Leni Wissen

A matriz psicossocial do sujeito burguês na crise

Uma leitura da psicanálise de Freud do ponto de vista da crítica da dissociação-valor

 

 

Introdução

 

Este artigo assenta em duas motivações. A primeira é determinar a matriz psicossocial do sujeito burguês com base numa leitura da psicanálise de Freud do ponto de vista da crítica da dissociação-valor. O pano de fundo desse arriscado empreendimento é a visão de que a sociedade capitalista é realmente produzida pela dinâmica objectiva da forma da dissociação-valor, mas que daí não resulta nenhum determinismo dos desenvolvimentos sociais, devido à relação dialéctica entre valor e dissociação. Isto significa especialmente que o pensar, agir e sentir das pessoas não podem ser derivados directamente da forma da dissociação-valor – e, ainda assim, a organização capitalista é produzida por pessoas que reproduzem diariamente as categorias abstractas da dissociação-valor em seu pensar, agir e sentir, sem que disso estejam conscientes. O que levanta a questão de como as categorias abstractas são internalizadas no sentir, pensar e agir das pessoas, ou, por outras palavras, como o sujeito em geral se torna sujeito.

 

Como a forma de socialização capitalista não aparece em abstracto, mas mediada com os seus desenvolvimentos empíricos, também o sujeito e as suas mediações psicossociais estão submetidos à processualidade da socialização capitalista. Daí a segunda motivação do texto. Pois, no decurso dos processos de crise pós-modernos, desenvolveu-se amplamente uma nova formação psicossocial de narcisismo. No jogo com as diferenças e na onda do desconstrucionismo, pôde desenvolver-se magnificamente um tipo social narcisista. O trabalho constante com a sua própria identidade tornou-se uma virtude – na verdade, quase uma prova da própria flexibilidade. O constante re-projectar a própria vida foi aqui a expressão de um carácter social narcisista.É agora claro que a propagação do tipo social narcisista não é tão inofensiva como talvez ainda pudesse parecer no colorido movimento (de baile de máscaras) da pós-modernidade dos anos 1980/1990. A irrupção da crise desde o final da década de 2000 destruiu a ilusão de uma festa que se pretendia interminável, e a realidade da crise irrompe cada vez mais drasticamente. Esta situação choca com um carácter social narcisista muito susceptível à ofensa e à ameaça, devido ao seu ego frágil. É inerente ao carácter social narcisista que ele possa passar imediatamente de uma posição para outra – especialmente quando se vê ameaçado. Mas este tipo social narcisista, para o qual cada vez mais caem a pique as possibilidades de manter vivo o seu ego frágil, é muito propenso a exorcizar os seus impotentes medos narcisistas com 'novas' clarezas. O que é justamente uma porta aberta às ideias de anti-semitismo, anticiganismo, racismo, antifeminismo, neofascismo, etc. Também por esta razão se torna necessária uma crítica do carácter social narcisista no contexto da crítica radical do sujeito.

 

 

A crise final e o seu recalcamento

 

Um olhar sobre a imposição e desenvolvimento da sociedade patriarcal capitalista deixa claro que a história interna do capitalismo é perpassada por crises. Socialização capitalista e crises não podem ser pensadas em separado. Mas desde a década de 1970 apresenta-se-nos um processo de crise que aponta para a questão de um "limite interno absoluto do capital" (Kurz 2007, 1ª ed. 2006, 280). Já Karl Marx tinha apontado a possibilidade de um limite interno do capital; a teoria da crise da crítica da dissociação-valor vê esse 'limite interno absoluto da socialização do valor' tornar-se historicamente actual com o aumento dos processos de crise no contexto da terceira revolução industrial: pois, por meio da revolução microeletrónica, é tornado supérfluo mais trabalho no conjunto da sociedade do que pode ser compensado com a expansão dos mercados etc. Este contexto tem sido muitas vezes apontado por parte da crítica da dissociação-valor.

 

Os efeitos da tendência de crise pós-moderna há muito que se podem observar, já não apenas na chamada periferia, mas mostram-se muito claramente também nos centros. Sintomas do processo de crise global neste país são o desemprego e a expansão do emprego precário, a erosão do Estado social e o 'regresso da pobreza' associado a estes processos (pobreza que, em todo o caso, apenas numa pequena parte da história capitalista – e apenas para uma pequena parte da população mundial – pôde ser imaginada como ultrapassada) e agora também o confronto com os dramas dos refugiados e os tiroteios ao pé da porta. Apesar dos fenómenos de crise que se manifestam muito claramente em todo o mundo e nos mais diversos planos, a possibilidade de uma 'crise final' do capitalismo parece ser categoricamente excluída – esta possibilidade é negada e recalcada. Assim surgiu a situação absurda de que, apesar das catástrofes que se vêem por toda a parte e do estreitamento das margens de manobra, a crítica radical da sociedade capitalista é mais do que marginal – e até mesmo exposta às mais violentas hostilidades.

 

Em relação à percepção dos processos de crise e ao trato com eles encontram-se aqui semelhanças assustadoras entre o espectro de esquerda – desde o partido 'da esquerda' até aos grupos e alianças que a si mesmos se entendem como extremamente radicais – e a 'sociedade mainstream', ou mesmo vozes de direita e neofascistas. Pode ver-se como a acção imediata recalca agressivamente a questão de uma análise das condições da crise e de uma compreensão do que está acontecendo realmente, e empurra para segundo plano todas as questões de conteúdo. Ou seja, não se pergunta o que está em questão – para já não falar de uma análise da relação com a totalidade social. Trata-se aqui justamente de uma expressão do recalcamento exercido no plano de toda a sociedade do facto de tornar-se realidade o 'limite interno do capital', para que o agir imediato, em ligação com a eliminação de todo o conteúdo, não só se limite em relação à percepção e ao trato com os mencionados processos de crise, mas, além disso, se mostre em todos os poros da vida social. Parece quase não importar do que se trata. Se ocorrer um problema, tem de se reagir a ele imediatamente, sem que um momento de pausa e reflexão possa irritar a ação. Para situações problemáticas complexas têm de ser imediatamente identificados culpados ou responsáveis. Assim se torna manejável um problema complexo. Aparentemente ele pode ser removido do mundo pela acção imediata contra os culpados. Em vez de compreender que não pode haver soluções para ele na forma da dissociação-valor, tenta-se exorcizar a impotência daí resultante com o fetichismo da ação. Estas também são indicações da razão por que puderam expandir-se rapidamente os PEGIDA, a AfD etc.: eles oferecem explicações e soluções simples, que permitem até mesmo aliviar-se de sentimentos racistas, antimuçulmanos, anti-semitas, etc. (sobre isso ver também o texto de Daniel Späth nesta edição da EXIT!).

