Sobre a história da assistência aos pobres

Leni Wissen

 

O "trabalho", como forma central de actividade no capitalismo, implica uma relação especial com o não-trabalho. A relação entre “trabalho” e “não-trabalho” é particularmente importante para a estruturação das relações sociais. Isso reflete-se na forma como a pobreza é tratada, como mostra um olhar sobre a história da assistência aos pobres. Com a emergência da sociedade da dissociação-valor, a distinção entre os pobres dignos, isto é, trabalhadores, e os indignos, isto é, não trabalhadores, começou a prevalecer, o que teve uma influência decisiva na configuração do sistema de assistência social emergente. A história da assistência aos pobres está intimamente ligada à história do anticiganismo. Pois no anticiganismo a discriminação social e a racista estão inseparavelmente ligadas. Tendo em conta as tendências gerais de asselvajamento na senda da dinâmica de crise pós-moderna do capitalismo, um "anticiganismo estrutural" (Roswitha Scholz) parece ser a forma ideal de lidar com a crise para uma classe média em declínio, e também tem de ser considerado como um ruído de fundo para a reestruturação do Estado social no capitalismo em decadência, como mostra Wissen no exemplo do "Estado social activador" na Alemanha. (Apresentação do texto na exit! nº 17)

 

1. Introdução * 2. O surgimento da assistência aos pobres * 2.1 Sobre a reavaliação da pobreza no contexto da implementação do moderno ethos do trabalho * 2.2 Sobre a deterioração geral das condições de vida no início da história capitalista * 2.3 As casas de correcção e as casas de trabalho como instituições de "educação para o trabalho" * 3. A assistência aos pobres no tempo da Primeira Revolução Industrial * 4. A assistência aos pobres no contexto da Segunda Revolução Industrial * 4.1 O assistência aos pobres na época dos fundadores * 4.2 O sistema de assistência no tempo da Primeira Guerra Mundial * 4.3 A assistência social na República de Weimar * 4.4 O Estado social no nacional-socialismo * 5. O Estado social na República Federal da Alemanha * 5.1 A caminho do 'Estado social activador' * 5.2 O 'Estado social activador' * 6. A angústia da classe média, a demarcação para baixo e o anticiganismo estrutural * Bibliografia

 

1. Introdução

O facto de o "trabalho", como "substância do capital", juntamente com a esfera da reprodução dissociada do valor, constituir a totalidade social no capitalismo foi muitas vezes desenvolvido do lado da crítica da dissociação-valor. O "trabalho", como forma central de actividade no capitalismo, implica uma relação especial com o não-trabalho. Esta relação entre 'trabalho' e 'não-trabalho' é decisiva para a estruturação das relações sociais. Reflecte-se na forma como a pobreza é tratada, como mostra um olhar sobre a história da assistência aos pobres.

            Com a emergência da socialização da dissociação e do valor, a distinção entre pobres dignos, isto é, trabalhadores, e indignos, isto é, não trabalhadores, começou a afirmar-se em paralelo com a divisão entre "trabalho" e "não-trabalho". Moldou a formação do sistema social emergente. Ao longo desta distinção, desenvolveu-se uma assistência 'elevada', especialmente sob a forma de seguro para os pobres 'dignos', e uma assistência disciplinadora e discriminatória a um nível de miséria para os pobres 'indignos'.

            A história da assistência aos pobres está estreitamente ligada com a história do anticiganismo. Pois no anticiganismo discriminação social e racista estão inseparavelmente ligadas. Com Roswitha Scholz pode dizer-se que o 'cigano', como 'homo-sacer primordial', ainda é supérfluo entre os 'supérfluos' e "na construção racista-associal o último dos últimos da sociedade, a 'escória da humanidade'" (Scholz 2007, 203). Só posso abordar aqui estes contextos de passagem. No final ou referir-me ao conceito de Roswitha Scholz de "anticiganismo estrutural" (cf. Scholz 2007, ou também Scholz 2009). Por isso me parece útil ter em mente a ligação aqui apenas sugerida no que se segue.

 

2. O surgimento da assistência aos pobres

2.1 Sobre a reavaliação da pobreza no contexto da implementação do moderno ethos do trabalho

Na ordem medieval os pobres tinham o seu lugar seguro. A esmola era uma parte integrante desta ordem. Assim, Bernhard Schneider recorda Tomás de Aquino, que tinha elaborado uma "sistemática da esmola e da propriedade" (Schneider 2011, 96). Em Tomás de Aquino, a esmola está ancorada na doutrina da propriedade, pois "com a esmola, os pobres recebem uma parte devida à natureza humana dos bens desigualmente distribuídos desta Terra, que são em princípio bens comuns e servem o bem comum" (ibidem). Neste contexto, a esmola não é apenas um acto de amor, mas também parte de uma "justiça compensatória e não deixada à discrição do indivíduo. Os ricos têm de dar o que possuem em 'excesso' [...]. No caso do destinatário, basta a necessidade como pré-requisito para o donativo, e a mendicidade é considerada legítima se for necessária para a sobrevivência" (ibidem). A esmola pode assim ser lida como parte de uma relação de obrigação mútua. Sachße/Tennstedt também escrevem: "A mendicidade é uma forma perfeitamente legítima de reprodução individual e não está sujeita ao ostracismo na sociedade medieval" (Sachße; Tennstedt 1980, 29).

            Esta imagem mudou fundamentalmente nos séculos XV e XVI. A pobreza e a mendicidade foram cada vez mais desvalorizadas, perseguidas e desacreditadas. Estes desenvolvimentos foram acompanhados por uma revalorização do "trabalho". (1) Foram não em último lugar o protestantismo e sobretudo os ensinamentos de Martinho Lutero (1483-1546) que levaram a uma revalorização do "trabalho". Lutero declarou "o próprio trabalho como sendo um dever para com Deus" (Brocker 1992, 420, ênfase no original) e expandiu radicalmente o "mandamento de trabalhar, que originalmente se aplicava apenas a algumas áreas" (ibid.). Tornou-se um dever para com Deus e, portanto, um "fim-em-si eticamente transfigurado" (ibid., 77). Além disso, a Reforma pôs em andamento a ideia de uma "educação para o trabalho". Assim, segundo Schatz/Woeldike, tinha de ser incutida a vontade de se submeter a uma constante compulsão ao trabalho: "A Reforma proibia definitivamente tudo o que lhe parecesse 'não-trabalho'. Através da educação para o trabalho, deveria surgir a diligência do povo. Embora a coerção fosse necessária no início, o trabalho deveria acabar por se tornar um hábito através de 'actividade contínua' até ser tão evidente que parecesse ser a única coisa certa e sensata a fazer" (Schatz; Woeldike 2001, 19). A este respeito, os ensinamentos de Lutero podem ser vistos como o precursor ideológico da ética burguesa de trabalho (cf. ibid., 73), não querendo dizer que ela tenha surgido unicamente dos ensinamentos de Lutero.

            A marginalização do "não trabalho" e a "educação para o trabalho" andaram de mãos dadas como já indicado com o início da prática persecutória da pobreza, da mendicidade, da esmola, etc. De acordo com Sachße/Tennstedt, "o processo de restrição crescente da tradicional prática da esmola, [...] o processo de exclusão da pobreza" (Sachße; Tennstedt 1980, 30) começou no século XV. Kronauer deixa claro que no século XVI quase nada restava do antigo "ethos da pobreza" (cf. Kronauer 2010, 79): "Em todo o lado os pobres eram oficialmente registados. Vagabundos e mendigos eram punidos severamente, vagabundos migrantes eram corridos para fora da cidade, os pobres capazes, se possível, eram submetidos a trabalhos forçados [...]" (ibid.). Com Schatz/Woeldike pode ser acrescentado: "O não disposto a trabalhar foi observado, desmascarado e posto no lugar para ele designado. A regulação externa devia ser assegurada por autocontrolo e auto-submissão, e internalizada como 'segunda natureza', ou seja, os próprios desejos e necessidades deviam ser superados em favor da subordinação à 'volonté general'" (Schatz; Woeldike 2001, 19f).

