Knut Hüller

 

Por (batidos) maus caminhos

Uma análise do livro (quase) homónimo de Klaus Müller

 

 

1. Saltando como um tigre crítico * 2. Pousando como um domesticado apresentador de modelos * 3. Marx como ele nunca foi * 4. A mais-valia é uma lei da natureza – mas a exploração é evitável * 5. O dinheiro misterioso – o que ele (não) ‘é’ * 6. O dinheiro misterioso – o que ele (não) ‘faz’ * 7. Observação final * Notas

 

 

1. Saltando como um tigre crítico

 

A crise final do capitalismo reflecte-se cada vez mais nas crises da(s) sua(s) ideologia(s) de justificação sob o nome de 'economia', de tal modo que até alguns economistas licenciados 'traem' a especialidade e o seu objectivo (como teria dito José Estaline). À primeira vista, o livro de Klaus Müller (1) também dá essa impressão. Müller interpreta o "pensamento fragmentado...[e]...desfiado" dos economistas como "concorrência de pontos de vista", cuja base reside na "natureza da realidade objectiva." (p. 22) Como alguém da especialidade (de acordo com o seu curriculum vitae ainda educado na RDA e provavelmente prejudicado pela queda do Muro de Berlim), encontra exemplos instrutivos disso mesmo. É digna de cabaré a anedota sobre um debate entre o primeiro-ministro francês (1955-1956) Edgar Fauré e o então governador do Banco Central, que tinham entendido uma lógica económica exactamente ao contrário. Diariamente, na imprensa económica podem encontrar-se debates com uma lógica semelhante; o histórico, de acordo com o livro, terminou assim: ‘Afinal, estávamos de acordo. A taxa de desconto é a chave para tudo. Deve ser reduzida’. 'Sim, é a chave para tudo. Bem, concordámos que deve ser aumentada. 'Reduzida!' 'Aumentada!' 'Reduzida! Isso pressiona os preços'. 'Aumentada! Isso pressiona os preços'. (p. 98) O cuidado com a educação clássica ainda ligeiramente melhor na RDA (em comparação com a antiga RFA) vem à tona, quando Müller desenterra uma designação do grego antigo para aqueles "que não vêem o indivíduo como parte do contexto." Diz o seguinte: "idiotas." (p. 16) Até aqui o livro faz jus ao seu subtítulo: "Sobre a arte de os economistas se enganarem a si próprios." Também se poderia concordar com os títulos da Introdução ("Enganos"), bem como com o capítulo 1 "Tudo depende de tudo" e com os vários conteúdos aí reclamados: Olhando para "o todo" (p. 16, p. 65ss.) em vez de apenas para o único ou para o indivíduo, a consideração da "dinâmica" e do feedback (p. 27) em vez da limitação à estática e à monocausalidade, a consideração da complexidade dos sistemas económicos (p. 23) e a percepção das contradições entre interesses individuais e um "interesse geral" (efectivamente existente?) (p. 31).

As duas palavras inseridas entre parênteses e com ponto de interrogação na última frase referem-se aos limites da crítica de Müller, que, apesar de todas as exigências críticas, se tornam repetidamente visíveis no livro. Por exemplo, não quer substituir o reducionismo que se opõe fundamentalmente à compreensão da complexidade, mas antes "complementá-lo" (p. 23). Qual a tendência – a crítica ou a positiva – que afinal é dominante revela-se no capítulo 4 final do livro no seu título "Modelos" (p. 286). Neste Müller desenvolve ideias de uma economia 'melhor', abrindo com uma referência a Karl Marx: "Se a crítica da economia política de Karl Marx é um modelo ou se contém modelos é uma questão de conceito.” (ibidem) Müller não pode, obviamente, imaginar críticas sob qualquer outra forma que não seja a de modelos positivos "alternativos." Assim, ele vê o trabalho de Marx como o melhor modelo (ou a melhor colecção de modelos) até à data de um sistema logicamente compreensível, e não como uma tentativa de crítica fundamental da insanidade que não pode ser entendida de modo nenhum em termos de ciência positiva. Pois se se aplica esta última avaliação do capitalismo real, qualquer tentativa de 'modelização' tem necessariamente (do ponto de vista de Exit!) de 'fragmentar e desfiar', como Müller (correctamente) atesta à economia mainstream.

A sua opinião de que esta característica da economia mainstream resulta da "natureza da realidade objectiva" devia ter sugerido que examinasse também as próprias afirmações deste ponto de vista. Omitindo fazê-lo, Müller criou involuntariamente uma peça didáctica sobre os processos de pensamento que, mais cedo ou mais tarde, conduzem de uma crítica rebaixada do capitalismo, de volta à consciência burguesa (aqui: à economia apologética).

 

 

2. Pousando como um domesticado apresentador de modelos

 

Toda a tentativa de 'melhorar' a economia política (clássica) retoma inevitavelmente as contradições do seu objecto (o capitalismo) e carrega-as consigo. Estas têm, portanto, de ser continuamente objecto de reflexão crítica no próprio pensamento, em vez de serem reflectidas positivamente em 'modelos.' As citações obrigatórias de Karl Marx não são suficientes para isso. O capítulo 4 de Müller reproduz a característica de separar os aspectos individuais (aqui: as contribuições de Marx para a economia positiva) do contexto global (aqui: crítica fundamental da sociedade e da economia) que ele critica, com razão, na economia 'oficial'. Todos os tipos de economia positiva são obrigados a fazê-lo, uma vez que esta é a única forma de esconder as contradições do sistema no seu conjunto. Müller deixa claro que também segue este caminho, já na p. 22, onde vê "a 'base material' do pensamento desfiado" não em contradições internas fundamentais do capitalismo real, mas numa "diversidade de efeitos e variantes dos fenómenos económicos". Se isto fosse verdade, seria suficiente recolher todas as "variantes" de "fenómenos" e abordagens teóricas com muita diligência e ligá-las de algum modo. Müller quer aperfeiçoar esta abordagem, incluindo nela Karl Marx. Depois de ter mostrado a "irrelevância do maço de papéis teórico" (p. 298) utilizando o exemplo da(s) teoria(s) de distribuição burguesa(s), ele reúne na p. 304 treze "premissas" nas quais (alegadamente) se baseia o "modelo de equalização da taxa de lucro" de Marx. Não se apercebe que aí se encontra quase tudo aquilo que anteriormente tinha rejeitado como irreal nos "modelos IS-LM-AS-AD-ZZ" (p. 297) dos "manuais", entre outras coisas com a formulação de "abomináveis construções de equilíbrio" (ibid.). No entanto, quer reunir uma nova teoria global conclusiva a partir de tudo isto, baseada numa concepção que lhe foi sugerida num email. "Imagino uma espécie de kit ou módulos de construção de diferentes modelos, que – se necessário – podem ser montados de forma complexa e depois permitir que questões mais complexas sejam investigadas." (p. 311)

Que papel resta para um autor 'não modular' como Marx? Tem de o reduzir a um 'módulo' entre outros. É-lhe atribuído um papel importante na história da economia política, mas um papel que está agora para além de Marx. "Os seus modelos de reprodução são um novo desenvolvimento do Tableau Économique de Quesnay, o primeiro modelo de circulação na história, que não foi compreendido durante 100 anos [...] São a fase preliminar [...], um passo na direcção dos grandiosos modelos de input-output de Leontiev [...].” (p. 300) Também estes já foram (positivamente) desenvolvidos: "Da União Soviética são dignas de menção as obras de Strumilin, Novoshilov e Nemtshinov, da Hungria as de Kornai, da RDA os modelos do meu supervisor de doutoramento Knop [...] e outros." (ibid.) Esta última referência sugere que Müller também deu importantes contribuições para a economia política. A sua visão do sistema financeiro e dos debates em torno dele pode ser encontrada na página 289, onde rejeita como "divertida" a visão da "microeconomia" de que as dependências mútuas de preços, oferta e procura no mercado poderiam produzir um equilíbrio geral. Ele contradiz isso para "os mercados de bens onde os monopólios e oligopólios dominam e, graças ao seu poder, fixam os preços de forma largamente independente da oferta e da procura" (p. 289). Mas: "Para uma concorrência livre e sem entraves – por exemplo, na bolsa – o pressuposto pode ser bastante realista.” (ibidem) De acordo com isto, o sistema financeiro de hoje não leva ao extremo a loucura da valorização do valor. Pelo contrário, finalmente realiza o ideal do mercado perfeitamente auto-regulado, que sempre foi propagado e desesperadamente defendido pela economia burguesa, e supera as deficiências do capitalismo industrial, flagelado por Marx e outros críticos. Os economistas mainstream ainda não avançaram com esta ideia; evitam o tema do 'sistema financeiro' sempre que possível.

Müller não repara nas contradições do seu próprio curso de pensamento. Imediatamente após a negação da eficácia do mecanismo dos preços para o estabelecimento do equilíbrio segue-se a frase: "A lógica para o estabelecimento do equilíbrio para o produto individual é, no entanto, dificilmente contestável.” (ibidem.) A palavra "no entanto" rebenta com os poderosos "monopólios e oligopólios" e cria assim espaço para "modelagem" – e para o próximo disparate. Na seguinte frase: "Mais excitante é a questão de saber se pode haver um equilíbrio global no mercado de bens, ou seja, se a oferta total de todos os bens é procurada e comprada.” (ibidem) Como se pode evitar um equilíbrio global se ele existe para os bens individuais? E vice-versa: não existiria para alguns deles (em casos extremos para todos excepto um): qual seria então ainda o significado da expressão "equilíbrio global"? Nesses pontos, Müller evita a questão de saber se qualquer parte de um modo de produção louco, como a valorização do valor, pode ser conclusivamente ‘explicada’ ou, pelo menos, descrita. A possibilidade tem de ser provada antes de se tentar. Marx alegadamente apresentou a prova. "Com os seus modelos de reprodução, Karl Marx respondeu afirmativamente à questão. Ele acredita que esse equilíbrio é possível.” (ibid.) Para isso, os "monopólios e oligopólios" (ou pelo menos as burocracias do planeamento) teriam de estudar bem os modelos de reprodução de Marx e aplicá-los correctamente (!). Por que razão não funcionou?