 

Este recalcamento agressivo das questões de conteúdo ocorre sempre em ligação com um igualmente agressivo 'terrorismo da simpatia' – um conceito de Daniel Späth. Parece haver decididamente uma mania da harmonia, que ameaça aplanar todas as ambivalências e contradições. O culto generalizado da preocupação parece continuar a animar esta tendência. Os conteúdos já só conseguem ser percebidos e processados em referência directa ao próprio eu (self): se eles se encaixam com a concepção do próprio self há identificações imediatas, se não se encaixam são aniquilados, e, se eles não são compreendidos, isso ou tem de estar dependente do mediador, pois o gigantesco self afinal entende tudo e imediatamente – ou então o conteúdo é visto como uma imposição, uma ofensa, ou até mesmo como um insulto, o que por maioria de razão lança uma luz a condizer sobre o mediador. E já que as pessoas são 'simpáticas' entre si, não seria nada 'simpático' expressar perante uma pessoa ideias tão complexas em geral, e isso é eventualmente considerado um 'ataque' pessoal. Neste processo, todas as questões de conteúdo são então transformadas em questões pessoais.

 

Agora é preciso explicar porque se impuseram tão generalizadamente a acção imediata, o culto da preocupação, a mania da harmonia etc. como modos de reagir e de lidar com condições de vida que se tornam realmente cada vez mais complexas e sem saída. Esta questão lança uma luz sobre a questão de saber por que encontra tanta dificuldade a crítica social radical, que reflecte sobre o limite interno da socialização da dissociação-valor; pois já nos fenómenos esboçados se dá a entender que há um 'limite da mediação' que de certo modo reside nos próprios sujeitos.

 

O sujeito pós-moderno é sobretudo sujeito de crise, que está submetido a um processo no qual os fundamentos da subjectividade burguesa estão a ser incessantemente destruídos. Em termos simples: trata-se do sujeito do trabalho que está a ficar sem trabalho. Isso tem de ser digerido. A natureza deste processo, apesar de todas as diferenças individuais, não é simplesmente de livre escolha, sendo este processo em grande parte estruturado pela matriz psicossocial do sujeito capitalista.

 

 

O processo de crise pós-moderno e a formação dum tipo social narcisista

 

Antes de submeter a matriz psicossocial do sujeito burguês a um olhar mais atento, gostaria de esboçar primeiro, em forma de notas, os fenómenos que estão em conexão com a mudança para o tipo narcisista no plano do carácter social, ou que foram impulsionados por esta mudança.

 

- Embora o termo pós-modernidade tenha surgido já no final do século XIX, refere-se com este conceito o fim de uma época na história interna do capitalismo, que irrompeu socialmente com as reformas neoliberais. Robert Kurz vê na pós-modernidade o "conjunto de um capitalismo de crise que se entende equivocadamente como pós-industrial" (Kurz 1999, 7).

 

- Com a terceira revolução industrial desencadeou-se a maior crise mundial desde 1929: nos países capitalistas centrais regressou o desemprego em massa e, na periferia, "juntamente com o trabalho abstracto também a economia monetária em muitos países já colapsou" – escreve Robert Kurz já em 1999 (Kurz 2005, 1ª ed. 1999, 739). Com isto, portanto, descreve-se apenas o início do aparecimento dos desenvolvimentos de crise pós-modernos. Há muito que o colapso da economia monetária, juntamente com o colapso da estatalidade, atingiu também os Estados europeus. A multidão de crises em todo o mundo dificilmente pode ser contada…

 

- A fuga do capital financeiro para o 'reino das especulações' – um desenvolvimento que já no início do século XX era um claro sinal de crise – é uma indicação de como os investimentos reais se tornaram não rentáveis. A acumulação de capital desloca-se das áreas reais para as especulativas e assim se torna simulação. A fragilidade desta acumulação simulada de capital torna-se repetidamente clara quando as bolhas começam a estourar e de repente caem do céu financeiro catástrofes perfeitamente reais.

 

- Os processos de globalização também não puderam aqui compensar essa dinâmica em si contraditória do modo de produção capitalista. No entanto, a globalização teve um impacto sobre a vida social: com as novas tecnologias, sobretudo a Internet, surgiram novas capacidades ligação em rede, que estão menos vinculadas a contextos regionais.

 

- Dado o enorme crescimento do desemprego na década de 1970, começou um processo de cortes sociais que, designadamente, ajudou o desenvolvimento do trabalho precário e, neste país, acabou por ter o seu ponto alto provisório nas chamadas 'reformas Hartz'.

 

- Paralelamente a estes desenvolvimentos, iniciou-se desde a década de 1980 um processo social que foi recebido na literatura sociológica especializada com o conceito de individualização. Este processo deve ser visto no contexto de mudanças nas condições e exigências do trabalho. Com o desemprego e a expansão do emprego precário desfizeram-se as bases da 'biografia normal' burguesa: a formação já há muito que não garante um emprego permanente. As novas 'liberdades', repetidamente associadas com o conceito de individualização, por exemplo, ser menos dependente da família de origem e de biografias definidas, têm o preço de que também se desfazem as garantias e as orientações. É exigida cada vez mais responsabilidade ao indivíduo pelo sucesso da sua biografia. Isso, por sua vez, significa para os indivíduos que cabe a eles manterem-se prontos, aptos e saudáveis para o mercado de trabalho. Não conseguir acompanhar é expressão de um mau equilíbrio trabalho-vida e não um problema de dilemas objectivos. O deslocamento da responsabilidade para o indivíduo força a um 'centramento no eu' – este é pois um pré-requisito para conseguir acompanhar, em condições que se tornam em geral cada vez mais individualizadas e flexibilizadas.