 

2.2 Sobre a degradação geral das condições de vida no início da história capitalista

Os referidos processos de marginalização da mendicidade e da pobreza, bem como a emergência do moderno ethos do trabalho, tiveram lugar numa altura em que começava a surgir uma nova forma de pobreza, claramente diferente da pobreza conhecida na Idade Média. Já nos séculos XIV e XV havia sinais de uma deterioração das condições gerais de vida sob a forma de escassez alimentar e crises de fome (cf. Kurz 2005, 17s., Sachße; Tennstedt 1980, 39). A pobreza que caracterizou o século XVI é descrita por Robert Kurz como "uma pobreza maciça 'estrutural' desenfreada e profunda ao nível das necessidades básicas" (Kurz 2005, 23s.) que não existia antes. (2) Esta pobreza maciça tem de ser vista no contexto dos processos de convulsões sociais associados à emergência da sociedade da dissociação e do valor. Processos que podem pelo menos ser insinuados com o recurso a Robert Kurz: assim, com as "inovações das armas de fogo desde o século XIV" (ibid., 113), houve uma proliferação de relações monetárias e de mercado. A competição entre a tecnologia dos canhões e a construção de fortalezas não só tinha levado a expansões territoriais, como também era um "insaciável consumo de recursos" (ibid., 116). Foi neste contexto que surgiu o Estado absolutista, actuando depois como um motor para a expansão das relações monetárias e de mercado.

            Devido ao aumento da procura de recursos, a produtividade teve de ser aumentada. Por esta razão, do lado absolutista avançou o estabelecimento das primeiras manufacturas (cf. Sachße; Tennstedt 1981). Esta política estava, evidentemente, em conflito com as corporações. Sachße/Tennstedt vê a emergente "indústria doméstica" como uma tentativa de escapar à influência das corporações, localizando-a sobretudo no campo, onde a influência das corporações era menor. A indústria doméstica foi organizada de tal modo que os produtores fabricavam produtos nas suas próprias casas para um comprador central grossista. A manufactura tornou-se muito mais conhecida. Era uma empresa centralizada de grande escala na qual os produtos eram fabricados numa divisão do trabalho. A manufactura de têxteis, em particular, difundiu-se através do sistema da manufactura.

            Sachße/Tennstedt examinam os conflitos que acompanharam as políticas absolutistas e mercantilistas, usando a Prússia como exemplo. Eram principalmente os obstáculos relacionados com a ordem feudal que impediam o desenvolvimento da produção comercial em massa: "O problema central que se coloca à manufactura prussiana e ao mercantilismo na Prússia é [...] a 'questão do trabalhador' [...], a notória escassez de trabalhadores" (ibid., 94). A partir desta necessidade, mulheres e crianças estavam também cada vez mais envolvidas na produção comercial. Ao mesmo tempo, "reclusos de instituições estatais, de casas de correcção, casas de trabalho, casas de pobres e orfanatos eram cada vez mais utilizados como trabalhadores na manufactura" (ibidem, 95). A manufacturas provaram assim ser uma "fonte de pobreza e miséria" (ibidem, 99) e isto em dois aspectos: para além dos salários baixos, os trabalhadores das manufacturas também estavam na situação de serem "pobres no sentido de viverem exclusivamente da venda da sua força de trabalho e terem, portanto, de tornar-se beneficiários da assistência aos pobres sempre que houvesse uma crise individual ou socialmente provocada". (ibid.). Além disso, o sistema de manufactura levou a processos de diferenciação no artesanato urbano, de modo que a proporção de artesãos empobrecidos também aumentou na segunda metade do século XVIII (cf. ibid.).

            O enfoque dos Estados absolutistas na expansão das relações monetárias e de mercado também exerceu pressão sobre o sector agrário, uma vez que havia agora uma crescente procura de impostos sob forma monetária e menos de contribuições sob forma natural (cf. Kurz 2005, 33). Apesar de muitos esforços de modernização, as convulsões no campo foram bastante lentas. Assim, o senhorio feudal [Grundherrschaft] e o senhorio [Gutsherrschaft] existiram lado a lado durante um período relativamente longo, situação em que o senhorio feudal significava que um camponês podia cultivar um pedaço de terra de forma relativamente independente e tinha de pagar contribuição ao senhor da terras por isso, enquanto que no senhorio o camponês "tornou-se cada vez mais um trabalhador dependente e não livre na grande empresa agrícola do senhorio" (Sachße; Tennstedt 1980, 88). Ao mesmo tempo, o senhorio mostrou uma maior orientação da produção para o mercado e para a obtenção de lucros (cf. ibid.).

            Estes processos, aqui só esboçados, conduziram a situações de vida precárias para o conjunto da população: "a deterioração da situação alimentar em conjunto com um aumento de preços que começou na segunda metade do século, com os salários a permanecerem os mesmos ou a baixarem, levou a uma deterioração das condições de vida da população" (ibid., 90s.). E a situação do "proletariado inicial" (ibid., 97) é também predominantemente miserável. Em relação aos trabalhadores e trabalhadoras do sector têxtil, Sachße/Tennstedt descrevem um "processo progressivo de empobrecimento" (ibid.). O nível de vida dos novos trabalhadores assalariados emergentes "deteriora-se, eles vivem – cada vez mais mesmo com o trabalho de vários membros da família – no limite do mínimo de subsistência e constantemente em perigo de se afundarem abaixo do limiar da pobreza e sofrerem a mais amarga necessidade com cada crise, seja ela de natureza individual ou económica" (ibidem, 97s.).

 

2.3 As casas de correcção e as casas de trabalho como instituições de "educação para o trabalho"

A invenção mais inovadora da assistência absolutista aos pobres foram as casas de correcção e as casas de trabalho, nas quais os pobres podiam ser internados (cf. ibid., 113). As primeiras casas de trabalho surgiram no século XVI (por exemplo, o asilo Bridwell em Londres, fundado em 1555) e encontraram uma expansão significativa no século XVII, embora o apogeu das casas de trabalho só tenha começado no século XVIII. As casas que surgiram em toda a Europa apresentavam um "elevado grau de diversidade local e regional" (ibid., 115). As casas de correcção e as casas de trabalho também apresentavam um quadro heterogéneo em termos do número e tipo de internados. Havia nelas "mendigos avessos ao trabalho, criminosos condenados pelos tribunais, criados insubordinados, crianças rebeldes, idosos frágeis, viúvas empobrecidas, órfãos e prostitutas, loucos e doentes venéreos: não havia grupo marginal da sociedade absolutista que não contribuísse com a sua quota para a ocupação das instituições coercivas" (ibidem).

            A grande diversidade das casas de correcção e das casas de pobres estava também relacionada com o facto de se terem tornado "o ponto focal de toda uma variedade de problemas sociopolíticos não resolvidos" (ibidem, 116). Especialmente no século XVIII, as casas de correcção e as casas de pobres tornaram-se instituições do sistema penal e, assim, cada vez mais instâncias dissuasoras. O "momento de integração" unificador das casas foi "o trabalho, que supostamente deve desenvolver efeitos salutares a diferentes níveis" (ibid.).

