Propensão masculina para a violência e o amoque no contexto do agravamento da dinâmica da crise capitalista

 

Leni Wissen

 

O artigo de Leni Wissen "Propensão masculina para a violência e o amoque no contexto do agravamento da dinâmica da crise capitalista" baseia-se numa conferência por ela proferida no Fórum Social de Koblenz na Primavera de 2023. O objectivo é analisar os fenómenos (globais) de crescente brutalização e propensão para a violência. Pretende-se mostrar como é precisamente em contextos de crise social que surge uma dinâmica que torna as pessoas cada vez mais dependentes dos processos de crise global, levando-as a defender a sua própria autonomia e liberdade de forma ainda mais feroz face à pressão para se adaptarem. O sujeito (masculino), que se crê livre e autónomo, mas que na realidade se torna cada vez mais impotente, sente-se ainda mais compelido a provar a sua própria liberdade e independência – mesmo recorrendo à violência se necessário. Não é por acaso que os homens são mais frequentemente 'perpetradores' e as mulheres mais frequentemente 'vítimas' da violência.

Na Alemanha, apesar do aumento da violência de motivação racista, sexista e anti-semita, a crescente vontade de usar a violência é mais evidente numa retórica cada vez mais agressiva (por exemplo, entre os pensadores transversais e os ideólogos da conspiração). Nas regiões mais pobres e ainda mais afectadas pela crise, pelo contrário, a violência assume formas cada vez mais evidentes e já há muito que faz parte do quotidiano das pessoas. Os relatos de feminicídios são recorrentes, sobretudo no Brasil, no México, na Índia e na África do Sul. Mas os excessos violentos dos conflitos entre bandos na América Central e as acções brutais do Hamas, que atingiram um clímax temporário no massacre anti-semita de 7 de Outubro, são também provas de uma violência manifesta crescente. No entanto há que ter em conta as diferenças: A criminalidade dos gangues caracteriza-se sobretudo por lutas por mercados ilegais, ao passo que nos feminicídios a violência dos homens irrompe mais ou menos sem qualquer objectivo imediato, ou as mulheres são assassinadas por causa de uma honra ofendida. O anti-semitismo eliminatório, tal como demonstrado nas mais recentes escaladas, é ainda outra questão. E, no entanto, estes fenómenos estão ligados através da dinâmica global da crise e de um processamento da crise de tom masculino, no qual a violência e a propensão para a violência constituem no seu conjunto uma dimensão que não deve ser subestimada. (Apresentação do texto na exit! nº 21, Abril de 2004)

 

1. Introdução * 2. Autodestruição e destruição do mundo no capitalismo * 3. Monstros normais e "hipócritas culturais" * 4. O amoque como violência masculina * 5. Atitude paranóica de defesa-agressão – propensão para a violência e ódio às mulheres e ao estranho * 6. "Liberdade ofendida" – pensadores transversais, teóricos da conspiração etc. e agressões * 7. Condições globais: Misoginia e violência * 8. A vontade de aniquilação no anti-semitismo – um aditamento devido a acontecimentos recentes * Bibliografia

 

1. Introdução

Os avisos de que algo "diferente", algo destrutivo, brutal, assassino se esconde por baixo da camada civilizada e culta do sujeito burguês são antigos (sobretudo Freud e Adorno, mas também, na história mais recente, Roswitha Scholz e Robert Kurz) e, no entanto, são largamente ignorados. Há muitas razões para este facto. Uma razão central encontra-se certamente na constituição do próprio sujeito burguês – veremos isto mais adiante. Mas a pressão da normalidade é também demasiado grande e o "mais do mesmo" não reconhece qualquer espaço para pausas e reflexões. Tudo tem de ser simplesmente bom, normal ou, pelo menos, solucionável e exequível. O potencial destrutivo do sujeito burguês não deve ser nomeado, apesar de estar constantemente a explodir na nossa cara. Por último, mas não menos importante, podia e pode observar-se uma vontade crescente, quase generalizada, de usar a violência e a escalada no contexto da guerra na Ucrânia – só que entretanto os acontecimentos da guerra já passaram para segundo plano. E também o massacre de judeus pelo Hamas, em 7 de Outubro de 2023, bem como as reacções a esse massacre puseram isso em evidência de uma forma chocante e brutal. Mas também já nos debates em torno do coronavírus e dos refugiados tinha sido e continua a ser evidente uma cada vez mais agressiva desinibição e vontade de usar a violência.

Este artigo baseia-se numa palestra que dei no Fórum Social de Koblenz na Primavera de 2023. Neste texto gostaria de tentar tornar estes fenómenos compreensíveis tendo como pano de fundo da dinâmica geral da crise capitalista, de uma forma um pouco mais focada. O objectivo é mostrar como é precisamente em contextos de crise social que surge uma dinâmica que torna as pessoas cada vez mais dependentes dos processos de crise global, levando-as a defender a sua própria autonomia e liberdade de forma ainda mais feroz face à pressão para se adaptarem. O sujeito (masculino), que se crê livre e autónomo, mas que se torna cada vez mais impotente na realidade, sente-se ainda mais compelido a provar a sua própria autonomia – se necessário recorrendo mesmo à violência. Não é por acaso que os homens são mais frequentemente "perpetradores" e as mulheres mais frequentemente "vítimas" da violência.

No entanto, como já referido, a crescente vontade de usar a violência e a escalada da violência só podem ser entendidas tendo como pano de fundo o potencial de violência e destruição inerente ao próprio capitalismo. Por isso começaremos pela questão da autodestruição e da destruição do mundo no capitalismo. Posteriormente serão utilizadas a figura freudiana do "hipócrita cultural" e a figura do "monstro normal" (Christine Kirchhoff, remetendo para Adorno) para abordar a tendência inerente do sujeito para a brutalidade e a violência, tal como ilustrado nomeadamente pelo amoque e por uma atitude masculina de defesa-agressão de tom paranóico. No entanto nem todos os sentimentos agressivos conduzem à violência aberta. Alguns sentimentos agressivos podem ser removidos verbalmente, outros são virados contra o próprio.

