Herbert Böttcher / Leni Wissen
Entre a auto-referencialidade e a solidariedade?
O coronavírus no vazio do capitalismo
1. Monitor – um flash em tempos de coronavírus
No programa de televisão "Monitor" da WDR do início de Dezembro de 2020, foram ligados dois fenómenos que podem ser entendidos como um flash sobre a situação social em tempos de coronavírus: a insistência em liberdade e democracia nos movimentos de direita e a intensificação da repressão contra os refugiados. O exemplo de Bautzen serviu para mostrar como a direita, na sua associação com fantasistas da conspiração e negadores do coronavírus, encontrou uma "nova autoconfiança" e se estabeleceu firmemente numa sociedade urbana. Na imagem aparece uma loja de brinquedos para crianças no centro da cidade, onde um super-herói num cartaz à porta indica que as pessoas sem máscara também são bem-vindas. A leitura da direita está exposta na montra da loja. Já a cena de abertura é sinistra: a vista cai sobre um troço de 50 km de estrada, onde pessoas munidas de bandeiras do Reich e bandeiras alemãs expressam o seu descontentamento contra a "ditadura do coronavírus"; e isto apesar do aumento maciço dos números na própria região.
Segue-se uma peça sobre o novo pacto de asilo e migração da UE: após o encerramento da rota do Mediterrâneo, as pessoas estão a tomar a rota mais arriscada através do Atlântico. Os locais de chegada são nas Ilhas Canárias. O receio é que as pessoas sejam colocadas em campos com condições semelhantes às de Moria. O problema das lamentadas longas estadias em campos de acolhimento poderia ser "resolvido" facilitando as deportações. Talvez – diz o comentário da peça – a Espanha já esteja a implementar o que a UE está a planear em grande escala: um novo pacto de asilo e migração. No seu âmago – diz-se – está uma "gestão robusta" das fronteiras externas da UE e procedimentos "justos" e "eficientes". Trata-se, acima de tudo, de acolher os refugiados perto das fronteiras. Podem também ser detidos "se necessário". A determinação da "necessidade" fica ao critério dos Estados membros. A "gestão robusta" já está a ser praticada na luta contra os navios de salvamento, que as organizações de ajuda utilizam para salvar os refugiados do perigo no mar. São detidos pelas razões mais absurdas, por exemplo, pelo facto de um navio ter demasiados coletes salva-vidas a bordo.
Estes dois flashes tornam claros os opostos que colidem e, ao mesmo tempo, são confundidos nos conflitos em torno do coronavírus: Liberdade e estado de excepção, auto-referencialidade e solidariedade, darwinismo social e humanitarismo. Os "cidadãos zangados", que ensaiam a revolta democrática contra o estado de excepção de uma chamada "ditadura do coronavírus", pouco têm a objectar ao estado de excepção democraticamente executado contra os refugiados, ou até insistiram nele e demonstraram a sua vontade política de o promover, incendiando abrigos de refugiados – em tempos em que o foco não era ainda o coronavírus, mas sim a suposta ameaça representada pelos refugiados. Os protestos dos "decentes", que defendem a liberdade e a democracia, são diferentes, e no entanto próximos dos protestos dos "cidadãos zangados". Os "cidadãos zangados" e os "decentes" encontram-se na medida em que ambos perseguem "ilusões" e evitam confrontá-las com a realidade. Estreitamente relacionada com isto está a tendência comum para a "auto-referencialidade", no sentido de uma incapacidade de perceber o mundo fora do próprio universo. Em última análise, para ambos a "solidariedade" acaba onde se teme pelos próprios limites da liberdade – reais ou imaginários. Trata-se da própria liberdade como auto-afirmação. Os "decentes" diferem dos "cidadãos zangados" na medida em que mantêm a decência democrática e respeitam as regras do jogo. Mas uma parte integrante destas regras é o estado de excepção. É imposto para proteger as liberdades democráticas contra aqueles que fogem das situações em que a liberdade de viver e de se ver livre de repressão são privadas da sua base – sobretudo pela liberdade dos "decentes", que insistem no direito a "livre trânsito para cidadãos livres", e não só em relação ao tráfego automóvel, mas sobretudo em relação às formas de tráfego da normalidade capitalista, que não podem ser separadas da destruição das bases da vida.
Há ainda os "humanos" e "solidários". Justamente o FDP, que é tudo menos avesso à selecção social darwinista, nos seus apelos ao relaxamento descobriu a desvantagem social das crianças mais pobres no encerramento das escolas, e a desumanidade social das restrições de contacto. Ao lado deles, numa mistura confusa e errante, estão aqueles que querem permanecer "boas pessoas" ou sentem a necessidade de "lavar as mãos do assunto". A humanidade e a solidariedade já floresceram na cultura de acolhimento de 2015 e na vontade de acolher os refugiados hospitaleiramente. Mas depressa se evaporou, quando se tornou claro que tal recepção não era tão fácil de "gerir", tendo em conta o agravamento das condições de crise. O slogan da Chanceler "Nós podemos fazê-lo" transformou-se então rapidamente também numa intensificação da repressão contra os refugiados (cf. Böttcher 2016). Houve poucos protestos contra isso. Com a mesma rapidez, na crise do coronavírus, a humanidade e a solidariedade inicialmente partilhadas desapareceram de grande parte da população, quando se tornou claro que as restrições se arrastariam por muito tempo. Passaram então a ser reivindicadas principalmente por políticos que tinham cantado a elevada cantiga da "responsabilidade pessoal" durante décadas, quando se tratava de dissolver o Estado social e de programar os desempregados para serem empresas em nome individual. Agora a lamentação é grande quando se descobre que a alavanca de comando não pode simplesmente ser mudada de "homo oeconomicus" para solidariedade, e cresce com mais força a pressão exigindo o regresso à normalidade capitalista e aos seus mecanismos de selecção "naturais" o mais rapidamente possível. "Afinal, não se pode paralisar toda a economia e parar a vida pública só porque os idosos não querem morrer" relatou o Kölner Stadt Anzeiger em 21/22 de Novembro de 2020, sobre expressões de ódio em e-mails ao perito em saúde do SPD Karl Lauterbach. Os supérfluos para a valorização do capital devem morrer. Alguns podem afogar-se no Mediterrâneo, outros – dependendo da sua situação social – podem perecer em unidades de cuidados intensivos ou nas ruas. Isto é tão "natural" como eficiente em termos de custos.
2. As circunstâncias, que não são assim...
Os apelos aos valores e à moral permanecem desamparados. A solidariedade esbarra em limites objectivos. Mas mesmo o recurso aos direitos individuais de liberdade, acompanhado por um habitus de auto-referencialidade, ou até a aprovação aberta da selecção social darwinista, não oferecem saída. A crise do coronavírus actua como um acelerador, deixando claro o que é inerente ao capitalismo e à sua crise. É certo que a crise económica continua no fundo da consciência, dado que as actividades estatais de resgate parecem não ter fim. A multiplicação simulada de capital através de mecanismos de dívida e de transacções financeiras parece novamente inesgotável – não obstruída pelo limite lógico e histórico da produção de valor e mais-valia associado à eliminação da força de trabalho. Em todo o mundo, os bancos centrais sustentam os sistemas financeiros. Os governos estão a contrair empréstimos exorbitantes para apoiar a economia. Assim, os mercados financeiros e as bolsas de valores florescem com base na multiplicação simulada de dinheiro, de "dinheiro sem valor" (Kurz 2012).
Não é preciso muita imaginação para prever o que é provável que aconteça a longo prazo – seja ainda "com" ou "depois do coronavírus": A conta da antecipação da produção futura será apresentada – sob a forma de colapsos e/ou medidas que, climáticas ou não climáticas, se concentrarão no crescimento, e estarão associadas a cortes sociais intensificados. Então as barulhentas queixas liberais sobre a desumanidade da privação social das crianças e as divisões sociais ficarão em silêncio. A crueldade social estabelecerá a agenda e será aplicada repressivamente. O estado de excepção ensaiado no âmbito do coronavírus pode ser democraticamente posto em prática contra os supérfluos, bem como contra possíveis protestos, sem que a consciência liberal tome qualquer posição significativa contra ele.
