Entrevista com Marildo Menegat

 

(em Dezembro 2016)

 

 

Sinal de Menos – Qual o significado do ciclo petista e do impeachment na história global do capital e da modernização brasileira fracassada? Aliás, fracassada para quem?

Marildo Menegat – Seria necessário inicialmente sobrepor outra pergunta à sua: qual o sentido que ainda tem um partido (e de esquerda!) neste momento histórico? O clube dos Jacobinos, no seu tempo, participou e dirigiu uma revolução moderna que era na época uma relativa novidade. Na metade do século XIX já havia uma disputa de teorias da revolução – Bakunin, Blanqui, Marx... E no tempo de Lênin a revolução pôde seguir um modelo 'científico' que, inclusive, se pretendeu universal. A história das revoluções, porém, se empobreceu vertiginosamente depois dos anos 1970. Para tomarmos um modelo teórico de referência neste assunto, o que Gramsci chamou de 'guerras de movimento', que explicava o tipo de revolução em países com sociedades civis gelatinosas etc, chegou ao seu limite – lógico e histórico – naquela década. A outra modalidade de revolução, formulada por este mesmo autor, a de 'guerra de posição', mais comum nos países europeus ocidentais depois da IIª GM – tanto na modalidade social-democrata, como na eurocomunista, também esgotou seu arsenal de conquistas nestes mesmos anos (as datas podem variar, mas estão entre o Maio de 1968 na França e a Itália dos 1970). Depois deste marco histórico, ao que parece, o partido como organizador de um processo revolucionário perdeu sua substância. Algo muito grave e profundo ocorreu na sociedade burguesa que passou a desfibrar tal modalidade de organização. Não foi apenas seu posicionamento crítico contra o capital (o chamado programa) que perdeu densidade, a base social dos partidos de esquerda erodiu, enfraquecendo-os de modo irremediável. E aqui começo responder a sua pergunta, o PT nasceu justamente nesta conjuntura histórica de fim de linha. Por isso, seu sucesso inicial precisa ser bem compreendido, para não se projetar expectativas sobre sua história que não estavam em jogo. A explicação mais comum sobre as origens do PT procura entendê-lo a partir da atuação de uma classe operária numerosa e combativa, formada nos anos de intensa industrialização da ditadura militar e que, por sua própria situação objetiva, teve força para protagonizar os momentos mais espetaculares do enfraquecimento político que levaram ao termino do regime. Derivaria desta situação a sua força para propor a criação de um partido que se apresentava como uma necessidade histórica que daria unidade a um amplo movimento popular que surgiu junto, e por motivos semelhantes, às greves operárias do ABC paulista. Nesta chave ele é entendido como a organização política da ala radical e popular do movimento pela redemocratização do país que deveria concluir o processo de modernização, elevando finalmente o Brasil aos padrões ocidentais de civilização. Contudo, há dois problemas nesta explicação. O primeiro é que a experiência mais próxima a uma revolução, já vivida por aqui, ocorreu no período pré-1964, cujo golpe a interrompeu preventivamente – e quem dirigiu este processo foram os velhos PTB-PCB, com todos os limites que os caracterizavam. Creio que nesta experiência se esgotaram as possibilidades de uma revolução popular como mito fundador mais democrático (e esclarecido) de uma moderna sociedade produtora de mercadorias no Brasil. Francisco de Oliveira no ensaio Ornitorrinco diz algo parecido com isto. Este argumento ganha consistência se lhe acrescentarmos a crítica de Moishe Postone ao marxismo tradicional, visto por ele como uma esquerda restrita a crítica da distribuição de riqueza no capitalismo e não a crítica das categorias fundamentais que constituem este modo de produção enquanto uma objetividade abstrata destrutiva. O tempo histórico possível para esta distribuição de riqueza, tudo indica, está encerrado. Por isso, um partido revolucionário que surge num tempo em que as revoluções se encerraram – ao menos no modelo moderno que as conhecemos – somente será revolucionário por ilusão de seus membros. Tudo isto posto para dizer que o PT somente foi ou pôde um dia ter sido sonhado como revolucionário por meio de uma sorte de projeção ideal que nada tem a ver com sua história. O segundo problema da explicação comum das origens do PT é que se exclui de antemão a hipótese de que ele possa ser algo muito original, um tipo novo de partido – e talvez único, o que indicaria inclusive a impossibilidade de ser copiado. O PT nasceu no início do colapso do processo de modernização da sociedade brasileira, que é parte – um momento articulado – da crise estrutural do capitalismo iniciada nos anos 1970. Neste sentido, ele representou durante muito tempo a capacidade de reação e resistência das camadas populares e de setores das classes médias que, por diversas razões, se pensavam nos velhos moldes de uma sociedade estável e centrada na dinâmica do progresso – que, aliás, aparecia a estes mesmo setores como algo eterno. Por isso, a ilusão da revolução surgia com frequência como uma miríade, um motivo indefinido de alegria em dias de festa, mas nada real objetivamente. Ele foi a grandeza e a miséria do fim de um tempo e o início de outro que, a princípio, o PT não podia entender e, depois, quando isso era possível, não quis entender. Portanto, se ele não surgiu numa conjuntura em que as revoluções se apresentavam como possibilidades no horizonte histórico – basta lembrar a ominosa coincidência das eleições presidenciais de 1989, em que a Frente Brasil Popular apresentava-se como uma proposta, mesmo que moderadamente socialista, ao mesmo tempo em que o socialismo desmoronava no leste europeu – que sentido poderia ter sua existência que o fez efetivamente ser um partido de esquerda e de massas?