O potencial de violência que se vai insinuando neste país, mas que ainda pode ser mantido meio debaixo do tapete, há muito que tem vindo a aumentar brutalmente noutras partes do mundo. Especialmente em regiões do mundo há muito excluídas do mercado mundial e deixadas à sua sorte, sem perspectivas, a violência faz frequentemente parte do brutal quotidiano das pessoas. No entanto a violência não é "apenas" utilizada para fins de pura sobrevivência. Pelo contrário, a brutalidade do sujeito masculino capitalista pode ser vista aqui, por exemplo, na brutalização adicional do crime de gangues e na violência sem sentido contra as mulheres (designadamente sob a forma de feminicídio). Pessoas que historicamente nada têm a ver com o sujeito, que foi constituído no contexto do iluminismo europeu e da implementação do capitalismo, são também banidas para a forma de sujeito através do colonialismo, da globalização etc. Mesmo as pessoas supérfluas e não valorizáveis não podem viver fora do capitalismo e nele são incluídas de forma negativa, precisamente através da "exclusão", o que se torna claro precisamente no seu "fracasso" na forma de sujeito (cf. Kurz 2021, 68ss.).

 

2. Autodestruição e destruição do mundo no capitalismo

Como já referido, o aumento de uma vontade geral de usar a violência só pode ser entendido no contexto de uma tendência inerente ao capitalismo para a autodestruição e a destruição do mundo, o que é particularmente visível no agravamento da sua crise. O modo de produção capitalista está sujeito ao abstracto e irracional fim-em-si de multiplicar o dinheiro/capital por amor de si mesmo. Isto só é possível se houver trabalho suficiente para a produção de valor e mais-valia. A compulsão resultante da concorrência para substituir o trabalho pela tecnologia alimenta a produtividade e, ao mesmo tempo, mina o trabalho como substância da produção de valor e mais-valia, precisamente por tornar o trabalho supérfluo. Com a revolução microeletrónica, a perda de trabalho já não pode ser compensada pela expansão da produção e dos mercados.

Na actual situação de crise, que também afecta cada vez mais as chamadas superpotências, fazendo vacilar a sua posição hegemónica, torna-se claro que os instrumentos neoliberais de adiamento da crise, como a globalização, a acumulação simulada através dos mercados financeiros e o financiamento do consumo através da dívida, estão a atingir os seus limites face à estagflação e à desindustrialização. Ao mesmo tempo estão a diminuir as possibilidades políticas de atenuar a crise através da sua administração, pelo menos nos centros. O sistema de funcionamento capitalista está a rodar em falso.

Ora este potencial do capitalismo para se destruir a si próprio e para destruir o mundo é um potencial que tende a ser negado e recalcado pela consciência geral – embora as duas guerras mundiais e, em particular, o Holocausto, como extermínio eliminatório dos judeus (cf. Kurz 1999, 478ss.), já o tenham mais que pressagiado. Simultaneamente as preocupações com cenários apocalípticos na literatura, no cinema e nas séries indicam que são aqui aflorados certos medos "primordiais", mas também anseios "primordiais" burgueses; o sujeito burguês não consegue evitar a questão da sua própria finitude ou da finitude do mundo, ou a questão do fim do mundo capitalista. E de certo modo essa finitude parece ser mais fácil de suportar quando é acompanhada pela fantasia da destruição do mundo. Nos cenários do fim do mundo, a humilhação perante a própria morte pode ser atenuada pela fantasia de um poder sobredimensionado e indomável. Além disso estas produções centram-se frequentemente num herói (masculino) que de algum modo ainda é capaz de combater a ameaça global. Ainda que os cenários do dia do juízo final em filmes, séries etc. tratem de algo real, este aspecto real não deve ser tornado "consciente".

Assim, em vez de puxar o "travão de emergência" (Benjamin), acontece o contrário: a escalada continua a todos os níveis (cf. Böttcher 2023). Mas mesmo que a natureza da crise do capitalismo não deva/não possa ser pensada como uma crise final, ela tem de ser enfrentada e não pode passar ao lado dos sujeitos sem deixar rasto. A intensidade da rejeição e da negação da "crise final" é particularmente evidente na loucura em curso. Essa ideia é afastada porque ameaça demasiado os pilares do sujeito burguês. Os sujeitos burgueses, que reivindicam autonomia e autodeterminação, são de facto coagidos a funcionar. Marx expressou isto no contexto da produção de mercadorias com o conceito de "sujeito automático" (cf. Marx 2005, 169), tornando assim claro que os automatismos da produção de mercadorias são realizados através dos actores que agem no seu quadro. Estes automatismos tornaram-se tão independentes e totalizados que não é possível escapar-lhes através das acções directas dos indivíduos. Isto quebra ou nega a consciência de poder agir como sujeito autónomo. Mas esta contradição não deve ser tornada consciente. É demasiado ofensiva e também prejudica a capacidade de funcionamento do sujeito. É aqui que entra em jogo a dinâmica do valor e da dissociação: nomeadamente a dissociação entre a reprodução e a produção, em que a reprodução é associada à feminilidade e a produção à masculinidade. Isto deu origem a uma relação específica de género, em que o valor e a dissociação se encontram numa relação dialéctica recíproca como igualmente originais, alimentando a dinâmica global do capitalismo. O que é central aqui é que, embora a dissociação seja fundamental, ela própria enquanto relação de dissociação tem de permanecer inferior e conceptualmente muda. Isto reflecte-se no sujeito burguês, que pela sua forma tem de ser determinado como branco e masculino. O sujeito branco masculino imagina-se como potente, racional, independente e livre, e esta imaginação baseia-se, de certo modo, na dissociação do feminino (cf. Scholz 1992).