 

- Também a família nuclear burguesa não podia deixar de ser afectada pelos processos acabados de esboçar (trabalho inseguro e precário, individualização, flexibilização). Ela está exposta a processos de dissolução enormes. As altas taxas de divórcio, o fenómeno generalizado das 'mães solteiras' e as chamadas 'famílias patch-work' são uma expressão desse processo. A família perdeu importância na socialização das crianças e adolescentes, mas sem ter desaparecido como instância. O grupo de pares, a omnipresença dos média e de equipamentos técnicos como o smartphone etc., que configuram a nova forma de relação com o meio ambiente, fizeram recuar o papel da família nuclear.

 

- Além disso, as estruturas familiares dissolvem-se de dentro para fora: o assumir de relações estáveis e das obrigações e responsabilidades conexas parece ser percebido em grande escala como uma ameaça. Assim fala-se em “companheiros temporários' para já antecipadamente esclarecer a ligação assumida apenas temporariamente. Ter filhos tornou-se uma questão complementar da própria biografia: encaixa-se uma criança no conceito de vida, ela é posta no mundo num momento precisamente programado. Se as crianças não correspondem às próprias expectativas narcisistas, a gritaria é grande e a criança é arrastada do médico ao terapeuta até à psiquiatria, para ser marcada com o diagnóstico de 'perturbação de comportamento social' e/ou 'perturbação de déficit de atenção com hiperactividade' e ser submetida a medicação com tranquilizantes.

 

- A incapacidade que pode ser assinalada quase universalmente de entrar em contacto com outra pessoa com compromisso já indica estruturas de carácter narcisista. Pode observar-se, a cada passo, como as pessoas apenas conseguem perceber e digerir o mundo com referência ao seu próprio self. Isto sugere que não se consegue uma distinção clara entre o interior e o exterior. Assim, qualquer objecto (uma pessoa ou conteúdo diferente, entre outros) pode tornar-se uma ameaça imediata para o próprio 'self narcisista' susceptível.

 

-Não é por acaso que o conceito de 'self' é mencionado ainda mais frequentemente. Para este termo existe uma história: Foram as psicologias do ego [Ich] e do self [Selbst], que fizeram um self construído de modo idealista a partir do ego de Freud pensado em conflito, self que em seguida é considerado de modo simplesmente positivista como dado. Na psicologia do ego e do self não há nenhum ego que se desenvolva em conflito. Pelo contrário, o eu ou self já está sempre lá, e o que importa é simplesmente apelar aos potenciais de desenvolvimento do self, que são inerentes ao self caído do céu desde o seu nascimento. Portanto, quem não consegue competir na sociedade do trabalho simplesmente ainda não encontrou nenhuma possibilidade de activar as suas capacidades de autodesenvolvimento.

 

- As exigências pós-modernas de 'trabalhar-se a si mesmo' e de optimizar-se a 'si mesmo' sem parar dificilmente deixam de fora uma área da vida: o sujeito pós-moderno deve ser sempre flexível, disposto a trabalhar e apto – tanto no plano físico como no psicológico. Ulrich Bröckling, no seu livro 'O self empresarial', fez notar que a optimização do self é um processo infindável, que tem poucas chances de sucesso (ver Bröckling 2013 / 1ª ed.: 2007)

 

- Expressão disso é a 'carreira da depressão'. Alain Ehrenberg escreve: "A carreira da depressão começa no momento em que o modelo disciplinar de controlo do comportamento, que aponta às classes sociais e a ambos os sexos o seu papel de modo autoritário e proibitivo, é abandonado a favor de uma norma que exige a cada um a iniciativa pessoal: obriga-o a tornar-se ele mesmo” (Ehrenberg 2008, 14s.). A depressão é, portanto, uma "doença da responsabilidade” em que prevalece um sentimento de inferioridade" (ibid., 15, destaque no original).

 

- Com a ascensão da depressão já estão definidos marcadores indicando a direcção para uma mudança no plano do carácter social face aos processos de crise pós-modernos. No plano patológico, o deslocamento para o tipo social narcisista exprime-se num deslocamento, de distúrbios neuróticos para distúrbios depressivos. Assim escreve Ehrenberg: "A depressão mostra-nos a experiência real da pessoa, porque é a doença de uma sociedade cujas normas de comportamento já não se baseiam na culpa e na disciplina, mas na responsabilidade e na iniciativa. [...] O depressivo é um ser humano com uma deficiência" (ibid., 20).

 

- As exigências excessivas que acompanhavam as normas de comportamento baseadas na culpa e na disciplina reflectiam-se na neurose, como expressão de um conflito subjacente entre o desejo e a repressão. A depressão, contudo, não é caracterizada por um conflito, mas expressão da incapacidade narcisista de entrar em contacto com o mundo dos objectos – psicanaliticamente falando, a depressão é expressão da incapacidade para carregar objectos libidinalmente. Mas um objecto só pode ser carregado libidinalmente se puder ser percebido como objecto fora do universo narcisista.

 

- Para Freud, a melancolia, que tem uma certa semelhança com a depressão nos seus sintomas, era de certo modo uma forma clínica (ou seja, patológica) de luto. A distinção entre luto e melancolia está clara na resposta de Freud à questão de saber em que consiste o 'trabalho de luto': "A verificação da realidade mostrou que o objecto amado já não existe, e agora emite o convite para que toda a libido abandone as ligações com esse objecto "(Freud, GW XIII, 430). Este processo decorre conscientemente. Mas na melancolia trata-se de uma 'perda desconhecida'. Freud escreve: "No luto o mundo torna-se pobre e vazio, na melancolia é o próprio ego" (ibid, 431).

 

- O que Freud escreveu sobre a melancolia em 1917 é válido seguramente em relação à depressão. A depressão é expressão de um vazio que é o reverso da prolongada exigência excessiva de ter de trabalhar-se a si mesmo e optimizar-se.

 

- As constantes manifestações de preocupação são uma expressão da incapacidade de nomear o que é 'objecto de preocupação' – poder fazê-lo seria pressupor perceber o mundo não exclusivamente a partir do próprio universo narcisista e reconhecer o mundo dos objectos como existente fora do próprio ego. Com a incapacidade de reconhecer o mundo dos objectos como existente fora do próprio universo narcisista, desaparecem também as possibilidades de reflexão: problemas, tensões, experiências confusas etc. já não pode ser nomeados, já não podem ser trazidos à discussão. Tudo permanece difuso, de algum modo a coisa não está bem, é tudo demais para uma pessoa, não há simplesmente vontade de fazer nada.

