Richard Aabromeit

 

UMA CRÍTICA SEM VALOR?

 

O teste de Michael Wendl

 

 

 

“Basta de ser tudo jogos de crianças,

eu percebo de jogos de crianças”

(Elisabeth Borchers)

 

O que têm em comum Michel Aglietta, Sir John Maynard Keynes, Joseph Alois Schumpeter, Friedrich August von Hayek, Lucas Zeise e Michael Henrich (e ainda algumas outras “teorias” modernas e pós-modernas, como o pós-operaísmo)? Postos à prova da crítica da dissociação-valor e da análise radical da crise dela resultante, a resposta é muito simples: cada um deles pode esclarecer e descrever empiricamente, com mais ou menos acerto, alguns aspectos da actual crise económica, financeira, social, cultural e de qualquer tipo, bem como lançar sugestões mais ou menos úteis em público e particularmente na discussão académica – mas todos eles acabam por conseguir muito pouco explicá-los e classificá-los em termos categoriais, porque, embora dispondo realmente de inúmeros modelos e métodos, bem como de extenso material estatístico, faltam-lhes em grande parte os conceitos ou as categorias adequadas! Se esse é também o caso de Michael Wendl e se, portanto, ele deve ser classificado na série acima ou não, esse é o nosso tema. O que todos os participantes no debate da crise também têm em comum é que eles gostam muito de se acusar uns aos outros, e por vezes até com graça, desta incapacidade, objectivamente ou por vezes subjectivamente – talvez nós queiramos aqui juntar-nos a eles...

 

O mainstream das posições que neste contexto de algum modo se relacionam hoje com Karl Marx na interpretação e explicação da actual situação de crise parte do princípio de que há alguns anos (quantos anos exactamente difere de autor/a para autor/a de forma significativa) terão ocorrido mudanças sérias na nossa formação social capitalista. Em particular, assume-se que o “sector financeiro”, ou seja, os bancos centrais, bancos comerciais e de investimento, companhias de seguros, hedge funds etc. teriam mudado qualitativamente e estariam agora a passar por um aumento substancial de poder e de importância, chegando-se à tese de que há mais de vinte anos “a acumulação industrial [está] sob o domínio dos mercados financeiros” (Bischoff / Lieber, 2013: 161). O presente escrito toma posição neste contexto sobre os artigos de Michael Wendl na revista Sozialimus (especialmente na edição de 3/2014: Ein Marxismus ohne Wert? [Um marxismo sem o valor?], de seguida citado como S3/14, mas também na edição 6/2014: Säkulare Stagnation oder Schieflage der Verteilungspolitik? [Estagnação secular ou desequilíbrio da política de distribuição?] de seguida citado como S6/14) e por último mas não menos importante sobre o seu livro Machttheorie oder Werttheorie [Teoria do poder ou teoria do valor] (Hamburgo, 2013).

 

No primeiro artigo citado da Sozialimus (S3/14) Wendl confronta-se criticamente sobretudo com dois livros recentes: um deles é a Apologie von links – Zur Kritik gängiger linker Krisentheorien [Apologia da esquerda. Para a crítica das teorias da crise habituais da esquerda] (Colónia / Karlsruhe, 2013) escrito por dois dos representantes próximos da IV Internacional (ou seja, Ernest Mandel, entre outros), Guenther Sandleben e Jacob Schaefer, e o segundo, o texto de Wolfgang Krumbein e outros Finanzmarktkapitalismus? Zur Kritik einer gängigen Kriseninterpretation und Zeitdiagnose [Capitalismo de mercado financeiro? Para a crítica da interpretação da crise e do diagnóstico do tempo habituais] (Marburg, 2014). Estes dois livros – como o próprio Wendl também – viram-se contra interpretações simplistas da crise do lado da esquerda (mas também da direita), que atribuem a um qualquer tipo de capitalismo de mercado financeiro um papel agora dominante no jogo da economia, da ecologia, da política, etc. Wendl pretende (sobretudo) “pôr à prova” estas duas posições, e aproveita-as “por sua vez como uma oportunidade para questionar, com recurso à teoria do valor de Marx, as motivações de uma supremacia dos mercados financeiros e das teorias da crise neles baseadas” (S3/14: 42). No seu livro “Machttheorie oder Werttheorie. Die Wiederkehr eines einfachen Marxismus [Teoria do poder ou teoria do valor. O retorno de um marxismo simples]” (Hamburgo, 2013) Wendl evidencia, nomeadamente, que “com uma falsa distinção entre economia real e economia financeira” (Wendl, 2013: 76) se chegou a uma “demonização dos mercados financeiros” (ibid.: 74). Quanto a Krumbein et al., no entanto, é preciso ter em conta que eles pretendem e conseguem opor-se aos defensores de uma dominância do sector financeiro somente – e também apenas – ao nível da empiria e da econometria, bem como da metodologia científica. Em Sandleben / Schäfer, como era de esperar, a crítica vai mais fundo. A questão, no entanto,não deverá ser em primeiro lugar investigar criticamente as afirmações isoladas de Sandleben / Schäfer e Krumbein et al.; mais que isso, o presente trabalho deve ilustrar os déficits que o “teste” do próprio Wendl apresenta ao tentar contrapor aos/às representantes de um “marxismo simples” concepções alternativas e melhores. Deve ser demonstrado, em particular, que o seu conceito de valor e, consequentemente, a sua análise da crise (se alguma vez formulada, ou pelo menos esboçada) não são apropriados para criticar de forma adequada ou exaustiva as posições neo-marxistas ou mandelistas – na verdade os seus argumentos, certamente para seu desagrado, apresentam mesmo semelhanças com os pontos de vista por ele criticados – apesar das inúmeras aproximações a uma compreensão mais profunda da situação social actual. Antes de chegarmos aos pontos críticos, não devemos deixar de apontar também as passagens de Wendl que em nossa opinião devem ser apoiadas.