É importante aqui distinguir entre sujeito e indivíduo – porque o indivíduo social-sensível não pode ser equiparado ao sujeito nem é absorvido no sujeito. Com Robert Kurz, o sujeito deve ser entendido como um "moderno portador da acção do trabalho abstracto e das suas funções derivadas" (Kurz 2005, 210). O sujeito está inserido no contexto da forma da sociedade capitalista. A este respeito, não é outra coisa senão a "forma social do agir nos próprios indivíduos: Forma da percepção, forma da pensamento, forma do relacionamento, forma da actividade" (ibid.). O sujeito não é, portanto, idêntico ao indivíduo social-sensível, mas sim "o suporte consciente (individual e institucional) do movimento de valorização sem sujeito" (Kurz 2004, 57). Para a crítica da matriz psicossocial do sujeito, isto significa que também aqui deve ser feita uma distinção entre sujeito e indivíduo. Porque, embora o indivíduo social-sensível seja confrontado com a matriz psicossocial do sujeito burguês, não é absorvido por ela. Em certa medida, a matriz psicossocial define os caminhos nos quais a mediação psicológica se realiza (cf. Wissen 2017). Esta matriz psicossocial está ela própria localizada nas relações capitalistas e não deve, em circunstância alguma, ser ontologizada. Aqui é precisamente um "inconsciente social" que se reproduz na vida pulsional do sujeito e molda significativamente o processo de socialização.

O que é que isto tem a ver com a brutalização acima mencionada e com a crescente propensão para a escalada e a violência? É precisamente o acto de equilíbrio que o sujeito masculino tem de realizar, nomeadamente recalcar a sua própria dependência para ter a certeza da sua própria autonomia, que o torna particularmente susceptível a crises. A ameaça à própria autonomia pode ser afastada de muitas maneiras: pode ser recalcada, negada, adiada, projectada; podem ser utilizados mecanismos de cisão e fantasias de omnipotência; podem ocorrer formas de processamento depressivas, narcísicas ou paranóicas etc. E a "beleza" é que todos os mecanismos de defesa podem ser combinados de qualquer maneira.

Em tudo isto, a violência pode tornar-se um meio experimentado e testado de afastar os perigos narcisistas e existenciais. A relação entre a defesa contra os perigos narcisistas e a violência é particularmente evidente no caso do amoque. Este aparece ao sujeito masculino como a única saída para provar o seu próprio potencial num suicídio alargado que, em última análise, imagina a destruição do mundo. O que aqui se desencadeia individual e eruptivamente indica o que, de qualquer modo, está a acontecer na sociedade como um todo, longe da consciência quotidiana geral: a auto-realização absoluta do capitalismo na sua autodestruição, que ao mesmo tempo empurra de modo aparentemente inexorável para a destruição do mundo.

As linhas de conflito centrais da subjectividade masculina e a defesa contra os perigos narcisistas, que muitas vezes andam de mãos dadas com a violência ou, pelo menos, com a propensão para a violência, tornam-se muito claras no caso do amoque. O pensamento mais assustador aqui é que, potencialmente, qualquer pessoa pode entrar em amoque. O amoque tem, portanto, algo a ver com a normalidade das circunstâncias. A este respeito, parece-me sensato começar por lembrar, como fizeram Freud e Christine Kirchhoff, que existe um potencial de brutalidade, de "maldade", inerente ao próprio sujeito.

 

3. Monstros normais e "hipócritas culturais"

Tendo como pano de fundo a Primeira Guerra Mundial, Freud lidou com a questão de quão "civilizado" é o homem moderno. No texto "Zeitgemäßes über Krieg und Frieden" ("Pensamentos contemporâneos sobre a guerra e a paz"), descreve como a desilusão perante a Primeira Guerra Mundial se baseia, ela própria, numa ilusão. Assim, "no seio das nações da comunidade da cultura [...] tinham sido estabelecidos elevados padrões morais para o indivíduo" (Freud 1981, 326), que exigiam muito do indivíduo, mas que, ao mesmo tempo, também estavam associados a um certo prazer, se as "dificuldades da vida" não o impedissem de compor "uma nova grande pátria a partir de todas as vantagens e atracções dos países da cultura" (ibid., 327). Depois, porém, veio a "desilusão" perante a Primeira Guerra Mundial: "Ela derruba tudo o que se interpõe no seu caminho com uma raiva cega, como se depois dela não houvesse futuro nem paz entre os homens" (ibid., 328 ss.).

Segundo Freud, o facto de a desilusão perante a Primeira Guerra Mundial se basear numa ilusão tem a ver com o facto de se partir frequentemente do princípio de que as "más inclinações" poderiam ser erradicadas através da educação e do ambiente cultural. Mas não é esse o caso: os impulsos pulsionais são de natureza elementar e não podem ser divididos em bons e maus; em vez disso, classificamo-los "de acordo com a sua relação com as necessidades e exigências da comunidade humana" (ibid., 332). De acordo com Freud, todos os impulsos pulsionais que são desaprovados como "maus" são impulsos pulsionais "primitivos" que seguem um caminho de desenvolvimento. No processo, as "pulsões egoístas" são transformadas em pulsões sociais através da "mistura de componentes eróticos [...]" (ibid., 321). O factor externo da educação, para o qual fluem por sua vez as normas sociais, é decisivo para este processo. Através dela a coerção externa é constantemente transformada em coerção interna. Como Freud sublinha, o indivíduo está também sujeito à influência da história cultural dos seus antepassados. Em última análise, a comunidade cultural, "que exige um bom comportamento e não se preocupa com as razões das suas pulsões", "ganhou um grande número de pessoas que não seguem a sua natureza" (ibid., 335). Freud escreve: "Aquele que é assim obrigado a reagir constantemente no sentido de regras que não são a expressão das suas inclinações pulsionais, vive, psicologicamente entendido, para além das suas possibilidades, e pode objectivamente ser chamado de hipócrita, independentemente de se ter apercebido claramente desta diferença ou não. É inegável que a nossa cultura actual favorece extraordinariamente o desenvolvimento deste tipo de hipocrisia" (ibid., 336).