            A vida quotidiana nas casas de correcção e casas de pobres era estruturada, em princípio, através do trabalho disciplinar. Quando novos internados eram admitidos, começavam por levar uma tareia. Isto tornava "inequivocamente claro para o recluso [...] que ele estava agora sujeito ao regime especial da instituição, ao qual tinha de se submeter sem oposição" (ibid., 118). Na instituição, o foco era a obrigação de trabalhar: "O dia de trabalho é longo. Normalmente vai das cinco da manhã até às oito da noite, interrompido apenas pelos intervalos para refeições e horas de oração" (ibidem). O meio mais importante de disciplina era o castigo corporal ou mesmo a privação de alimentos. A nutrição dos internados era pobre, assim como os cuidados de higiene, o que levou "em algumas instituições a uma taxa de mortalidade alarmantemente elevada (10% e mais)" (ibid., 119). A importância económica das casas de trabalho reside sobretudo "na sua 'função pioneira', na sua contribuição para o estabelecimento e desenvolvimento de uma forma de produção socialmente nova, a manufatura [...]. As casas de correcção e de trabalho dos séculos XVII e XVIII devem assim ser interpretadas principalmente do ponto de vista da disciplina das classes populares mais baixas da sociedade absolutista, pelo que o seu carácter disciplinar não se limita de modo nenhum aos (relativamente poucos) reclusos nas instituições, mas tem de ser tido em conta sempre o efeito dissuasor disciplinar e educativo sobre todos os não reclusos". (ibid., 122s.).

            Na história inicial do capitalismo já existe assim a estreita ligação entre "trabalho" e pobreza que atravessará a história futura do capitalismo. Assumirá novas configurações na história interna do capitalismo e, tendo em conta o limite interno da relação de dissociação-valor que historicamente está a ocorrer, será de novo remodelada. Discutirei isso no final do texto. A seguir vamos tratar da assistência aos pobres no tempo da Primeira Revolução Industrial.

 

3. A assistência aos pobres no tempo da Primeira Revolução Industrial

No contexto da Primeira Revolução Industrial, a pobreza assumiu de novo um perfil diferente. Ao lado dos pobres, libertados dos seus modos tradicionais de reprodução e privados dos seus meios de subsistência, apareceu agora cada vez mais claramente o proletariado, ou seja, o grupo dos pobres que trabalham. Com o conceito de proletarização passiva, Sachße/Tennstedt também têm em conta as consequências da proletarização activa para a população rural (cf. Sachße; Tennstedt 1980, 183s.). A referida pressão sobre a população rural devido à crescente procura de recursos sobretudo para exportação para Inglaterra levou a que cada vez mais pessoas privadas da sua subsistência se deslocassem para as cidades em busca de garantia de vida. Mas, apesar da escassez de trabalhadores, estes movimentos exacerbaram a situação nas cidades. Pois as pessoas errantes não podiam simplesmente ser empregadas nas fábricas, uma vez que o trabalho nas fábricas pressupunha um modo de vida que rompia radicalmente com o que era conhecido até então (ver acima, cf. Klumper 1918, 22). Que o trabalho nas novas fábricas não era de modo nenhum sem condições prévias, mas exigia a submissão a princípios de vida completamente novos, é demonstrado por Alfred Krovoza quando ele analisa os processos de internalização do trabalho. Neste contexto, fala de uma "dissolução traumática" (Krovoza 1976, 73) dos velhos modos de vida, que se baseava numa "adaptação a um novo modo de produção e às formas de vida que agora lhe tinham de ser subordinadas", o que exigia desempenhos comportamentais dos indivíduos "que equivaliam a uma reorganização da natureza interior e do aparelho psíquico" (ibid., cf. sobre isto também Sachße; Tennstedt 1980, 37).

            Apesar destes problemas, as "migrações para o trabalho" foram promovidas pelo Estado (3) através de leis sobre liberdade de circulação, tendo a legislação prussiana servido aqui de modelo, uma vez que se tinha mostrado funcional em relação ao "desenvolvimento da economia capitalista e da sociedade burguesa" (ibid., 195). Assim, o "modelo prussiano" (ibid.) foi gradualmente adoptado em todos os Estados do Império Alemão. Em termos de conteúdo, tratava-se principalmente de ligar o apoio à morada efectiva, o que ao mesmo tempo substituiu o tradicional princípio da terra natal. As leis prussianas aprovadas entre 1842 e 1855 reorganizaram as comunidades de pobres em distritos administrativos estatais e, assim, nacionalizaram cada vez mais o sistema de assistência aos pobres (cf. ibid., 195s.). Devido aos movimentos acima descritos para as cidades durante a segunda metade do século XIX, que Sachße/Tennstedt também referem como o "maior movimento de massas na história alemã" (ibid., 195) e que colocou um fardo crescente sobre as cidades, as leis foram modificadas em 1855 de tal modo que a obrigação de apoio não surgia automaticamente com a aquisição de residência, mas apenas depois de a residência ter continuado durante um ano (cf. ibid., 203).

            O facto de a lei prussiana de 1842 da residência para efeitos de apoio ter sido complementada pela lei "sobre a punição de vagabundos, mendigos e avessos ao trabalho" (ibid., 203) não é uma coincidência. Pois enquanto, por um lado, através de processos de proletarização activa e passiva, foi produzido pela primeira vez um grupo pauperizado dependente do trabalho, que "enquanto trabalhadores assalariados urbanos cocriaram as condições prévias para o desenvolvimento da indústria capitalista" (ibid., 196), aqueles que não tinham feito o caminho para o trabalho assalariado e tinham de viver em condições miseráveis foram estilizados como o antitipo "avesso ao trabalho" e rejeitados como "ociosos". Deviam ser mantidos afastados das cidades.

            Além disso, o pacote de leis prussianas reflectia o facto de a ordem económica livre e a constituição das classes já não se encaixarem (cf. ibid., 194s.). Torna-se aqui claro que o conflito entre liberalismo e absolutismo se estendeu à "questão social", ou melhor, dentro deste conflito a "questão social" tornou-se em primeiro lugar uma questão para a sociedade no seu conjunto. A chamada "questão social" compreendia duas facetas: por um lado, a questão política do "destino de classe" do proletariado e, por outro, a questão dos cuidados a prestar aos pobres desempregados. Esta última foi empurrada para segundo plano sem, contudo, perder os seus momentos disciplinares e de exclusão pelo contrário: a imagem de "pobreza não trabalhadora" torna-se uma base de comparação central, e a distinção entre pobres "dignos" e "indignos" com base no marcador "trabalho" ou "não-trabalho" torna-se o ponto de partida central para o tratamento das pessoas pobres.

            O objectivo da assistência aos pobres era, acima de tudo, levar as pessoas a trabalhar. Também por esta razão, foi repetidamente sublinhado que "o trabalho assalariado deve ser uma alternativa geralmente atraente ao apoio aos pobres" (ibid., 209, ênfase no original). Consequentemente, o apoio aos pobres foi fixado a um nível inferior ao do rendimento salarial, que era de qualquer modo insuficiente para viver (cf. ibid., 208, ênfase no original). O apoio aos pobres era assim completamente inadequado, de modo que as famílias maiores geralmente tinham de depender da mendicidade ou de caridade privada. (4) O mendigar, contudo, era como já foi descrito proibido e inevitavelmente aproximava as pessoas da criminalidade. A criminalização da pobreza também serviu para legitimar o desemprego em massa, que precisava de ser explicado em termos da sociedade como um todo: a legitimação "foi criada pela produção maciça da suspeita de aversão ao trabalho" (ibid., 209, ênfase no original).

            Além disso, os beneficiários e beneficiárias da assistência do Estado estavam sujeitos a restrições policiais e políticas. As pessoas dependentes de assistência perdiam "durante um certo período de tempo o direito de participar nas eleições para o parlamento federal, para o parlamento do Land e para os conselhos municipais" (ibidem). Em certos Estados, estas restrições já discriminatórias foram complementadas "por uma ausência de protecção (dos direitos fundamentais) dos pobres contra a intervenção do Estado ou dos municípios" (ibid., 213). Em muitos casos, os benefícios dos pobres eram controlados e os 'abusos' punidos.