Se a intensificação da dimensão económica da crise ainda se encontra em segundo plano, a crise do capitalismo manifesta-se de forma muito drástica na crise dos sujeitos. Com os limites lógicos e históricos da valorização do capital e da reprodução que lhe está associada, os sujeitos perdem a sua base. A sua liberdade e autonomia – filosoficamente falando, a auto-realização da sua liberdade – está ligada à base da valorização do trabalho como capital humano. Com a diminuição da substância do trabalho, não só o capital, mas também o sujeito entra numa crise de valorização do seu capital humano. A concorrência pela valorização da própria força de trabalho torna-se mais feroz e produz perdedores que são descidos para baixo no elevador. A segurança social está a ser desmantelada por já não ser financeiramente viável, ou por ser contraproducente para a valorização do capital. Mais uma vez, os sujeitos têm de procurar tornar-se empresas em nome individual e aprender a afirmar-se até à exaustão como "eus empreendedores" (cf. Bröckling 2007, especialmente 46ss.; cf. também Ehrenberg 2004). O que é tanto mais desesperante quanto mais as bases para isso colapsam. No entanto, as estratégias de auto-optimização são infindáveis. Não têm fim porque já não podem ser ligadas a um objectivo realizável, como um objecto para o qual os esforços seriam "úteis" e com o qual seriam "recompensados". Os esforços não chegam a lado nenhum. O fracasso continua a recair mesmo sobre aqueles que se esforçaram para além dos limites das suas forças. A culpa é deles próprios. O facto de falharem por causa das circunstâncias não deve existir e permanece invisível. A razão do fracasso só pode ser a sua própria incapacidade, ou a insuficiência do esforço. E assim o ciclo tem de recomeçar – a menos que seja interrompido pela exaustão.
Conforto e alívio são oferecidos nos mercados de eventos e experiências, terapia e esoterismo. Os eventos oferecem um alívio divertido da monotonia da repetição diária do mesmo. Experiências aparentemente imediatas imaginam autenticidade. Um eu que se tornou socialmente infundado e insustentável deve ser reforçado terapeuticamente. Com as ilusões da espiritualidade esotérica, é carregado um eu que experimenta o vazio das circunstâncias como sendo o seu próprio vazio. No imperativo "Torne-se você mesmo!" as ofertas terapêuticas e espirituais convergem. Elas duplicam e exageram a auto-referencialidade, que se intensifica com a crise e ao mesmo tempo falha, devido ao vazio insubstancial das condições bem como do próprio eu. Estes "serviços" também não são independentes do processo de valorização; também têm de ser financiados pelo Estado, por seguros de saúde ou do próprio bolso. Se aqui o financiamento entrar em colapso devido a cofres públicos e privados vazios, também já não é possível comprar neste mercado. O que resta é o asselvajamento dos "esoterismos privados", que não custam nada e ainda assim – como também as fantasias da conspiração – oferecem aos indivíduos um apoio ilusório.
3. Entre a auto-referencialidade e a solidariedade
Com as medidas coronavírus, as pessoas são mais uma vez lançadas de volta sobre si próprias. Alguns poderiam ainda encontrar aspectos positivos no primeiro confinamento, na Primavera de 2020. Os mais privilegiados consideraram-no como uma desaceleração e uma oportunidade de lazer, enquanto outros tiveram de sofrer com a ameaça de pobreza ou o seu agravamento, e foram forçados a viver em espaços exíguos e, portanto, infecciosos. No entanto, quanto mais o confinamento se arrastava, mais vozes começavam a apelar ao relaxamento, ou seja, a insistir no regresso gradual à normalidade capitalista. Nesta fase, afrouxou o sentido de unidade inicialmente existente, que foi alimentado pelo que a Chanceler tinha propagado na chamada crise dos refugiados: "Nós podemos fazê-lo". No entanto, quanto se tornou mais claro que a crise de coronavírus não podia ser "gerida" com um confinamento único e temporário, o "sentimento de nós" foi cada vez mais contraditado pelo facto de as pessoas em tempo de coronavírus serem lançadas de volta sobre si próprias e – como aprenderam no capitalismo neoliberal – terem de cuidar de si primeiro. O pano de fundo para isto é, não em último lugar, a experiência de que os locais onde até agora a união poderia ser experimentada estão a desmoronar-se (Grünewald 2021). A família tornou-se frágil, como se pode ver nos receios das crianças quanto à sua desintegração. Tal fragilidade torna-se cada vez mais difícil de suportar com o aperto trazido pelo coronavírus. Assim, já há muitos indícios de que a violência nas famílias aumentou mais uma vez com a pandemia. Em qualquer caso, as mulheres têm novamente os fardos mais pesados a suportar. São responsáveis pelo escritório em casa e pelas crianças, têm de trabalhar em permanente disponibilidade. No mundo do trabalho, a experiência de trabalhar em conjunto com colegas está cada vez mais a ser substituída pela experiência de empregado subcontratado ou despedido. O imperativo que se pratica é: Salve-se quem puder. As experiências de ser jogado de volta sobre si mesmo e de assim ficar sozinho poderiam ser compensadas e recalcadas "antes do coronavírus", sobretudo através de ilusões de se estar digitalmente ligado em rede com todos, ou de se poder fazer um uso alargado das liberdades oferecidas na normalidade capitalista e experimentadas como sendo a própria liberdade, através do acesso à experiência, ao evento, ao entretenimento e – para exigências mais sofisticadas – às ofertas de espiritualidade. Com a prolongada crise do coronavírus, os alívios comunicativos são agora tão limitados como os alívios oferecidos pelas indústrias do entretenimento e da cultura. Ao mesmo tempo, estão a crescer as exigências acrescidas quanto à falta de apoio às crianças, à medida que as cargas de trabalho continuam e o isolamento social se intensifica.
Enquanto durante o primeiro confinamento, sob a pressão das imagens devastadoras de pessoas doentes e moribundas em Itália, as restrições ainda eram aceites e percebidas em relação às catástrofes associadas à propagação do vírus, esta relação recua para segundo plano à medida que a pandemia avança. Os milhares de mortes que causaram horror no início da pandemia desaparecem nas estatísticas. As suas histórias de sofrimento já quase não são contadas. Parece insuportável lidar com elas, tendo em conta a insuportabilidade do próprio vazio e do vazio das circunstâncias, e o desejo de "normalidade" é correspondentemente grande, mas também o é a fúria devido às privações pessoais que têm de ser suportadas. É claro que isto não deve ser abertamente expresso ao mundo exterior, e não se quer ser acusado de não mostrar "solidariedade". Daí a preocupação com as crianças e os jovens, com o que se pode distrair das próprias "sensibilidades" e ainda expressar o seu interesse pessoal no relaxamento.
Ora não se pode negar que as situações coronavírus exacerbam não só o stress social mas também o psicológico – sobretudo em hospitais e lares de idosos. No entanto, é perceptível que surgem exigências que são orientadas para a própria situação, sem as relacionar com o que está a acontecer nas unidades de cuidados intensivos dos hospitais. Parece haver um acordo tácito de que um número indefinido de doentes e mortos deve ser aceite, a fim de regressar à normalidade capitalista. "A facilidade com que a esperança de vida dos idosos tem sido por vezes exigida em troca do direito de ir de férias deixa muito a desejar" (Liessmann 2020). Que a vida não é o valor mais elevado foi, afinal, algo que o Presidente do Bundestag, Schäuble – secundado por teólogos e "conselhos de ética" – soube muito cedo, para contribuir para a discussão sobre "relaxamentos" que abririam o caminho para o regresso à normalidade capitalista.
A "auto-referencialidade" à qual os indivíduos são cada vez mais solicitados, ou melhor, que é praticamente exigida para poderem afirmar-se neste mundo como empresa em nome individual em construção, já corresponde ao agir das empresas. Sob a pressão da concorrência, também eles têm de afirmar-se. Na crise, a sua margem de manobra também se torna mais estreita e maior o medo de serem expulsos da corrida. Assim, não surpreende que na crise exacerbada pelo coronavírus defendam a liberdade de produzir – claro que sem referência à situação daqueles que estão em perigo.
As cadeias comerciais grossistas e de retalho querem que a experiência de compra, incluindo a sua produção de sentido, continue a ser possível – ainda mais antes do Natal. Pode já não ser possível rastrear cadeias de infecção, mas os dirigentes do futebol sabem que as operações da liga de futebol são tão seguras em termos de higiene que poderiam continuar a decorrer mesmo com espectadores. E os petardos de fogo de artifício na véspera de Ano Novo são indiscutivelmente uma liberdade, se não um direito humano. E o que será da indústria de fogo de artifício se não houver petardos? Seria tão lastimável como para a indústria de armamento se não fossem vendidas mais armas e não houvesse mais guerras. Na área dos eventos e da cultura, orientada para a aventura e o entretenimento, descobre-se que a cultura é "mais" e "superior" ao entretenimento, tendo, por assim dizer, uma mais-valia que dá sentido...