Freud descreve aqui de forma impressionante que a vida na "comunidade de cultura", ou seja, uma vida sob o signo do capitalismo, significa para o indivíduo viver "psicologicamente acima das suas possibilidades" devido à renúncia maciça à pulsão que tem de ser feita diariamente. Perante a Primeira Guerra Mundial, não se interroga sobre a psique de cada um dos beligerantes, não procura neles o suposto "mal" (supostamente e entre aspas porque Freud renuncia à distinção entre bem e mal em relação ao mundo da pulsão), mas diz que todos eles podem regredir a qualquer momento como "hipócritas culturais". O "mal" não é algo que vem de fora, mas uma potência dentro do sujeito burguês.

Vale a pena referir uma antologia bastante interessante sobre o tema do amoque que se intitula "Normalungetüm" (Monstro normal). Este termo também se refere, em última análise, a este potencial dentro da subjectividade burguesa. Christine Kirchhoff interpreta este termo, que Adorno relacionou com "os algozes de Auschwitz" (Adorno 1970, 282s.). (1) No seu artigo na antologia acima referida, começa por perguntar a Max Frisch: "Supondo que nunca matou um ser humano: como explica o facto de isso nunca ter acontecido?" (Max Frisch citado em Kirchhoff 2013, 59). A autora cita ainda Herbert Marcuse, que recordou o seguinte numa viagem no "metropolitano": "O que vejo nas pessoas são rostos e membros cansados, ódio e raiva. Tenho a sensação de que, a qualquer momento, alguém pode sacar de uma faca – sem mais nem menos" (Marcuse citado em ibid.). Com estas citações, a autora questiona a evidência do pressuposto de que as pessoas não matam e conclui a partir destas reflexões: "Não matar e não entrar em amoque é, portanto, uma conquista cultural com uma história e, por conseguinte, tão pouco natural como toda a cultura" (ibid.).

No que diz respeito ao conceito de monstro normal, Kirchhoff escreve: "Quando Adorno escreve sobre monstros normais, parece retirar o que há de estranho nos monstros; afinal é suposto eles serem normais. Mas, ao juntar algo que não pertence ao mesmo conjunto, ele enfatiza o efeito do estranho, que resulta do facto de algo ser demasiado familiar: Se a monstruosidade é algo que está fora do comum, que não pode ser apreendido com leis [...], a monstruosidade normal é assustadora precisamente porque também não o é, ela é afinal normal. [...] Tal como o todo, segundo Adorno, é o falso [...], o monstruoso é precisamente o normal, um monstro normal" (ibid., 64).

 

4. O amoque como violência masculina

O amoque é usualmente entendido como a intrusão de algo "mau" na normalidade, mas de certo modo o amoque refere-se à própria normalidade. E esta normalidade é pós-moderna, ou seja, individualizada e flexibilizada. O "Eu empresarial" (cf. Bröckling 2013) há muito que se tornou uma norma cultural como modelo. Nele a submissão, no sentido de adaptação às circunstâncias, torna-se a expressão da auto-realização. Para Sebastian Winter, a contradição entre "auto-realização" e "adaptação" é um bom terreno para a violência tipo amoque, porque a "orientação para o objectivo da auto-realização" é sempre contrariada pela "ofensa da inevitável experiência de fracasso" (ibid., 119). São precisamente estas "deficiências de encadeamento social", como Pohl designa a contradição entre a exigência de auto-realização e a falta de oportunidades para tal, que geram "reacções violentas", dirigidas de forma eruptiva ou planeada contra os constrangimentos e imposições sociais da vida quotidiana (cf. ibid.).

O amoque é aqui violência "masculina", mesmo que por vezes mulheres isoladas entrem em amoque. E isto não é coincidência. A contradição entre adaptação e realização pessoal ou autonomia é particularmente precária para o sujeito masculino. Isto tem a ver com a dissociação do feminino, que anda de mãos dadas com a negação da sua própria dependência. Negação que, por sua vez, é crucial para se poder reconhecer como sujeito masculino. A dissociação do feminino não é um acto que tem de ser realizado uma vez durante a socialização, mas tem de ser feito repetidamente, sobretudo quando a própria potência e autonomia são postas em causa. Também não é por acaso que as mulheres são desproporcionadamente vítimas do amoque. Como mostrarei de seguida, utilizando a figura de uma "atitude paranóica de defesa-agressão" desenvolvida por Pohl, são precisamente as mulheres, ou as pessoas associadas à "feminilidade", que confrontam repetidamente os homens com a sua própria dependência.

 

5. Atitude paranóica de defesa-agressão – propensão para a violência e ódio às mulheres e ao estranho

Pohl aborda também a relação entre normalidade e patologia. Com Freud, lembra-nos que cada pessoa normal é "apenas medianamente normal" e que "o seu Eu [...] aproxima-se do Eu do psicótico de uma forma ou de outra, em maior ou menor grau" (Freud citado em Pohl 2013, 137). Relativamente ao assassino Breivik, conclui com Just que o "pensamento mais perturbador e, portanto, necessário" é "imaginar Breivik como uma pessoa normal" (citado em Pohl, ibid., 140). No seu manifesto, Breivik tinha, de facto, criado um "cenário de ameaça irracional" que era "uma mistura de racismo, misoginia, anti-islamismo e anticomunismo com uma decidida defesa da teoria crítica" (ibid., 141). (2)

A partir destas reflexões, Pohl conclui que Breivik "demonstra de forma extrema a mistura de hostilidade às mulheres e ao estranho que ainda está difundida nas sociedades dominadas pelos homens, ligada a medos específicos e carregada de virulentas tendências para o ódio e a violência" (ibid., 142). Num "habitus masculino", emerge uma "agressividade irracional", que "se volta contra o corpo feminino e contra a imaginação da sexualidade feminina" (ibid.). Isto tem a ver com a propensão a crises da constituição do sujeito masculino, que se pode manifestar "como potencial de conflito latente banido para o inconsciente no sexismo e na misoginia" (ibid.) e também – pode acrescentar-se – no racismo, anti-semitismo e anticiganismo. Isto também revela "elementos de tom paranóico", que têm a ver com uma "abordagem orientada para a projecção do 'próprio' e do 'estranho' codificados em termos de género" (ibid.).