O papel do PT esteve confundido com este desejo de salvar um horizonte histórico não mais possível, mas caro a uma compreensão progressista da história, que acabou se mesclando com uma atuação no presente na qual foi possível produzir 'escoras' numa sociedade que desmoronava mas, paradoxalmente, por esta mesmas escoras, ficava em pé. Estas escoras são técnicas de gestão social da crise, intervenções que procuram fazer uma sutura num tecido social completamente esgarçado por índices alarmantes de desemprego que se transformam facilmente em violência cotidiana assustadora. A 'governabilidade social' que estas técnicas desenvolvidas em prefeituras administradas pelo PT ao longo dos anos 1990 proporcionaram, diante do medo que este mergulho na regressão à barbárie produziu, fez dela a aparente materialização do desejo de uma sociedade menos desigual, quando era na verdade a evidencia da sua impossibilidade. Pouco se sublinha na história das lutas sociais recentes no Brasil que, se nos anos 1980 eram massivas e predominantemente ligadas ao movimento sindical, já nos 1990 havia refluído e migrado para os conselhos participativos e orçamentários etc. e, no fim da década, para movimentos como o MST que, como o PT, foi uma senhora experiência (também em vias de extinção) de reação ativa das massas à crise em curso. O que pretendo com este raciocínio é mostrar que, na dinâmica de desmoronamento de uma sociedade, as modalidades de reação e resistência se modificam, assim como sua composição social, apesar de se apresentarem com definições e autocompreensões antiquadas – como, por exemplo, o conceito de consciência de classe, que quase nada explica do que há de novo neste processo. Devo lembrar que uma reação não é, necessariamente, um movimento consciente. Apesar de PT e MST terem surgido na mesma conjuntura histórica, ninguém nos anos 1980 poderia imaginar que o MST teria a projeção que teve desde 1997, assim como, ninguém teria imaginado a retração que a CUT vive hoje. O que explicaria tal fenômeno, no meu entendimento, são os diferentes momentos do colapso do capitalismo e as formas 'reativas' organizadas que por acaso podem se produzir. Enquanto uma revolução era, em muitos sentidos, um processo reflexivo – como pode ser demonstrado, por exemplo, pela relação entre o Iluminismo e a Revolução de 1789 -, estas reações de massa de hoje constituem um frágil fio de negatividade, por serem essencialmente movimentos de sobrevivência que respondem inconscientemente a uma mudança brusca das suas condições de vida, que passam a ser inviabilizadas pelo agravamento da crise. Quando finalmente Lula venceu as eleições presidenciais em 2002, não havia nenhum acenso do movimento de massas, apenas o desastre de uma década de contínuas e absurdas regressões produzidas por políticas neoliberais – que, aliás, também são uma mera reação à crise, esta, da parte do capital. Pelo visto, não há necessidade de insistir muito que nestes tempos andamos às cegas entre uma reação e outra, apenas com sinais trocados, mesmo porque, esta insistência não seria nada original e o leitor faria melhor ao recorrer à impactante imagem que Saramago produziu num de seus romances na metade dos anos 1990. Da minha parte restaria perguntar: o que esperar de Lula e do PT no governo, ao terem esta história e ao terem chegado ao poder numa conjuntura com estas tonalidades