Agora seria um equívoco caracterizar como egoísmo tais auto-referencialidades, do alto dum cavalo moralizante, e pregar a conversão à solidariedade. Isso seria tão ilusório e enganoso como a moralidade puramente formal de Kant e o seu imperativo categórico sem conteúdo – ilusório, porque se trata de problemas sociais, que não podem ser resolvidos com a moralidade individual; enganoso, porque as "soluções" morais deslocam o problema do plano social para o individual, retirando à reflexão o seu carácter social.
4. A política governamental como expressão de solidariedade?
Seria também muito equívoco interpretar mal a crítica da auto-referencialidade como uma simples apologia da política governamental, ou marcar esta com o rótulo da solidariedade. Há razões suficientes para criticar, por exemplo, a falta de equipamentos para protecção em hospitais e lares, em centros de dia e escolas, a falta de concepções para o ensino doméstico e, não menos importante, para a protecção e cuidado de pessoas sem abrigo. Tal como as pessoas que têm de viver em condições de habitação exíguas ou os trabalhadores independentes isolados, como os artistas, sofrem particularmente de restrições estatais e dificilmente são abrangidas por medidas de compensação estatais.
Apesar de todas as contradições, porém, a restrição de contactos contribui significativamente para interromper a propagação do vírus e para proteger os idosos e os doentes, bem como outros grupos de risco, ou seja, os "supérfluos" da normalidade capitalista. Este é um efeito que não deve ser subestimado. Os funcionários governamentais usam repetidamente a solidariedade como legitimação e apelam aos cidadãos para que demonstrem solidariedade "pessoalmente responsável" – em contraste com o "credo" neoliberal até agora válido de que a percepção do próprio interesse é a melhor medida social. No entanto, isto nada tem a ver com solidariedade no sentido de pensar e agir em ligação com todas as pessoas, com uma consideração especial pelos fracos. As medidas do Estado para o coronavírus visam aquilo para que o Estado capitalista existe: assegurar o funcionamento das relações capitalistas. O funcionamento do sistema de saúde, bem como da maior parte da economia, deve ser mantido para que o trabalho e o consumo possam e devam continuar, enquanto as restrições nas áreas privadas, bem como na gastronomia, nos negócios de eventos e cultura, são para abrandar o vírus e proteger o sistema de saúde da sobrecarga. No caso do confinamento imposto na passagem do ano 2020/21, é de facto perceptível que as restrições de contacto se referem principalmente ao sector privado e às indústrias de serviços correspondentes. O mundo da produção, por outro lado, é largamente deixado de fora. Foi apenas nas primeiras semanas de 2021 que o mundo do trabalho entrou em jogo com os apelos à obrigação de teletrabalho. Apesar de toda a conversa sobre educação, e mesmo a abertura ou reabertura o mais cedo possível de infantários e escolas, a questão é menos sobre educação ou sobre "as crianças", e mais sobre mantê-las seguras para libertar os pais para o trabalho.
Não se trata, portanto, de atacar as medidas governamentais com exigências de liberdades individuais, nem de as interpretar mal como medidas de "solidariedade". Antes de mais, visam manter o capitalismo a funcionar assim-assim. Estatistas e libertários discutem sobre como isto deve ser feito (Hauer, Hamann 2021). "Bem comum ou egoísmo, liberdade ou paternalismo, comunidade ou indivíduo" (ibid.) são colocados como bem ou mal, enquanto o papel do Estado no quadro da "totalidade social" é propositada e ilusoriamente ignorado. Também já não se consegue ver o facto de, na crise do coronavírus, o Estado estar cada vez mais confrontado com o dilema de ter de proteger os seus cidadãos e ao mesmo tempo manter a maior normalidade capitalista possível. No contexto da crise do coronavírus, os actores políticos também recorrem a um meio que já parecia ter provado o seu valor na administração da crise capitalista normal: a opinião de peritos. Isto parece estar acima das partes e oferecer uma saída sem ideologia, objectiva e sem alternativa, por assim dizer, "pós-política". Agora parece haver uma grande surpresa entre os políticos e os cidadãos por existirem opiniões diferentes na ciência. A consequência é a legitimação pela "ciência" e a simultânea deslegitimação desta. Neste último caso, a referência formal de que existem opiniões diferentes parece ser suficiente. Está aberto o caminho para a moralização, para a articulação da vontade política como "cidadãos zangados" – tudo isto numa falsa imediatidade cuja "auto-referencialidade" já não pode desenvolver qualquer compreensão do facto de que um "confinamento" rígido poderia ser mais sensato, no interesse do público capitalista e do seu livre funcionamento normal, do que a insistência nos direitos de liberdade acompanhada pela compulsão a minimizar e/ou negar os perigos para a saúde.
Atacar as medidas de contenção do vírus em falsa imediatidade ou, a propósito, falar do regime do coronavírus ou da ditadura do coronavírus é não reconhecer os perigos do vírus, nem o papel da liberdade, democracia e direitos humanos no capitalismo. Mesmo antes do coronavírus, as medidas nos centros ocidentais tornaram-se mais repressivas e os controlos mais extensivos, à medida que a crise avançava. Neste país, a legislação Hartz, em particular, visava disciplinar e controlar os "supérfluos", para além de maior precarização do trabalho (cf. Rentschler 2004). O catálogo de medidas aqui apresentado era tão "duro" que até o Tribunal Constitucional Federal em 2019 declarou as sanções parcialmente inconstitucionais. A legislação como um todo visava forçar as pessoas a trabalhar, ao que ninguém está autorizado a fugir. Todos são instados a manterem-se em constante prontidão para o trabalho e a optimizarem-se a si próprios como "empreendedores" para este fim. Quanto mais a normalidade capitalista se desmorona, mais os Estados a todos os níveis tentarão, enquanto puderem, parar a desintegração com medidas autoritárias e repressivas.
Nesta perspectiva, seria ingénuo acreditar que as medidas praticadas sob o coronavírus não seriam também utilizadas para além do coronavírus no curso posterior da crise. Wilhelm Heitmeyer, entre outros, aponta para isso: o Estado como o "grande ganhador de poder ... poderá ser tentado a perpetuar as medidas de controlo introduzidas, após a pandemia ter (temporariamente) diminuído", especialmente porque "as instituições políticas e de controlo ... são concebidas para manter as competências uma vez adquiridas" (Heitmeyer 2020, 296). Por esta razão, porém, é problemático rejeitar liminarmente as medidas actuais, uma vez que, para além do objectivo de manter toda a loja a funcionar assim-assim, elas (desta vez) também estão realmente a proteger a vida das pessoas. É claro que isto não significa que não haja razão para críticas (ver acima).
5. "Auto-referencial" e "solidário" ao mesmo tempo?
Na crise do coronavírus, "solidariedade" não é apenas um slogan da política governamental, mas também encontra apoio em partes da população. Não menos importante, nos movimentos sociais em defesa das vítimas: das vítimas da pandemia bem como das vítimas da normalidade da crise capitalista, desde os refugiados até às vítimas da violência sexista, racista, anticigana e anti-semita. Mas mais uma vez, os limites estabelecidos pela normalidade capitalista não são questionados. A justiça deve ser feita às vítimas no âmbito do sistema. Os excluídos por ele como supérfluos devem encontrar reconhecimento e poder participar no âmbito das condições. Em última análise, é uma solidariedade dos "decentes". Querem permanecer decentes no quadro de um sistema mortífero, pertencer a ele e, no entanto, agir de forma solidária. Aqui a "auto-referencialidade" e a "solidariedade" não são de modo nenhum mutuamente excluidoras. O reconhecimento como pessoas decentes em conformidade com o sistema é mantido e adicionalmente recompensado por um bom sentimento. Deste modo, através de pequenos actos de solidariedade, os indivíduos podem supostamente aliviar-se da sua própria "culpa", fazer-se acreditar que pertencem aos "bons". Mas "aliviar-se" da culpa individualmente é simplesmente impossível, tendo em conta o contexto global. Todos são obrigados a realizar e reproduzir diariamente as categorias abstractas da sociedade da dissociação e do valor nas suas acções e pensamentos, se não quiserem catapultar-se a si próprios "para fora", ou seja, para a pobreza e para o "nada". Nenhum indivíduo que vive sob o capitalismo consegue passar por este "sem culpa". Contudo, espera-se sempre que os indivíduos actuem moral e eticamente de acordo com valores morais "superiores", especialmente os da democracia e dos direitos humanos. Robert Kurz descreveu assim estas exigências contraditórias: "As pessoas (devem) ser ao mesmo tempo egoístas e altruístas, ao mesmo tempo assertivas e cooperativas; competitivas e solidárias [...] ao mesmo tempo [...] devem ser [...] pobres e ricas, [...] económicas e esbanjadoras, [...] gordas e magras, ascéticas e hedonistas " (Kurz 1993; citado em: Scholz 2019, 50).