Segundo Pohl, a capacidade de diferenciação entre Eu e não-Eu – aqui se refere uma fase muito precoce do desenvolvimento, em que o bebé se apercebe gradualmente que está separado da mãe, ou seja, que não é um só com o mundo – dá origem à tendência para colocar tensões, frustrações, medos e até agressões, incluindo o ódio, em imagens interiores correspondentes com estes primeiros representantes estranhos do mundo exterior. Este mecanismo primitivo de cisão pode ser utilizado a qualquer momento, precisamente porque não só constitui a base para atitudes emocionais ambivalentes, mas também para relações de ódio inequívocas em relação a objectos "estranhos" e "familiares". O primeiro objecto de ódio ou amor é feminino ou é "subsequentemente codificado como feminino" (ibid., 149). Esta codificação como "feminino", por sua vez, torna claro até que ponto o processamento de tudo o que é ameaçador e estranho tem sempre a ver com a dissociação do feminino e com a conexa propensão do sujeito masculino para a crise.

Com a ajuda de considerações da psicologia do desenvolvimento relacionadas com a adolescência, Pohl explica como o falo se torna o "portador simbólico de independência, tamanho, poder e potencial (sexual e social)" (ibid.). O pénis não é apenas o "órgão de excitação sexual, prazer e satisfação" (ibid.) e "ponto de partida do desejo de autonomia e controlo", mas também a fonte de um "medo da dependência" (ibid.). Pohl escreve: "É precisamente a excitação sexual (supostamente) desencadeada pelas mulheres que mostra que a ideia de dominação e controlo completos contida na ilusão masculina de autonomia é uma ilusão" (ibid., 154). Isto conduz directamente ao "paradoxo fundamental na constituição da identidade de género masculina": "No auto-entendimento do sexo supostamente forte, autónomo e superior, aquilo que é fonte de desejo e prazer é ao mesmo tempo, precisamente por sê-lo, a maior fonte de desprazer e medo" (ibid.). Se a própria autonomia do sujeito masculino for ameaçada, ele pode potencialmente "recorrer à violência como uma espécie de selo de chumbo para a pseudo-estabilização" (ibid., 144). Pohl escreve de maneira impressionante: "Um dos meios de expressão preferidos das estratégias masculinas de resolução de conflitos é a utilização do órgão sexual masculino narcisistamente muito qualificado como insígnia de poder, grandeza e, em casos de violência sexual, muitas vezes também como arma" (ibid., 145).

Pohl relaciona as linhas de conflito descritas na socialização masculina com as "sociedades de hegemonia masculina": Nestas os homens estão sujeitos à "compulsão estrutural" de "se colocarem não apenas como um género diferente, mas como o mais importante e superior" (ibid., 148). Ao mesmo tempo, é precisamente "uma atitude caracterizada pelo medo, desejo e ódio em relação a tudo o que é ameaçador" que é "a origem e o núcleo da paranóica propensão para a defesa-agressão [...] reforçada por esta compulsão" (ibid.). O sujeito masculino é assim obrigado a afirmar-se como autónomo e potente, e para isso tem de negar a sua própria dependência ou projectá-la no feminino aí a desvalorizando. É precisamente neste trato projectivo com o "feminino", em que a feminilidade é associada à passividade e à fraqueza, que se encontra a porta de entrada para as ameaças à sua própria autonomia ilusória. A tensão constitucional entre a compulsão de ter de provar a própria autonomia e o medo da dependência, do fracasso etc. revela um potencial latente de conflito que pode ser actualizado a qualquer momento. E, como já foi referido, a violência pode ser utilizada em qualquer altura como uma "espécie de selo de chumbo para a pseudo-estabilização"...

 

6. "Liberdade ofendida" – pensadores transversais, teóricos da conspiração etc. e agressões

O acima descrito potencial de conflito na constituição (masculina) do sujeito, que também pode eclodir em violência a qualquer momento, está actualmente a tornar-se claro sobretudo na cena dos pensadores transversais. Amlinger/Nachtwey relacionam o fenómeno dos pensadores transversais com o conceito de "autoritarismo libertário": o "autoritarismo libertário" tem a ver com a defesa da liberdade individual, entendida como a liberdade de auto-realização. Isto é feito de forma autoritária, ou seja, em disputas autoritárias em que outros pontos de vista são automaticamente vistos como um ataque e têm de ser afastados. Os conflitos inflamam-se em restrições às liberdades individuais e viram-se autoritariamente contra os seus alegados autores. Aqueles que "restringem a autodeterminação, como 'os' virologistas e 'os' governos" devem ser punidos (Amlinger; Nachtwey 2022, 24). Amlinger/Nachtwey situam esta "rebelião autoritária", que se apresenta como heróica, "como um efeito secundário das sociedades modernas tardias" (ibid., 13), cuja promessa da possibilidade de auto-realização individual esbarra em restrições. O que é vivido como ofensa e vai de par com a impotência. Em contraste com o "carácter autoritário" conceptualizado pela teoria crítica em torno de Adorno e Horkheimer, parece haver actualmente menos uma identificação com uma figura de líder e mais uma identificação com a própria autonomia (cf. ibid., 16).