catastróficas? Talvez nada além de um governo de salvação nacional. E mesmo esta intenção somente foi salva, literalmente, por causa de uma dessas reações do capital, que Kurz chamava de fugas para frente, que são as bolhas especulativas. Entre 2003 e 2008 a economia brasileira – profundamente arruinada depois de duas décadas de crise sem saída – viveu um estranho processo de reanimação (artificial) que coincidiu com o primeiro 'trabalhador na presidência'. O quanto este fato atiçou imaginações inflacionadas que, a despeito de todas as ilusões indicadas, pensaram se tratar do início de um processo revolucionário, pode ser lamentavelmente observado nestes dois últimos anos, que antecederam o impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Esta análise parte de algumas proposições que alguns autores da – esta também, agora, extinta – tradição crítica brasileira elaboraram para entender o país pós-1964. Roberto Schwarz, por exemplo, pensou o golpe militar como parte da dinâmica – obviamente contraditória – do capital e suas determinações impostas via mercado mundial, às quais estamos umbilicalmente ligados. Num livro de ensaios dos anos 1980 (Que horas são?) ele já se perguntava se fazia algum sentido pensarmos a dinâmica mundial e local do capital como um movimento ainda dotado de força progressista – aquela mesma que um marxista tradicional conceberia como etapa necessária para se chegar ao socialismo. Quando Schwarz se deparou com O colapso da modernização de Robert Kurz, penso que o tema, tão caro às nossas ilusões objetivadas, do desenvolvimento da periferia do capitalismo, que deveria um dia nos impulsionar ao emparelhamento com os países avançados, ganhou a confirmação do que ele já andava escrevendo e intuindo. Em termos mais claros, poderia se dizer que a dialética do desenvolvimento desigual e combinado que, como dizia Trotsky, funcionava como 'um acoite para as nações atrasadas', empurrando-as para frente, estava – como dinâmica do capital mundializado – encerrada. Veja, isto não significa nenhuma abolição das desigualdades entre nações, antes o contrário. Com isso, digo apenas que a força viva que se produzia como um bloco histórico do progresso, dos direitos assegurados e da formação de uma nação com critérios básicos de civilidade – mesmo que medida pelos padrões da sociedade burguesa – se esgotou como 'horizonte de expectativas' (Paulo Arantes), perdendo sua capacidade de atração e organização de, para falar em termos do passado, um projeto nacional. Esta mudança está relacionada com o conceito de crise que Kurz (e os grupos Exit e Krisis) elaborou. Para ficar numa expressão sintética, podemos tomar a definição desta crise como o resultado do limite absoluto da lógica interna do capital. Este limite já estava em curso nos anos 1960 e tornou-se incontornável nos anos 1970 – por isso, este tempo da história do capitalismo tem sido o de uma crise sem fim. Não será difícil perceber que como um todo, a modernização está fracassada no mundo inteiro. Ela não é um background da emancipação humana, mas apenas a forma em que a valorização do valor se desenvolveu historicamente. Que dela um dia se tenha tirado a poesia das revoluções na periferia, apenas reforça o tema das ilusões objetivadas que tentei explicar acima. O que resta são sociedades conflagradas em meio a um processo inconsciente e violento de dissolução.