Esta insanidade imposta aos sujeitos torna-se analiticamente compreensível quando é vista em ligação com a auto-referencialidade do capital. A auto-referencialidade do capital não se pode colocar em nenhuma outra relação que não seja consigo mesma. As mercadorias que produz não contam pelo seu conteúdo material, mas como a objectificação quantitativa do valor e da mais-valia. O capital não serve outro fim senão o irracional fim-em-si da multiplicação de si mesmo. Isto pôde ser obscurecido, nas fases ascendente e elevada do capitalismo, pela prosperidade social, pelo "bem-estar" parcial e pelas mitologias de um progresso constante "no conhecimento e na consciência da liberdade" (Hegel). Na crise, a mortal irracionalidade da auto-referencialidade capitalista, da normalidade capitalista, torna-se "evidente": o capital "tem de se exteriorizar sem excepção em todas as coisas deste mundo, para poder representar-se como real: desde a escova de dentes até à mais subtil emoção, do objecto utilitário mais simples à reflexão filosófica ou à transformação de paisagens e continentes inteiros." (Kurz 2003, 69s.) Ele tem assim de se exteriorizar para regressar a si mesmo e ao seu irracional fim-em-si de multiplicação por amor si mesmo, e novamente poder recomeçar.
6. Forma e Sujeito
A ligação entre a irracional auto-valorização do capital, que se torna insubstancial e portanto vazia à medida que a crise avança, e o sujeito foi descrita por Robert Kurz como a "auto-referencialidade da forma metafísica vazia 'valor' e 'sujeito'" (ibid., 69): "A forma 'valor' e, assim sendo, a forma 'sujeito' (dinheiro e Estado) pela sua essência metafísica é em si auto-suficiente e, ainda assim, tem de se 'exteriorizar' no mundo real; mas fá-lo apenas para invariavelmente regressar a si própria. Esta expressão metafísica do movimento de valorização aparentemente banal (e, sob o aspecto sensível e social, de facto horrivelmente banal) constitui o verdadeiro tema de toda a filosofia do Iluminismo… Nesta auto-suficiência, todavia com necessário movimento de exteriorização, e, em última instância, auto-referencialidade da vazia forma metafísica chamada 'valor' e 'sujeito', está ancorado um potencial de destruição do mundo, uma vez que a contradição entre o vazio metafísico e a 'obrigatoriedade da representação' do valor no mundo sensível só pode ser resolvida no nada e, portanto, na aniquilação. O vazio de conteúdo do valor, do dinheiro e do Estado tem de se exteriorizar em todas as coisas deste mundo sem excepção, para poder representar-se como real" (ibid., 69s.).
O colapso dos suportes das categorias reais da socialização capitalista cada vez menos pode ser compensado pelo facto de que ora é o mercado que se torna forte contra o Estado, como no início da fase neoliberal do capitalismo, ora é novamente o Estado, como depois da crise financeira de 2008/09, ou nas medidas repressivas contra refugiados e pessoas "supérfluas" nas sociedades dos centros, nas intervenções militares, etc. A alternância entre as polaridades política e económica, mercado e Estado, planeamento e concorrência, sujeito e objecto é cada vez mais rápida e transversal através de pacotes de medidas. O mesmo se aplica às questões de liberdade e repressão, auto-afirmação e solidariedade, ego e de sentimento de nós. As contradições são emaranhadas e transversais a grupos e sujeitos, e dificilmente podem ser resolvidas. As pessoas devem ser tudo ao mesmo tempo.
Assim, porém, os sujeitos tornam-se instáveis, ameaçam cair no vazio e não encontram apoio em si mesmos, porque o vazio social também se reproduz neles, e só pode ser apaziguado ou anestesiado sob a forma de acusações ilusórias e exageros do eu. Afinal, a intolerabilidade do vazio de conteúdo "exige uma identidade de conteúdo, plena de sentido e significativa" (Kurz 2018, 161). Apesar do seu vazio, as pessoas não podem simplesmente deixar para trás a forma sujeito ligada ao vazio do dinheiro em que estão enfeitiçadas e agir "como se" a forma sujeito "não" existisse – analogamente ao agir "como se não" que o filósofo Giorgio Agamben recomenda seguir na sua interpretação de Paulo como um modo de vida messiânico: comprar como se não se fosse proprietário, fazer uso do mundo como se não se usasse (cf. 1 Cor 7:29ss) (cf. Böttcher 2019, 143ss). "Uma vez que a própria identidade zero como sujeito do dinheiro não deve ser posta em causa, ... só pode tratar-se de pseudo-identidades sintéticas, em si e a priori falsas, meticulosamente ajudadas a recuperar e depois evaporadas novamente pelo inquieto nirvana do dinheiro, pela verdadeira identidade zero" (Kurz 2018, 161). Nem com pseudo-messianismo nem com pseudo-identidades é possível escapar ao colapso das formas de socialização da dissociação-valor. Pelo contrário, a crise e as experiências a ela associadas têm de ser processadas na e com a forma de sujeito associada a esta socialização. Isto sugere a procura de formas de processamento identitárias, que podem encontrar expressão no racismo e no sexismo, no anti-semitismo e no anticiganismo, bem como em autoposicionamentos autoritários ou em frentes transversais, que nas suas confusas constelações também podem passar pelo próprio pensamento e sentimento, até e incluindo o vai e vem entre identidades alternantes, que prometem nem que seja apenas por um momento apoio e um terreno seguro debaixo dos pés.
7. Uma matriz psicossocial do sujeito burguês
A dinâmica da eliminação de tudo o que é "conteúdo" em favor de um "vazio metafísico", mediada pela forma da dissociação-valor, também tem de manifestar-se nos próprios sujeitos. Mesmo que os modos psicossociais de processamento não possam ser simplesmente derivados da forma da dissociação-valor, também não são simplesmente "livremente" seleccionáveis. "O sujeito burguês e a sua matriz psicossocial baseiam-se aqui decisivamente na dissociação do feminino, na fantasia de dominação da natureza e na imaginação de autoposicionamento. Eles também estão significativamente associados com a internalização do ethos do trabalho. Ao que corresponde uma dinâmica pulsional em que, perante o adiamento da pulsão, a libido sobe às alturas, na alegre expectativa da 'recompensa pela recusa'. Este 'truque' da libido para lidar com a recusa da pulsão também define simultaneamente a via para o processo de sublimação da pulsão. " (Wissen 2017, 39). Freud assume que o sujeito burguês é movido por dois tipos de pulsão: eros e tânatos. Na sua mediação, desempenham um papel decisivo na formação da temporalidade e da processualidade psíquicas. As pulsões de vida mostram-se principalmente sob a forma de narcisismo e libido de objectos, e visam a produção de entidades maiores (reprodução) (1), enquanto as pulsões de morte visam a "repetição de uma experiência primária de satisfação" (Freud GW XIII, 44): (2) algo que, no entanto, não pode ser alcançado em termos reais, uma vez que significaria a própria morte. Freud escreve: "Um grupo de impulsos corre para a frente, a fim de alcançar o objectivo final da vida o mais depressa possível, o outro corre para trás, para fazer novamente o caminho a partir de um determinado ponto, prolongando assim a duração do caminho" (ibid., 43). A este respeito, a pulsão de morte também não deve ser equiparada demasiado directamente aos desejos de morte. O seu objectivo é antes de mais restaurar um estado perdido de "unicidade oceânica com o mundo". Este estado, porém, não pode ser tido na realidade e, portanto, encontra-se "para lá do princípio do prazer".