Müller fornece uma explicação parcial na página 300: Marx tinha "determinado condições necessárias, mas não suficientes, de equilíbrio económico." Aqui o espaço do 'será possível?' abre-se novamente. Müller ultrapassa a questão e cai assim numa situação de impotência semelhante à que se observa entre os apologistas do capitalismo que se dirige à sua fase final. No final da primeira página do capítulo 4 final, formula: "O que é importante, sem importância, essencial, insignificante, depende também do interesse no conhecimento, ou seja, de quais as causalidades que devem ser investigadas nesse momento.” (p. 286) Nas páginas seguintes, Müller apresenta essa abordagem como sendo marcada pelas "ciências naturais" – onde se perguntaria primeiro (e esclareceria) quais as causalidades que existem ou, pelo menos, poderiam existir (possivelmente entre preço, oferta e procura?). Enquanto a última citação já lembra fortemente a arbitrariedade pós-moderna, o final do mesmo capítulo 4 salta de novo para o pensamento burguês inicial. "Todas as escolas [o livro na página 317 coloca o seu número em 23; K. H.] aceitam a interacção da regulação das influências estatais e do livre desenvolvimento das forças económicas privadas. Em política económica e na teoria, existe uma convergência limitada de pontos de vista, uma aceitação mútua com a concessão de possibilidades parciais de explicação, em que não se negligencia a censura mútua pela limitação das afirmações.” (p. 323) É assim que o (inexistente) parlamentarismo burguês ideal é descrito nas aulas de estudos sociais; tudo o que falta para ser concluído no trabalho de Müller é a promulgação de leis económicas por uma coligação de "escolas" com uma maioria suficiente na Convenção da Academia das Ciências.

A frase seguinte, a penúltima frase do livro, insiste: "A economia plural, a coexistência de pontos de vista diferentes é a bem-vinda tentativa de quebrar o domínio do período neoclássico reinante.” (ibid.) Tendo em conta as condições da economia realmente existente (ver Alan Freeman in Exit! nº 3), uma revolução burguesa e liberal contra a nobreza feudal (pseudo)científica aí existente seria, sem dúvida, apropriada. Mas Müller, com a frase citada, vai mesmo um passo atrás do marxismo tradicional. Este também não fez uma crítica fundamental da economia, mas não se orientou para o pluralismo burguês nem lutou pelo parlamentarismo perfeito como seu objectivo final. Queria a tomada do poder pelos oprimidos no capitalismo, seguida de uma ditadura d(a)o (teoria do valor do) trabalho. Foi assim que foi interpretado o Marx 'exotérico'; sobre este conceito ver o primeiro parágrafo do capítulo 3.

 

 

3. Marx como ele nunca foi

 

A exigência de Müller de mais "pluralismo" está em flagrante contradição com um motivo que aparece pela primeira vez nas páginas 18ss. e ocupa uma parte considerável do livro: o exame de uma "Nova Leitura de Marx, NLM" (2), que, na opinião de Müller, distorce o conteúdo de O Capital e de outros textos clássicos com uma "maneira altamente selectiva de citar" (p. 228). Aqui, ele não pensa que também a possibilidade de diferentes visões de Marx sobre a realidade capitalista, ou a possibilidade de diferentes visões sobre os textos de Marx, possa ter algo a ver com "a natureza da realidade objectiva." Isto levaria à visão de Exit! de um 'duplo' Marx ('exotérico' e 'esotérico'), que simultaneamente 'melhora' e critica o seu objecto (economia política como parte do capitalismo), porque ambos são tão inseparáveis como as teorias são do seu objecto. No que diz respeito à interpretação de Marx, Müller toma posições claras sobre o que é "verdadeiro" (p. 15) e não percebe como a contradição do capitalismo já o apanha quando introduz esta categoria: "Em economia, uma afirmação não tem de ser falsa porque o seu oposto é verdadeiro.” (ibid.) Esta é "uma prática comum nas ciências naturais formais [...] e geralmente justificada.” (ibid.) Será só aí? "Em princípio, é também o que acontece nas disputas económicas, mas pode muitas vezes levar ao erro. Pois aqueles que persistem no oposto formalmente lógico, que só conhecem um ou outro, não compreendem como pensar nas contradições e na relatividade da realidade social.” (ibidem) Diz-se que há uma lógica formal que falha. Mas onde pode falhar de todo? Como todos os instrumentos, falha onde não pode ser aplicada. Se alguém acredita nisso, deve desistir da procura do modelo ‘verdadeiro’. O passo mental mais importante necessário para isso é mais fácil uma vez que as palavras (e a ideia) 'realidade social' sejam substituídas por 'realidade capitalista.' Bem-vindos à louca realidade capitalista, incluindo o 'duplo Marx'!

A fim de esconder o carácter insano do sistema capitalista, as considerações económicas dividem-no em partes o mais possível pequenas. Isto explica, entre outras coisas, a ideia da Müller (ver capítulo 2 acima) da possibilidade de um equilíbrio de mercado para (um número indefinido de) bens individuais, com não-equilíbrio simultâneo no mercado global. Outros economistas utilizam modelos como o empresário 'criativo' (Schumpeter), o 'capital individual representativo' (Michael Heinrich) ou a 'empresa competitiva' (mainstream). Na sua perspectiva, valor ou capital (ou seja, valor que se valoriza) não contém uma 'relação social' (Marx), mas aparece como propriedades pseudo-físicas das coisas-mercadorias que envolvem indivíduos ou empresas. Ora um ramo completo da teoria da "NLM" (da qual se destaca Exit!) gira em torno da questão de saber se 'valor' é 'criado' na produção ou na circulação. Esta questão é tão útil como a de saber se os elementos de liga ou tratamento(s) térmico(s) adicionado(s) ao ferro produzem as propriedades do aço. Ambos não têm sentido por si só; a produção capitalista inclui formas especiais de 'circulação', a começar pelo facto de apenas o modo de produção capitalista produzir o fenómeno da esfera da circulação cada vez mais separada – e, portanto, o fenómeno de uma esfera 'da produção'. Quem não se aperceber disto, o mais tardar na fase do capitalismo financeiro, tem obviamente receio do próximo passo lógico, que é reconhecer a produção como uma parte também absurdamente independente do processo global, que (pela primeira vez na história!) produz excessos, como a obsolescência planeada de produtos 'de elevado valor', mesmo ao lado de sintomas de carência, até à fome, inclusive. "O processo de abstracção real é o próprio processo de produção; aqui se abstrai, in actu e com consequências devastadoras para os produtores, para a sociedade e para os recursos naturais, do conteúdo material e do social; aqui se produz o valor como tal e assim a 'fantasmagórica' objectualidade do produto. A circulação como parte integrante desta relação de produção (e não o contrário!) mede a quantidade socialmente válida deste objecto de valor já existente [...] mas [...] não o produz.” (Robert Kurz, A substância do capital II, in Exit! nº 2, p. 221) Quem disser 'A' também tem de dizer 'B'; quem não quiser dizer 'B' tem de evitar o 'A'.

Sem se aperceber, Müller toma neste momento o partido daqueles que procuram o essencial na circulação, e aceita assim as posições do autor "NLM" Michael Heinrich, que criticou maciçamente noutros locais. Quem não vê a unidade contraditória entre a produção de mais-valia através do trabalho e a realização do mais-valia através do dinheiro (ao que se regressa mais abaixo no ponto 6) já não consegue distinguir especificamente a produção capitalista de mercadorias, baseada no trabalho assalariado, da produção simples de mercadorias. O 'valor' já não aparece então como uma relação social "complexa" (Müller), mas como uma propriedade pseudo-física da(s) mercadoria(s) individual(ais). Müller mistura então a análise conceptual com uma descrição dos processos históricos (imaginados): "É também assim que as leis da produção pré-capitalista de mercadorias funcionam na produção capitalista de mercadorias. Na transição[!] da produção geral[!] de mercadorias da produção simples para a produção especificamente capitalista, a primeira não se desintegra. Continua com um significado alterado, é modificada, desenvolvida[!], enriquecida por algo novo." (p. 149) A economia nacional seria aqui entendida como uma oficina mecânica alargada. Analogamente a isto, os manuais actuais 'explicam' a 'economia' utilizando o exemplo das padarias. É embaraçoso fazer referência ao "pensamento dialéctico" (ibid.) neste contexto. Não haveria aí designadamente uma transformação de quantidade em qualidade?

Müller vai explicitamente ainda mais longe: o início de O Capital com a análise da forma do valor deveria ser entendido historicamente; ele descreve a transição da produção "geral" de mercadorias da forma simples para a forma capitalista. Justifica isto com explicações em livros escolares da RDA e da URSS, a que se refere positivamente: "O procedimento [de Marx; K.H.] é semelhante ao da química, que começa com a análise dos elementos químicos para depois examinar os compostos complicados.” (p. 148) Se esta analogia estiver correcta, então as leis da produção "geral" de mercadorias devem ter-se tornado plenamente eficazes quando os caçadores da Idade da Pedra trocaram presas pela primeira vez. Antes disso, devem ter estado escondidas, porque "átomos" e as suas propriedades já existiam muito antes de o primeiro químico produzir um "composto." O autor Kuczynski parece ter notado pelo menos isso; numa citação a que Müller se refere positivamente, ele afasta a base das leis económicas mais um passo da sociedade moderna: "Na verdade, porém, não há nenhuma lei da produção natural que não tenha também um efeito na produção de mercadorias. O efeito das leis económicas pode ser alterado porque as suas condições de acção, as suas condições iniciais e as suas condições-limite se tornaram diferentes. Estão tão pouco suspensas como as leis da física na origem da vida." (p. 149) Müller comenta: "Do mesmo modo o ser humano é um macaco [...] ele desenvolveu-se a partir da primeira célula como qualquer outro ser vivo e, portanto, não se pode livrar do seu ADN, com todas as consequências." (ibidem).