 

A simples rejeição da tese agora demasiado facilmente adoptada por muitas pessoas e autores/as críticos/as do “capitalismo financeiramente induzido” (qualquer que ele seja) já o liga com a posição aqui defendida. E também pode merecer concordância a sua observação crítica de que Rosa Luxemburgo “ [sucumbe a] um entendimento erróneo dos chamados esquemas da reprodução desenvolvidos por Marx no Livro 2 de O Capital” (Wendl, 2013: 46), quando ela fala da necessidade de uma “colonização” exterior (l. c.). Tais afirmações influenciaram bastante evidentemente, de modo nada vantajoso, textos de Klaus Dörre (por exemplo, 2009) e outros que trouxeram novamente a debate este teorema da colonização – mas agora virada para dentro. Também a chamada de atenção de Wendl de que a alegação de domínio do sector financeiro pressupõe que o predominante já não são dados objectivos, mas puro exercício do poder por grandes empresas, sociedades financeiras e suas elites, merecem desde logo a nossa concordância. Assim se vai “de uma teoria do valor para uma teoria do poder” (Ibid.: 48), o que sem dúvida devemos criticar juntos. Por último queremos ainda chamar a atenção para a afirmação de que, no contexto de um debate político meramente interno na Alemanha, “esta redução de direitos ao salário social através da reforma da garantia legal de rendimento e do estabelecimento de um rendimento adicional coberto por capital (...) e a valorização a isso associada das pensões de velhice de base empresarial (...) [pode] com razão ser criticada a partir de uma perspectiva de política macroeconómica e de distribuição, mas não é nem uma colonização, nem a redistribuição de direitos sociais legais” (ibid.: 54), com o que Wendl consegue, com base na sua longa experiência como funcionário sindical, relativizar chavões políticos actuais provenientes da esquerda.

 

Na verdade, podem ser mencionados mais alguns detalhes que poderiam demonstrar congruências na avaliação das actuais manifestações de crise; mas isso seria ir além do escopo desta réplica. Portanto, de seguida vamos ilustrar os principais pontos merecedores de crítica.

 

 

Crise como coisa sexualmente neutra?

 

Como primeiro ponto a criticar, que já é quase penoso mencionar, é preciso chamar a atenção para a ausência de qualquer referência à sexualidade, de qualque índole que seja, em praticamente todas as tentativas de explicar, ou pelo menos descrever, os fenómenos da actual crise. Isto é válido em primeiro lugar para Wendl, mas infelizmente para a grande maioria de todos os outros autores/as que se pronunciaram sobre a questão da crise recentemente. A maioria dos textos por nós conhecidos cobre com mais ou menos com sucesso topoi tais como dinheiro, valor, acumulação, capital (por exemplo, “capital real” versus “capital financeiro”), crise do euro, etc, e também globalização, crise cultural, etc – mas quase nunca ocorre a estes autores, por mais críticos que sejam, que na análise da crise também se poderia ir à sexualidade e a todas as suas implicações no domínio privado e público. Mas já há muito tempo que Roswitha Scholz fez notar que “O conjunto do relacionamento social no capitalismo, contudo, não se determina somente pelo automovimento fetichista do dinheiro e pelo carácter de fim em si do trabalho abstracto. Pelo contrário, verifica-se uma ‘dissociação’ especificada sexualmente, mediada dialecticamente com o valor. O dissociado não é nenhum simples ‘sub-sistema’ desta forma (como por exemplo o comércio externo, o sistema jurídico ou até a política), mas é essencial e constitutivo da relação social total.” (Scholz, 2000/2011: 21) – portanto também para a teoria da crise! Tornasse-se Wendl (e a maioria dos outros, especialmente masculinos “naturalmente”) um dos autores a pensar mais sobre isto! Mas a observação feita por Wendl ao autor, perante uma pergunta sobre o assunto, de que ele argumentava num nível completamente diferente, no qual a sexualidade ainda (sic) não surgiria, não pode augurar nada de bom.