As experiências de impotência e de ofensa mobilizarão também sentimentos agressivos. Os autores distinguem diferentes tipos de sentimentos agressivos. Em primeiro lugar, referem o "rancor". Neste, a mágoa e os sentimentos de impotência são transferidos para uma contraparte que deve ser culpada pela própria miséria. Também na raiva, a ofensa e o sentimento de impotência são transferidos para um objecto externo, que neste caso deve ser prejudicado. Ao contrário do rancor, que "resmunga e olha para cima", a raiva desvia o olhar. Partilha esta atitude com o desprezo, no qual se condena condescendentemente o interlocutor" (ibid., 142). É por isso que a raiva é "estruturalmente violenta" – "no sentido da 'capacidade de acção' formulada pelo sociólogo Heinrich Popitz, que procura prejudicar e ferir os outros" (ibid.). Por último, os autores designam o ressentimento como o terceiro factor. Este é basicamente de natureza reactiva e descreve uma "energia agressiva latente" (ibid., 143) que não é posta em prática. O ressentimento é um "sentimento generalizado de inveja que não tem um oponente concreto" (ibid.). O objecto do ressentimento é de importância secundária, a única coisa importante é que se possa encontrar um objecto para o qual se possa dirigir o ressentimento e os impulsos de vingança.

Por muito interessantes que sejam as explicações de Amlinger/Nachtwey, elas continuam a ser truncadas em muitos aspectos. Por exemplo, o "autoritarismo libertário" não é um "efeito colateral do desenvolvimento do indivíduo libertado e responsável que é confrontado com dependências" (ibid., 21), mas sim uma expressão da situação de crise a ser enfrentada, que leva as pessoas cada vez mais a dependências que precisam de ser enfrentadas. Só neste contexto é que se tornam compreensíveis as ideias elaboradas pelos dois autores, como a defesa da própria liberdade, os próprios sentimentos de dependência e impotência, que abalam cada vez mais o lar narcisista das pessoas e que têm de ser afastados.

Infelizmente Amlinger/Nachtwey também não se apercebem de que atrás do libertário está, em última análise, a invocação de uma liberdade abstracta. Isto aproxima perigosamente os "rebeldes autoritários" dos "democratas", cujo potencial de brutalidade como "monstros normais" não pode ser reconhecido à primeira vista. Estes democratas tentam posicionar a sua liberdade abstracta e, portanto, vazia, como democracia, contra o "autoritarismo libertário", esquecendo a sua própria proximidade da brutalidade. A liberdade torna-se bárbara quando se torna vazia – o mesmo se aplica à democracia, sendo que o vazio do processo de valorização se reflecte na sua crise. Os democratas e os "autoritários libertários" não são mais do que as duas faces da mesma moeda, sendo mutuamente dependentes. Os crescentes efeitos hostis, que são descarregados cada vez mais directamente no rancor, na raiva e no ressentimento acima descritos, estão a levar à desinibição e à remoção de tabus, mesmo ao nível da chamada "sociedade maioritária" democrática (ver Kurz 1993 e Heitmeyer 2018, 2020).

A perigosidade desta situação também pode ser observada aqui na Alemanha, no aumento dos actos de violência com motivações políticas, embora seja interessante notar que os crimes já não podem ser claramente atribuídos ao espectro da esquerda e da direita. De acordo com o comunicado de imprensa do Ministério do Interior, este facto demonstra "que os motivos dos crimes se tornaram mais difusos e diversificados" (comunicado de imprensa do Ministério Federal). Em 2020 registou-se um pico de violência por motivos políticos. Mesmo que os números tenham diminuído ligeiramente em 2021, isso não é motivo para fim de alerta, especialmente porque há indicações de que a violência se tornou mais brutal – pelo menos o número de vítimas aumentou, apesar do ligeiro decréscimo dos casos. O facto de os crimes anti-semitas terem aumentado 29% em 2021 não deve ser surpresa. Assim, o anti-semitismo já estava a aumentar aqui na Alemanha antes de 7 de Outubro (mais sobre isto abaixo).

Ainda uma pequena nota: é claro que as mulheres também estão entre os apoiantes dos pensadores transversais etc. Afinal de contas, também elas têm de se deslocar para o mercado – tendo como pano de fundo a sua "dupla socialização", muitas vezes em circunstâncias muito mais precárias do que os homens – e também elas têm de lidar com o medo da despromoção, com sentimentos de impotência e com o seu próprio desvalor. Também para elas, as ideologias de crise pequeno-burguesas, as teorias da conspiração, o esoterismo, o racismo, o anti-semitismo e o anticiganismo podem ser estratégias de alívio atractivas. No entanto, é provável que o potencial de violência entre os homens seja mais elevado: pois, como se viu acima, a impotência, a desvalorização etc. são condições insuportáveis particularmente para o sujeito masculino, uma vez que – ao contrário das mulheres – eles têm de reprimir as suas próprias "dependências" para se manterem funcionais como sujeito masculino.

 

7. Condições globais: Misoginia e violência

Na Alemanha, apesar de todos os desenvolvimentos preocupantes, a situação ainda é relativamente "civilizada" numa comparação global. As fissuras na camada de tinta civilizada continuam a ser reparadas com diligência, mesmo que a tinta já esteja a rarear. É muito difícil ilustrar o contexto da forma comum, ou seja, a socialização da dissociação-valor na sua crise final, e, ao mesmo tempo, as diferenças na evolução global. No entanto, vale a pena tentar dois flashes sobre o Sul global:

Num artigo do dossier INKOTA, podemos ler sobre as condições das mulheres que trabalham nas minas do Congo: "Quase 40 por cento das mulheres que trabalham nas minas congolesas são abusadas sexualmente. Se resistirem, não são autorizadas a trabalhar e é-lhes negado o acesso a bens essenciais" (Lotendo 2022, 16). A maior parte das mulheres são, de facto, donas de casa e têm de se sacrificar para se alimentarem a si próprias e às suas famílias devido à "atitude irresponsável dos maridos": "Os homens desempregados e preguiçosos não mexem uma palha para mudar a sua situação e assumir as suas responsabilidades. [...] Obrigam as mulheres a trabalhar" (ibid.).