Para além da constituição do sujeito, devem ser tidos em conta os verdadeiros rumos da crise e, a partir daí, deve ser colocada a questão de como se processam as possibilidades, que estão a desaparecer, de uma "sublimação bem sucedida", no sentido de um enquadramento bem sucedido do sujeito como sujeito valorizável, que também se sente "reconhecido" e "importante" (narcisismo) no que faz. No decurso dos processos de crise capitalista, com o desaparecimento do trabalho como base substancial para a produção de valor e mais-valia, os sujeitos continuam a perder o seu suporte, porque as formas de produção e reprodução social (trabalho, família, Estado) colapsam como suportes. Os fenómenos de crise são acompanhados por processos de individualização e de flexibilização, que na realidade estigmatizam o fracasso perante a realidade como falha individual. Isto reflecte-se sobretudo nas depressões, nas quais as pessoas estão ocupadas sobretudo em acusar-se e julgar-se a si próprias permanentemente. Atiradas de volta a si próprias, tornam-se os seus próprios acusadores e simultaneamente juízes.
A proximidade do narcisismo e da depressão não deve ser negligenciada; ambos têm dificuldade em se relacionar com o mundo dos objectos, giram à sua volta, não conseguem encontrar o caminho para os objectos. Fazer-se grande, quando "uma pessoa" se sente realmente pequena, é, além da depressão, a outra variante de lidar com a insuportável (narcisista) ameaça permanente de não "conseguir". Aqui, as próprias experiências de impotência, dependência e ofensa são temerosamente negadas e recalcadas, e a própria genialidade é imaginada em ilusões narcisistas de grandeza. Analogamente às citadas análises de Robert Kurz, pode dizer-se em relação ao nível psicossocial: a última âncora do sujeito burguês é o seu "narcisismo", aqui o sujeito retira-se para si mesmo. Mas: "Depois de o sujeito burguês esclarecido se ter despojado das suas vestes, torna-se evidente que sob essas vestes não se oculta NADA: que o âmago desse sujeito é um vazio; que se trata de uma forma ‘em si’, sem qualquer conteúdo " (Kurz 2003, 68). E lá estamos nós novamente com a depressão, em que não o mundo mas o ego se tornou vazio (cf. Freud GW X, 431)...
Em relação à questão das pulsões de morte e de vida, pode-se concluir que as pulsões de vida estão a tornar-se cada vez mais difíceis de viver, e que se deve assumir que as forças que se podem opor às pulsões de morte estão a enfraquecer. Aqui o amoque parece ter-se tornado uma "boa solução": no suicídio alargado, em que em última análise também se imagina a aniquilação do mundo, o acto de autoposicionamento masculino é simultaneamente levado a cabo. Aqui, as pulsões de vida e de morte encontram um "compromisso" precário. As vestes de que Robert Kurz fala poderiam também ser lidas como a "aparência civilizada" do sujeito burguês.
Freud, tendo como pano de fundo a Primeira Guerra Mundial, estava preocupado com a questão de como o homem moderno é "civilizado". No texto "Considerações actuais sobre guerra e paz" descreve como a desilusão provocada pela "baixa moralidade dos Estados" e pela grande "brutalidade" (Freud GW X, 332) entre as pessoas perante a Primeira Guerra Mundial se baseou numa ilusão. Assim, "dentro das nações da comunidade cultural... foram estabelecidos elevados padrões morais para o indivíduo, segundo os quais ele tinha de orientar a sua conduta de vida se quisesse participar na comunidade cultural. Estas regulamentações muitas vezes demasiado rígidas exigiam muito dele, uma extensa autocontenção, uma renúncia de longo alcance à satisfação das pulsões" (ibid., 326). Esta renúncia, contudo, estava também ligada a um certo "prazer", na medida em que o cidadão cultural do mundo podia, se as "dificuldades da vida" não o impedissem de o fazer, "reunir uma nova grande pátria todas as vantagens e encantos dos países culturais" (ibid., 327). Mas depois veio a "desilusão": "A guerra em que não queríamos acreditar rebentou agora e trouxe a – desilusão. Não só é mais sangrenta e mais cara do que qualquer das guerras anteriores, ... mas pelo menos tão cruel, amarga, impiedosa como qualquer outra passada... Atira abaixo o que está no seu caminho, em fúria cega, como se não devesse haver futuro e paz entre os seres humanos depois dela" (ibid., 328s.).
Segundo Freud, o facto de a desilusão face à Primeira Guerra Mundial se basear numa ilusão tem a ver com o facto de se assumir frequentemente que as "más inclinações" podem ser erradicadas através da educação e do ambiente cultural. Mas não é assim: os impulsos das pulsões são elementares por natureza e não podem ser divididos em bem e mal de qualquer maneira; pelo contrário, classificamo-los "de acordo com a sua relação com as necessidades e exigências da comunidade humana" (ibidem, 332). De acordo com Freud, todos os que são desaprovados como "maldosos" são impulsos pulsionais "primitivos" que percorrem um caminho de desenvolvimento: "São inibidos, dirigidos a outros objectivos e áreas, entram em fusão uns com os outros, mudam os seus objectos, voltam-se em parte contra a própria pessoa" (ibid., 320). No seu conjunto, os "impulsos egoístas" são "transformados em sociais" através da "mistura de componentes eróticos" (ibid., 321), sendo que o factor externo da educação, no qual naturalmente as normas sociais por sua vez influem, é decisivo para este processo. Através dele, a coerção externa é constantemente transformada em coerção interna, pelo que Freud sublinha que o indivíduo está também sujeito à influência da história cultural dos seus antepassados. No final, a comunidade cultural, "que exige a boa acção e não se preocupa com a justificação pulsional da mesma(,) conquistou um grande número de pessoas que não seguem a sua natureza ao fazê-lo" (ibidem, 335). A "contínua repressão da pulsão" manifesta-se "nos fenómenos mais estranhos de reacção e compensação" (ibid.). Freud escreve: "Quem for assim obrigado a reagir constantemente no sentido de prescrições que não são a expressão das suas inclinações pulsionais, vive, psicologicamente entendido, para além das suas possibilidades, e pode objectivamente ser chamado de hipócrita, quer tenha ou não tomado claramente consciência desta diferença. É inegável que a nossa cultura actual favorece a formação deste tipo de hipocrisia numa extensão extraordinária" (ibidem, 336).
As interpretações de Freud lançam uma luz esclarecedora sobre a problemática associada ao "vazio metafísico", ao autoposicionamento e ao narcisismo. Ainda tinha em mente uma época em que era concebível o desenvolvimento imanente, e assim mais ou menos "ser bem sucedido como sujeito". Isso é diferente hoje em dia. A situação está a tornar-se precária: enquanto que as "recompensas" pela renúncia às pulsões têm um preço cada vez mais elevado e já não são sequer perceptíveis para muitos, as exigências sobre o indivíduo estão em constante crescimento. Agora há uma coisa que o sujeito masculino certamente não pode fazer: admitir a sua própria subordinação, dependência e impotência, porque isso significaria o seu próprio fim. É aqui que entra em jogo o narcisismo. Em certa medida, é utilizado como defesa contra ter de enfrentar a própria nudez, vazio e insignificância.
Isto aplica-se, embora de formas diferentes, tanto à revolta dos "decentes" como à revolta dos "cidadãos zangados". Enquanto uns tentam lavar as mãos e desculpar-se (também como medida antidepressiva), outros tentam demonstrar o seu poder, querem "impor-se" mais uma vez – custe o que custar. Uns apostam na solidariedade, visam principalmente os direitos humanos e não querem/não podem ver que a socialização da dissociação-valor é também a base dos direitos humanos. Quanto mais esta base vacila, mais os direitos humanos caem ou acabam por ser uma farsa. Outros procuram a salvação na "liberdade" e "autonomia", e defendem a democracia como sua base política e normativa. Como, com os limites da valorização do capital, a base para isso também está a desaparecer, a luta pela "liberdade" e "autonomia" ameaça tornar-se uma luta social darwinista de todos contra todos. O auto-enGRANDEcido sujeito burguês sente-se livre e auto-suficiente, omnipotente para tudo. Nas suas ilusões de grandeza, não pode – como já foi referido – admitir uma coisa: a sua própria impotência e dependência, e reconhecer que no quadro da socialização capitalista "não é possível tudo" e que não existem "alternativas possíveis". Nestas formas, simplesmente não há mais nada a fazer (Böttcher 2018). Os apóstolos das possibilidades ilusórias, que nos círculos esquerdistas gostam de ser invocados como santos auxiliares, também já não dão aqui qualquer ajuda: nem o "acto" de Žižek, no seu marxismo lacaniano ou no marxismo feminista de Soiland (Scholz 2020, 51), nem o "evento" de Badiou ou o "tempo que resta" de Agamben, com o seu conselho para agir "como se não", isto é, como se o capitalismo ou mesmo o coronavírus não existissem (cf. Böttcher 2019).