 

Com base em três citações ligeiramente mais longas de textos de Wendl vamos agora fundamentar adicionalmente de duas maneiras diferentes: primeiro, que com a recepção insuficiente e sem um desenvolvimento adequado da crítica da economia política de Marx as actuais tentativas de explicação da crise que se referem apenas a dados empíricos e minúcias metodológicas (incluindo uma aversão sobretudo emocional contra diferentes manifestações de crise bastante desumanas) não pode ser classificada como significativa; e, segundo, que no final fica apenas novamente a invocação do Estado como opção de acção, o que também leva a que, intencionalmente ou não, as posições de estratégias estatistas de poder e de organização sejam consideradas inofensivas ou mesmo reforçadas, embora devessem ser criticadas.

 

Será o valor coisa nacional?

 

Aqui está a primeira citação, em que Wendl alega que a lei do valor é uma questão nacional e não globalmente válida; assim, no seu artigo em S3/14 ele argumenta contra aqueles para quem o poder dos que agem localmente se terá tornado superior por meio de actividades financeiras a nível mundial contra os que actuam localmente mais na “economia real”: “Na década de 1970 e início de 1980, a questão de saber se a ‘lei do valor’ tem uma base nacional ou internacional levou a uma controvérsia no interior do marxismo. Decisivo para responder a esta pergunta é a constituição do valor nacional na base do preço e, portanto, da forma do dinheiro. A moeda nacional e, assim, as taxas de câmbio são fundamentais para a formação e fixação do valor das mercadorias produzidas e, portanto, a idéia de uma formação internacional do valor é insustentável numa economia mundial determinada por moedas nacionais. A grave crise da União Monetária Europeia e do processo de integração europeia demonstra de forma impressionante que ainda temos de nos haver com capitalismos nacionais e que, nesta união monetária, se chega tanto a desvalorizações reais quanto a valorizações reais das várias mercadorias nacionais nos processos de troca denominados em euros e que assim se escondem diferentes produtividades dos trabalhos nacionais. A partir desta perspectiva não se pode falar de uma internacionalização da lei do valor” (S3/14: 43 sg). Para pôr fim à confusão sobre esta questão, devemos em primeiro lugar esclarecer como o valor realmente se forma – e voltaremos a isso. Aqui, antes de mais, apenas isto: ele não surge na esfera da circulação ou da realização do capital, mas já na produção; ele também é desde logo um conceito da totalidade social e não se pode desenvolver primeiro na mercadoria individual. Importante aqui é a necessidade de distinguir nesta matéria entre a conceptualidade relativa ao conjunto da sociedade justamente deste valor, por um lado, e sua forma de manifestação concreta ou forma de expressão – como dinheiro – para o capital individual ou para os correspondentes agentes no mercado e na política, ou seja, para as “máscaras de caráter” (Marx), por outro lado. Estamos interessados, então, em primeiro lugar, nas áreas de actividade e possibilidades de acção desses agentes. É bastante exasperante que essa distinção ainda hoje tenha de continuar a ser enfatizada ao máximo de detalhes entre marxistas e isso deve-se provavelmente ao facto de muitos desses/as teóricos/as estarem muito vinculados a contextos de discussão académicos ou sindicais ou dos movimentos, onde o trabalho de pensamento conceptual e categorial é repetidamente perturbado ou está (por vezes totalmente) impedido. Aí normalmente o pensamento modelar ou empírico (academia) ou o pensamento dos interesses (sindicatos) ou o pensamento da luta (movimentos sociais) ainda (ou novamente) desempenha um papel mais importante do que o desenvolvimento de conceitos com o objectivo da crítica (categorial)!