 

- Um outro tipo de processamento narcisista é na sua forma extrema o amoque. Aqui expressa-se uma megalomania narcisista que consuma a autoposição na auto-aniquilação e na aniquilação de outros.

 

De todos estes processos surgiu o carácter social narcisista, como filho da pós-modernidade. A situação pós-moderna é, sobretudo, expressão da dinâmica de crise objectiva da socialização da dissociação-valor. E também somente considerando esta dinâmica de crise será possível compreender o triunfo do narcisismo. Pois a propagação do tipo social narcisista é a expressão do sujeito capitalista burguês em decomposição, que persistentemente cava a sua própria sepultura. O narcisismo tornou-se assim a última saída para o sujeito em decomposição da sociedade da dissociação-valor.

 

 

Crítica da dissociação-valor e psicanálise

 

A crítica da dissociação-valor centra-se na análise e crítica da totalidade constituída capitalista. Aqui não se opera com nenhum conceito universalista de totalidade. A crítica da dissociação-valor parte de uma 'totalidade em si fragmentada' (ver Roswitha Scholz, 2009) e, portanto, tem em conta a dialética impulsionadora de valor e dissociação. Por conseguinte, na crítica devem ser mantidos separados os diversos planos da 'totalidade em si fragmentada', não devendo ser perdida a referência ao plano da forma.

 

Este entendimento da totalidade resulta do conhecimento de que a organização patriarcal capitalista actua em todas as esferas sociais – e portanto também na estrutura pulsional, que é promovida, conduzida e reproduzida por um 'inconsciente social'. Para esclarecer porque reproduzem as pessoas os princípios da forma capitalista no seu agir, pensar e sentir quotidianos, é preciso, portanto, explicar diversos planos: o plano da forma, o plano do sujeito como agente do patriarcado produtor de mercadorias, os planos ideológico, cultural-simbólico e psicossocial. Aqui todos estes planos têm de ser repetidamente postos em relação com os fenómenos e desenvolvimentos actuais – ou seja, com a 'totalidade concreta', que procura admitir o particular, sem perder ou questionar a referência à totalidade.

 

A psicanálise é indispensável para esclarecer o plano psicossocial (e, com limitações, também o plano cultural-simbólico). Porque incide sobre os processos de mediação entre a sociedade e o indivíduo, e coloca a questão da génese do sujeito. No entanto, não é um tema isento de contradições – nem em relação à própria psicanálise de Freud, nem em relação à história da sua recepção. Ponto digno de nota é que no conjunto ocorreu uma domesticação do pensamento psicanalítico, patente no recalcamento do conceito de pulsão no debate dentro da psicanálise: a partir do 'ego' em conflito de Freud, ficou, no ambiente das correspondentes psicologias do eu e do self, um 'eu' sem contradições, que já não conhece nenhum conflito. A 'deslibidinização' da psicanálise corresponde aos desenvolvimentos sociais de uma psicologização e individualização gerais das relações sociais, e a um centramento num 'self' ou 'eu'livre de conflitos.

 

Do ponto de vista da crítica da dissociação-valor, contudo, seria necessário agora tornar fértil justamente a banida teoria da libido. Com a ajuda da metapsicologia de Freud, que ela própria não é isenta de contradições e naturalmente também tem de ser submetida a um exame crítico, é possível descrever a matriz psicossocial do sujeito. Ego, Id e Superego, de acordo com essa leitura, são as instâncias centrais que moldam a forma psíquica do sujeito. Simultaneamente são expressão da dinâmica e dos conflitos pulsionais subjacentes.

 

 

A teoria da libido de Freud do ponto de vista da crítica da dissociação-valor

 

Primeiro que tudo é preciso esclarecer em que situação histórica Freud desenvolveu a psicanálise. Aqui rapidamente se torna claro que Freud se referia ao sujeito burguês que tinha acabado de se impor e já se encontrava em crise depois de um breve auge (ver O mal-estar na cultura, Freud, GW XIV, 419-513). Ora o sujeito burguês não caiu simplesmente do céu, mas foi o resultado da brutal história da imposição da sociedade patriarcal capitalista, que foi levada por diante em diferentes planos e, finalmente, esteve associada a uma reestruturação de todos os domínios da vida. Enumeremos apenas alguns pontos-chave que poderão ter desempenhado um papel no quadro dessa história de imposição:

 

- O surgimento do sistema da manufactura e da fábrica, como resultado da fome de dinheiro absolutista derivada dos custos da guerra, tendo sido o desenvolvimento das armas de fogo aqui responsável pelo rápido aumento nos custos.

 

- O inculcar do ethos do trabalho à força, em casas de trabalho, como condição para o trabalho na fábrica.

 

- Com o modo de produção emergente esteve associada a separação de esferas entre produção e reprodução, situação em que as mulheres foram designadas para a área da reprodução. Esta atribuição constitui a base para o surgimento da família nuclear burguesa.

 

- Estes desenvolvimentos foram acompanhados pela 'domesticação da mulher como um ser natural' (caça às bruxas), o que por sua vez aponta, não em último lugar, para o facto de ter surgido uma relação completamente nova com a natureza (dominação androcêntrica da natureza).

 

- A internalização do 'ethos do trabalho' e o advento dos correspondentes ideologemas, culminando finalmente na filosofia iluminista.

 

No contexto deste processo de transformação, o sujeito burguês afirmou-se com uma matriz psicossocial apropriada. O sujeito burguês e a sua matriz psicossocial baseiam-se aqui decisivamente na dissociação do feminino, na fantasia de dominação da natureza e na imaginação de autoposição. Eles também estão significativamente associados com a internalização do ethos do trabalho. Ao que corresponde uma dinâmica pulsional em que, perante o adiamento da pulsão, a libido sobe às alturas, na alegre expectativa da 'recompensa pela recusa'. Este 'truque' da libido para lidar com a recusa da pulsão também define simultaneamente a via para o processo de sublimação da pulsão. A necessidade de adiamento da pulsão surge com a imposição do modo de produção capitalista e com o dispêndio de trabalho abstracto com este exigido. É claro, portanto, que a formação da sociedade capitalista também não poderia ficar de fora da estrutura da pulsão. Daqui se pode concluir: Somente com o patriarcado capitalista surge uma estrutura de pulsão na qual Ego, Id e Superego interagem como instâncias separadas, em conflito umas com as outras, e assim intermediando a dinâmica psicológica. Esta forma de mediação psíquica, portanto, surgiu apenas na sequência da história de imposição do capitalismo. Freud naturalmente não descreveu a coisa assim, isto é parte da interpretação de Freud aqui efectuada, que assenta numa leitura de Freud no contexto da situação histórica em que ele desenvolveu a sua teoria.