8. O homenzinho – bem grande, apesar de tudo?
As erosões no mundo do trabalho remunerado, assim como as desorientações que as acompanham, geram medos de cair. Estão ligados aos medos (masculinos) de já não ser capaz de preencher o papel "masculino", de falhar e de ser "castrado". A fraqueza humilhante e insuportável de não ser dono de si próprio e do seu mundo, e a experiência da confusão provocam a necessidade de clareza, e, na experiência da insegurança, a necessidade de voltar a pôr os pés em terra firme, de ser dono de si próprio e mestre de como as coisas se fazem. "As crises são tempos de confusão e perda de controlo" (Heitmeyer 2020, 299). A clareza parece fornecer o "conhecimento" de quem está por detrás dos problemas. A impotência ofensiva e a perda de controlo parecem ser compensadas por uma resistência poderosa. A mania de conspirações ou também a necessidade de identificar os actores andam de mãos dadas com uma falsa imediatidade que dispensa a reflexão sobre as mediações sociais. Deste modo o mundo torna-se claro e controlável. O homem feito pequeno pode uma vez mais apresentar-se perante si próprio e perante o mundo na sua grandeza e poder.
E depois há “os migrantes”, que mostram ao “homenzinho” para onde se vai se não se consegue lidar com a realidade (ver também Scholz 2007, 215ss). Há ameaças tanto "de cima" como "de baixo": há Bill Gates e a "conspiração judaica", e há os "supérfluos" que o melhor é simplesmente afogarem-se no mar – de acordo com a vontade de um democrático chefe da ordem pública de Essen, que já em 2000 declarou a sua vontade política de deportar refugiados em qualquer caso – "mesmo que os deixemos cair do avião" (Ökumenisches Netz Rhein-Mosel-Saar 2000, 5). Perante a limitação de ameaças abrangentes, as restrições do coronavírus não podem ser aceites: justamente ali, onde a "autonomia (masculina)” foi há muito tempo corroída e a liberdade significa, antes de mais, compulsão à valorização, é que o sujeito da crise se incha mais uma vez, quer mostrar à política, aos meios de comunicação... e ao mundo a sua potência, que há muito tempo já não pode ser potência nenhuma, ou se mostra como potência de mais destruição.
Mesmo se há muito que existe uma crise na AfD, a "direita" como um todo parece estar bem posicionada, também em termos de "pegar" no "homenzinho" com as suas necessidades. É precisamente a “comunidade”, a “vizinhança” que as cenas de direita “oferecem” que torna a coisa tão perigosa: porque onde cada vez mais pessoas estão em risco de isolamento e solidão, tais “projectos” são muito atractivos. Pode assumir-se que a cena negadora do coronavírus com a sua resistência também é impulsionada não em último lugar por uma espécie de "necessidade social" de união e comunidade, que é encenada como uma poderosa demonstração de solidariedade dos conhecedores contra os ignorantes, dos pequenos "de baixo" contra as elites "de cima", dos "verdadeiros" democratas contra os interesses dos poderosos – obviamente, sem que "se" admita a verdadeira impotência e dependência. Afinal, "uma pessoa" quer provar a si própria como é "independente" e "capaz de agir". São estas ilusões persistentes que tornam tão perigosas as tentativas desesperadas de autoposicionamento do sujeito masculino.
9. Regresso à normalidade capitalista?
O primeiro confinamento conseguiu mesmo fazer ouvir vozes que sugeriam que era um kairos para pensar fundamentalmente nas aberrações sociais, mesmo no que o surto do vírus tinha a ver com as relações sociais – a dominação da natureza e as formas capitalistas de produção e transporte. A esperança, no entanto, evaporou-se rapidamente. Em breve surgiu a necessidade de regressar à normalidade capitalista e se exigiu relaxamentos em nome da liberdade e da democracia. O vírus perdeu a sua imediatidade na experiência quotidiana. Assim, desapareceu ou está a caminho do desaparecimento. Quando, não de repente, mas previsivelmente – como teria sido evidente com o pensamento crítico – se fez sentir de novo ainda mais violentamente no imediato, o pêndulo balançou de volta à aceitação das restrições entre a maioria.
No entanto, isto tem menos a ver com a visão crítica, mas é mais suportado pela esperança de poder finalmente regressar à normalidade capitalista num futuro previsível através das vacinas. Mas esta normalidade já era uma normalidade de crise antes do surto do vírus, de facto esta normalidade de crise é que tornou possível o surto do vírus e abriu o caminho para ele. O biólogo Rob Wallace (2021) vê o surto do vírus no contexto da diminuição da biodiversidade, da sobreutilização das terras e da pecuária intensiva, ou seja, sobretudo nas condições-quadro em que os alimentos são produzidos. Permitem e encorajam a zoonose, a propagação de doenças transmitidas pelos animais aos seres humanos. Estes fenómenos são ao mesmo tempo expressão da relação capitalista com a natureza e das suas formas de produção e transporte, que foram desregulamentadas, liberalizadas e globalizadas a fim de compensar a crise de acumulação de capital, para poder produzir mais barato e abrir novos mercados de venda. A este respeito, o “surto” do vírus está relacionado com o capitalismo de crise.
Quando actualmente se exige o regresso à normalidade, isto significa em linguagem simples: continuar como se as aporias da normalidade da crise capitalista não existissem. Mesmo que os problemas se intensifiquem com e depois do coronavírus, é de temer que não sejam vistos no contexto da crise. É provável que continuem a ser negados e acompanhados por uma tentativa de combater os problemas e os supostos "perpetradores" de uma forma imediata e activista. Neste contexto, a referência de Freud ao "hipócrita cultural" torna-se mais uma vez interessante. A normalidade da crise também conduz psicologicamente aos conflitos entre conformidade e autoposicionamento, mais uma vez forçando as pessoas a viver psicologicamente além das suas possibilidades. Isto não é suportável sem enganos e ilusões que prometem apoio onde as circunstâncias se tornaram insustentáveis. Para uns, são as invocações ilusórias de liberdade e democracia que ocultam o facto de que a chamada ordem liberal e os seus valores normativos e direitos humanos estão ligados ao quadro da organização capitalista e colapsam com ele. Para outros, são os valores da solidariedade. O facto de a luta pela sobrevivência no vazio do processo de valorização capitalista se agudizar em termos de darwinismo social não será travado por qualquer solidariedade. A solidariedade dos maníacos da conspiração é mesmo uma parte desta luta pela sobrevivência do mais forte. Mas até a solidariedade dos decentes se depara com os limites das circunstâncias. Nem sequer é possível a solidariedade necessária para acompanhar as vítimas da normalidade da crise. A solidariedade como estrutura de coexistência social falha nos meios que o processo de valorização do capital teria de pôr à sua disposição. As ilusões e enganos associados à insistência na liberdade e na democracia, bem como às exigências de solidariedade e de um mundo solidário, têm certamente o carácter de hipocrisia cultural. Vivem para além das possibilidades que as circunstâncias tornam possíveis. Com o capitalismo, a "civilização" e o homem "civilizado" a ela associado desmoronam-se. Querer combater o "asselvajamento" das circunstâncias e uma bárbara luta social darwinista pela sobrevivência com a reivindicação de liberdade e democracia é tão ilusório como as exigências de solidariedade, que se movem no quadro da inconscientemente pressuposta normalidade capitalista e fazem, portanto, parte da hipocrisia cultural.
Se a democracia e a solidariedade forem reconhecidas como parte da normalidade capitalista, a observação de Freud sobre os hipócritas culturais acerta em cheio: "Na realidade, eles não afundaram tão baixo como temíamos, porque não tinham subido tão alto como pensávamos" (Freud GW X, 336). Isto é entendido por Freud como um certo consolo, tendo em conta o desengano associado à desilusão. O desengano no sentido de uma correcção dos enganos parece indispensável para que haja uma saída para a crise. É preciso nada menos que uma ruptura com as relações que precisam de ilusão e com a forma da dissociação-valor que as caracteriza. Isto não será possível sem análise conceptual e reflexão crítica, que, no entanto, tem ser capaz de ter em conta os diferentes níveis de "reprodução" das relações e, portanto, sabe que o pensamento por si só não pode realizar uma ruptura; porque as categorias abstractas são reproduzidas no pensar, agir e sentir das pessoas é também necessária uma ruptura a estes níveis. Isto não acontecerá da noite para o dia, mas uma coisa já é clara: sem o desengano da ilusão masculina de autoposicionamento dominador e o reconhecimento das ofensas que surgem quando o autoposicionamento se depara com os seus limites, não pode haver a necessária ruptura com as circunstâncias.