 

Mas, voltando à questão de saber se no contexto da lei do valor estamos perante uma base nacional ou global. Pelo menos em duas passagens já Marx assinala que o capital pressupõe empírica e conceptualmente o mercado mundial. “Os fenómenos que estudamos neste capítulo [entre outros o aumento do valor e a desvalorização, R.A.], pressupõem para o seu pleno desenvolvimento o sistema de crédito e a concorrência no mercado mundial que aliás constitui a base e a atmosfera vital do modo de produção capitalista” (MEW 25: 120), escreve ele no Livro Terceiro de O Capital; e já antes nos Grundrisse: “A tendência para criar o mercado mundial está diretamente dada no próprio conceito de capital. Cada limite aparece como uma barreira a ser superada” (MEW 42: 321; destaque no original). E em Robert Kurz diz-se: “De acordo com o seu conceito, o campo de acção económico-social do capital não tem limites, as únicas barreiras são as possibilidades técnicas (e também militares da polícia mundial) de acesso.” (Kurz, 2005: 36). O plano dos conceitos, no qual é preciso compreender e criticar o contexto geral, ou seja, a totalidade, tem de ser distinguido da empiria, dos acontecimentos concretos, e portando também dos campos de acção e das possibilidades de acção dos órgãos do Estado, dos capitais individuais, dos indivíduos com as suas associações, etc. Estes dois planos estão realmente interligados; no entanto, para a sua compreensão e epistemicamente, eles têm de ser primeiro separados mentalmente. No último plano sucedem também as políticas monetárias e financeiras dos bancos centrais, dos bancos privados e dos governos. Se a pergunta inicial tivesse sido: onde são tomadas as mais importantes decisões de política monetária e financeira, à escala nacional ou global? – então ainda hoje a resposta teria de ser: numa parte substancial continuam a ser tomadas na primeira, uma vez que os poderes executivos globais (apesar do Empire postulado por Hardt/Negri) continuam a ser muito limitados em termos de capacidade de acção e de imposição. Basta comparar a eficácia das medidas do BCE ou da Fed com as decisões do FMI, do BIS, ou até mesmo das agências da ONU; também neste ponto é preciso dar razão a Wendl, pelo menos parcialmente, quando ele diz: “A grave crise da União Monetária Europeia e do processo de integração europeia demonstra concludentemente que ainda temos que nos haver com capitalismos nacionais e que nesta união monetária ocorrem tanto valorizações reais como desvalorizações reais das diversas mercadorias nacionais (...)” (S3/14: 44). Ora, a pergunta original visava a problemática do valor e não a do dinheiro. A diferença entre os potenciais de acção e as estratégias reais de acção sob o ditame da concorrência universal, por um lado, bem como entre a análise ou crítica conceptual e categorial, por outro, é a que existe entre “teoria e práxis”, como tanto gostam de destacar os/as chamados/as activistas. É verdade que o abandono da empiria é punido com o risco heurístico de uma fantasmagoria, mas, inversamente, a ignorância do plano conceptual-categorial permanece sempre numa abordagem superficial ou numa falsa e incompreendida percepção da realidade ou perplexidade perante ela. Há muitos anos – basicamente desde a conclusão da fase de constituição do capitalismo (cf. Kurz, 2012: 135 sg.) por volta do final do século XVIII – que os capitais individuais exigem o mercado mundial. O facto de este processo não estar realmente concluído, mesmo na época de hoje da globalização, não diz nada sobre o facto de o mundo, ou seja, verdadeiramente, todo o universo, ser um pré-requisito para a compreensão da totalidade do capitalismo; particularmente o movimento do “sujeito automático”, ou seja, da valorização do valor só pode ser localizado aí. Caso contrário, haveria capitalismos fundamental e categorialmente diferentes ou mesmo várias formações sociais a diferenciar localmente do capitalismo à face da Terra – o que per se o capital não permitiria nem poderia permitir.