 

Esta leitura da psicanálise de Freud também só é possível no contexto de uma crítica radical do iluminismo e do sujeito – o que também significa que o conceito de sujeito de Freud tem de ser criticado na sua afirmação do iluminismo. Pois o iluminismo deve ser entendido como "'ideologia de imposição' do sistema produtor de mercadorias" (Kurz 2004, 18). O iluminismo produziu o sujeito moderno e, ao mesmo tempo, identificou todas as pessoas que vivem no capitalismo com este sujeito (vd. ibid.). O sujeito como "moderno agente do trabalho abstracto e das suas funções derivadas" mais não é do que a "forma social de acção nos próprios indivíduos: forma de percepção, forma de pensamento, forma de relacionamento, forma de actividade" (Kurz 2004a, 210). Então, o sujeito não é idêntico ao indivíduo sócio-sensível, mas sim "ao agente consciente (individual e institucional) do movimento de valorização sem sujeito" (Kurz 2004, 57).

 

Para a crítica da forma psicossocial do sujeito, isto significa que é preciso fazer aqui uma distinção entre sujeito e indivíduo. Pois o indivíduo sócio-sensível é realmente confrontado com a matriz psicossocial do sujeito burguês, mas não se esgota neste. A matriz psicossocial define de certo modo a forma psíquica em que ocorre a mediação psíquica.

 

No entanto, o plano psicossocial não pode aqui ser derivado do conceito de sujeito. Isso é proibido desde logo no contexto da crítica do pensamento da lógica dedutiva. Por outro lado, no entanto, a forma psíquica também é de certo modo anterior ao sujeito, na medida em que é o pressuposto para ser sujeito. Vejam-se os processos de génese do sujeito, ou da reprodução do sujeito como 'agente da acção' na organização patriarcal capitalista. E isso aplica-se tanto ao 'plano individual' (ou seja, em relação à questão de saber porque desenvolvem as pessoas repetidamente a posição de sujeito e a reproduzem no seu pensar, agir e sentir) como ao plano da formação da própria forma psíquica. Esta última surgiu, como já foi referido, no contexto da imposição do patriarcado moderno. A matriz psicossocial do sujeito é aqui realizada ou reproduzida não em último lugar por um 'inconsciente social' que também é resultado da submissão à pulsão realmente exigida (ver acima) e se reproduz em cada processo de 'subjectivação'.

 

 

Evolução sexualmente diferente do desenvolvimento psicossocial

 

A constituição do sujeito (masculino) vai de par com a dissociação do feminino. Por outras palavras: a dissociação do feminino é a condição tácita do sujeito burguês masculino. Esta relação entre o sujeito (masculino) e a dissociação estende-se até ao 'inconsciente androcêntrico', e reproduz-se na forma do complexo de Édipo nas histórias de vida individuais. Esta interpretação baseia-se não em último lugar no facto de o próprio Freud ter concebido o complexo de Édipo tanto no plano da filogénese (isto é, da história da formação do sujeito) – em Totem e Tabu o patricídio é descrito como 'acto fundador' que é transmitido de geração em geração como herança (inconsciente), ou seja, repetido no complexo de Édipo (ver Freud 1966, 1ª ed. 1956) –, como no plano da ontogénese (do desenvolvimento do indivíduo singular). No entanto, é justamente o conceito de filogénese de Freud que é preciso examinar criticamente nos seus momentos ontológicos. A este respeito, também não se pode aqui simplesmente retomar sem mais os conceitos de Freud.

 

Freud, naturalmente, concebeu o seu complexo de Édipo sem ter em conta a estrutura da dissociação-valor. No entanto, Freud não deixa de ter olho para o desenvolvimento psicossexual diferente em termos de género. Assim, ele descreve destinos libidinais 'masculinos' e 'femininos' ao longo do complexo Édipo.

 

Antes de falar sobre os padrões de desenvolvimento psíquico diferenciados por género, gostaria de observar que quando falar a seguir de 'masculinidade' e 'feminilidade' não se trata de ontologizar estes termos, mas de ter em vista a matriz psicossocial do sujeito, profundamente marcada pela bissexualidade e assente na dissociação do feminino. Dentro da matriz psicossocial, masculinidade e feminilidade são marcadores incontornáveis para o desenvolvimento psicossexual e, portanto, têm de entrar também no seu conceito. Com o modelo moderno dos dois sexos, tanto mulheres como homens foram/são forçados a formar à maneira 'masculina' ou 'feminina' identidades de género em formas contínuas, sendo a feminilidade desvalorizada desde o início. Feminilidade é a falta do falo, a falta absoluta. Este 'espaço vazio', que se mantém com a feminilidade, é bem apropriado para assumir projecções masculinas. O facto de a 'feminilidade' ter de servir como superfície de projecção – nas conhecidas orientações da projecção mãe/esposa e prostituta – é uma expressão da estrutura de dissociação-valor. Estas projecções masculinas são desde logo expressão do facto de que a dissociação do feminino precede a constituição do sujeito (masculino). Mas também mostram que a dissociação do feminino não é um acto uma vez consumado, mas exige a repetição constante. Nessa medida a feminilidade não por acaso é um 'continente negro', e também deve/tem de permanecer assim.