10. Aprender a viver com o vírus ou reduzir o vírus a zero?
Nas discussões actuais estão em foco propostas de estratégias que visam aprender a viver com o vírus e outras cujo objectivo é reduzir o vírus a zero. De certo modo, são representados pelo conselho de peritos do governo do Estado da Renânia do Norte-Vestefália, por um lado, e por um grupo interdisciplinar de cientistas (cf. https://www.zeit.de/wissen/gesundheit/2021-01/coronavírus-strat.; https://www.zeit.de/wissen/gesundheit/2021-01/no-covid-strategie) bem como pela campanha ZeroCovid (https://zero-covid.org/), por outro. Alguns querem integrar o vírus bem como medidas de protecção específicas na normalidade capitalista, "a fim de se poder viver com este vírus pública e privadamente" – de acordo com o conselho de peritos da Renânia do Norte-Vestefália. Os outros insistem numa estratégia europeia a longo prazo de confinamento rígido para impedir a propagação do vírus, a fim de depois se voltar a um estado de normalidade capitalista.
É impressionante que a exigência de um confinamento a longo prazo, tal como formulada pela campanha, se depara com críticas de um espectro de esquerda em torno do Comité dos Direitos Fundamentais e Democracia (http://www.grundrechtekomitee.de/details/einige-gedanken-des-grundrechtekomitees-zur-kampagne-zerocovid), bem como de Alex Demirović (cientista social, membro do conselho consultivo científico da Attac e fellow da Fundação Rosa Luxemburgo) (https://www.akweb.de/bewegung/zerocovid-warum-die-forderung-nach-einem-harten-shutdown-falsch-ist/). Contra essa exigência, são mais uma vez imediatamente posicionadas as exigências de democracia, direitos humanos e liberdades. Falta qualquer reflexão sobre a mediação da democracia, liberdade e direitos humanos com relações capitalistas burguesas. Nem sequer se aponta minimamente para a de resto igualmente popular e redutora – porque limitada ao nível de circulação – crítica à liberdade neoliberal do mercado, à qual a liberdade individual e os direitos humanos seriam sacrificados. O último refúgio é mais uma vez a exaltação iluminista do sujeito (masculino) e da sua liberdade de se autoposicionar – naturalmente sem tomar nota da concomitante dissociação da reprodução, conotada como feminina e inferiorizada.
De certo modo, isto também se aplica às mulheres. Pois também elas têm de assumir o seu papel em toda a organização. O que significa que normalmente têm de ser sujeitos "femininos" e "de trabalho", ou seja, têm de assumir dois "papéis" e passar por um processo de socialização correspondente. A este respeito, as mulheres não estão imunes a aderir à invocação da liberdade e dos direitos humanos, ou de fazer "suas" clarezas autoritárias, de desejar um "homem forte", etc. Pense-se, por exemplo, nas mulheres que votaram Trump nos EUA, apesar da sua clara misoginia... No entanto, não se deve esquecer que as mulheres, especialmente em processos de crise, mais depressa pertencem aos "estúpidos": geralmente têm de lidar com a loucura quotidiana com crianças e trabalho remunerado, trabalham mais frequentemente em empregos precários do que os homens, estão expostas à violência masculina como solução para tensões narcisistas, etc.
Demirović tem certezas: "Um confinamento europeu não é realista", "o fim da pandemia ... não é possível". As propostas políticas não são viáveis e o vírus é considerado uma lei inquestionável da natureza. É "um vírus que reconhecemos, com o qual nós, como animais, vivemos involuntariamente em metabolismo e viveremos ainda por muito tempo". A zoonose, contudo, não é um simples fenómeno natural, mas está relacionada com formas capitalistas de produção e transporte. Para Demirović, não existe uma totalidade capitalista, apenas complexos interesses capitalistas. De igual modo, também não existe um Estado que defende "o interesse do capital em geral"; "pois não existe tal coisa". Assim, o nível do Estado e da política pode tornar-se um local onde interesses em conflito são negociados, através de processos democráticos. Olhando para o coronavírus: o vírus é estabelecido pela lei natural; a democracia e o Estado de direito são normativos. Assim, não é por acaso que a maior preocupação do Demirović é a negociação democrática de como lidar com a epidemia, em suma, os "perigos para a democracia" que – segundo a sua crítica ao apelo #ZeroCovid – "passam por baixo da mesa". Isto resume-se à ideia de que "as relações sociais, a democracia e o conhecimento científico devem ser mais desenvolvidos nesta perspectiva crítica, para que não sejam invalidados nas e através das crises". Crucialmente os "perigos autoritários" que esperam a democracia numa estratégia ZeroCovid com um confinamento rígido temporário. E assinala: "Mantemos a nossa liberdade e fazemos escolhas que podem ser autoritárias, liberais, socialistas darwinistas, ou socialistas autónomas". Quase tudo pode ser livre e democraticamente negociado. Existe apenas um limite – não o limite lógico e histórico da valorização do capital, ou os limites ecológicos, mas "o recurso de leis naturais inerentemente válidas" e a "ameaça autoritária" que isso representa.
Naturalmente, seria ingénuo supor que a intervenção autoritária do Estado, uma vez aplicada, seria simplesmente retirada "depois do coronavírus", seja o que for que isso signifique (ver acima). Também seria ingénuo acreditar: mais um confinamento rígido e depois é tudo. Mas apesar disso também pode acontecer que um confinamento assim rígido pareça ser a coisa certa a fazer e faça sentido, se não se for tão cínico a ponto de se considerar sem qualquer importância as actuais taxas de mortalidade, a sobrecarga do pessoal de enfermagem e hospitalar, as mutações virais em perspectiva com as condições actualmente prevalecentes, sobretudo em Manaus, mas também na Grã-Bretanha e na Irlanda, etc. Mesmo numa sociedade mundial libertada do fetiche do capital, poderiam ser tomadas medidas quando ocorre uma epidemia local, tais como "isolamento rápido para interromper as cadeias de infecção, cuidar das pessoas doentes com todos os meios à disposição da sociedade, ao mesmo tempo que se fornecem medidas de protecção adequadas para aqueles que ajudam" (Gruppe Fetischkritik Karlsruhe 2020).
O Comité dos Direitos Fundamentais também está preocupado com os perigos de um Estado "autoritário". Além disso, critica que um confinamento rígido perpetuaria "desigualdades e estigmatizações na sociedade". No contexto das relações de crise capitalistas, o coronavírus torna-se o acelerador de todos os problemas sociais. Por conseguinte, um confinamento rígido atingiria as pessoas pobres, sem abrigo, pessoas isoladas, pessoas em condições de habitação exíguas, pessoas em fuga e em campos etc. mais duramente do que outros grupos populacionais. Por um lado, poderia e deveria ser prestada assistência adequada, por exemplo, alojamento dos sem-abrigo e refugiados em hotéis vazios. Por outro lado, já se pode ver que são precisamente estas camadas da população que correm o risco de estar entre as primeiras vítimas quando o vírus se propaga, até porque lhes faltam os meios e oportunidades para se protegerem bem contra o vírus (por exemplo, através de máscaras cirúrgicas, viajando de carro em vez dos transportes públicos, devido ao emprego precário no sector dos serviços, devido a condições de habitação exíguas etc.). O exemplo dos EUA não em último lugar mostra que o vírus é particularmente galopante entre a população pobre e negra, e que a mortalidade é particularmente elevada nestes grupos populacionais.
Sendo justificada a referência a situações sociais problemáticas que pioram com o coronavírus e a reivindicação de ajuda, é contudo problemático e por vezes até cínico usar estes problemas para a deslegitimação de estratégias que visam conter o vírus e assim também proteger vidas, desembocando as considerações em "qual o número de infecções que nos parece aceitável: 50, 25, 7 ou 1 por 100 000 habitantes" (Demirović 2021), ou até mesmo numa defesa indiferenciada do maior relaxamento possível.