            Os esquemas de criação de emprego tornaram-se um importante instrumento da assistência aos pobres. Com a sua ajuda foi possível, por um lado, expandir a rede de transportes, como pré-requisito para novos movimentos de expansão; por outro lado, estas medidas foram dirigidas aos migrantes internos e funcionaram também como medidas de educação para o trabalho, com o efeito colateral de que os aqui empregados podiam ser assistidos ao mesmo tempo, embora a um nível muito baixo. As medidas de criação de emprego foram finalmente substituídas por esforços de colocação profissional (ibid., 256, ênfase no original), onde a normalização da "obrigação de trabalho (assalariado) em qualquer condição" (ibid., ênfase no original) era o objectivo implícito. De acordo com Sachße/Tennstedt, esta normalização da compulsão ao trabalho através do policiamento dos pobres não pode ser explicada por factores económicos, mas deve ser vista como uma estratégia de racionalização da administração dos pobres: "A identificação e discriminação dos avessos ao trabalho e o exagerar deste problema podem igualmente ser vistos como uma reacção de recalcamento e desvio do problema do desemprego e do empobrecimento causados pelo próprio trabalho, ambos os quais aumentaram desde os anos 90" (ibidem).

            É espantoso quanto esta descrição do problema feita por Sachße/Tennstedt também faz lembrar os debates de hoje. Mesmo que a história capitalista inicial não possa ser simplesmente repetida nas condições pós-modernas da crise, torna-se claro como o insulto aos pobres desempregados é teimosamente mantido e a sua discriminação é actualizada, precisamente com a função de não ter de olhar de frente a crise da organização capitalista.

            Para além da crescente discriminação contra os pobres sem trabalho e dos esforços das medidas de criação de emprego ou de colocação no emprego, surgiram também as primeiras tentativas de proporcionar segurança ao proletariado. Houve acordo em que este grupo de pobres trabalhadores deveria ser tratado de forma diferente dos pobres sem trabalho (cf. ibid., 257). Contudo, para além dos problemas específicos do proletariado ameaçado pela pobreza, existem outras razões pelas quais é necessária uma "política alternativa para os pobres" (ibid., 261): Tendo em conta a "generalizada existência do trabalhador no limiar da pobreza, o momento de impotência económica sob a forma de desempregado e sem-abrigo já não poderia ser geralmente objecto de discriminação política, legal e comportamental, de ostracismo moral, nem ser tratado como opróbrio" (ibidem). Este foi o pano de fundo para o desenvolvimento de uma política para os trabalhadores, estabelecida a par de uma assistência aos pobres. Visava "salvaguardar a existência do trabalhador assalariado contra o empobrecimento causado por riscos temporários" (ibid., 262, ênfase no original). O grupo-alvo foi claramente definido: o "proletariado, os trabalhadores dependentes" (ibid.). O instrumento da política dos trabalhadores foram os seguros: Assim se transferiram os seguros privados "para o campo social dos riscos da existência proletária" (ibid.). A legislação dos seguros dos trabalhadores foi alargada e decisivamente promovida na década de 1880 (cf. ibid., 264).

 

4. A assistência aos pobres no contexto da Segunda Revolução Industrial

4.1 O assistência aos pobres na época dos fundadores

Na fase da segunda metade do século XIX conhecida como "época dos fundadores", o capitalismo tinha-se estabelecido de forma generalizada, pelo menos nos países capitalistas centrais. Com ele também se tinham estabelecido valores burgueses como a diligência, o trabalho, a educação, o progresso etc. Agora já não se tratava de estabelecer o capitalismo industrial, mas de manter o modo de produção capitalista. Ao mesmo tempo, a 'época dos fundadores' esteve cheia de processos de crise. O "crash dos fundadores" de 1873, por exemplo, tinha libertado um "exército de desempregados" que "agitadamente percorreu o império em busca de trabalho e de um meio de subsistência" (Sachße; Tennstedt 1988, 15). Tornou-se cada vez mais óbvio que a indústria e o mercado não tinham trazido harmonia e prosperidade para todos, mas antes uma "divisão ameaçadora da sociedade, uma nova subclasse social que quase neuroticamente provocava na burguesia o medo de tumultos e de caos" (ibid.). A burguesia, que antes tinha sido considerada portadora do progresso, estava profundamente inquieta. A crença no progresso era acompanhada por um "pessimismo cultural" (cf. ibidem, 16).

            No final do século XIX, esta situação conduziu a debates sobre possíveis reformas sociais. Aqui, para além do protestantismo e do catolicismo sociais, tornaram-se influentes a reforma social burguesa e o movimento de reforma da vida. Especialmente para a reforma social burguesa, a relação com a ciência era central. A economia nacional e a higiene tornaram-se disciplinas orientadoras importantes. A higiene (social) tinha como objectivo final mesmo que este não fosse formulado como objectivo explícito remover os obstáculos que impediam as pessoas de estarem plenamente disponíveis para o mercado de trabalho.(5) Neste contexto, a reforma social burguesa também teve uma influência não negligenciável na assistência comunitária, de modo que esta também estava cada vez mais orientada para a ciência, o que estava associado a uma maior profissionalização. Isto, contudo, fez avançar ainda mais a divisão da assistência em duas partes: por um lado, havia a assistência orientada para o "nível absoluto de subsistência" (ibid., 45) e, por outro lado, emergiu paralelamente uma "elevada prestação de serviços sociais para situações problemáticas especiais" (ibid.).

Para além da reforma social burguesa, o movimento burguês de mulheres também teve uma influência não negligenciável no desenvolvimento do sistema de assistência social. Com a teoria da "maternidade espiritual", foi enfatizada a diferença entre os sexos, a maternidade foi valorizada como uma qualidade feminina e "desenvolvida num conceito de trabalho social feminino como emancipação feminina" (ibidem). O domínio da assistência provou ser adequado para enfatizar o "princípio feminino" como socialmente importante, por um lado, e ao mesmo tempo obter um certo reconhecimento para estas actividades através do pagamento. O trabalho social foi "concebido como emancipação feminina" (ibid., 44). Surgiram escolas que procuravam formar mulheres para profissões sociais. Um exemplo proeminente é a 'Escola Social para Mulheres', fundada por Alice Salomon em 1908 (cf. ibid.). A influência do movimento burguês de mulheres, em particular, continuará a desempenhar um papel central na miséria da Primeira Guerra Mundial.

 

4.2 O sistema de assistência no tempo da Primeira Guerra Mundial

Mesmo tendo a estagnação da crise da época dos fundadores podido ser transformada em "crescimento moderado" (Kurz 2005, 421) após 1880, os problemas económicos estavam longe de resolvidos. O problema central era que "o consumo estava atrasado em relação ao desenvolvimento das forças produtivas" (ibid., 423). As abordagens decisivas para resolver este problema vieram de Federick Winslow Taylor (1856-1915) e Henry Ford (1863-1947). Ford quis construir um carro para as grandes massas, o que exigia uma redução maciça dos custos de produção, a ser conseguida com a "própria organização do trabalho e as velocidades de fluxo dentro do seu processo" (ibid., 429). Este novo impulso de desenvolvimento capitalista era tão pouco sem pressupostos como o da Primeira Revolução Industrial. Segundo Robert Kurz, a "nova forma de 'trabalho' abstracto [...] manifestou-se pela primeira vez no campo de batalha" (ibid., 401) da Primeira Guerra Mundial. Esta primeira guerra industrializada sinalizou "para além da guerra, uma nova qualidade das imposições capitalistas e uma condensação do 'trabalho'" (ibid.). Globalmente, os desenvolvimentos desta época atingiram uma total captura e "racionalização do ser humano" (ibid., 461). No entanto, também após a Primeira Guerra Mundial, faltavam condições prévias importantes (por exemplo, construção de estradas, fornecimento de energia, redes tecnológicas, etc.) para pôr em marcha o novo impulso de desenvolvimento. Os cofres do Estado estavam vazios devido aos custos da guerra, e o sector privado também não foi capaz de mobilizar as somas necessárias.