 

Sinal de Menos – Com a PEC 241 plenamente aprovada, quais podem ser as novas formas de "gestão da barbárie", dessa vez por um governo abertamente neoliberal e de direita conservadora, e isso sem excluir a chance de retomada do crescimento da economia?

Marildo Menegat – A gestão da barbárie que o PT realizou dificilmente será novamente possível. Ela não dependeu apenas de vontade política, mas foi produto de um acaso. Foi necessário a criação de recursos que estiveram diretamente ligados aos resultados de uma 'bolha especulativa' em torno de commodities que durou de 2003 a 2008, e depois deu um suspiro final entre 2010 e 2012. Esta bolha sucedeu em parte a bolha americana do ponto.com que tinha estourado em abril de 2001. Sua arquitetura e engrenagem nada deve ao fato de Lula e o PT estarem no governo. Ela foi um sintoma agudo do aprofundamento catastrófico da crise. O que o PT fez a partir desta contingência, se quisermos continuar falando nos termos do moderno príncipe, revela este 'virtuosismo muito particular' que eu chamo de gestão da barbárie. Em resumo, este dinheiro a mais e sem valor (Kurz) – uma fantasmagoria reduzida a mero signo, sem nenhum conteúdo real possível – que passou a circular devido a uma sobrevalorização repentina de produtos como soja, milho, açúcar, ferro, etc., em que o Brasil havia se tornado – meio por acaso, meio por necessidade – um grande exportador, tal dinheiro concedeu ao Estado uma espécie de respiração aliviada – apesar de, mesmo assim, ainda ter continuado ligado ao tubo de oxigênio – depois de anos estacionado na CTI da ruína econômica. Esta situação de acaso e necessidade explica como um tipo de mecanismo de compensação foi sendo forjado para equilibrar, em expectativas muito baixas, a balança comercial após a agressiva desindustrialização iniciada nos anos 1990. Este equilíbrio rebaixado garantiu o acesso a um fluxo de dinheiro do comércio internacional que já não viria pela exportação de produtos manufaturados e, menos ainda, por empréstimos internacionais, e que permitiu, de certa forma, a estabilização-instável de um arranjo social esdrúxulo e grotesco para dizer o mínimo – a partir da reprodução em condições cruéis de parcela cada vez menor da sociedade via financeirização. Fazer com este dinheiro a mais sem valor uma transfusão – na forma inicial de transferência de renda e, logo depois, de crédito a profusão -, injetando sangue novo na economia, foi, sem dúvida, um grande feito menor. É necessário sublinhar que as politicas de assistência foram parte desta política econômica para reanimar 'o gigante'. Formou-se um sistema de retroalimentações induzidas (para nos mantermos no significado artificial do todo) que pretendia recriar os velhos ciclos virtuosos, em que, por meio de ações anticíclicas, o motor da economia pegaria no tranco, para depois seguir em frente por suas próprias forças. Veja, fazer Lázaro se levantar da tumba não é um prodígio para qualquer um – mesmo porque andamos numa época de baixas também nos milagres. A combinação de transferência de renda, aumentos reais do salário mínimo, aquecimento do mercado interno de consumo e de trabalho e grandes investimentos em infraestrutura (PAC-I, PAC-II, Petrobras, financiamentos do BNDES...) criaram uma ilusão objetivada de que nunca antes se vira algo igual. Mas estes mecanismos de bolha são de fato perversos, pois, quando seus protagonistas julgam estar em alto mar de vento em popa exclusivamente por seus próprios méritos, justo neste momento advêm o pior – e, como não é possível correr nestas horas para um porto seguro, resta o naufrágio.