 

Isto tem consequências para o desenvolvimento psicossexual feminino e a sua análise. Assim a 'feminilidade' tem de cumprir com as exigências do lado masculino e não deve ser 'ela própria', fora da área de influência 'masculina'. Neste sentido, é quase absurdo falar de uma 'forma psíquica feminina' em geral, uma vez que esta forma consiste sobretudo em ter de ser 'sem forma'. Isso também se reflete no destino libidinal 'feminino', como Freud o descreveu: No desenvolvimento masculino, a criança do sexo masculino, sob a ameaça de castração que parte do pai, desiste do desejo orientado para a mãe, para se submeter à lei paterna através da identificação. No caso mais favorável, este desenvolvimento leva à 'dissolução do complexo de Édipo' (ver Freud, GW XIII, 395-402). Pelo contrário, a criança do sexo feminino, uma vez que não tem de temer a castração – porque já consumada – entra no complexo de Édipo "como num porto" (Freud, GW XV, 138). O pano de fundo desse movimento é a descoberta da diferença sexual. A decepção com a 'própria falta' é atribuída à mãe e isso possibilita a viragem para o pai. A menina espera deste uma criança (masculina) para compensar a inveja do pénis e se restituir narcisistamente. Assim, para o destino libidinal feminino, a ausência do falo ou a descoberta dela é determinante. O pano de fundo deste desenvolvimento é um 'inconsciente falocentricamente androcêntrico', que se reproduz repetidamente nos desenvolvimentos da diferença de género. Assim estrutura o falocentrismo a forma psíquica feminina 'sem forma'.

 

Christa Rhode Dachser critica com razão o 'fundamento patriarcal' da psicanálise. Aqui ela também se refere à "teoria do desenvolvimento feminino de Freud" como "uma teoria da não-individuação [...] que [...] servia para a adaptação da mulher ao papel sexual que lhe era destinado naquela época" (Rhode Dachser 2,003 5. Destaque no orig.). Esta afirmação deve ser julgada procedente em parte; pois naturalmente que o desenvolvimento psicossexual feminino está sintonizado com o papel destinado à mulher. E também é verdade que Freud descreve o destino libidinal feminino de maneira afirmativa. No entanto, a teoria freudiana não é responsável pelo destino libidinal feminino, responsáveis são as relações sociais da forma da dissociação-valor. A este respeito, também seria errado jogar Freud simplesmente no lixo porque a sua teoria está construída androcentricamente. É muito mais importante submeter Freud a uma crítica feminista e neste contexto questionar por que descreveu Freud o destino libidinal feminino como ele o descreveu.

 

Além disso, transparece em Rhode-Dachser um hipostasiação do feminino. Mas a questão não pode ser procurar uma 'feminilidade' além do falocentrismo. É na 'feminilidade' e 'masculinidade' que se mostra a própria estrutura da dissociação-valor Assim, seria completamente errado procurar na 'feminilidade' algo de algum modo 'melhor', porventura 'não-idêntico' – também Roswitha Scholz chamou repetidamente a atenção para esse ponto. Para uma crítica da relação de género capitalista, isto significa que 'masculinidade' e 'feminilidade' têm de ser vistas como dois pólos dentro da socialização da dissociação-valor e como tal criticadas – não devendo aqui, naturalmente, ser escamoteado o estatuto hierárquico do 'masculino' nem a correlativa discriminação do 'feminino'. Em vista da 'feminilidade' isso significa antes de mais que teria de ser desenvolvida uma ideia sobre o que se esconde no 'continente negro' em geral. Seria preciso recolocar a questão de uma teoria psicanalítica da feminilidade nesse sentido.

 

Christa Rhode-Dachser não está sozinha na tentativa de desenvolver uma leitura feminista da psicanálise. Também outras autoras têm lidado com esta questão. No entanto, não é certamente por acaso que também nessas autoras ocorre uma hipostasiação do 'feminino'. Aqui se paga pelo facto de a teoria feminista de orientação psicanalítica se ter ocupado muito pouco com a crítica do sujeito. Em vez do questionamento radical da própria forma de sujeito, tenta-se desenvolver uma teoria da feminilidade para lá do falocentrismo, que permitisse às mulheres ser 'sujeito'.

 

 

Processos de crise e carácter social narcisista

 

Ora devia ser claro que a 'matriz psicossocial' do sujeito também não poderia resistir aos processos de crise pós-modernos. Trabalho e família, como instâncias centrais de socialização, desfazem-se cada vez mais no contexto de processos gerais de flexibilização e individualização, assim caindo pilares que foram essenciais para o desenvolvimento psicossocial do sujeito burguês. Mas, também aqui: a forma de processamento psíquico não se dissolve simplesmente, mas continua ainda a determinar as vias do desenvolvimento psicossocial – sob o signo da pós-modernidade esta via só pode levar ao narcisismo. Como vou mostrar, o narcisismo já está de facto criado na constituição do sujeito, mas parece como que implodir sob as condições pós-modernas de crise. O carácter social pós-moderno é profundamente narcisista – e isso valerá, se bem que com diferentes desenvolvimentos, tanto para o carácter 'feminino' como para o 'masculino'. É-lhes próprio, em certa medida, o grau elevado de 'auto'referencialidade como expressão do narcisista.

 

O que poderia ter mudado face aos processos de crise pós-modernos em termos de forma psicossocial do sujeito pode ficar claro com uma citação do livro O Mundo como Vontade e Design (Robert Kurz).

 

Escreve Robert Kurz: "A falta de relacionamento social nada mais significa do que ser uma mercadoria com duas pernas; o 'individualismo expressivo' tem de se transferir para o outfit porque debaixo dos trapos já só existe o espectro de um indivíduo: nunca Adorno foi mais actual do que nos tempos pós-modernos da love parade, cujos seguidores realmente cometem uma impertinência grosseira quando dizem 'eu'" (Kurz 1999, 49).

 

Esta citação pode ser interpretada à luz do conceito de ego de Freud. Freud escreve no texto Introdução ao Narcisismo (1914): "É uma suposição necessária que uma unidade comparável ao ego não existe no indivíduo desde o início; o ego tem de ser desenvolvido" (Freud, GW X, 142). Freud designa o 'narcisismo primário' como uma força motriz relevante na constituição do ego. Pois este assim escreve Lili Gast, como interpretação do pensamento de Freud "inicia uma auto-referência processual na auto-percepção objectal, que acaba por desembocar na constituição da subjectividade" (Guest, 1992, 52). Logo que o ego consegue uma primeira constituição, é um ego narcisista. No conceito de ego de Freud o narcisismo está inscrito firmemente como motor propulsor. No entanto Freud viu a ultrapassagem do narcisismo primário como um passo crucial do desenvolvimento do ego. Em relação à matriz psicossocial do sujeito pós-moderno, agora, tem de se partir da dominância do 'ego narcisista' como suporte da mediação psíquica – um 'ego', portanto, que não pode realmente ser designado 'ego' no sentido descrito acima.