            Durante a Primeira Guerra Mundial, além disso, desfez-se a ligação das moedas ao ouro para disponibilizar fundos para a guerra. Outro meio de recolher dinheiro foi os Estados pedirem emprestado aos seus cidadãos sob a forma de empréstimos de guerra. A economia de guerra foi assim alimentada com "dinheiro feito aparecer por magia" (Kurz 2005, 480). Os lucros da indústria de armamento, que num certo sentido foram construídos na base de dinheiro sem cobertura, repercutiram após um "período de incubação de vários anos sobre todo o sistema capitalista como uma crise monetária" (ibidem, 486). A primeira consequência notável desta situação foi a inflação, ou seja, uma desvalorização da moeda expressa no crescimento dos preços. Através de medidas de austeridade, reformas monetárias e o regresso parcialmente conseguido ao padrão-ouro, foi possível fazer recuar a inflação, com o que o próprio Estado "se desendividou" à força perante os seus credores (cidadãos) e assim desencadeou um "enorme surto de empobrecimento" (ibid., 498). Além disso, a "retoma" fomentada baseou-se em grande parte na especulação sobre a "prosperidade esperada da Segunda Revolução Industrial numa dimensão completamente irrealista para as condições factuais" (ibidem). A 'bolha financeira' assim criada iria então levar ao colapso da Bolsa de Nova Iorque na famosa 'sexta-feira negra' em 1929 (cf. ibid.). A segunda onda de crise revelada pela queda da bolsa de valores foi então um "choque deflacionista global" (ibid., 503), cuja consequência foi uma escassez geral de dinheiro e uma queda primeiro nos preços das acções, mas depois também nos preços das mercadorias. As consequências do choque deflacionista foram devastadoras: o número de pessoas famintas aumentou em todos os grandes países industrializados e a miséria em massa alastrou (cf. ibid., 506s.).

            Esta situação levou mais uma vez aos seus limites o sistema de assistência social como existia até então. O abastecimento alimentar era tão precário que levava à "desnutrição crónica de grandes sectores da população alemã" (Sachße; Tennsteadt 1988, 49). A Primeira Guerra Mundial tinha causado um "nivelamento por baixo do nível de vida da população" (ibid., 48). Assim, também ficaram abrangidas pela assistência pública pessoas que, no seu entendimento, se viam a si próprias como distantes dos grupos tradicionais de pobreza, apesar das necessidades materiais. Contra este pano de fundo, os momentos discriminatórios da assistência aos pobres pareciam inapropriados. Por isso foi cada vez mais sublinhada a diferença entre 'cuidados de bem-estar de guerra' para os pobres 'dignos' e assistência aos pobres para os pobres 'indignos' (cf. ibid., 49s.).

            Além disso, a assistência privada tornou-se a componente central dos cuidados à população na miséria. Tendo em conta a nova situação, foram feitos esforços para centralizar as fragmentadas agências de beneficência privada. Ganharam ímpeto as organizações de mulheres, que já estavam bem ligadas em rede através da "Federação das Associações de Mulheres Alemãs" e tinham um grande número de membros (cf. ibid., 57). Mas não foi apenas a força dos membros e o trabalho em rede que se revelou adequado para ganhar um papel de liderança na organização da beneficência privada. Pois, mesmo antes do início da guerra, tinham feito um desenvolvimento cada vez mais conservador e tinham demonstrado uma relação positiva com a nação. Por exemplo, Helene Lange, como porta-voz da Federação, invocou "a disponibilidade feminina para fazer sacrifícios ao serviço da nação" (citado em Greven-Aschoff 1981, 260, nota 60). Além disso, a Liga Alemã das Mulheres sentiu uma boa oportunidade de se estabelecer socialmente, demonstrando que as mulheres estavam "dispostas e capazes de cumprir o seu dever nacional" (ibid.). Foi oferecida às mulheres "que já tinham recebido uma educação social numa das escolas sociais femininas existentes" (ibid.) a oportunidade de "demonstrar os seus conhecimentos e capacidades" (ibid.). Isto pretendia, em última análise, fazer avançar a emancipação feminina. Por iniciativa de Gertrud Bäumer, foi fundado o "Serviço Nacional Feminino", que conseguiu unir as várias organizações sob o mesmo tecto de tal modo que "desenvolveu em pouco tempo um enorme potencial de pessoas dispostas a ajudar" (ibidem, 58). O objectivo do "Serviço Nacional Feminino" era assegurar um abastecimento constante de alimentos, cooperar no cuidado das famílias cujos chefes tinham sido recrutados para o serviço da guerra, cuidar dos desempregados relacionados com a guerra, e partilhar informações e organizar todas as medidas da assistência de guerra (cf. ibid., 58). O Serviço Nacional Feminino cooperou estreitamente com os serviços municipais de assistência, resultando numa estreita cooperação entre assistência pública e privada.

            Outras tarefas do sistema de assistência foram a gestão dos alimentos escassos (alimentação das massas) e a organização do mercado de trabalho para a economia de guerra. Assim, era quase inevitável uma maior intervenção do Estado no sistema de assistência. Enquanto anteriormente tinham sido principalmente os municípios os responsáveis pela provisão das pessoas pobres, o envolvimento do governo central no sistema de assistência cresceu agora tanto em termos financeiros como organizativos. Assim, o sistema de "assistência pública" desenvolveu-se cada vez mais "em cuidados de bem-estar, num instrumento de provisão estatal planeado para garantir a subsistência de grandes sectores da população" (ibid.). Além disso, as exigências sociopolíticas dos sindicatos e da social-democracia dos anos anteriores à guerra foram realizadas, pelo menos em certa medida, no contexto da escassez de força de trabalho, de modo a que os sindicatos foram reconhecidos e a liberdade de associação imposta. Com estas concessões, "a organização do mercado de trabalho [...] foi de facto reconhecida como tarefa do Estado, foram criados centros de emprego e subsídios de desemprego, bem como a protecção dos inquilinos e uma política de habitação do Reich. A este respeito, a guerra provou ser pioneira da política social" (ibid.). Ao mesmo tempo, a explícita demarcação da assistência em tempo de guerra "da assistência aos pobres", que foi repetidamente apresentada, deixa claro que "as estruturas repressivas desta última" (ibid., 66) não tinham de modo nenhum desaparecido.

 

4.3 A assistência social na República de Weimar

Na República de Weimar prosseguiu a evolução para a assistência social, ou seja, para uma maior nacionalização e centralização do sistema social. Isto não aconteceu de modo nenhum sem problemas e conflitos. Por um lado, parecia impossível fazer recuar os direitos sociais que tinham prevalecido no contexto da Primeira Guerra Mundial, pois isso teria ameaçado a paz social; por outro lado, tendo em conta os cofres vazios, revelou-se extremamente problemático implementar o "catálogo de direitos fundamentais" (ibid., 77) da Constituição Imperial de Weimar. Neste contexto, a "questão social" também ganhou importância na medida em que a classe média, ameaçada e atingida pela pobreza, era uma força política cortejada pelos partidos. Face a esta situação, maior foi a exigência de uma distinção ainda mais clara entre a assistência à "nova pobreza" e a clássica assistência aos pobres "avessos ao trabalho".

            Foi nestas condições que a Constituição Imperial de Weimar foi moldada. Sob a influência dos sindicatos, aos quais tinham sido feitas concessões no contexto da Primeira Guerra Mundial e da escassez de mão-de-obra a ela associada (ver acima), o direito do trabalho tornou-se a base essencial do direito social. Em última análise, isto levou a que a política social se tornasse definitivamente dependente dos desenvolvimentos no mercado de trabalho. O sistema de seguros foi ainda mais alargado e foi introduzido o seguro de desemprego. O objectivo era segurar o mais possível os riscos do assalariado. Juntamente com a expansão do sistema de seguros, a assistência aos desempregados que necessitavam de ajuda foi ainda mais reforçada. O subsídio de desemprego estava ligado a uma obrigação de trabalhar. Ao mesmo tempo, o cuidado dos "pobres indignos" permaneceu nas mãos da assistência municipal, o que tem de ser entendido no contexto dos cofres vazios e da transferência dos custos para os municípios.