A palavra "do mesmo modo" tenta olhar para trás. Um biólogo que estuda a formação do andar de pé em detalhes dos ossos das pernas e das articulações do joelho certamente encontrará semelhanças entre a espécie macaco e o ser humano. As teses de mestrado e doutoramento sobre estes temas são atribuídas em massa. Mas o que encontraria um colega que estuda o desenvolvimento da biosfera? Será que classificaria também as influências das duas espécies 'macaco' e 'ser humano' como 'muito semelhantes' e explicaria as concentrações actuais de poluentes no ADN a partir dos grandes símios ou mesmo da "primeira célula"? As analogias de Müller mostram, melhor do que as suas explicações económicas especializadas, porque é que os economistas têm tanta dificuldade em classificar "o que é importante, sem importância, essencial, insignificante." (p. 286)

 

 

4. A mais-valia é uma lei da natureza – mas a exploração é evitável

 

Müller também encontra uma característica específica do capitalismo que o distingue da produção "geral" e "simples" de mercadorias: a boa e velha "exploração" (p. 177). O que daqui resulta como notável, antes de mais, é a pouca importância deste tema ou fenómeno. Decorre das leis económicas, que por sua vez estão subordinadas às leis naturais – então porque é que a procura da verdade económica se preocupa com algo tão pouco importante? A perda de significado deste tema é consequência da ênfase anterior em leis superiores, de que Müller, por sua vez, necessita para poder tentar uma 'modelização.' Em termos de teoria social, isto implica um novo retrocesso em relação ao marxismo primitivo (e agora histórico) da época de antes da Revolução de Outubro: ainda estava (com razão!) indignado com as convulsões sociais no capitalismo, justificando assim a necessidade da sua abolição – incluindo as suas leis, sejam elas específicas, "gerais" ou outras. Em retrospectiva, pode-se acusá-lo de não alargar esta alegação à forma de valor enquanto tal, mas de querer aplicar politicamente 'leis económicas' como a 'lei do valor' entendida de modo puramente quantitativo. Em última análise, a ideia de Müller de fazer uso de "leis gerais de produção de mercadorias" equivale a um certo "socialismo do adjectivo" (Robert Kurz).

O curso desta regressão pode ser melhor compreendido no livro de Müller do que no processo histórico real, que se desenrolou entre erros e confusões. Lê-se aí: "A produção capitalista de mercadorias é determinada pelo facto de a força de trabalho ser também uma mercadoria." (p. 150) Isto torna possível o seguinte: "O produto é criado pelo trabalhador assalariado e apropriado pelo capitalista. Isto caracteriza todo o modo de produção." (ibidem) Müller ignora o facto de 'criar', tal como 'apropriar-se', ser tão incompatível com a 'troca' escondida no conceito de mercadoria como o é com o conceito de mercadoria. No entanto, nota que, na produção simples de mercadorias, é omitida a 'apropriação.' Uma vez que ainda existe uma ligação directa entre a produção e a posse da mercadoria, esta deveria estar livre de muitos dos problemas do capitalismo e, especialmente, da exploração. Na verdade: "A produção simples de mercadorias, ao contrário da produção capitalista, é livre de exploração." (ibid.) Mas será que existe de todo? Müller escreve: "É errado considerar a produção simples de mercadorias como um modo de produção independente. Estava sempre integrada em outros modos de produção e subordinada às suas [!] leis económicas." (ibid.) Assumindo isto, o termo "produção simples de mercadorias" não deve ser usado de todo, uma vez que sugere exactamente o que a última frase citada (correctamente) nega: a existência de tal formação social.

A opinião de Müller de que a actividade dos produtores simples de mercadorias (ou melhor: "da produção simples de mercadorias"?) pode ser mantida livre do fenómeno da exploração e de todas as suas consequências é o desejo clássico dos produtores de mercadorias pequeno-burgueses de serem poupados às consequências e imposições da dominação da produção de mercadorias típica do capitalismo. O facto de não ter chegado a 'verdadeiro' capitalista é racionalizado por tal consciência no sentido de que se é o melhor produtor de mercadorias (ou capitalista?). Para poder esconder as relações sociais deste modo, a forma do valor tem de ser ontologizada, como a economia burguesa sempre fez. Müller usa o seu conhecimento de Marx para estender esta ontologização à mais-valia: "Até o artesão medieval produz mais-valia, que fica com ele e da qual ele vive bem." (p. 180) Isto completa a confusão de termos, mesmo que se ignore o facto de que a formulação "artesão medieval" deixa em aberto se vive(m) e 'trabalha(m)' noutra (qual?) formação social ou numa sociedade de artesãos (3): a produção de mercadorias pode ser realizada sem exploração e, tal como o valor, a mais-valia já existia muito antes do capitalismo. Assim, todas as peculiaridades deste último desaparecem, incluindo a transformação do ser humano em 'mercadoria força de trabalho', com a qual a observação tinha começado cerca de 30 páginas atrás. O que resta são indivíduos (burgueses?) rodeados por mercadorias com um valor económico claramente quantificável, como peixes rodeados por água com um teor em sal que pode ser claramente quantificado pelos "químicos".

Neste ponto, Müller sobretudo não nota que retira todo o conteúdo social ao conceito de mais-valia. Se um carpinteiro serra e prega mais mas horas para poder pagar um apartamento melhor ou mas garrafas de vinho com o produto, ou – ainda mais claramente – se faz para si próprio algumas peças de mobiliário bonitas, então o 'mais' de 'trabalho' necessário para isso não é de modo nenhum diferente do 'trabalho normal' que teria sido suficiente para o nível de vida 'mais simples.' Seja o que for que o "artesão" decida: ele estabelece um objectivo a si próprio e realiza-o pelos seus próprios esforços – em vez de estabelecer outro (não necessariamente 'mais alto'!). Para distinguir 'mais' de 'necessário', é preciso um critério independente do sujeito artesanal (e, neste sentido, 'objectivo'). No fim de contas, tal critério só se encontra na subsistência física. Esta abordagem de uma definição de 'trabalho necessário' independente do trabalho assalariado é algo que alguns economistas ainda hoje praticam seriamente. O estado das forças produtivas em que a luta pela subsistência fazia parte da vida quotidiana, no entanto, tinha sido deixado para trás há muito tempo pelas sociedades humanas quando, com a agricultura, o sedentarismo, as cidades e as primeiras autoridades, surgiram os primeiros "artesãos".

De natureza diferente é o 'mais trabalho' dos trabalhadores assalariados. É-lhes imposto (geralmente sob ameaça de despedimento) a fim de realizar os objectivos do capital que o utiliza, especialmente (mas não só) para obter um lucro. O trabalho 'mínimo' (sem 'mais') é então definido pelo critério (pelo menos dentro do capitalismo) 'objectivo' de que a partir desta quantidade de trabalho é possível a exploração e, portanto, a relação de capital é viável. Até agora, a clássica oposição de 'necessário' e 'mais' (do que necessário) faz sentido – mas apenas na visão e do ponto de vista do interesse do capital. Para cuja reprodução é preciso 'trabalho necessário'; tem pouco a ver com a reprodução dos trabalhadores assalariados assim que o nível de subsistência é ultrapassado. Do lado dos trabalhadores assalariados, o trabalho 'necessário' termina onde os salários poderiam ser pagos na medida desejada(!). Já não existe aí um critério 'objectivo' para tal. Do seu ponto de vista, o trabalho a mais não deve ser caracterizado como 'mais', mas sim com o oposto linguístico (negativamente conotado) do adjectivo 'necessário', ou seja, como 'supérfluo'.

O conceito de mais-valia de Müller, alargado ao "artesanato", é ainda mais distorcido do que o do marxista comum, que pressupõe, afinal, o dualismo entre trabalho assalariado e capital. À primeira vista, este parece ser apenas um novo exemplo da motivação de branquear a economia das mercadorias esboçando todos os registos, aqui o do ecletismo. A má exploração é apresentada como evitável, mas a mais-valia que lhe está associada é permitida, porque para os economistas 'muito' é sinónimo de 'bom', 'mais' é sinónimo de 'melhor.' Associar mais-valia à "boa vida" é a cereja em cima do bolo. Ao mesmo tempo, a ideia de uma produção de mais-valia sem exploração mostra também a ginástica absurda que a economia apologética já é obrigada a fazer. A fim de dar uma base a este constructo, será óbvio que as leis imaginadas da produção "geral" de mercadorias remontam às propriedades a-históricas das próprias 'mercadorias'. Isto tornaria supérflua qualquer inclusão da dimensão social. Diz que Marx se apercebeu disso no início de O Capital. "Marx lida aí com a mercadoria capitalista e com a mercadoria simples – o correcto não é 'ou/ou' mas 'tanto uma como outra'." (p. 150)

Na realidade, não há produção de mais-valia sem exploração. Müller não se incomoda com isso, mas na próxima etapa da 'análise' da produção de mercadorias sem exploração, opõe-se a um capitalismo maléfico de poderosos "monopólios e oligopólios" que violam as leis da produção "geral" de mercadorias. Estes impedem o artesão de viver bem da mais-valia gerada por si próprio, criando um "valor monopolista" (p. 183) à sua própria custa para obter um "lucro monopolista" (ibid.). O pequeno capitalista espremido para fora do oligopólio (muitas vezes seu fornecedor) é o pendant fora do mercado financeiro do bom capital 'criador', que se torna vítima de um mau capital 'rapinante'. Ambas as figuras de pensamento desempenham um papel central nas 'críticas do capitalismo' de direita, que são descritas do ponto de vista do pequeno produtor que está a ficar debaixo das rodas e quer restaurar a sua (imaginada) 'boa vida' histórica (quando exactamente?) (4) – tal como os social-democratas ainda exigem um capitalismo em que sejam pagos 'bons salários por bom trabalho'. A nível teórico, isto dá origem a 'frentes transversais' e, a nível político, cria fortes correntes de direita que prometem um regresso a tais idílios (que nunca existiram). O seu pensamento considera as mercadorias como coisas acabadas úteis, e ignora o processo de produção de mercadorias ou de valor como uma relação social. É atribuído um valor de troca e um valor de uso positivamente concebíveis à coisa-mercadoria pronta, mas não ao processo da sua realização através do trabalho (assalariado) e de todas as distorções sociais a ele associadas. A coisa mercadoria pronta na prateleira só pode ser distribuída e utilizada, dois processos concebíveis de modo puramente positivo. Tal como outros economistas, Müller procura as 'leis' para isso (para o que o "poder" dos monopólios e oligopólios tem de desaparecer novamente, e com eles a realidade social que se joga com truques e enganos nos mercados, e com coisas ainda piores que se fazem).