Na África do Sul, sabe-se que a taxa de feminicídio é cinco vezes superior à média mundial. Embora o número de casos tenha diminuído ligeiramente nos últimos anos, registou-se agora um novo aumento. De acordo com uma entrevista com Abrahams, uma perita local sobre a situação, o elevado número de feminicídios tem a ver com o passado do regime do apartheid: "As pessoas foram deslocadas dos locais onde viviam para locais sobrelotados como Cape Flats, onde o gangsterismo ainda hoje é galopante. O apartheid ainda tem impacto na forma como lidamos com os conflitos. Nessa altura tratava-se de sobreviver através da força e da dominância. […] O único sítio onde os homens negros podiam exercer o poder era nas suas próprias famílias, à porta fechada. E todas as injustiças sociais continuam. Muitos jovens entendem a violência como um sinal de masculinidade, por vezes é a única coisa que lhes resta. Dá-lhes reconhecimento entre os seus pares" (Hoffmann 2022).

Como já foi indicado acima, os acontecimentos globais não podem ser simplesmente equiparados à socialização ocidental e às suas condições de partida. No entanto, os fenómenos descritos não estão fora do contexto da forma capitalista. Com efeito, a escalada da violência é particularmente dramática nas regiões do mundo que há muito estão afastadas do mercado mundial e, por conseguinte, de quaisquer oportunidades de desenvolvimento imanente, no contexto do processo geral de desintegração. Como "excluídos incluídos", têm de lutar pela sua pura sobrevivência (cf. Kurz 2021, 356ss.). Os programas neoliberais de ajustamento estrutural, que são uma expressão da integração forçada no mercado mundial, agravam dramaticamente as condições das pessoas, porque foi precisamente a integração forçada, em conjunto com uma história colonial, que levou à destruição das possibilidades de reprodução "tradicionais" destas regiões, por vezes com consequências extremamente mortíferas. Esta parte da história é frequentemente ignorada pelo "Ocidente dos valores" com a sua historiografia de esplendor e glória. Embora estas regiões tenham sido, em certa medida, forçadas a um sistema que lhes era estranho a partir do exterior, os contextos culturais regionais continuam vivos nelas – tanto num sentido de resistência como também de destruição.

É precisamente nesta relação de "exclusão inclusiva" que se revela a relação capitalista de totalidade, à qual a violência é inerente. Também os excluídos são marcados por esta relação. Por isso não é de admirar que a violência aumente precisamente onde as bases da vida se estão a desmoronar cada vez mais. Um olhar sobre a violência dos bandos e gangues nos Estados em colapso, por exemplo, mostra que a violência não se centra "apenas" na obtenção de recursos valorizáveis, mas a escalada vai muito além da "violência instrumental". Há relatos repetidos de gangues que "limpam" bairros inteiros, onde as mulheres são alvo de ataque e a violação é também utilizada como arma. O exemplo do Congo indica que as mulheres são duplamente ameaçadas nesta luta pela sobrevivência: São frequentemente responsáveis pela sobrevivência quotidiana e, ao mesmo tempo, estão expostas ao perigo de serem vítimas da violência masculina. É precisamente aqui que se vê que a violência não é apenas um meio para atingir um fim, mas também pode ser utilizada para a auto-afirmação masculina. É precisamente onde o papel dominante masculino deixa de ser viável, devido ao colapso dos contextos familiar e social, que a violência se torna atractiva como meio de auto-afirmação.

 

8. A vontade de aniquilação no anti-semitismo – um aditamento devido a acontecimentos recentes

Após o 7 de Outubro, em vez da solidariedade mundial para com Israel, assistiu-se a uma escalada mundial do anti-semitismo. Apesar de não ter havido um ataque tão brutal como o do Hamas desde o tempo do nacional-socialismo até ao 7 de Outubro contra os judeus israelitas, "os judeus" são frequentemente culpados por isso, numa inversão vítima-perpetrador (isto não teria acontecido se o "Estado dos judeus" não tivesse sido um "Estado de apartheid", se não tivesse havido o "colonialismo dos colonatos" etc.).

A falta de empatia para com as vítimas do massacre anti-semita do Hamas, que revela um novo nível de brutalidade e sadismo, é difícil de suportar, sobretudo devido às combinações de violência "sexista" e violência de evocação anti-semita. As mulheres foram particularmente expostas a brutais violências e violações (a utilização do órgão sexual masculino como arma, ver acima). Simultaneamente assistiu-se a uma desinibição e brutalização da violência em geral e em todas as direcções: Nem os idosos, as crianças e as mulheres foram poupados pelo Hamas, nem a sua própria população, que é usada como escudo da organização terrorista. Neste cenário de loucura anti-semita a vida humana não vale nada; trata-se de uma luta que não tem outro objectivo senão a destruição do "Estado dos judeus" e, com ele, a destruição de todos os judeus, custe o que custar. Por trás da desinibição da violência está uma vontade de aniquilação e com ela um anti-semitismo eliminatório e assassino.

Ao aniquilar os judeus, o anti-semitismo eliminatório pretendia "'libertar' o mundo capitalista do 'trabalho' da violência da abstracção real [...]" (Kurz 2013, 83). O lado destrutivo da subjugação das sociedades produtoras de mercadorias ao irracional fim-em-si capitalista de aumentar o dinheiro/capital devia ser separado em capital bom e criador, baseado no trabalho, e capital mau e rapinante, sem trabalho. O lado mau foi projectado nos judeus. Ao destruí-los, o capitalismo bom e criador seria salvo: "O anti-semitismo pretende, portanto, manter a forma do dinheiro e definir a sua estranha e irracional falta de conteúdo como uma suposta 'característica judaica', transformando assim 'os judeus' em bodes expiatórios. É a reacção imanente irracional à irracionalidade do fetichismo das mercadorias e do dinheiro" (ibid., 70).