 

4.4 O Estado social no nacional-socialismo

No contexto da crise económica mundial, que levou a que um terço da população alemã dependesse da ajuda pública (cf. ibid., 37) e a burguesia clássica se aproximasse cada vez mais da classe média, os benefícios do Estado social eram cada vez mais alvo de críticas, especialmente porque os cofres estavam vazios. Assim, era precisamente o Estado social que se podia tornar um "campo de conflito" onde "forças políticas se polarizavam" (ibid., 19). (6)  Perante a intensificação dos conflitos, os nacional-socialistas ganharam ímpeto precisamente ao perfilarem-se a si próprios como uma "alternativa total" ao "sistema de Weimar" (ibid., 21).

            Também noutros países capitalistas centrais houve desenvolvimentos no sentido de um Estado autoritário porque também aí estava pendente um novo impulso de desenvolvimento para o estabelecimento do modo de produção fordista. No entanto, as diferenças em relação à via especificamente alemã não devem ser negligenciadas. Pois só na Alemanha é que o Estado autoritário estava ligado ao objectivo de exterminar toda a "vida indigna de viver", um extermínio por amor do extermínio. Só aqui é que o Holocausto foi executado. No meio de uma guerra mundial perdida, uma longa tradição de lealdade à autoridade e o atraso económico da modernização, a política nacional-socialista conseguiu tornar-se dominante. Aqui o trabalho deveria tornar-se o ponto de referência central para a sua política "de acordo com o horizonte fordista de desenvolvimento" (Kurz 2005, 544): "O lema 'Arbeit macht frei' ('O trabalho liberta') por cima dos portões de Auschwitz" revelou "a verdadeira natureza daquela autoconfiança do 'trabalho' vinda a si" (ibid., 525), que aqui mostrou um carácter especificamente alemão.

            Neste contexto, o conceito nacional-socialista de trabalho exigia uma "demarcação do 'não-trabalho da raça estranha'" (Schatz; Woeldike 2001, 99). Aqui os nacional-socialistas não precisaram de reinventar a roda, mas foram capazes de retomar a discriminação e a perseguição de pessoas não trabalhadoras que tinham sido estabelecidas no contexto da imposição da sociedade da dissociação e do valor. Agora, no entanto, o "avesso ao trabalho" e o "associal" tornaram-se a antítese do "trabalhador alemão, criativo" e o "avesso ao trabalho" foi considerado "não-alemão". Neste contexto, os judeus, os chamados 'ciganos' e 'associais' "funcionaram como a encarnação de todas as características que não tinham uma relação 'natural, saudável' com o trabalho" (ibid., 100). Ambos os grupos foram considerados "por natureza avessos ao trabalho" (ibid. 101), ou seja, não educáveis através do trabalho, e considerados "parasitas no corpo nacional alemão", tendo sido enviados sistematicamente e em massa para o extermínio.

Apesar do momento unificador de ódio pelo "não-trabalho", as imagens anticiganas e anti-semitas não são coincidentes. Por exemplo, "aos ciganos" não é "atribuído um poder corrosivo abrangente como aos judeus" (ibid.). Com Schatz/Woeldike, a relação entre o anticiganismo e o anti-semitismo pode ser vista como complementar: "os judeus" eram vistos como expoentes e originadores da modernização social e "como beneficiários descarados" da mesma; "os ciganos", por outro lado, representavam o mundo acabado da pré-modernidade (cf. ibidem, 123): "O ódio ao não-trabalho consiste assim tanto no ódio a uma possível abolição do trabalho com base no progresso social, ao 'salário sem trabalho', como no ódio à memória de uma vida sem as fricções da sociedade do trabalho" (ibid.). A este respeito, as imagens anti-semitas e anticiganas são "componentes complementares de um coerente mecanismo de projecção alucinado" (ibid.).

            Embora o trabalho já antes tivesse sido o elemento central da política social, a política nacional-socialista levou esta ligação ao extremo, na medida em que o trabalho se tornou agora um mecanismo de selecção central no "processo de recuperação do 'corpo nacional'" (Sachße; Tennstedt 1992, 53) incluindo o extermínio de toda a 'vida indigna de viver'. A "reorientação fundamental da política social" (ibid., 48) repetidamente solicitada na República de Weimar foi encontrada na política demográfica. Nela, a principal preocupação era impedir a procriação dos chamados "inferiores". Os nacional-socialistas também não tiveram de inventar estas ideias, porque elas estão entrelaçadas com a história das ideias da modernidade: "Na verdade é bastante evidente que a naturalização e biologização ideológicas do social, de Hobbes a Smith, Malthus, etc. até Darwin, representa uma camada histórica de Auschwitz" (Kurz 2005, 554).

            De acordo com a orientação nacional-socialista, foi fundada em 1933 a Frente de Trabalhadores Alemã (DAF), sob a liderança de Robert Ley. As suas tarefas situavam-se principalmente no "domínio do registo, apoio cultural e social dentro e fora das fábricas, formação técnica e ideológica de trabalhadores e funcionários" (Sachße; Tennstedt 1992, 55). Além disso, assumiu tarefas de assistência social, ocupação de tempos livres e assistência recreativa (cf. ibid., 56). A DAF deveria evoluir para a organização nacional-socialista de grande escala com o maior número de membros, o que significava que tinha surgido um novo tipo de organização política de grande escala. Os serviços da DAF "só estavam disponíveis para 'compatriotas com valor' que colocavam o seu desempenho inteiramente ao serviço da comunidade do povo. Todos os 'inferiores' e desviantes eram excluídos" (ibid., 56s.).

            O seguro de desemprego foi integrado no "sistema estatal de criação de emprego e de gestão da força de trabalho" (ibid.). Esta política levou a uma sucessiva "captura autoritária da força de trabalho" (ibid., 69). Outros sectores do sistema de seguros mantiveram-se em níveis baixos. Em última análise, os desenvolvimentos levaram a "cortes nas prestações em todas as áreas, franquias, períodos de espera e aumento dos controlos médicos no seguro de saúde, bem como restrições nos direitos legais ao seguro de pensão" (ibid., 58). Globalmente, o processo de "centralização e transformação autoritária da segurança social, iniciado na crise económica mundial" (ibid., 60), intensificou-se durante o período do nacional-socialismo.

            Na implementação da política social nacional-socialista, surgiu uma divisão específica do trabalho, que foi largamente suportada por duas organizações: a Assistência Social Nacional-Socialista (NSV) "enquanto organização de assistência social do partido, assumiu acima de tudo as medidas de prestação e apoio de "cuidados sociais reconstituintes". O novo 'Cuidados de Saúde Pública' (öGD) estatal, por outro lado, assumiu tarefas de registo e avaliação, que se traduziram na exclusão e 'erradicação' das partes 'inferiores' da população" (ibidem). Com a "Lei sobre a unificação do sistema de saúde" (GVG) de 1938, os serviços de saúde começaram a recolher sistematicamente informações para "um inventário hereditário detalhadamente regulamentado" (ibid., 109). No ficheiro do inventário da hereditariedade também se registava a categoria de "avesso ao trabalho" e "habitualmente associal" (cf. ibid., 110). Também aqui, os nacional-socialistas puderam tirar partido de uma disposição geral, bem como de reivindicações socialmente expressas. Assim, tanto os "solícitos reformadores das fileiras da pedagogia e da psiquiatria" como os partidos do "SPD passando pelo Centro até aos nacionalistas alemães" exigiam uma "cuidadosa purga dos 'associais' e dos 'desleixados' da sociedade burguesa" (ibid., 263). (7)

            Em 1939, o termo "associal" também encontrou o seu caminho na regulamentação do subsídios de desemprego (ALU). Foi utilizado principalmente para excluir do sistema de benefícios as pessoas alegadamente "avessas ao trabalho". Para que o NSV pudesse continuar a cuidar do bem-estar dos compatriotas dignos, os chamados "associais" ficaram ao cuidado da polícia, das SS e das SA. Eram responsáveis pela "definição negativa dos limites da política social nacional-socialista" (ibidem, 266). Os desempregados registados como 'associais' foram assim "entregues à acção policial" (ibid., 227). Isto significava acima de tudo serem enviados para campos de trabalho ou mesmo campos de concentração.