Pois em média(!) "nada é roubado" (p. 179), mas "tudo é feito de modo apropriado à troca" (ibid.) "Marx consegue provar que os capitalistas não enriquecem violando [como os monopólios e oligopólios?; K.H.] a lei do valor ao comprar força de trabalho, mas aplicando-a.” (p. 178s.) A argumentação adicional é bem conhecida: o capitalista, depois de comprar força de trabalho, utiliza o seu valor de uso, que consiste em criar mais valor do que o seu próprio valor. Assim, o capitalista recebe "o direito à mais-valia" (p. 179; ênfase K.H.). Neste ponto, vários textos marxistas começam a pingar com o orgulho de que o capitalismo foi por eles melhor (ou primeiro) compreendido do que pelos economistas burgueses. "Ter provado como se cria valor, se todos os bens são trocados de acordo com o princípio da igualdade de prestação e contraprestação é, segundo Engels, a realização do seu amigo mais 'marcante da época'.” (ibidem; ênfase K.H.) Agora Müller pode entrar nos detalhes; começa na página seguinte sob o título "Modificações." Depois dos "economistas da RDA", ele passa através do "preço de produção" e do "preço de mercado" para o "valor monopolista" (que de facto revoga as leis "gerais") e para o constructo neoclássico da "utilidade marginal." A sua (facilmente compreensível) rejeição deste último formalismo como "tautologia conceptual" (p. 189) não o impede, contudo, de desenterrar depois no livro o mono do século XVIII das rendas de propriedade e rendas diferenciais, aceitando neste contexto o conceito formalmente semelhante de produtividade marginal. Tudo o que falta é o slogan da RDA 'ultrapassar sem recuperar' (teoricamente). Já quase nada resta do reconhecimento do capitalismo como um sistema.

Vamos pois analisar mais atentamente as citações do início do parágrafo anterior e, em especial, as palavras sublinhadas a negrito, que tornam visível uma maior confusão de conceitos. Em primeiro lugar, a actividade dos trabalhadores assalariados não proporciona aos capitalistas um "direito", mas sim a verdadeira mercadoria comercializável e o valor nela incorporado. Vendem a mercadoria, atribuindo aos trabalhadores assalariados uma parte das receitas e, por conseguinte, do valor incorporado nos produtos, pagando-lhes salários. Mantêm o resto, um processo conhecido como 'apropriação.' Quer esta expressão seja aplicada a uma quantidade de mercadorias ('mais-produto'), a um valor ('mais-valia') ou à mercadoria-dinheiro ('lucro'), o essencial é que a apropriação ocorra sem que nada seja dado em troca. Isto é tudo menos "troca justa." Economistas clássicos e marxistas escreveram uma torrente de textos sobre o facto de os assalariados receberem menos do que o valor dos seus produtos. A ênfase dada ao aspecto quantitativo do 'menos' levou-os a ignorar algo que já é notável a nível qualitativo, em particular o carácter ‘sistemicamente necessário’ e sistemático desta circunstância, que a distingue de todas as oscilações aleatórias dos preços dos bens comuns. Estes últimos podem ser tanto superiores como inferiores ao que os economistas consideram 'certo', e hoje pode ser verdade isto e amanhã aquilo. A massa salarial, contudo, tem de ser permanentemente inferior à receita do total dos produtos finais (em termos marxistas: V+M), e não 'aproximadamente igual a qualquer X (calculado por economistas)’. Já este aspecto é ignorado pela miríade de "teorias de distribuição" que pretendem determinar um salário quantitativo (!) 'correcto' (geralmente sob o pressuposto tácito do facto qualitativo 'permanentemente inferior').

Os economistas – incluindo os marxistas – já não lidam com o facto puramente qualitativo de que, do lado dos capitalistas, tem de ocorrer uma apropriação sem contraprestação. Em vez disso, a possibilidade de tais processos já está categoricamente excluída, quando são ridicularizados como 'almoço grátis' (tendo em mente o almoço dos trabalhadores assalariados e não dos capitalistas). O processo de apropriação por troca-não-justa abre um buraco no ideal económico da troca de equivalentes, antes mesmo de o mais-produto chegar aos mercados das mercadorias comuns, onde poderia ser trocado. Este buraco é puramente lógico e, portanto, não reparável, especialmente não dentro de 'modelos' (quantitativos). Tem de produzir efeito, o mais tardar, quando o mais-produto chega ao mercado, ou seja, na 'realização' da mais-valia, que é algo em que vários teóricos têm trabalhado sem êxito. (5)

O exemplo mais recente é a confusão de conceitos no livro de Müller, que cita como o principal problema teórico a explicar "como surge o valor, se todas as mercadorias são trocadas de acordo com o princípio da igualdade de prestação e contraprestação" (p. 179; ênfase K.H.). A criação de valor – como relação social ou como pseudocaracterística das mercadorias – baseia-se no trabalho e nada tem a ver com as modalidades de troca. O aparecimento da mais-valia efectivamente entendida aqui pela palavra valor também só pode ser explicado através do trabalho, mesmo que este termo não esteja directamente ligado ao modo capitalista de produção com trabalho assalariado, mas sim utilizado 'neutralmente' no sentido de 'muito' ou 'mais do que x', para que (segundo Müller) o valor também possa ser produzida por produtores "simples" de mercadorias. De acordo com essa redução, a explicação para 'muito valor' é simplesmente 'muito trabalho' e a explicação para 'mais de x euros' é 'mais trabalho do que y horas.' Um problema lógico, e portanto tanto uma oportunidade como um impulso para conhecer as relações capitalistas, só começa com a percepção de que a transformação do trabalho em mercadoria força a apropriação da parte de valor chamada mais-valia sem nenhuma contraprestação. Isto não é compatível com o ideal de regular as relações sociais através da troca de equivalentes concebida como justa(!). Assim, o verdadeiro sistema capitalista elimina logicamente a sua ideologia ou ideologias de justificação denominada 'economia política', antes mesmo de se poderem iniciar as operações de troca consideradas tão importantes pelos economistas (e amplamente calculadas).

Sendo este um problema insolúvel do capitalismo, não pode ser tratado na economia apologética. Se alargarmos o conceito de mercadoria ao trabalho, e se reivindicarmos a validade da 'lei do valor' também para este trabalho, segundo o entendimento marxista, então temos de admitir que parte da circulação de mercadorias comuns foge à mesma lei. Matematicamente, a apropriação de mais-valia teria de ser descrita como uma aquisição a preço 'zero', o que deita fora não só o conceito (e o ideal que contém) de troca 'justa', mas também a matemática de todos os 'modelos' económicos comuns. A ausência de contradições no tratamento da mercadoria força de trabalho tem de ser comprada com contradições fundamentais no tratamento da circulação do mais-produto ou da mais-valia. Em adaptação livre de Marx: Mesmo o mais inteligente e mais calculista economista não pode escapar às contradições do capitalismo.

 

 

5. O dinheiro misterioso – o que ele (não) ‘é’

 

O que Müller e outros economistas têm a dizer sobre os temas actuais "dinheiro" e sistema financeiro resume ele no início do capítulo respectivo: "A situação actual corresponde à de há mais de 100 anos: Não se pode falar de um estado seguro de conhecimento na teoria monetária." (p. 215) Mas porquê? Uma investigação sobre esta matéria não pode ser realizada no mercado, mas apenas nos textos dos economistas.

Müller aproxima-nos de uma explicação, enfatizando: "A dificuldade não é explicar que o dinheiro em si é uma mercadoria. Consiste em explicar por que razão uma mercadoria se torna dinheiro.” (p. 229) Ele formula esta frase no contexto da análise de Marx da forma do valor; o tornar-se dinheiro de uma (!) mercadoria é a última fase do desenvolvimento que antes conduziu da forma de valor simples para a forma de valor geral. Ele entende "desenvolvimento" como um "processo histórico" (ibid.), que é conceptualmente analisado e historicamente entendido em O Capital. Isto permite que a questão (lógica) do 'porquê', dentro de uma página de texto, se transforme na questão (empírica) do 'como' e do 'quando', e permite um processo de pensamento quase sem fim. "As origens do dinheiro perdem-se nas transacções de troca aleatórias, isoladas e primitivas que remontam à pré-história profunda.” (p. 230) Dois minutos de leitura conduzem assim do capitalismo tardio à selva descoberta por Adam Smith, onde os caçadores de veados e de castores da Idade da Pedra fizeram os seus primeiros negócios. Posteriormente, é quase impossível compreender o que quer que seja, porque desde então tem havido muitos 'processos históricos' concebíveis. A única coisa que pode ser compreendida é por que razão todo o capítulo do dinheiro de Müller aparece como uma colecção caótica de desabafos de todo o tipo de economistas, com alguns dos quais ele concorda e com outros discorda.

Se se vê o dinheiro como uma mercadoria e se quer compreender o seu carácter de mercadoria, a lógica elementar dita que se lide primeiro com 'a mercadoria' de um modo mais geral. Embora esta consideração ainda não proporcione uma compreensão do 'dinheiro', ela proporciona uma compreensão da a-histórica compreensão do dinheiro de Müller: é uma consequência directa da sua compreensão a-histórica da mercadoria (da produção de mercadorias) com leis "gerais" (implicitamente: eternas). Contudo, tendo em conta as contradições do capitalismo, ele não pode manter isto e, de uma maneira que só pode ser chamada pós-moderna, ele cria liberdades para si próprio com frases como: "Assim, há dinheiro que ao mesmo tempo é capital e também há capital que ao mesmo tempo é dinheiro.” (p. 142) Isto só pode ser escrito se, no fundo, se pensar: 'Além disso, há capital que é tudo menos dinheiro, tal como há dinheiro que é tudo menos capital.' A frase citada desmantela de uma penada o conceito de dinheiro e o conceito de capital. Podemos, portanto, concordar plenamente com a frase seguinte: "O exemplo mostra como pode ser difícil levar os problemas ao seu correcto conceito." (ibidem).