A PEC 241 é a regulamentação do acesso aos botes salva vidas. Como não há botes para todos, ela pretende definir quem se salva e quem morre afogado – algo semelhante ao que ocorre com os navios precários de imigrantes africanos que naufragam semana sim semana não no Mediterrâneo. Isso será o que você chamou de 'novas formas de gestão da barbárie'. O que vale a pena perceber é a ideia geral da lei proposta – lembrando que lei é uma medida, um metrum regulador das práticas sociais. Nas atuais condições da crise do capitalismo, prever gastos por 20 anos é um monumento à imbecilidade – seus propositores fazem de tudo para o merecer. Este nível de previsibilidade é impossível, muito provavelmente os valores absolutos das verbas agora congeladas serão insustentáveis daqui há poucos anos, pela razão inversa do que se imagina, ou seja, simplesmente porque a crise terá quebrado o governo federal. Nem estes valores ele será capaz de honrar. Desse modo, poderíamos fazer uma pergunta: se isso que digo é um segredo de Polichinelo, pois qualquer operador bisonho de corretora de bolsa de valores o sabe, por que insistir numa lei tão absurda – com todo o confronto social e desgaste que ela produz? A questão talvez esteja no que anda oculto na sua pretensão. Ela deve induzir uma ampla regressão como nova base do que alguns teóricos clássicos um dia chamaram de contrato social. Nas justificativas da lei se pode ler que seu objetivo é daqui a 20 anos (2036) voltarmos à situação fiscal de 2004. Não será difícil conseguir bronze para a forja do monumento. Qualquer um pode entender que se trata de grandezas absolutamente antagônicas: a população do país em 2036 será maior, e não igual a de 2004. Mesmo hoje o país já não caberia neste orçamento – metrum. Mais pessoas, menos dinheiro... Há, no entanto, uma premonição nisso tudo. Ela é o sentimento inverso do que um dia foi produzido pelo 'desenvolvimento desigual e combinado'. Este, como sabemos, era uma ilusão objetivada em torno da qual se formavam blocos históricos progressista que formulavam medidas de nação em que todos indivíduos deveriam caber. Agora, o bloco histórico da crueldade (Paulo Arantes) se forma em cima do mais deslavado darwinismo social – a lei da selva legitimando a seleção dos mais fortes economicamente diante do extermínio dos mais fracos. Em outras palavras, a frieza de como se pisa sobre cadáveres para entrar num bote salva vidas em pleno naufrágio – e esta é apenas a medida da desumanalidade que 'cimenta' as práticas competitivas que são necessárias para se levar adiante o capitalismo. Barbárie. E isto não é um adjetivo ou recurso retórico, mas o conceito apropriado para explicar a tentativa de estabilização desta sociedade (em desmoronamento) num tempo em que o conteúdo social já não pode mais se realizar por meio desta forma social. É o extermínio em massa de seres humanos que sobram segundo a lógica de uma sociedade produtora de mercadorias em crise estrutural – e, desde a experiência dos campos de concentração e das bombas atômicas, para esta sociedade governada por uma espécie de 'sujeito automático' (cego), não há limites destrutivos, mas apenas novas modalidades de destruição.

 

Sinal de Menos – Como foi possível se formar uma consciência radicalmente antipetista, antiestado e contrária aos direitos sociais, centrada na fé no mercado e na individualização, não apenas entre os setores mais ricos ou a classe média, mas entre entre os mais pobres? Ou será impressão ideológica nossa?