O assustador excesso de violência sádica, a sua afirmação, mas também a significativa ignorância a seu respeito, constituem uma indicação assustadora de como o anti-semitismo é utilizado de forma persistente e confiante como processamento projectivo da(s) crise(s) da produção de mercadorias e de como isso é extremamente perigoso para os judeus de todo o mundo. Simultaneamente pode reconhecer-se que a valorização do capital, que se reduz a nada à medida que a crise se intensifica, também faz cair as vestes dos sujeitos condicionados à concorrência, tornando claro "que sob essas vestes nada existe: que o âmago desse sujeito é um vazio, que se trata de uma forma 'em si' sem qualquer conteúdo" (Kurz 2021, 68 [47], ênfase no original). Trata-se do "vazio metafísico do valor", do "vazio completo do 'sujeito automático' (Marx) da modernidade que a se autovaloriza" (ibid., 69 [47]). Este vazio é um vácuo de sucção. Liberta uma difusa vontade de aniquilação, levando as pessoas a aniquilarem o outro, bem como a si próprias e ao mundo. O anti-semitismo eliminatório – veiculado através de mitos de conspiração mundial – tem a ver com a ilusão de que a produção global de mercadorias, que já não pode ser salva, poderia ser "salva" através da aniquilação dos judeus.

O anti-semitismo eliminatório que se torna visível nos massacres do Hamas também faz lembrar os crimes nazis, especialmente porque o Hamas, o Hezbollah e a Fatah também gostam de usar um certo simbolismo nazi, por exemplo, mostrando a saudação hitleriana nas suas marchas. No entanto, o massacre do Hamas não pode ser simplesmente equiparado à Shoah e ao extermínio sistemático dos judeus. Por um lado, a singularidade do Holocausto como obra especificamente alemã não deve ser posta em causa nem relativizada. Só na Alemanha pôde surgir uma "pseudo-revolução 'de cima'" com base na sua própria história, que escalou "até à última barbárie imaginável" (Kurz 2013, 84). Não foi "apenas o número de milhões de vítimas [...] que tornou o Holocausto uma singularidade histórica, mas a completa ausência de um ponto de vista de interesses definível, como se encontra, de uma forma ou de outra, por trás de todos os outros genocídios e assassinatos em massa da história da modernização. O Holocausto foi um fim-em-si executado com fanatismo [...] para se livrar do fim-em-si do capital" (ibid.). Embora nos encontremos hoje numa situação mundial completamente diferente, esta não exclui de modo nenhum novas formas de anti-semitismo eliminatório; pelo contrário, é ela que lhes dá origem em primeiro lugar. Também as continuidades históricas devem ser colocadas neste contexto.

Tendo como pano de fundo a história específica da Alemanha e a continuidade do anti-semitismo alemão, que existe apesar de todas as tentativas de se livrar dessa história – e da culpa que lhe está associada –, nomeadamente através de dias de recordação e de "reconciliação", também é inaceitável declarar o anti-semitismo na Alemanha como um "problema muçulmano" e, assim, em última análise, torná-lo um problema da migração. Trata-se de uma tentativa barata de aliviar a própria culpa e não serve certamente para entender melhor o problema do anti-semitismo.

É igualmente absurdo e assustador mascarar a violência do Hamas contra os judeus como uma dita "luta de libertação". A vontade de extermínio expressa no comportamento extremamente brutal e desinibido do Hamas é aqui simplesmente ignorada e negada. Em vez disso, os direitos humanos dos palestinianos são utilizados como capa, por assim dizer, para o anti-semitismo eliminatório. Quem se preocupa verdadeiramente com o sofrimento dos palestinianos tem de exigir a sua libertação do Hamas. A falta de solidariedade fundamental para com Israel não é, infelizmente, nada de novo, é expressão da continuidade do anti-semitismo (alemão) acima referida. No entanto, dada a indignação que outras violações dos direitos humanos provocaram, é notável que na Assembleia Geral da ONU, em Dezembro, a condenação das atrocidades cometidas pelo Hamas em 7 de Outubro não tenha conseguido uma maioria de dois terços (ver artigo no Die Zeit de 12.10.23). Deve Israel depor as armas e deixar-se aniquilar pelo Hamas & Cª?

 

Bibliografia

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Zeit Online: UN-Vollversammlung verlangt Waffenstillstand in Gaza [Assembleia Geral da ONU exige cessar-fogo em Gaza], zeit.de vom 12.12.2023.

 

Notas

(1) A ligação em Adorno é mais ou menos assim: A teoria e a prática "não podem ser coladas para formar uma síntese". "O palco da moral hoje" é a contradição entre não tolerar "que o horror se perpetue" e a "consciência teórica que percebe a razão pela qual, apesar de tudo, o horror se perpetua a perder de vista". O foco desta reflexão é a questão da condenação dos "monstros normais". Uma condenação por "uma máquina judicial com o seu código de instrução penal, com as batas e os defensores plenos de compreensão" é "comprometida pelo mesmo princípio segundo o qual os assassinos um dia agiram". Isto torna a justiça obsoleta. Se a "justiça teoricamente reflectida" (ibid.) "não auxilia nem mesmo a contradição a se tornar consciente de si mesma", "então ela acaba por incentivar, enquanto algo político, o prosseguimento dos métodos de tortura pelos quais espera sem mais o inconsciente colectivo e por cuja racionalização ele aguarda" (Adorno 1970, 281s.).

(2) Infelizmente, Pohl escolhe aqui o termo anti-islamismo, que na realidade significa ser contra o islamismo, à semelhança do termo antifascismo. Contudo não se trata certamente de uma posição crítica contra uma orientação fundamentalista de uma religião, mas provavelmente tem em mente o racismo anti-muçulmano.

 

 

Original “Männliche Gewaltbereitschaft und Amok vor dem Hintergrund einer sich zuspitzenden kapitalistischen Krisendynamik” in: revista exit! nº 21, Abril de 2024, pag. 71-88. Tradução de Boaventura Antunes (08/2025)

http://www.obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/