            Com repressão extrema, até e incluindo o "extermínio através do trabalho" (ibid.), foi feita uma tentativa no âmbito do sistema dos campos nacional-socialistas "de tornar o potencial de trabalho ainda existente utilizável para todo o povo" (ibid.). Neste contexto, não surpreende que os 'associais' constituíssem o maior grupo de prisioneiros dos campos de concentração em prisão preventiva. A sua taxa de mortalidade estava acima da média. No entanto, é de salientar aqui que os chamados "associais" da "cultura dominante" foram tratados de forma diferente dos Sinti e Roma e dos judeus estes últimos foram mortos por amor do extermínio. A este respeito, é importante distinguir entre a redução "normal" de pessoas à sua força de trabalho e a redução à "vida nua" no campo de extermínio (cf. Scholz 2007 e Kurz 2003, 360s.).

 

5. O Estado social na República Federal da Alemanha

5.1 A caminho do 'Estado social activador'

A política social da RFA baseou-se, em última análise, na divisão entre seguro e assistência social e, por conseguinte, na estrutura do Estado social da República de Weimar. Para além do sistema de seguros, a Lei Federal de Assistência Social (BSHG) de 1962 criou uma rede de segurança social destinada a proteger os estratos mais baixos da sociedade. A norma de trabalho continuou a ser a base do sistema social. Embora fosse concedido um nível de subsistência sob a forma de assistência social às pessoas que tinham ficado sem emprego assalariado, também ele se destinava a fazer com que as pessoas capazes de trabalhar voltassem ao trabalho.

            Tendo por fundo o desemprego estrutural em massa no contexto da Terceira Revolução Industrial e da conexa renovada propagação da pobreza a partir dos anos 70, já em 1985 "a coligação social-liberal da época desencadeou um discurso contra os preguiçosos", que "nos anos 80 finalmente avançou para se tornar a resposta modelo da classe política ao desemprego persistente e estrutural" (Schatz 2002, 158). No decurso deste debate, os regulamentos para aqueles que necessitavam de assistência foram agravados. O que se reflectiu no "agravamento sucessivo da obrigação de trabalhar" (ibid.). A partir dos anos 90, a "disponibilidade parra o trabalho" exigida dos beneficiários da assistência social pelo BSHG foi cada vez mais controlada e foram acrescentados novos e mais rigorosos regulamentos de tolerância. Em última análise, estas mudanças no sistema de assistência social levaram a que a assistência social se tornasse cada vez mais um instrumento para canalizar as pessoas para o "sector de baixos salários do mercado de trabalho primário" (Schatz, 2002, 159).

5.2 O 'Estado social activador'

As bases para a política social activadora, que foi implementada no Outono de 2003 sob a forma das chamadas "reformas Hartz" introduzidas pelo governo verde-rubro, já tinham assim sido lançadas – tanto em termos legais como no que diz respeito à disposição sociopolítica (ver acima). (8) A preparação e implementação das novas reformas foram acompanhadas de debates sobre a chamada "armadilha da pobreza ou da assistência social" (Schatz, 2002, 160) em ligação com o "discurso contra os preguiçosos" já mencionado acima. O "mínimo sócio-cultural" (ibid.) concedido pela assistência social seria supostamente tão confortável que não seria rentável aceitar um simples trabalho. Além disso, no início dos anos 2000, foi desencadeado um debate em torno da chamada "nova subclasse". A pobreza foi aqui discutida principalmente como um problema de modo de vida errado, ou seja, foi empreendida uma culturalização da pobreza. Paul Nolte, por exemplo, falou de uma nova cultura de massas das classes mais baixas que se tinha afastado muito dos valores burgueses. O estilo de vida das classes mais baixas seria caracterizado por um "consumo socialmente marginalizante de media", frequência de restaurantes de fast-food – ou seja, comida pobre e cara – e pelo "triângulo do consumo específico de classe de tabaco, álcool e jogos de lotaria" (Nolte 2004, 65). Este estilo de vida há muito que teria sido desligado das "dificuldades materiais" (ibid.), de modo que ainda mais dinheiro não levaria "a mais educação, a uma melhor nutrição", mas "tenderia a ser investido dentro dos limites da própria cultura de classe" (ibid.). A este respeito, Nolte apela a que as "culturas da pobreza" não sejam deixadas a si próprias, mas "se invista nelas, se as desafie" (ibid., 68).

            Em certa medida, esta formulação de Nolte clama por uma política de activação, como se encontra no conceito de "exigir e apoiar", que é característico da nova legislação. No seguimento do teorema da responsabilidade individual surgido na sequência dos processos de individualização, sugere-se que esta concepção é uma espécie de "ajuda para a auto-ajuda". Mas, na lógica da individualização e da responsabilidade pessoal, é muito mais uma questão de identificar a causa do desemprego nas próprias pessoas que dependem de ajuda. Esta visão encontrou expressão no chamado "contrato de integração". É um pré-requisito para poder receber quaisquer benefícios. Neste contrato, aqueles que procuram ajuda devem comprometer-se a remover todos os obstáculos da sua parte que possam impedir o seu estabelecimento no mercado de trabalho. Em última análise, são obrigados a "concordar com a sua completa privação de direitos" (Rentschler 2004, 218). Para aqueles que recebem benefícios, a introdução do novo ALG-II significa não só uma redução drástica dos benefícios, mas também que estão sujeitos a significativamente mais restrições e momentos discriminatórios e de condenação, sem que estas medidas tenham qualquer sucesso real na melhoria da sua situação de vida.

            Em conformidade com o projecto de activação geral, a estrutura da Agência Federal do Trabalho também mudou. Actua agora como prestador de serviços e serve clientes que procuram trabalho com as suas competências de apoio. Na verdade, porém, actua "como prestadora de serviços para o Estado, para as famílias e para as empresas, fornecendo a estes clientes pessoal que se adapta às suas necessidades", e devendo verificar "se as pessoas que lhe chegam estão suficientemente adaptadas e que esforço teria de ser feito para as tornar aptas para o mercado de trabalho" (Rentschler 2004, 92). Os centros de emprego são responsáveis pela aplicação dos regulamentos associados à quarta Lei Hartz, ou seja, a introdução do ALG-II, que entretanto suscitaram tanto ódio em algumas cidades, devido à sua estrutura kafkiana e anónima, que em alguns casos tiveram de ser construídos como centros de alta segurança, a fim de proteger o pessoal de ataques dos requerentes de subsídios. Assim, enquanto a 'Agência para o Trabalho' é o principal responsável pela colocação profissional – ou seja, 'bem-estar superior' – a administração dos 'supérfluos' e a sua preparação para o mercado de trabalho é da responsabilidade dos 'Centros de Emprego' (Jobszentren).

            Em tudo isto, não se deve ignorar que a altamente elogiada política de activação tem de dar em nada, tendo em conta a obsolescência do trabalho no decurso dos processos de agravamento da crise. A este respeito, tem de se perguntar o que foram essencialmente as reformas, que também foram economicamente dispendiosas. Da perspectiva actual, pode dizer-se que, para além da administração e controlo dos "supérfluos" na sociedade também em ligação com a política social dos anos 80 e 90 as reformas visaram uma maior expansão do sector do emprego precário, conduzindo as pessoas a um emprego precário de acordo com o lema "qualquer trabalho é melhor do que nenhum". A este respeito, ALG-II pretende também ser um "suplemento às oportunidades de trabalho que não garantem um meio de subsistência" (Rentschler 2004b, 207). O facto de a Alemanha ter conseguido expandir o sector do emprego precário e assim poupar nos custos laborais contribuiu significativamente para que a Alemanha ganhasse uma vantagem na concorrência de crise, tornando-se assim o maior país de baixos salários da UE. Ao mesmo tempo, numa situação em que a sociedade da dissociação e do valor perde cada vez mais as suas próprias fundações, e o "trabalho" como a substância do capital ameaça cair a pique em toda a sociedade, é também uma questão de manter compulsivamente a obrigação de trabalhar, erguendo um cenário de intimidação para aqueles que ainda estão incluídos.