Marildo Menegat – Sempre existiu um antipetismo radical no Brasil. Em Porto Alegre ou São Paulo, por exemplo, isto já era uma força atuante visível desde os anos 2000. Ele se tornou agora uma força nacional organizada, unificada e, por isso, majoritária porque houve uma cuidadosa construção destas posições a partir dos erros inevitáveis que uma gestão da barbárie produziria. O antipetismo é, neste sentido, o amuleto da nova direita. Esta não é exatamente o mesmo que as formas anteriores da direita. Ela não é a velha direita conservadora que defendia a preservação dos laços de dominação aparentemente pessoais de uma sociedade tradicional ameaçada pelas forças modernizadoras urbano-industriais. Tampouco pode ser reduzida ao conceito da direita nazifascista, que explica bem a reação à crise do capitalismo nos anos 1920-50. A nova direita é a primeira formulação de direita predominantemente americana e é, em diversos aspectos, um fenômeno pior que todas as versões anteriores juntas. Nós estamos presenciando o nascimento da serpente cujos feitos ainda são modestos, mas prometem não deixar pedra sobre pedra. O aspecto novo essencial que a caracteriza é uma mentalidade fundamentalista (portanto, intransigente) em torno da qual se cria um tipo de crença laica de defesa entusiástica das categorias que constituem esta modalidade de sociedade governada inconscientemente pela lei do valor, e que é a razão do estado destrutivo em que vivemos. É a seita do fim do mundo. Num de seus ensaios, Roswitha Scholz mostra como há uma relação estruturante entre a forma valor e a constituição social e histórica do poder masculino. Um é o outro, diz ela. O resultado da globalização foi o inverso de sua propaganda, e as perdas que impôs mundo afora produziu uma massa de homens brancos ofendidos e ressentidos por sua violenta e repentina impotência social. A ofensa decorre desta humilhação do falo, cuja potência no período anterior retirava sua força da cultura fundada no poder que a forma valor empresta às personificações sociais. Este homem branco é o próprio sujeito assujeitado que a lei geral constituinte da realidade da sociedade necessita para se reproduzir. Como estamos em meio a uma crise generalizada do capitalismo, em que na raiz desta crise está o limite lógico que impede de se continuar produzindo novas quantidades de valor e que, por seu turno – e contraditoriamente – esta produção é a condição incontornável de existência do todo e sua dinâmica, não há como o homem branco não ser (e se sentir profundamente) humilhado. Portanto, a crise do capitalismo é também a crise do moderno patriarcado. É uma revolta por direitos hereditários – enfim, o mundo não lhes pertence? Os protagonistas do Brexit, os eleitores de Marine Le Pen, de Bolsonaro, de Trump, todos têm esta cicatriz – esta falha de caráter! – em comum. Por isso vociferam, urram como feras embriagadas que querem de volta suas jaulas – elas ao menos lhes davam um sentido seguro às suas vidas. Se não forem o centro de tudo, a razão última de todas as coisas – em síntese, a personificação sexual do poder social da lei do valor – o mundo não merece continuar existindo. Mais uma vez, na história do capitalismo, a pulsão de morte se organizou politicamente.

O que os move é uma fantasmagoria ideológica (Kurz). Eles pretendem sustentar como existentes formas (isto que Postone chama de categorias apriorísticas fundantes desta realidade metafísica, porém, real, como o valor, o dinheiro, o trabalho...) que já estão socialmente mortas. Uma das razões pelas quais Marx se interessava pelas categorias da economia política, era o fato destas representarem formas reais de existência (Daseinform) às quais os indivíduos eram submetidos coativamente. A sua crítica não se voltava para denunciar um problema meramente econômico, derivado de uma injusta reparação dos esforços produtivos de cada um, mas uma crítica ao próprio modo de existir que estas categorias impunham como reles imperativo da sobrevivência. A liberdade de escolha no capitalismo é uma falsa consciência das contingências – como Spinoza há muito percebeu. Portanto, as fantasmagorias são projeções do não-mais, uma espécie de melancolia do presente cuja realização do luto colocaria esta ordem de pernas para o ar. Observe a loucura: o apego a estas práticas sociais determinadas pelas categorias apriorísticas constitutivas deste real impedem a liberdade – ou melhor, impedem a emancipação – e, ao mesmo tempo, torna o fim do mundo (sua destruição) cada vez mais próxima ao real. Um presente que já não existe e um luto inviável se parece a uma tortura, literalmente: um ser em torção. Quem não tem sentido vertigens nesses tempos é porque já está morto! Um realismo sem realidade e uma existência des-existente podem se assemelhar a luz no firmamento de uma estrela apagada. O problema é que criamos a possibilidade de re-esquentar, por meio de bombas nucleares, este pedaço de estrela fria que formou a terra há bilhões de anos. Talvez esta – se não mudarmos radicalmente o curso das coisas – seja a última luz que emitiremos ao universo, e seu reflexo será o resultado de uma fantasmagoria ideológica de uma espécie que um dia quase foi um ser inteligente, mas que, ao fim, se autodestruiu.