Afinal, a economia clássica – e Marx baseado nela – já distinguia diferentes categorias de mercadorias, nomeadamente o capital variável V, o capital constante C e o mais-produto M. Poder-se-ia tentar classificar o dinheiro e/ou a(s) sua(s) função(ões) nestas categorias. Para tal, contudo, seria necessário ter um conceito claro das três categorias V, C e M. O facto de Müller não ter um tal conceito já é evidente desde a sua introdução. A primeira coisa que aparece na p. 142 é o "capital fixo", uma forma especial de capital constante, que sempre foi uma grande dificuldade para os economistas (por boas razões!). O termo não é explicado nesse momento. O conceito mais geral de 'capital constante' aparece na p. 260 como parte do "capital total" c+v, mas sem justificar a combinação dos termos 'constante' e 'capital'. Isto seria urgentemente necessário, uma vez que na p. 142 o capital é descrito como um "valor que se valoriza [ou seja, em aumento, K.H.]." Também não existe qualquer justificação para a formação do conceito de capital total c+v, o que seria necessário, pois apenas a sua parte v (trabalho vivo) contribui para a valorização (aliás, aumento) do capital. Aqui, o facto de Müller varrer tudo o que tem a ver com a transformação do ser humano em 'mercadoria força de trabalho' é uma característica marcante. Embora reduza quantitativamente a trabalho o 'valor' ao nível da empresa individual e da mercadoria individual, não considera necessário explicar por que razão o trabalho total não é representado pela produção empresarial total de c+v+m de mercadorias, mas apenas pela sua parte v+m, o valor novo (no caso de Müller na p. 261: "valor criado de novo"). Também para Müller, o trabalho incorporado em c desempenha um papel importante na temática da queda da taxa de lucro (p. 268ss.). Uma análise dos debates que giram em torno desta questão foi realizada noutro local; (6) aqui, utilizando o livro de Müller como exemplo, vamos apenas examinar como a sua confusão de conceitos turva a compreensão do dinheiro.

Müller quer abordar o fenómeno da mercadoria-dinheiro analisando, entre outras coisas, a sua função. "A sua primeira função, que há algum tempo não é mencionada nos manuais escolares, é-lhe consubstancial: consiste em expressar valores, em medi-los." (p. 217) Depois demarca este seu entendimento do dinheiro do de outros economistas: "Os manuais escolares, mesmo os dos economistas 'alternativos' (7), mencionam três funções básicas do dinheiro: meio de conservação do valor, meio de troca e unidade de conta. Já não se fala da função de medida do valor." (p. 248) Obviamente não percebeu que a 'medição' tem lugar quando o dinheiro é utilizado como meio de troca: atribui-se o valor de troca de 1 euro a uma mercadoria exactamente quando (ou exactamente porque) 1 euro é normalmente pago por ela. Analogamente, atribui-se a massa ‘1kg’ a um objecto, se o ponteiro da balança marcar ‘1kg’. A confusão torna-se clara no contexto de uma citação de Marx, que Müller faz antes da última passagem referida: "O dinheiro é a medida dos valores" (ibid.). Tomada literalmente, esta pequena frase deixa em aberto se a palavra "é" é usada no sentido de 'funciona como', ou seja, representa uma "relação social", ou se deve caracterizar uma coisa, como na frase 'isto aqui é um carro'. Müller esclarece imediatamente o seu próprio mal-entendido: "A medida deve ser da qualidade do que deve ser medido.” (ibid.) Esta confusão entre quantitativo ('medir') e qualitativo mostra que – como é típico dos economistas – lhe falta qualquer compreensão do processo de medição. Uma medida (há sempre muitas!) deve ter a qualidade a ser medida em quantidade fixa. A medida do metro deve ter um metro de comprimento, e um quilograma de peso, 1 kg. Todas as suas outras qualidades, de cuja combinação resulta(m) a(s) "qualidade(s)" das coisas, são, em princípio, irrelevantes e, quando muito, tecnicamente relevantes. Um peso pode ser líquido ou sólido, e ser constituído por água, óleo, ouro, madeira ou alumínio, desde que tenha uma massa de apenas ‘1kg’. A determinação da 'massa' não inclui todas as outras qualidades quantificáveis e, por conseguinte, todas as qualidades do objecto, uma vez que só uma tal redução torna possível a comparação quantitativa. Aqueles que – como os economistas – declaram que 'mais' é o objectivo mais elevado e, portanto, o quantitativo é a mais elevada (única?) qualidade, já não conseguem compreender nada neste ponto. Em particular, os economistas já não conseguem compreender que uma medida ao serviço do processo puramente social de troca de mercadorias, ou seja, da distribuição, exige para a determinação dos valores de troca, antes de mais, uma aceitação social geral e não quaisquer propriedades físicas.

Por isso, Müller perambula entre as páginas 217 e 248 pelos debates dos economistas burgueses sobre um papel especial do ouro, que acaba por aceitar ao descrever o ouro como a "mercadoria-dinheiro", que apenas é representada pelo papel-moeda, pela moeda escriturária, etc. "O contexto lógico-histórico mostra que os representantes monetários são descendentes e não concorrentes da mercadoria-dinheiro. Os símbolos do dinheiro continuaram a ser representantes do ouro da mercadoria-dinheiro, embora tenham sido quebrados os vínculos jurídicos fixos entre eles e o ouro. O papel-moeda dos bancos centrais – notas de banco inconvertíveis – é dinheiro representativo." (p. 248s.) A designação das formas de dinheiro como "representantes" e "concorrentes" mistura de modo interessante o entendimento do dinheiro como um objecto com o entendimento do dinheiro como um fenómeno social. Uma correspondente confusão conceptual quotidiana (em Marx: 'vulgar') rotineiramente descreve o ganho (= obter de outra pessoa) de dinheiro como 'fazer dinheiro'; o seu aumento económico pretende explicar (ver capítulo 6 infra) a circulação do mais-produto a partir de existências (quantidades de dinheiro) fixas. "A mente burguesa positivista do quotidiano normalmente imagina o dinheiro como um facto material bruto. O dinheiro é para ela uma coisa entre outras, verificável como uma quantidade positiva ou mensurável como um saco de batatas. Tem-se ou não se tem; mil milhões de marcos são mil milhões de marcos como uma tonelada de beterraba sacarina é uma tonelada de beterraba sacarina. [...] Mas como esta coisa que é a forma social fetichista, o dinheiro não é um facto positivo nem uma quantidade positivamente mensurável. [...] O facto de 100 Marcos nem sempre serem 100 Marcos revela-se verdadeiro numa situação em que as lojas estão como que vazias e 100 Marcos poderiam muito bem ser 100 pedaços de confetis. Ou, pelo contrário, quando as lojas estão cheias, mas a inflação é fortemente sentida, faz com que os preços sejam de tal ordem que o dinheiro no bolso encolha para nada, embora pareça ser 'positivamente' os mesmos 100 Marcos que antes. Durante o galopante aumento do preço da gasolina nas crises petrolíferas dos anos 70, a voz do povo expressou o carácter ilusório do dinheiro através da conhecida anedota: Não posso ser afectado pelo aumento dos preços porque ponho sempre 10 marcos no depósito." (8) Nesta anedota – ao contrário dos escritos dos economistas – pelo menos brilha um vestígio de reconhecimento do absurdo da economia monetária.

Müller acrescenta uma outra (generalizada) confusão de termos, ao descrever o abandono do padrão ouro como a abolição de um "vínculo jurídico", em vez de abandono de uma "calibração" (puramente quantitativa): '1 onça de ouro vale $30' ou '$1 é o valor de 1/30 de onça de ouro' (9) . Ele tem de ignorar o carácter material desta relação, porque o aumento contínuo do preço do ouro fez com que a mesma nota de dólar 'representasse' sucessivamente diferentes peças de ouro (que, com as flutuações, se tornam continuamente mais pequenas).Nestas circunstâncias, uma nota de dólar e uma peça fixa de ouro já não podem ser utilizadas paralelamente sem qualquer crítica (!) para 'medir', tão pouco como dois 'pesos', cujas massas eram as mesmas há 50 anos atrás, mas alguns anos mais tarde diferiram por um factor de 3, e hoje diferem por um factor de 50. Os físicos duvidariam então da adequação de ambas(!) as coisas para serem usadas como padrão. Os economistas deviam dar pelo menos este passo, se já não estão em condições de questionar fundamentalmente a economia monetária e com ela a 'medição de valores'.

Ao fugir para um papel especial da coisa 'peça de ouro', Müller evita uma resposta à questão de saber por que razão nos últimos tempos os 'representantes' estão a multiplicar-se tão rapidamente, mas não a coisa representada. Como em muitos textos económicos, no seu livro confundem-se três temas que deveriam ser abordados a diferentes níveis. O primeiro é a emergência da economia monetária, aliás das mercadorias como tal, que é um processo social. Se se seguir a preferência de Müller por analogias científicas, os tratados sobre esta matéria seriam o equivalente a escritos sobre a invenção e a difusão da engenharia mecânica. O segundo tema é a história dos meios de pagamento sob o capitalismo, em particular o seu desenvolvimento, desde os metais preciosos até ao papel-moeda e à moeda escritural. Os tratados de engenharia análogos descrevem as máquinas a vapor, os motores diesel e os motores eléctricos, que se complementaram ou substituíram na função de propulsão, de modo semelhante às diferentes formas de dinheiro na função de meio de pagamento.

O terceiro tema é a actual explosão do sistema financeiro. Não existem escritos técnicos análogos sobre este tema; eles descreveriam o fenómeno mal compreendido de que cada vez mais motores sem qualquer sentido reconhecível aumentam a sua velocidade de rotação até alcances onde se deve temer a sua explosão. Müller 'trata' este terceiro tema referindo-se a peritos que têm tudo sob controlo. "Em primeiro lugar, é verdade que o banco central pode criar dinheiro sob a forma de notas e saldos no banco central, e fá-lo na medida em que é obrigado a fazê-lo ou o considera desejável, e os bancos comerciais não frustram os seus planos." (p. 252) Com os bancos comerciais surge até um pedaço do capitalismo e do sistema financeiro, mas é rapidamente desvalorizado. Pois a criação de dinheiro do banco central estaria ligada a "certas [condições]" (p. 253), especialmente à "evolução da produção e dos preços, à oferta de [porque não a procura de?; K.H.] títulos e divisas [porque não crédito?; K.H.], e à vontade dos bancos comerciais de seguirem a sua política." (p. 253) Na verdade, estes não podem fazer mais do que "seguir", porque "a moeda escritural ou descoberto em conta criada pelos bancos comerciais é uma forma de dinheiro de crédito. Pela sua própria natureza, é um crédito sobre a moeda do banco central, permanece subordinado a ela e deriva dela. Quando os bancos concedem créditos em dinheiro do banco central sob a forma de crédito em conta, o dinheiro não foi criado, mas foi pressuposto[!].” (p. 255) Todos os outros pontos de vista equivaleriam a "feitiçaria", como no caso da "viúva do Antigo Testamento [...] cuja almotolia de azeite não se esvaziou durante um período de inflação por ordem de Deus." (ibidem).