 

Perante o fundo do narcisismo, também se esclarece depois como é possível espalhar-se de tal maneira tal ilusão de imediatidade, como eu descrevi acima. Pois esta vai de par com uma estrutura psíquica que também empurra para a imediatidade. Freud descreve a 'unidade sujeito-objecto' do narcisismo primário como 'menosprezo' ou 'reinterpretação da realidade' específicos do desenvolvimento (ver ibid. 52s. ou Freud, GW X, 137s.). Isto significa para o mundo dos objectos que este só pode ser imediatamente incorporado pela 'unidade sujeito-objecto' narcisista, ou tem de ser repelido e aniquilado (psiquicamente), quando ameaça a integridade narcisista.

 

Em relação ao pano de fundo da formação e às mudanças imanentes da matriz psicossocial do sujeito é de presumir que as diferentes formações se sobrepõem e coexistem. Assim, não existiu o 'carácter autoritário' em forma pura, e, portanto, também não existe hoje o 'carácter social narcisista pós-moderno' em forma pura. Os desenvolvimentos psicossociais não devem ser pensados linearmente, nem no plano da descrição de um carácter social, nem no plano individual. Neste ponto, mais uma vez é crucial a consideração da dinâmica pulsional subjacente: pois esta está ligada a uma lógica de tempo específica, em que o passado não é simplesmente passado e o 'inconsciente' não é simplesmente 'inconsciente'. A dinâmica pulsional exige que passado e inconsciente sejam trazidos ao de cima, quando o presente o exige ou permite. Isto significa, dito de modo banal, que conflitos 'antigos', na verdade 'resolvidos', podem tornar-se novamente virulentos sob o impacto de uma realidade modificada e assumir agora novas vias de processamento ou recalque. Assim tem de se partir do princípio de que o carácter social narcisista pode ser observado não só entre as gerações mais jovens, mas também as gerações mais velhas não estão poupadas à sucção narcisista. O facto de serem precisamente as 'vias narcisistas' que são assumidas tem a ver com uma realidade que insta a posições narcisistas, também devido à sua complexidade e falta de perspectivas.

 

Justamente o tipo narcisista pós-moderno não pode ser pensado como uma figura rígida perante os processos gerais de flexibilização e de individualização, na medida em que o sujeito pós-moderno é flexível até ao auto-aniquilamento. Isto também significa que o tipo narcisista pode passar de um extremo ao outro de repente. O 'eu narcisista' e a correspondente mediação de processos pulsionais são extremamente 'flexíveis' e adaptáveis na sua imediatidade, o que não em último lugar será devido à falta de formação da libido objectal. Esta por sua vez é a expressão de acesso (narcisista) imediato ao 'mundo de objectos'.

 

Portanto, também não admira que as psicologias do ego, do self e das relações objectais conseguissem impor-se contra a teoria da pulsão. A vasta limpeza da teoria psicanalítica do conceito de pulsão corresponde aos desenvolvimentos reais de uma focalização no próprio self narcisista. Estes desenvolvimentos foram incluídos – ou antecipados – afirmativamente nas teorias do ego, do self e das relações objectais, e assim estas teorias puderam ser interpretadas como teorias de adaptação às imposições pós-modernas. Isso vê-se também, por exemplo, no facto de essas teorias – independentemente de o pretenderem ou não – terem sido acolhidas na 'literatura da nova gestão', tornando-se assim também parte do pano de fundo da história das ideias do 'self empresarial'(ver Bröckling 2008).

 

Mas a limpeza da teoria psicanalítica do conceito de libido, no contexto das psicologias do ego, do self e das relações objectais, de modo nenhum significa que também a coisa em si tenha desaparecido com a remoção do conceito. A 'pulsão' ou a dinâmica por ela posta em movimento não desaparece, pelo contrário, o que desaparece são as condições para uma sublimação 'com sucesso' em sentido burguês. Isto significa que a própria dinâmica da pulsão teve de modificar-se qualitativamente, e foram bloqueados os processos de um desenvolvimento do 'ego' bem sucedido (em sentido burguês), em que o ego constituía uma instância mediadora estável entre o Id (os momentos pulsionais) e o Superego (a lei 'paterna' – patriarcal) (devendo aqui ficar claro que, dada a história de crise imanente, nunca se pode realmente partir de um 'ego estável'). A retirada ou auto-referência narcisista é expressão desta realidade.

 

 

Sexualidade de crise

 

Importa agora questionar a propagação de carácter social narcisista, também nas suas implicações específicas de género, à luz da crítica da dissociação-valor. Aqui é preciso constatar em primeiro lugar que na sequência dos desenvolvimentos pós-modernos descritos – também favorecidos pela teoria do género e queer – se chegou de facto a uma aproximação dos códigos sexuais 'masculino' e 'feminino'. Tanto as mulheres como os homens parecem estar menos comprometidos com os seus papéis sociais tradicionais. Esta aproximação dos 'códigos' é também um reflexo de que, devido a processos de crise reais, os papéis de género com a marca da bissexualidade cada vez mais perdem as suas possibilidades de realização e entram claramente em conflito com o 'indivíduo forçosamente flexível' (Roswitha Scholz) pós-moderno. A questão é como essa aproximação de códigos diferenciados por sexo é mediada com o carácter social narcisista. Psicanaliticamente considerado, o estádio narcisista primário ainda não conhece nenhuma diferença de género. Assim também o carácter social narcisista se desenvolve não simplesmente nas rígidas vias 'masculina' e 'feminina'.