 

6. A angústia da classe média, a demarcação para baixo e o anticiganismo estrutural

Perante o perigo crescente de colapso social, Roswitha Scholz observa que "quase se poderia falar de uma 'ciganização' das relações sociais" (Scholz 2007, 215). Com o conceito de "ciganização" Scholz visa "uma dimensão teórico-histórica profunda, para as raízes efectivas do actual estado de coisas no interior da história e da sociedade capitalista moderna" e os "temores primordiais da subjectividade burguesa" associados a esta dimensão profunda (ibid.). A "ciganização" das relações sociais – entendida como uma "certa generalização do estereótipo do cigano" (ibid.) – pode ser vista na denúncia dos beneficiários do ALG-II e numa "vigilância ubíqua" (ibid.). Mas, acima de tudo: "Potencialmente, qualquer um pode ir parar aos bairros miseráveis como pedinte ou vagabundo e tornar-se 'o último dos últimos'. Está em curso uma 'boemização coerciva' (Diedrich Dietrichsen), mas acompanhada do dever de trabalhos forçados." (ibid.).

            No contexto da nova migração em massa, Scholz vê os refugiados que dependem da ajuda "per se já na clássica posição do 'cigano'" (ibid.). A situação dos 'sans papiers' é particularmente significativa na medida em que aponta para a exclusão dos Sinti e Roma na ilegalidade como característica central do anticiganismo. As deportações destes "ilegais" foram uma prática quase diária na história da perseguição dos Sinti e Roma. Roswitha Scholz resume as suas observações traçando uma analogia com o "anti-semitismo estrutural": "Tal como se pode falar de um 'anti-semitismo estrutural', que se revela decisivo no ataque aos mercados financeiros e a uma conspiração mundial imaginada, mesmo que não se chegue a falar de judeus, também se teria de falar de um 'anticiganismo estrutural' quando, perante o medo da própria queda, da desclassificação, do resvalar para a associalidade e para a criminalidade, está implícito o efeito do estereótipo anticigano, mesmo que não se fale em ciganos" (ibidem)., 217). É precisamente no medo da classe média de cair, no seu medo da "própria associalidade potencial", no seu medo de "‘não conseguir mais safar-se’ no quadro de uma subjectividade burguesa decente", que existe "como um mecanismo de defesa irracional algo como um anticiganismo estrutural" (ibid.), no qual o medo se transforma em projecção. A dialéctica entre exclusão social e racista torna o estereótipo do anticiganismo uma superfície de projecção particularmente adequada.

            Robert Kurz caracteriza a situação social em que o anticiganismo pós-moderno pode florescer como um "estado de excepção coagulado" (Kurz 2003, 356). Com isto ele quer dizer que, no decurso da dinâmica de crise mediada pela Terceira Revolução Industrial, o estado de excepção "liquefaz-se, na medida em que volta a cair fora do âmbito do estado da 'normalidade' constituída e começa a revelar a sua verdadeira essência." (ibid.). Com o conceito de 'estado de excepção', qualquer determinação do conteúdo da vida está "sob reserva da capacidade de redução e submissão capitalista do indivíduo" (ibid.). Assim, a redução relativa à "vida nua" pode ser transformada em absoluta, a periódica em permanente, e a privada em pública ou soberana (ver ibid.). Face à crise do capitalismo, que agora parece ter atingido o seu limite lógico também historicamente, e que está a esbarrar no limite das suas possibilidades reprodutivas, a variante relativa, periódica e privada do estado de excepção já não pode ser sustentada. O "espaço de exclusão inclusiva" (ibid.) dissolve-se. E com ele a soberania também começa a liquefazer-se em medidas de crise. Neste processo, a entrada e a saída do capitalismo socializado através do trabalho mostram "os mesmos processos de inclusão e exclusão" (ibid., 356s.): "A soberania protomoderna inventou novas formas de delinquência, meteu delinquentes em massa nas suas casas de terror, para materializar o trabalho abstracto. A soberania pós-moderna, na sua agonia, inventa igualmente novas formas de delinquência, campos de concentração, administração de massas e indústria penal, mas agora para a massa dos supérfluos, em cuja existência o trabalho abstracto se desmaterializa. " (ibid., 357).

            Pode assumir-se que nem a desregulamentação económica do trabalho nem as medidas coercivas de trabalho impostas pelo Estado podem compensar a base da acumulação que se está a desfazer. Isto conduz a uma situação desesperada para a lógica da valorização capitalista: "os 'supérfluos', ou têm então de ser largados no nada, sem quaisquer possibilidades de reprodução da sua vida, como acontece na maior parte da periferia [...]. Ou então, onde a soberania ainda se encontra mais firmemente estruturada, como nos centros ocidentais [...] têm de ser arrecadados por tempo indeterminado em prisões, campos de internamento e estabelecimentos semelhantes a campos de concentração exactamente como os 'ilegais' e refugiados." (ibid., 357).

 

Bibliografia

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(1) Claro que, quando se fala aqui de 'trabalho', o trabalho ainda não é entendido como a substância do capital; o que está aqui em questão é, antes de mais, a história da imposição da sociedade da dissociação e do valor.

(2) Martin Kronauer também deixa claro que a pobreza "na transição para a idade moderna europeia [...] significou luta pela sobrevivência física" (Kronauer 2010, 76).

(3) Não posso ir mais longe na evolução para a estatalidade e para a ideia de "nação" aqui (ver Kurz 2010, Korecky 2012).

(4) O desenvolvimento da caridade privada no século XIX caracteriza-se essencialmente pelo facto de ser relativamente independente da assistência estatal aos pobres e de se concentrar principalmente no apoio material aos pobres e em medidas de policiamento dos pobres no contexto da proletarização activa. No âmbito dos desenvolvimentos acima descritos, é compreensível que tenha sido necessário recorrer cada vez mais ao apoio da beneficência privada. Estes desenvolvimentos, que reforçaram a posição da igreja e das associações livres, terão o seu clímax provisório na sua influência sobre a política de assistência da República de Weimar (cf. ibid., 222s.).

(5) Nestes debates desempenharam um papel não despiciendo o pensamento do darwinismo social e uma tendência geral para naturalizar o social, que já se podia observar em Hobbes (cf. Kurz 2005, 42).

(6) Assim, um conflito sobre o seguro de desemprego "deu origem ao desmantelamento político da República" (ibid.).

(7) Houve sete tentativas parlamentares de aprovar uma "lei de protecção" destas pessoas. Contudo, estas tentativas falharam "devido às estruturas do Estado de direito da República de Weimar, ou seja, aos problemas de protecção jurídica individual e à questão dos custos" (ibid., 263s). Não surpreende, portanto, que os peritos em assistência tenham acolhido favoravelmente as políticas dos nacional-socialistas, que visavam abolir a protecção jurídica individual e assim dar prioridade ao povo no seu conjunto (cf. ibid., 264).

(8) As primeiras tentativas de reforma da assistência social, fundindo-a com o subsídio de desemprego, vieram do governo amarelo-negro em 1998. Em cooperação com os gabinetes sociais e de emprego, trouxe à luz um estudo intitulado "Há trabalho suficiente Novas iniciativas para promover o emprego" (cf. Schatz, 2002, 165). Contudo, o governo de Kohl não foi capaz de chegar a um consenso para implementar tais tentativas. A ciência política considera o resultante "atraso nas reformas" em parte responsável pelo fracasso do governo conservador-liberal em 1998 (cf. ibid., 167). Assim, parece ser "a missão histórica dos verdes-rubros [...] conseguir o consenso necessário para 'reformas'" (ibid.).

 

 

Original Zur Geschichte der Armensfürsorge publicado na revista exit! nº 17, pags. 122-145, Abril 2020. Tradução de Boaventura Antunes (9/2021)

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