Em resumo: o banco central regula o sistema monetário em benefício do capitalismo e o mercado faz o resto. Isso é tudo o que se sabe e é tudo o que se precisa de saber. Assim se ignora a questão da constituição deste sistema (por que razão é que uma 'economia' alegadamente regulada pelo 'mercado livre' precisa de um banco central?) e se declara impossível qualquer má gestão perigosa. Apenas os aspectos mais ou menos técnicos do sistema monetário são tratados e a questão da razão da explosão da massa monetária é contornada. O que também deixa sem resposta a questão de saber como isto é compatível com o seu papel de 'representantes' da quantidade quase constante do 'ouro mercadoria-dinheiro'. Uma vez que Müller atribui o valor ao trabalho e também canta em alta voz em louvor do eterno progresso das forças produtivas (p. 84ss.), seria apropriado, neste momento, descer um nível e lidar com o que o progresso contínuo da produtividade faz a uma peça de ouro na sua qualidade de 'padrão do valor'.

Se o dinheiro do banco central é posto como uma nova mercadoria-dinheiro (10) , as contradições mudam apenas um pouco: como é que o seu crescimento se concilia com o facto de, após a implementação do trabalho assalariado em todas as regiões do mundo e em todas as áreas da sociedade, o crescimento da força de trabalho ter de estagnar? Mas Müller ignora mesmo o facto – agora amplamente discutido até na imprensa burguesa – de que os títulos financeiros estão a multiplicar-se, um exemplo notável da negação da realidade inerente a todas as variantes da economia. A busca intensiva de um modelo que funcione ignora completamente quanto o original a ser descrito já está gemendo e chorando.

 

 

6. O dinheiro misterioso – o que ele (não) ‘faz’

 

A brusca mudança que ocorre no processo, superficialmente capturada pelos economistas empresariais nos movimentos de dinheiro e da acumulação de capital, já causou problemas a muitos teóricos; Müller aproxima-nos um pouco mais da sua fonte, referindo-se positivamente a um elemento central da compreensão burguesa do dinheiro, a chamada equação quantitativa: "Com uma certa quantidade de dinheiro, diferentes valores económicos podem ser realizados. O factor decisivo aqui é a velocidade de circulação do dinheiro, ou, mais precisamente, a frequência com que as mesmas unidades monetárias são utilizadas para pagamentos num determinado período. Se uma unidade monetária for utilizada em média duas vezes para pagamentos, apenas é necessária metade da quantidade de dinheiro que seria necessária para pagar o preço de uma quantidade de mercadorias utilizando a unidade monetária uma só vez." (p. 225) (11)

O conteúdo desta citação é aceite (por vezes dissimuladamente) em muitos textos económicos. Fornece conhecimentos não só sobre o dinheiro, mas também sobre o (não-)pensamento económico, a começar pelo facto de os economistas concluírem o oposto do seu conteúdo. Enquanto os bancos centrais e os responsáveis pela política financeira, aconselhados pelos economistas, se esforçam por controlar 'correctamente' a(s) massa(s) monetária(s) e a velocidade de circulação, de acordo com a redacção da citação, cada uma destas variáveis não tem – para o dizer sem cerimónia – qualquer importância. Pois, de acordo com o conteúdo da equação, não só cada alteração numa pode ser compensada por uma alteração adequada na outra, como, além disso, a formulação da equação ‘oferta de moeda x velocidade de circulação = constante’ já assume que tais compensações ocorrem automaticamente. Por conseguinte, qualquer intervenção num dos dois factores tem de permanecer sem efeito. Uma alteração no produto da oferta de moeda pela velocidade de circulação não tem de permanecer ineficaz (ou de ser significativa); mas as construções teóricas construídas em torno da equação quantitativa não podem pronunciar-se sobre este produto. Os economistas concentram-se nos dois factores irrelevantes e evitam lidar com a única quantidade interessante, o seu produto. O produto surge-lhes como uma constante com um carácter de direito natural, onde de modo nenhum se pode interferir. Em vez da questão de saber se (e possivelmente porquê) a equação quantitativa é 'correcta', há que perguntar como é que o pensamento económico a pode estabelecer.

Vejamos primeiro a circulação da quantidade de mercadorias e dinheiro que representa o capital variável, a nível do conjunto da economia. Os salários são normalmente pagos numa base mensal no primeiro dia do mês e depois novamente gastos no decurso do mês em bens (principal mas não necessariamente em bens de consumo) que entram no mercado durante este período. No primeiro dia do mês seguinte, uma produção mensal de bens para os salários está consumida, através da sua venda, toda a massa salarial está devolvida ao capital e pode ser paga de novo pelo capital. (12) Depois o ciclo pode repetir-se, pelo menos num modelo que ignora a dinâmica do capitalismo e especialmente a acumulação de capital. Se partirmos do princípio de que só tem lugar a reprodução simples, isso é inevitável; os economistas gostam, portanto, de utilizar este irreal caso especial para demonstrar a concludência de uma teoria – ou da equação quantitativa – neste caso. No entanto, normalmente omitem que, nestas condições, a validade da equação é 'zero', porque se em 1 de Janeiro fosse pago um salário anual, o sistema precisaria de uma quantidade de dinheiro doze vezes maior, sem trabalhar mais um segundo durante o ano e sem produzir, comercializar e consumir nem mais um átomo de qualquer mercadoria. Tal circulação (de algum modo!) fixa de mercadorias é implicitamente assumida pela equação. Se os salários fossem pagos anualmente em vez de mensalmente, cada "unidade monetária" seria apenas utilizada para comprar ('medir o valor'!) com 12 vezes menos frequência e, em contrapartida, ficaria em torno de uma dimensão média 12 vezes maior entre duas dessas utilizações.

O mesmo se aplica ao volume de negócios do capital constante, (13) que se realiza exclusivamente entre capitais: quanto mais líquido for o consumo, a renovação e o acerto de contas, menor quantidade de dinheiro (no conjunto da economia) ou menos adiantamentos de capital (a nível da empresa individual) são necessários. O facto de o longo e muito variável tempo de vida física dos bens de capital dificultar a liquefacção da sua circulação gera o (dinheiro) de crédito como forma de dinheiro. Nesta medida, o recurso à equação quantitativa é concludente.

Muitos economistas conseguem descrever estes factos (ou pelo menos referir-se positivamente à equação quantitativa) sem os compreender. A falta de compreensão torna-se evidente, entre outras coisas, pela forma como é tomada como certa nos debates sobre a taxa de lucro e pela sua tendência para assumir um adiantamento anual de todas as componentes do capital, ignorando o facto de que isso já é, empiricamente, grosseiramente errado para o capital variável. Esta crítica não se aplica ao livro da Müller; a influência do tempo de rotação dos bens de capital na taxa de lucro é discutida na p. 261s. Mas Müller omite uma reflexão mais aprofundada: a opção de compensar uma redução da massa monetária através da aceleração do volume de negócios (ou vice-versa) pressupõe um ciclo fechado dos bens em causa e, por conseguinte, do dinheiro em questão. Se dinheiro ou mercadorias existentes(!) desaparecessem do ciclo de algum modo, ou se 'novo' dinheiro ou novas mercadorias entrassem em algum lugar, cada(!) "unidade monetária" já não poderia servir o mesmo propósito várias vezes (tendencialmente com uma frequência arbitrária) no 'mesmo' lugar. Tal processo não periódico é a realização (entrada em circulação) do mais-produto.

A consideração acima inclui apenas a reprodução do aparelho de produção existente V+C (força de trabalho, matérias-primas, produtos intermédios e meios de produção). Por conseguinte, só estaria completa no caso irreal de uma soma de mais-valia e de lucros 'zero', em que todas as peculiaridades da circulação da mais-valia e, especialmente, os processos de 'apropriação' e de 'realização' no seu início pudessem (ou tivessem de) ser ignorados. Só numa irreal economia de mercadorias de lucro zero é que a produção consiste inteiramente nas categorias de mercadorias V e C, e só para um sistema irreal deste tipo é que a equação quantitativa pode ser estabelecida e as conclusões acima referidas podem ser tiradas, especialmente que a oferta de moeda é, em princípio, arbitrária, e as barreiras à mesma são fixadas apenas por elementos técnicos secundários (especialmente pela duração da vida dos bens de capital e pelo ritmo de vida diário ou semanal dos trabalhadores assalariados).

Dentro de limites técnicos, a circulação de V e C também pode ser gerida permanentemente com uma massa monetária constante. Este é um pré-requisito necessário (mas geralmente ignorado) para se poder formular a equação quantitativa; o caso (concebível) da velocidade de circulação constante torna-o matematicamente claro. Da circulação de V e C, portanto, não se pode deduzir qualquer razão fundamental para um crescimento da(s) massa(s) monetária(s). Mas também a circulação (e em particular a realização) da mais-valia M poderá ser gerida permanentemente com uma massa monetária constante? Para o efeito, é necessário analisar mais de perto a circulação das três categorias de mercadorias.

