um capítulo intitulado “Um novo projeto hegemónico? Entre o corporativismo e o populismo” Nele são discutidas as previsões de então sobre a situação pós-fordista. Aí se diz ainda com cepticismo: “As concepções da teoria social e económica abordadas na discussão sobre uma sociedade pós-fordista permaneceram até hoje tão diversas como vagas. A probabilidade de sucesso dos programas ‘monetaristas’, que dependem de uma retirada radical do intervencionismo estatal e de uma ‘revitalização das forças de mercado' à maneira do liberalismo de Manchester, tornou-se altamente duvidosa no decorrer da crise e dado o impacto das políticas correspondentes.” (p. 140, destaque no original) Agora pode objectar-se contra esta afirmação, que na época era ainda uma previsão, que os seus autores apenas se enganaram e aconteceu diferente do que tinham antecipado. As relações de forças sociais foram infelizmente outras e os seus efeitos não motivaram os vencedores para o debate.
No entanto, tal interpretação do desenvolvimento da teoria dificilmente pode ser mantida, pois no mesmo capítulo são apresentados cenários que se adaptam muito melhor ao desenvolvimento subsequente do que as posições actuais, fixadas no monetarismo e no neoliberalismo. “Basicamente” Hirsch e Roth partem do princípio “de que a forma de poder pós-fordista e pós-keynesiana, contrariamente a todas as promessas neoliberais, de modo nenhum se apoia num Estado fraco, retirado, dando novamente espaço livre às ‘forças do mercado’, pelo contrário, apoia-se num Estado ainda mais forte, ainda mais autonomizado em relação a interesses sociais relevantes, intervindo de muitas maneiras, e altamente armado tanto interna como externamente.” (ibidem, p. 142). O pressuposto básico que aqui foi usado para a previsão correspondia perfeitamente à subdivisão conceptual das relações capitalistas num regime de acumulação e num modo de regulação, cada um dos quais envolve diferentes formas de relacionamento social. Uma diferenciação que é eliminada quando ambos devem ser dominados pelo mesmo princípio, o do mercado financeiro, como acontece na formulação de Demirovic e Sablowski.
Esta diferença foi justificada por Hirsch e Roth bastante superficialmente, com as exigências objectivas da produção no capitalismo tardio: “A susceptibilidade e vulnerabilidade dos sistemas de produção de alta tecnologia intensificaram ainda mais a necessidade de regulação política do processo económico, apesar de todas as crenças monetaristas. As experiências com a política de austeridade de Thatcher no Reino Unido mostraram que a redução dos gastos sociais estatais, imposta com um programa anti-estatista, leva afinal a um reforço do controlo central do Estado, à custa dos organismos de auto-administração. E, finalmente, processos duradouros de desintegração e divisão social impõem uma regulamentação ainda mais burocrática da sociedade, possivelmente de forma mais repressiva e selectiva”. (ibidem, p. 143) As experiências com sistemas de workfare, como Hartz IV, são bastante adequadas para levar a conclusões semelhantes.
Se os teóricos da regulação se tivessem mantido fiéis a estas previsões decorrentes dos pressupostos básicos, teriam, sem dúvida, produzido avaliações mais úteis da situação do capitalismo dos últimos 20 anos e a confusão actual não precisava de ser tão grande como é agora. Que o prognóstico de então era muito melhor do que o diagnóstico de hoje, aponta para que este último terá de ser interpretado não como a estupidez da ignorância, mas como a estupidez que é contra melhor conhecimento. Em vez de manter que existe uma diferença entre a auto-imagem social e a realidade social, e em vez de aproveitar esta constatação como oportunidade de crítica da ideologia, tanto da consciência dominante como das posições de esquerda, que tomam dos dominantes cada auto-imagem e interpretam de modo meramente invertido as suas intenções como ameaça, em vez disso começou-se a recalcar as ideias próprias em favor das doutrinas correntes.
É óbvio que a teoria da regulação – ao contrário de outras correntes marxistas – aguça a capacidade de registar levantamentos sociais. Pelo menos uma parte dos seus representantes também é tão honesta que se deixa iludir com isso. Mas também é óbvio que há uma falta de vontade de teorizar a própria irrupção da crise. Pois, para além do oportunismo necessário para participar no jogo académico, havia também uma razão intra-teórica, para apanhar o combóio da crítica ao neoliberalismo. A teoria já quase proíbe conceder à crise um papel maior na história do que o do momento em que se consuma a mudança fundamental. Aqui o sistema conceptual é decididamente rígido, pois de acordo com ele haverá sempre uma próxima fase estável. Tão certo que no fim mesmo a “incerteza” tem de ser descrita como “relativamente estável”. A teoria, pelo contrário, segue aqui um paradigma segundo o qual todas as ambigüidades e contradições duradouras derivam da persistência das “lutas sociais”. Isto excluíu no passado a possibilidade de abordar o pretenso neo-liberalismo como uma regressão, com as correspondentes formas de consciência irracionais e mitológicas.
Também a teoria neoliberal previa um “quadro regulatório da economia de mercado” estatal. O qual deveria, se respeitado, garantir a eternidade “da economia de mercado.” Ele foi respeitado, mas a eternidade chegou tanto menos quanto mais obstinadamente as “falhas” foram administradas. O “quadro regulatório” foi, veja-se Hartz IV, revestido de medidas coercitivas directas. A ideia de que nos últimos 25 anos houve uma situação livre do Estado, mesmo que apenas “relativamente”, é um mito que estiliza o Estado como forma imediata da vida humana em comum, que mesmo no capitalismo não pode ser durável.
É verdade que de vez em quando se encontram no livro avisos de que toda a confusão também pode acabar autoritariamente. Mas são na sua maioria avisos em relação ao futuro. Se voltarem a surgir ideias aproveitáveis da teoria da regulação, então deverão essencialmente decidir se os seus representantes estão dispostos a admitir que, com a tentativa de conceber a “época neoliberal” de maneira marxista, contribuíram para a racionalização de mitos autoritários passados e presentes.
Atzmüller, Roland; Becker, Joachim; Brand, Ulrich; Oberndorfer, Lukas; Redak, Vanessa; Sablowski, Thomas (Hrsg.), Fit für die Krise? Perspektiven der Regulationstheorie [Em forma para a crise? Perspectivas da teoria da regulação], Verlag Westfälisches Dampfboot 2013, 399 S., € 36,90.
Hirsch, Joachim; Roth, Roland: Das neue Gesicht des Kapitalismus. Vom Fordismus zum Postfordismus [A nova face do capitalismo. Do fordismo ao pós-fordismo], Hamburg, VSA 1986
Original Phantomepochenschmerzen em www.exit-online.org. Versão alargada do texto publicado em KONKRET 05/2014. Tradução de Boaventura Antunes (11/2014)