 

Sinal de Menos – O melhor marxismo sempre centrou sua crítica no modo de produção, no meio cego da forma valor, ao invés da distribuição. O que temos para o momento no entanto parece-nos uma esquerda que mais ou menos perdeu o bom combate na teoria e na prática, querendo participar cada vez mais da "gestão da barbárie". Por outro lado, a distribuição nunca foi tão questionada socialmente como agora. Um salto a partir desse questionamento social da distribuição em direção à forma do valor e do mais-valor é possível? Como fazer esse salto?

Marildo Menegat – Não sei. Por certo você concorda com Postone quando este chama o marxismo 'que temos hoje' de marxismo tradicional. A capacidade crítica que dele um dia irradiou se extinguiu. A razão de tal feito, como já comentei acima, era o limite da própria crítica. Ela não se opunha ao modo de produção e ao 'meio cego da forma valor', mas apenas à injustiça da distribuição. Claro, num tempo em que o desemprego é estrutural, e a maioria da humanidade vive em cidades cuja única política consistente de produção de moradias é a favelização (Davis), reclamar por um pedaço de pão e um buraco para morar, sem se esquecer do direito a um sacrifício diário assalariado, tem a força de nos deixar diante da soleira do impossível. Mas pão e manteiga para todos é um acontecimento impossível no capitalismo, por isso, não há impulso capaz do salto que você sugere. A própria realização da ideia da troca justa é logicamente incompatível com um regime fundado na concorrência. Uma ilusão, mesmo que generosa. Tem sido muito difícil explicar isto, mas não existe outro caminho senão explicar. Em algum momento, práticas que não sejam parte do problema, como o são estas que comummente a esquerda tradicional propõe diante do aprofundamento da crise (a gestão da barbárie, por exemplo), talvez se tornem viáveis – e isso pode representar que para muitos ficou possível decifrar o monstro: ou produzimos outras formas de sociabilidade, não mediadas pela mercadoria e o dinheiro ou…

 

Sinal de Menos – A que temas específicos você tem se dedicado nos últimos anos em sua pesquisa e que campos novos de crítica se abrirão para quem quiser contribuir para a crítica social responsável?

Marildo Menegat – Anda muito difícil a produção de uma teoria crítica hoje. Em geral, a teoria foi capturada pela indústria cultural, com seus eventos, instituições (como universidades, revistas) e personalidades narcísicas que pouco agregam etc. Além disso, a crítica não goza de muito respeito entre nossos pares teóricos. Uma hipótese para isso pode ser que, pelo fato de na atual situação histórica a produção do negativo precisar ser radical e sem tréguas, isso possa parecer algo irresponsável. Contudo, a crítica que não abala certezas e não tem a contundência de um martelo demolidor não faz sequer cócegas ao estado de coisas calamitoso em que ingressamos. Ela não pode ter qualquer responsabilidade com a sustentação desta ordem se quiser ajudar a mantermos alguma esperança de que haverá futuro.

 

Publicada na revista Sinal de Menos n°12, vol. 2, Março de 2018

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