A venda de uma quantidade de mercadorias exige que alguém pague uma soma de dinheiro numericamente igual ao valor de troca dessa quantidade de mercadorias. Para que todos os capitais vendam a quantidade de mercadorias C dentro de um (de cada!) ciclo, alguém tem de recolher dentro do ciclo dinheiro igual ao valor de troca de C. Este alguém existe: é a totalidade dos capitais, porque todas as mercadorias da categoria C são vendidas de capitais para capitais. A cada despesa de um capital neste comércio corresponde um rendimento igual de outro capital. (14) Não à primeira vista, mas certamente à segunda, o mesmo se aplica analogamente à circulação da quantidade de mercadorias V. É vendida por capitais e comprada por trabalhadores assalariados, sendo a compra feita a partir de salários pagos por (outros) capitais. Também aqui, a totalidade das capitais acaba por funcionar como vendedor e comprador, no primeiro caso directamente e no segundo indirectamente. (15)

Tal como outros economistas, Müller ignora o facto de a observação acima referida captar completamente a procura, mas não a oferta de mercadorias. A venda em curso de V e C só pode gerar, a longo prazo, o poder de compra necessário para comprar a mesma quantidade de mercadorias V+C. Mas não é criado mais poder de compra, embora seja necessário vender continuamente o mais-produto M. A razão pela qual o ciclo de mercadorias não gera poder de compra para isso (16) reside na criação do mais-produto ou mais-valia a partir do ‘trabalho não pago’. (17) A sua apropriação tem lugar sem que ninguém seja pago por ela. Assim, ninguém recebe dinheiro pelo qual o M possa ser pago em troca. Tal como o mais-produto chega às mãos do capital por apropriação em vez de compra, também o dinheiro para a sua (primeira) compra tem de chegar às mãos dos compradores por outros meios que não a venda. Tal como M vem de um nada (de mercado), ou seja, é introduzido na circulação de fora dele, também o dinheiro para a sua compra tem de vir de outro nada (de mercado), ou seja, tem de ser 'criado'.

Este processo é tão fora da troca justa como a apropriação do mais-produto, razão pela qual o pensamento económico tem de o esconder. É assim que surgem as comparações com "feitiçaria" e milagres do Antigo Testamento no livro de Müller. Alguns (mas não todos) os 'críticos do capitalismo' de direita negam a possibilidade de criação de dinheiro com argumentos que vão desde as (alegadas) leis da natureza até às (reais) regras contabilísticas existentes. O quanto o pensamento é limitado neste ponto é mesmo demonstrado pela linguagem quotidiana: 'ganhar dinheiro' (ou seja, obtê-lo de outra pessoa) é chamado 'fazer dinheiro.' Tudo isto faz lembrar fortemente os tabus das formações sociais 'primitivas', de que as pessoas modernas se riem cordialmente em outros lugares. Nenhum deles parece notar que o processo puramente técnico de criação de dinheiro é tão simples que, desde o advento dos 'meios de pagamento', as autoridades, por um lado, com a maior naturalidade o usaram para os seus próprios fins (por exemplo, na deterioração da moeda) e, por outro lado, perseguiram-no como um crime grave entre os seus súbditos.

A equação quantitativa e todo o pensamento nela baseado não conseguem captar a criação de dinheiro, uma vez que a derivação da equação assume como único processo as compras e as vendas (ou seja, os processos de troca). O facto e o papel central da apropriação não paga de mais-valia na produção capitalista de mercadorias não só é incompatível com a equação quantitativa, como também com o ideal burguês, ou com a crença na troca de equivalentes. Uma vez que a criação contínua do dinheiro necessário para a realização da mais-valia assegura a existência do fenómeno 'Estado' (mais genericamente: 'política'), também isto continua a ser incompreensível para os economistas burgueses – incluindo os marxistas, como mostra o livro de Müller (para mais pormenores ver a publicação mencionada na nota 6).

Não é a circulação "simples" (Müller) de mercadorias que explica o aparecimento e crescimento de (quantidades de) dinheiro, mas sim a necessidade de criação contínua de dinheiro que surge com o trabalho assalariado. As quantidades de dinheiro sob a forma de metais já existentes poderiam ser utilizadas para cumprir a função monetária de 'realização de mais-valia', desde que o capitalismo inicial conseguisse obter quantidades suficientes de um outro nada (de mercado) que não a emissão monetária. Uma dessas fontes foi a pilhagem de "estratos sociais ou sociedades que não produzem capitalistamente". (18) ‘Suficientes’ implica, entre outras coisas, que o valor dessas mercadorias monetárias atinja a proporção M do produto final. Enquanto isso batesse certo, o capitalismo poderia processar por si próprio, sem que se tornasse visível uma dura barreira à sua 'sistemicamente necessária' expansão sem fim.

Este estado de coisas terminou, o mais tardar, com a aplicação de todas as forças produtivas para fins bélicos durante a Primeira Guerra Mundial, o que fez subir com um enorme impulso o volume do valor novo V+M e, especialmente, a quota M. Não é por acaso que todas as nações europeias beligerantes tiveram de desistir da paridade de ouro da sua moeda durante este período para poderem cobrir os custos explosivos da guerra. Economicamente, o armamento não é mais do que um consumo de luxo. Mais concretamente: uma parte da mais-valia que é 'consumida' colectivamente em vez de individualmente (e de modo totalmente destrutivo!). Uma vez que o Tesouro e o Estado estão envolvidos na apropriação e no 'consumo' desta parte da mais-valia, este período trouxe o crédito estatal como um fenómeno duradouro e, com ele, uma enorme expansão do sistema de crédito no seu conjunto. (19) Este processo permaneceu incompreensível para os economistas burgueses, uma vez que a mais-valia, juntamente com todos os fenómenos associados de falta de pagamento permanecem invisíveis para eles. Confundem a entrada do mais-produto em circulação em troca de dinheiro criado com a produção desta parte do produto (marxistas: com (mais-)trabalho), o que dá origem a numerosas ideias duvidosas sobre a necessidade de 'cobrir' o dinheiro com os chamados 'verdadeiros valores.' Se nos dermos conta de que a criação de dinheiro serve para a realização de trabalho 'não pago', o contrário parece ser logicamente correcto: o dinheiro não pode ter origem ou ser explicado a partir do trabalho, mas apenas a partir de um nada (económico!) e, consequentemente, não apenas pode assumir formas que estão arbitrariamente afastadas dos produtos do trabalho, mas tem de fazê-lo em algum momento.

Para realizar na circulação todo o mais-produto com dinheiro-ouro, ou mesmo para 'cobrir' o papel-moeda criado para o efeito, o ouro teria de ser continuamente produzido até ao valor deste mais-produto e apropriado sem ser pago, ou seja, o mais-produto físico teria de consistir inteiramente em ouro. Na realidade, isto é obviamente impossível. "Este problema criado pelo próprio desenvolvimento capitalista no plano do capital monetário levantou necessariamente a questão do papel da mercadoria-dinheiro no sistema de crédito em expansão contínua. O resseguro sob a forma do padrão-ouro, ou seja, da convertibilidade em ouro das divisas, começou a tornar-se um empecilho porque travava a expansão das funções formais do dinheiro no âmbito do crédito e ameaçava limitar estruturalmente o seu volume” (Robert Kurz: Geld ohne Wert, Berlim 2012, p. 330 [Dinheiro sem valor, Antígona, Lisboa, 2014, p. 298]). Em termos reais, o padrão ouro há muito se encontra no caixote do lixo da história do capitalismo. Mas não importa se e a que profundidade se tenha afundado, os 'críticos do capitalismo' de direita (mas também 'alternativos') ainda hoje aí estão a escavar – apenas para o desenterrar de novo.

A necessidade de criação contínua de dinheiro na dimensão do valor do mais-produto explica a crescente velocidade de expansão do sistema financeiro. A taxa de exploração M/V é, ao mesmo tempo, a relação entre a criação corrente de dinheiro e o rendimento corrente total do trabalho assalariado. Se o crescimento da produtividade física faz este rácio tender para o 'infinito', então, do ponto de vista dos trabalhadores assalariados, surgem com efeito fabuloso entradas de dinheiro para aqueles que se conseguem chegar directamente aos rios de dinheiro acabado de criar. Ao mesmo tempo, o rácio entre a criação anual necessária de dinheiro M e o valor novo anual V+M tende para '1'. Uma vez que não existe um mecanismo que de forma fiável destrua continuamente dinheiro ou títulos financeiros, o stock monetário (ou seja, a soma de todas as criações monetárias passadas) tende a aumentar infinitamente, mesmo em comparação com o volume da circulação de mercadorias actual (independentemente do período de tempo). (20) A quantidade de dinheiro e com ela o valor circulante no sentido de 'valor de troca' são assim inflacionados até ao infinito, enquanto qualquer valor de uso só é objectivado em doses homeopáticas de valor no sentido de trabalho. (21) Esta discrepância pode ser entendida como uma desvalorização da mercadoria-dinheiro em relação a trabalho, formulada por Robert Kurz no título do livro "Dinheiro sem valor". Um 'padrão de valor' fisicamente definível, que represente permanentemente uma determinada quantidade de trabalho (abstracto), não pode, por conseguinte, existir. Só os apologistas que (querem) ver o capitalismo como um todo harmonioso composto pelas três componentes valor de uso, trabalho e dinheiro podem ficar surpreendidos com isto.

A ilusão de uma harmonia entre valor de uso, trabalho e dinheiro constitui o invisível núcleo do conceito clássico e marxista de valor, reconhecível, entre outras coisas, pela forma como os textos económicos saltam repetidamente entre estes três níveis. De página para página, de parágrafo para parágrafo ou mesmo de frase para frase, o capital variável V (por exemplo) pode ser entendido alternadamente como a quantidade de bens necessários para a reprodução da força de trabalho, como o trabalho necessário para isso, ou como o montante do salário que serve para a sua aquisição. Esta confusão assume um entendimento popular (para Marx: vulgar) destes elementos como positivos mutuamente dependentes, o que produz expressões como 'trabalho de valor(!)', 'bom salário por bom trabalho' ou 'a qualidade tem o seu preço'. Na realidade, este trio está a desintegrar-se cada vez mais rapidamente. Se todas as regiões do mundo e todas as classes sociais estão incluídas no trabalho assalariado, o volume anual de trabalho em horas tem de começar a estagnar. Paralelamente a isto, cada novo progresso das forças produtivas faz com que diminua a parte V do produto final que serve para a reprodução da humanidade e, portanto, a parte do trabalho total que pode ser incluída em qualquer ideologia positiva, enquanto a criação monetária necessária para realizar a proporção M, que inversamente está a aumentar, faz com que a oferta monetária expluda até ao infinito. Só na imaginação dos economistas tudo isto pode ou irá (!) harmonizar-se permanentemente entre si.