 

Mas seria fatal agora pensar o carácter social narcisista como sexualmente neutro, ou independente da matriz bissexual, por causa do afrouxamento descrito das fronteiras de género. Embora as fronteiras entre os desenvolvimentos 'masculino' e 'feminino' estejam a desaparecer, isso não significa que as formas diferentes de género e a sua hierarquia tivessem simplesmente desaparecido. O carácter social narcisista caracteriza-se precisamente pelo facto de ele poder passar de um extremo ao outro de repente, porque as suas ligações ao objecto – dito eufemisticamente – são muito frouxas. Ainda que o estádio narcisista primário não conheça a diferença entre os sexos, está bem ciente do 'falo'. Na fase narcisista primária, meninas e meninos esperam ter um 'falo'. Isto significa que o falocentrismo também não está ultrapassado por ter havido uma certa aproximação dos códigos binários. E, sob a hegemonia do falo, os códigos binários também não podem simplesmente desaparecer, no contexto da sociedade da dissociação-valor. Pelo contrário, também aqui se verifica um 'asselvajamento do patriarcado' (Roswitha Scholz): Os códigos 'masculino'-'feminino' não desaparecem, mas asselvajam-se – e isso acontece não em último lugar tendo por fundo o facto de os códigos terem realmente perdido 'importância', por já não corresponderem à realidade. Assim também não admira que o homem-bonzinho pós-moderno hoje festeje mesmo o jogo com os sexos numa 'festa queer', e amanhã possa escrever um 'Manifesto a favor do homem', em que lamente a crise da masculinidade e defenda um antifeminismo chato. A suposta aproximação de códigos de género diferentes é feita através de formas diferentes de género, de modo que a aproximação aparente também pode a qualquer momento voltar atrás, para uma sexualidade essencialista. Esta viragem extremamente violenta, do colorido fintar o género para a sexualidade essencialista, é expressão da sexualidade de crise de cunho narcisista. Com o sujeito, também a sua sexualidade chega ao fim.

 

A invasão de gender e queer não só promoveu a propagação do carácter social narcisista, mas também colocou o feminismo – mesmo tendo ele de repente ficado em destaque – numa situação em que tem de lutar pela sobrevivência, mais uma vez. Por meio da teoria do género, foi levado ao feminismo o recalcamento pós-moderno de todos os conteúdos e da pretensão de verdade, nele provocando estragos. Ora é justamente a teoria do género que não consegue explicar por que razão, apesar da aproximação dos códigos binários de género, as relações hierárquicas de género não desapareceram, ou parecem mesmo despertadas para uma nova vida. Em retrospectiva vê-se que gender e queer foram veículo ou expressão de uma socialidade de crise em expansão sob signos narcisistas, e agora não conseguem entender o resultado do seu movimento, uma vez que os seus instrumentos conceptuais não vão além do plano cultural-simbólico. Assim, também tem de escapar às teorias do género e queer o 'asselvajamento do patriarcado' (Roswitha Scholz), ou seja, elas não conseguem explicar os diferentes fenómenos que tornam clara a relação hierárquica de género existente antes e depois.

 

Nestas circunstâncias, perante o agravamento da relação de género, seria agora importante para o pensamento feminista enfrentar o 'asselvajamento do patriarcado' e perceber como ele se expressa. Um olhar ao desenrolar da crise a nível mundial mostra que, apesar do (ainda) colorido movimento de género (neste país), há muito se expandiu uma masculinidade de crise, que se expressa especialmente no embrutecimento das relações de género. Obsessão e violência são fenómenos quotidianos da subjectividade de crise masculina – um conglomerado que é possível que tenha desempenhado um papel na Alemanha, na passagem de ano 2015/16 em Colónia. Está à vista que soçobram as 'possibilidades de sublimação' e, assim, as barreiras inibidoras da manifestação imediata das emoções. Isto é expressão do narcisista, como tentei mostrar. A ligação entre masculinidade de crise e narcisismo torna-se particularmente evidente no amoque: O último acto da autoposição narcisista masculina é o suicídio alargado, em que afinal é imaginada a aniquilação do mundo.

 

No lado feminino, a socialização de crise apresenta-se sob a forma de 'dupla socialização', para a qual Roswitha Scholz tem chamado a atenção repetidamente, na interpretação de Regina Becker-Schmidt (cf. Scholz 2011, 67s.). As mulheres, na sequência de processos de crise pós-modernos, são obrigadas mais uma vez ao papel de administradoras da crise, e feitas igualmente responsáveis pela família e pelo salário, mas isso sob o signo de um capitalismo em colapso, onde se trata afinal da pura sobrevivência. (As 'mulheres dos escombros' eram também administradoras da crise, mas ainda podiam construir algo.) Além disso, as mulheres continuam a ser como antes expostas a projeções masculinas que, sob o signo do narcisismo, se tornam tão imediatas que se podem descarregar em emoções (mesmo violentas) a qualquer momento. Assim, à responsabilidade das mulheres pela família e pelo salário, acresce a ameaça de se tornarem vítimas da violência, da hostilidade etc. masculinas. Esta prolongada exigência excessiva ao papel das mulheres, não pode / não deve, no entanto, ser referida – não se encaixaria na imagem da mulher emancipada, que consegue a bem dizer com toda a facilidade gerir o emprego e as crianças. Neste contexto também podem ser explicados os resultados de estudos que indicam que as mulheres na Alemanha sofrem duas vezes mais de depressão do que os homens. A depressão é expressão de relações narcisistas com as referidas exigências excessivas prolongadas, que também são contraditórias. A depressão é uma variante 'feminina' do narcisismo, embora os homens também sejam cada vez mais afectados por depressões. Especificamente no que se refere um 'narcisismo feminino', algo tem de ser ainda esclarecido. Seria preciso perguntar, por exemplo, sobre as vias femininas de reacção narcisista às agressões. Parece haver uma certa tendência 'feminina' para se conseguir livrar bastante imediatamente das agressões, mas de uma maneira em que as agressões não são expressas abertamente. É, antes, algo como uma agressividade narcisistamente passiva que, porque não aberta, desde o início afasta qualquer reacção e confronto e se mostra assim incompetente para o conflito.

 

Mesmo se continua muito por esclarecer a respeito das mais recentes perturbações da relação de género no plano psicossocial, deveria ser mais do que claro que a propagação do carácter social narcisista é expressão de uma sexualidade de crise que é visível tanto do lado feminino como também do lado masculino, ainda que de maneiras diferentes. Tudo isso mostra que as pessoas não podem facilmente sair da matriz psicossocial do sujeito, embora essa matriz se decomponha de dentro para fora – também a ela está a ser retirada a substância. O resultado dessa contradição é o narcisismo, como a última paragem do sujeito de crise: somente com base nele pode o sujeito em desintegração comportar-se ainda como capaz de agir, de pensar e de sentir.

 

 

Bibliografia

 

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Original Die sozialpsychische Matrix des bürgerlichen Subjekts in der Krise em www.exit-online.org.  Publicado na revista EXIT nº 14, 3/2017. Tradução de Boaventura Antunes

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