Isto levanta a questão de saber por que razão o medo do "autoritarismo" é tão grande neste momento em particular, especialmente porque a restrição dos direitos de circulação e liberdade na Alemanha se revelou muito inofensiva em comparação internacional. O que é irritante neste contexto é que nem Demirović nem o Comité dos Direitos Fundamentais reflectem sobre a história do social e do "autoritário", no sentido de que fosse suficientemente importante para eles salientar que foram precisamente as reformas Hartz, democraticamente negociadas e aplicadas pela administração da crise, que empurraram as pessoas para uma situação cada vez mais precária, privando-as dos seus direitos e expondo-as a um regime autoritário. Isto é ainda mais verdade no que diz respeito ao estado de excepção democrático, à segurança policial e militar e ao internamento em campos imposto aos refugiados. É impressionante que a crítica das medidas de contenção do vírus se inflame imediatamente com o autoritário e exija também imediatamente liberdade e democracia. Isto também aponta para a ligação, problematizada neste texto, entre mania (masculina) de liberdade e autoposicionamento e o medo da própria limitação, da própria queda como sujeito, ou a defesa contra essa ameaça. A crítica à normalidade capitalista da crise, da qual o vírus emergiu, no âmbito da qual foi capaz de se espalhar e de se tornar o acelerador das várias situações problemáticas, é completamente ignorada. O regresso a esta normalidade parece ser uma perspectiva de salvação, mas é provável que se revele uma ilusão, com todas as consequências mais graves de distorções económicas, sociais, ecológicas e psicossociais.
11. E no final: aprender a viver com o vírus na normalidade capitalista
Demirović – bastante em linha com outros esquerdistas – está "realista". Afinal tal realismo tem sido, por todos os meios, suficientemente ensaiado na proximidade da "realpolitik" nas últimas décadas. Daqui derivam as certezas de que um confinamento europeu "não é realista" e um "fim da pandemia ... não é possível". Portanto, a palavra de ordem é "aprender a viver com o vírus". Este "aprender a viver com..." move-se significativamente na proximidade de tudo o que já foi aprendido na normalidade capitalista: viver com as guerras de ordenamento mundial, com a crise ambiental, com sempre novas imposições da administração da crise. Apenas uma coisa não cabe no quadro do realismo: a crise imanentemente incontrolável do capitalismo e a sua normalidade. Só se for negada é que as visões mundiais de liberdade e democracia, que são exageradas mesmo sem a realidade mortífera do vírus, podem ser mantidas. A crítica ao capitalismo é substituída por uma negociação em que as condições-quadro capitalistas já são sempre aceites. E aqueles que não as aceitam perdem o lugar na "mesa redonda" dos negociadores.
E assim o que permanece "no final" é o realismo e a uniformidade dos democratas "de direita" e "de esquerda" contra uma crítica radical e emancipatória do capitalismo. Fica-se pelo regresso do mesmo: negociar democraticamente. Nisto, os esquerdistas encontram-se juntamente com o conselho de peritos do governo do Estado da Renânia do Norte-Vestefália, que sobretudo defende a não paralisação de partes inteiras da economia e alimenta a ilusão de que os chamados grupos vulneráveis podem ser protegidos sem incluir a sociedade como um todo. Na "negociação democrática", um tom agressivo contra os defensores de estratégias visando zero Covid não deixa dúvidas. Stephan Grünewald, membro do Conselho de Peritos, permitiu-se falar delas como pretendendo ser uma "vitória final sobre o vírus". Jakob Augstein compara-as a "uma perigosa mentalidade de cruzada, que utilizará qualquer meio na guerra contra a doença" (Freitag, 3/2021).
O slogan pomposo da Attac "Um outro mundo é possível" obviamente já nem sequer tem em vista estratégias destinadas a ultrapassar o vírus. A pressa nunca é demais no regresso à normalidade capitalista e às ilusões de "business as usual”! – com ou sem o vírus. Enquanto "um outro mundo" for procurado na imanência do "patriarcado produtor de mercadorias" (Roswitha Scholz), ele permanece fechado, encerrado na imanência das relações fetichistas. A auto-referencialidade e a solidariedade falham por causa delas. No entanto, com o conceito de solidariedade e a prática solidária, poderiam ser tidas em vista dimensões para além da imanência fechada. Isto implica olhar para todas as vítimas do capitalismo, para aqueles que são privados da sua subsistência por processos de destruição ecológica e social, para as vítimas das "guerras de ordenamento mundial", até aos doentes e idosos, e também aos mortos que já são simplesmente eliminados a baixo custo.
Uma vez que o coronavírus está actualmente a revelar-se um acelerador da crise, será "depois do coronavírus" ou numa vida "com o coronavírus" que a conta será apresentada. Atingirá ainda mais duramente os não-rentáveis – tanto em termos de os privar do seu sustento como de os administrar num estado de excepção democrático. Nenhuma democracia os salvará disto. Pelo contrário, negociará e executará tudo de modo formalmente correcto e parlamentar – como já se pode ver nos exemplos de Hartz IV e no tratamento dos refugiados.
A solidariedade no sentido que acabamos de mencionar centrar-se-ia, portanto, naqueles que não são rentáveis para a valorização do capital, que já não podem ser integrados no Estado social, e que são democraticamente excluídos como não rentáveis e ao mesmo tempo incluídos no trabalho (Hartz IV) e em campos de concentração. A prática da solidariedade terá de visar a utilização dos restos da margem de manobra imanente "para ‘conseguir algo’. Mas isso já só funciona em ligação com um amplo movimento social, que seja capaz de começar a suplantar a concorrência universal e a impor um conjunto de exigências, mesmo que com estas não se supere a crise, a qual radica nas contradições sistémicas do ‘trabalho abstracto’ e da sua estrutura de dissociação sexual. Para que um tal movimento em geral possa ser possível é necessária uma pequena guerra tenaz também no dia a dia, contra o pensamento social-darwinista, sexista, racista e anti-semita, em todas as suas variantes. Quando a resistência imanente encontrar a perspectiva de outro modo de produção e de vida, para lá do patriarcado produtor de mercadorias e portanto também para lá do antigo socialismo de Estado, as formas de desenvolvimento da crise podem abrir-se para além disto, para uma nova sociedade. Esta abertura só é possível através da simultânea abertura do horizonte mental a uma nova crítica social radical – em vez de se deixar consumir completamente pelo dia a dia da crise." (Kurz 2006). Estes desafios não foram negados pelo coronavírus. Pelo contrário, tornaram-se ainda mais urgentes.
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(1) Se Freud soa algo 'biologista' aqui, tem a ver com a sua tentativa de estabelecer a psicanálise como uma ciência (burguesa). Noutros textos Freud certamente descreve outros "objectivos sexuais". No entanto, o próprio "desejo" do sujeito burguês de se perpetuar, de se "reproduzir", não deve ser subestimado.
(2) Em Freud, a designação da "experiência primária de satisfação" aparece em vários textos, mas também permanece sempre um pouco aberta, e talvez também deva, pois aqui estamos a lidar com algo que está no limite do pré-linguístico, pré-subjectivo. Trata-se da emergência do psíquico no contexto da necessidade da vida: "Sob a forma das grandes necessidades corporais, a necessidade da vida aproxima-se primeiro dele (o aparelho psíquico, nota dos autores). A excitação estabelecida pela necessidade interior procurará uma saída na motilidade (movimento muscular involuntário, nota dos autores) que pode ser chamada a "mudança interior" ou a "expressão do movimento da mente". A criança esfomeada vai gritar impotente ou inquietar-se. A situação, no entanto, permanece inalterada.... Só pode ocorrer uma viragem quando, por algum meio, no caso da criança através de assistência externa, se faz a experiência da vivência da satisfação (ênfase no original), o que anula o estímulo interior. Uma componente essencial desta experiência é o aparecimento de uma certa percepção (alimento, por exemplo), cuja imagem da memória permanece a partir de agora associada ao traço de memória da satisfação da necessidade. Assim que esta necessidade surgir da próxima vez, ... surgirá uma agitação psíquica que pretende reocupar a imagem da memória dessa percepção e evocar de novo a própria percepção, ou seja, pretende realmente restaurar a situação da primeira satisfação" (Freud GW II/III, 471).
Original Zwischen Selbstbezüglichkeit und Solidarität? Coronavirus in der Leere des Kapitalismus. Publicação conjunta da exit! e da Ökumenischem Netz em Netz-Telegramm 1.2021. Tradução de Boaventura Antunes