No final deste desenvolvimento, não há 'menos' ou 'muito pouco' valor no sentido quantitativo, mas sim o desaparecimento da positiva ficção do valor enquanto tal – ou seja, 'nenhum valor' apesar de cada vez mais dinheiro (bem visível!). (22) A tendência de crise do capitalismo tardio daí resultante já não pode ser formulada apenas a nível do dinheiro. Na medida em que cresce a quota M do produto final V+M a comprar pelo dinheiro criado, a forma física desta parte pode afastar-se cada vez mais daquilo que os economistas afirmam ser o objectivo da actividade económica capitalista: a satisfação das necessidades humanas. Com formas destrutivas de 'produtos', surgem formas destrutivas de 'trabalho' e outras práticas sociais destrutivas. Tudo isto esmaga a quota V do produto final e, em última análise, ameaça minar a habitabilidade da Terra. O meio material V que pode ser utilizado para sustento da humanidade e, com ele, a própria humanidade tornam-se um apêndice da parte M do produto (e do trabalho), que serve apenas o fim da valorização, o que introduz elementos cada vez mais destrutivos e loucos, tanto no processo de produção como nas formas da parte V do produto (e do trabalho) – em vez de pelo menos os "artesãos" ainda dele poderem "viver bem" (Müller).

 

 

7. Observação final

 

A análise acima do livro de Klaus Müller não pretende ser exaustiva. Nenhuma crítica da economia pode ser completa, porque para isso o seu tema (economia política) teria de ser pelo menos meio completo e conclusivo, e não obviamente "fragmentado e desfiado" (Müller). Se se tentar alcançar a exaustividade através da elaboração de uma teoria positiva completa, mais cedo ou mais tarde – como Müller – cai-se nos batidos maus caminhos por onde a economia apologética quer curar o capitalismo com rezas.

 

 

Notas

 (1) Klaus Müller, Auf Abwegen, Von der Kunst der Ökonomen sich selbst täuschen [Por maus caminhos, Sobre a arte de os economistas se enganarem a si próprios], Verlag PapyRossa, Colónia 2019. Todas as referências de página do artigo remetem para este livro.

 (2) Resta saber se uma tal corrente pode realmente ser apreendida em termos de conteúdo, ou seja, se as semelhanças ultrapassam uma abordagem filológica de Marx (com detalhada exegese de texto). Müller subsume sob "NLM" os autores Backhaus, Heinrich e Elbe, bem como as revistas Prokla, Argument, Krisis e Exit!

 (3) Müller promove tal interpretação quando escreve (entre outras coisas): "Na transição da produção de mercadorias geral [!] da produção de mercadorias simples para a produção de mercadorias de cunho especificamente capitalista, a primeira não se desmorona. Ela permanece com um significado alterado, é modificada, desenvolvida[!], enriquecida por algo novo[!].” (p. 149)

 (4) A mesma imagem do artesão decente, trabalhador e produtivo é cultivada pela economia mainstream quando apresenta as padarias nos seus manuais como exemplos de 'gestão económica.' Cf. do autor: Des Bäckers umwerfende Theorie vom Gleichgewicht [A espantosa teoria do equilíbrio da padaria], https://www.exit-online.org/textanz1.php?tabelle=schwerpunkte&index=15&posnr=179&backtext1=text1.php. No livro de Müller esta profissão aparece na página 169, complementada na p. 191 por ferreiros, açougueiros, sopradores de vidro e pintores. É omitido mostrar como e porquê(!) as pequenas empresas (recentemente: 'fornecedores') estão "regularmente" a ficar debaixo das rodas do capitalismo.

 (5). Entre outros, Rosa Luxemburgo, "Die Akkumulation des Kapitals", http://www.mlwerke.de/lu/lu05/lu05_005.htm. Para uma crítica a esta e outras teorias da crise, ver Robert Kurz: Substanz des Kapitals Teil II, in: Exit Nr. 2 p. 166ss. Trad. port. (parcial): A substância do capital, 2ª Parte, online: http://www.obeco-online.org/rkurz226.htm

 (6). Ver sobre isto do autor: "Immer mühsamer hält sich die Profitrate, https://www.exit-online.org/textanz1.php?tabelle=autoren&index=21&posnr=587&backtext1=text1.php [Trad. port.: É cada vez mais difícil manter a taxa de lucro, online: http://www.obeco-online.org/knut_huller.htm]. Este texto trata em particular do ramo neo-ricardiano da teoria, que se baseia estreitamente nos "grandiosos modelos input-output de Leontiev" (Müller) e absorve assim precisamente os restos do marxismo tradicional.

 (7) Esta palavra não será mais explicada. Muitos teóricos e publicações de esquerda, mas também bastantes de direita, descrevem-se a si próprios como 'alternativos.' Este pormenor do livro de Müller mostra também como são criadas 'frentes transversais.' Tais amálgamas acabam por não expressar outra coisa senão a falta de perspectiva da sociedade capitalista tardia: no impasse, desaparece a diferença entre 'para a frente' e 'para trás', tal como a diferença entre 'para a direita' e 'para a esquerda.' Em termos pós-modernos: 'Tudo é possível' ou 'Nós queremos qualquer coisa'.

 (8) Robert Kurz (Potemkins Rückkehr – Attrappen-Kapitalismus und Verteilungskrieg in Deutschland , Berlin 1993, p. 140s.) Trad. port.: O retorno de Potemkin. Capitalismo de fachada e conflito distributivo na Alemanha, Paz e Terra, S. Paulo, 1993.

 (9) Analogamente em física: '1kg é a massa deste pedaço de platina em Paris.' O facto de o 'kg' ser entretanto definido de forma diferente (ver https://www.spektrum.de/news/das-urkilogramm-ist-endgueltig-geschichte/1647288) não afecta a analogia, tal como o facto de estarem a ser utilizadas várias outras unidades de 'massa' (que podem ser trocadas umas pelas outras sem quaisquer problemas, se necessário).

 (10) Essa fuga do ouro é ocasionalmente tentada quando a abordagem física do 'metalismo' (dinheiro=metal nobre) ao conceito de dinheiro se revela insustentável. Em estreita ligação com esta está a seguinte posição: "Actualmente, os créditos e garantias negociáveis (por exemplo, obrigações do Tesouro) acumulados pelos bancos centrais no decurso das suas actividades de 'criação de moeda' detêm a posição de mercadoria-dinheiro." (http://www.krisis.org/2018/krisis218) Faria mais sentido pensar se a essência de uma mercadoria-dinheiro é realmente a sua forma física. Cf: Thomas Meyer, "Wertkritik als Mogelpackung" https://exit-online.org/textanz1.php?tabelle=autoren&index=35&posnr=594&backtext1=text1.php. [Trad. port.: Crítica do valor como embalagem enganadora, online: http://www.obeco-online.org/thomas_meyer10.htm]

 (11) Se Müller tivesse pensado um pouco mais sobre a função monetária da 'medição do valor' por ele sublinhada, deveria ter-se apercebido, neste momento, que a medição do valor se realiza através do processo de pagamento (ver nota 9 e texto principal que a acompanha). Os processos de pagamento corresponderiam então a pesagens e as 'unidades monetárias' a pesos de quilo ou balanças. As teorias monetárias burguesas, que ligam a 'quantidade de moeda' à 'dimensão da economia', corresponderiam a uma física em que a massa do universo é determinada pelo número de balanças nele estabelecidas.

 (12) Aqui abstraindo das perturbações que surgem quando são produzidos bens 'errados' no aspecto do valor de uso.

 (13) Também aqui é feita a suposição dada na nota 12. Além disso, pressupõe-se que as proporções entre a secção de bens salariais e a secção de bens de capital são 'correctas'; então a compra de bens de capital pelos produtores de bens de salariais coloca exactamente o dinheiro necessário ao pagamento dos salários nas mãos dos produtores de bens de capital.

 (14) Por conseguinte, esta parte da circulação de mercadorias pode desaparecer completamente a nível monetário(!) através da combinação de todos os capitais num 'supercapital’. Cf. a publicação mencionada na nota 6.

 (15) Também aqui é feita a suposição já referida na nota 12.

 (16) Se se lê O Capital um pouco mais cuidadosamente do que Müller, então, com muito mais antecedência, encontram-se observações com o conteúdo de que a troca não pode explicar o lucro (geral). É preciso depois pensar mais um pouco que a troca de 'equivalentes' não pode incluir a troca de 'mais'.

 (17) É interessante ver em quantos textos esta expressão ainda hoje é utilizada, embora esteja provado com grande esforço em O Capital que não se compra trabalho, mas sim força de trabalho. Este uso da linguagem mostra os grandes problemas do pensamento económico (e mesmo crítico) com tudo o que não é "trocado com justiça" (Müller; ênfase em itálico K.H.).

 (18) Rosa Luxemburgo, Die Akkumulation des Kapitals. Esta fonte secou definitivamente no decurso do século XX.

 (19) Algumas décadas mais tarde – mais uma vez promovido pela guerra – o aumento da produtividade também exigiu à capacidade da nova potência líder, os EUA, 'cobrir' a sua moeda com ouro.

 (20) Mas não a taxa de lucro M/(V+C); sobre esta e sobre o tema do parágrafo seguinte, ver a publicação mencionada na nota 6.

 (21) Com um simples cálculo pode ser demonstrado que, em última análise, o valor (e, portanto, a sua parte de mais-valia) da mercadoria se aproxima de zero num prazo suficientemente longo: Claus Peter Ortlieb, Ein Widerspruch von Stoff und Form, https://www.math.uni-hamburg.de/home/ortlieb/WiderspruchStoffFormPreprint.pdf. [Trad. port.: Uma contradição entre matéria e forma. Sobre a importância da produção de mais-valia relativa para a dinâmica de crise final, online: http://o-beco-pt.blogspot.com/2010/06/claus-peter-ortlieb-uma-contradicao.html] O resultado é ilustrado com um gráfico instrutivo (ibid.; p. 13) [Fig. 1] e refere-se explicitamente "não só a produtos individuais, mas também a qualquer ‘cabaz de mercadorias’". (ibid. p. 14).

(22) Este campo de tensão já está expresso em títulos de livros: "A Grande Desvalorização" (Lohoff e Trenkle) vs. "Dinheiro sem Valor" (Kurz). Se o primeiro título pode(!) ser facilmente entendido em termos puramente quantitativos, isso já não é possível com o segundo.

 

 

Original Auf (ausgetretenen) Abwegen - Eine Auseinandersetzung mit dem (fast) gleichnamigen Buch von Klaus Müller in www.exit-online.org em 13.07.2020. Tradução de Boaventura Antunes

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