 

É verdade que deve ficar claro que a lei do valor tem de ser pensada conceptualmente apenas em conjunto com o mercado mundial; no entanto, a questão de saber se temos perante nós uma nova qualidade de capitalismo, nomeadamente um capitalismo dominado pelos mercados financeiros, não fica respondida com isso. Uma vez que nem os bancos, nem as empresas, e nem mesmo os governos ou outras instituições políticas e estatais compreendem o que se passa nas suas costas, também não tentam influenciá-lo. Pelo contrário, desde o início da chamada crise financeira de 2007 eles tomaram repetidamente medidas que assentam sempre nos problemas financeiros e monetários, mas ignoram completamente os movimentos e a produção de riqueza abstracta, ou seja, de valor. Assim, embora se tenha conseguido de algum modo evitar por agora um colapso do sistema monetário internacional, no entanto as verdadeiras causas dos fenómenos de crise actuais permaneceram completamente intocadas, significando todas as medidas na melhor das hipóteses o adiamento da “grande confusão”, mas não sendo minimamente combatidos os pressupostos de futuras crises. Pode, portanto, ser concedido aos adeptos da teoria do “capitalismo financeiramente induzido” que, no que respeita a gestão de crédito, criação de objectos de especulação, domínio e controle da oferta de moeda e, não em último lugar, movimento de enormes quantidades de capital fictício, o referido capital monetário e financeiro se apropriou de um poder considerável nos últimos trinta anos, que antes (por exemplo, nos tempos de Rudolf Hilferding ou mesmo até na década de 1970) nunca tinha atingido tais proporções. Só que: isso aplicou-se apenas aos fenómenos empíricos, como por exemplo inflação, formação de bolhas financeiras, controlo da massa monetária, confiança na concessão de crédito e, não em último lugar, a deslocação de enormes quantidades de dinheiro, valores mobiliários, derivados, etc. Se considerarmos os movimentos (ou não-movimentos) de valores – não propriamente valores de uso e seus preços – estes ficam quase completamente intocados por todos esses esforços, uma vez que o valor como coisa real-abstracta aponta para uma realidade social, mas é claro que não pode ser detectado empírica ou estatisticamente.

 

Registe-se: no plano empírico dos capitais individuais e das suas associações regionais, bem como das acções e decisões concretas das instituições políticas e económicas, o estabelecimento de um contexto global ou mercado mundial ainda não chegou ao fim da sua implantação; mas, uma vez que o capital, de acordo com o seu conceito, desde o início só pode ser entendido globalmente, a afirmação de Wendl de que “[não se pode] falar (...) de uma internacionalização da lei do valor” (S3/14: 44) tem de ser relativizada.

 

De onde vem o valor...

 

Vamos agora à segunda citação, que se refere ao local de produção do valor: “A crítica neo-marxista da teoria monetária do valor baseia-se num entendimento do valor das mercadorias como valor-trabalho fixado já antes do processo de troca e, portanto, antes da forma-dinheiro e do papel do dinheiro no processo de troca. Este equívoco também caracteriza a crítica de Ladislau von Bortkiewicz, o mais importante crítico do chamado problema da transformação, que partia da ideia de que no capitalismo, para além do sistema de preços, quase num nível de abstracção abaixo, existe ainda uma relação entre os proprietários de mercadorias e as suas mercadorias, designadamente a relação dos valores de trabalho pressupostos para o processo de troca, que surgiram na produção e portanto já existem antes da troca. Ora só há determinação do valor ao nível do processo de troca, antes não existe” (S3/14: 46 sg., destaque no original). Não é fácil aguentar isto! Assim, o valor não ocorreria na produção, mas apenas na troca. “Como valores as mercadorias não são senão trabalho cristalizado.” (Marx 1983/1867: 4, destaque no original). Onde é que este trabalho deve ser prestado – na esfera da circulação ou da realização – ou não será já já na produção? “Consideremos agora o resíduo dos produtos do trabalho. Nada restou deles a não ser a mesma objectividade fantasmagórica, uma simples gelatina de trabalho humano indiferenciado, isto é, do dispêndio de força de trabalho humano, sem consideração pela forma como foi despendida. O que essas coisas ainda representam é apenas que em sua produção foi despendida força de trabalho humano, foi acumulado trabalho humano. Como cristalizações dessa substância social comum a todas elas, são elas valores – valores mercantis.” (MEW 23: 52). Entre outras coisas, a orientação cega para a chamada esfera da circulação e da troca que no caso acontece já levaram Horkheimer e Adorno por vezes a um pessimismo totalmente desnecessário! Se o trabalho abstracto é a substância do valor, então é óbvio que esta substância é produzida na produção, porque em outro lugar não é prestado qualquer trabalho abstracto. Mas, se o valor das mercadorias surge no processo de produção, e se este valor na esfera da realização, ou seja, lá onde o capital sob a forma de capital-mercadoria é novamente transformado em capital monetário (cf. MEW 24: 43ff) e, assim, o valor é realizado e revela-se como bem-sucedido ou falhado, então é claro que aí, onde a expressão do valor, o dinheiro, se move, só podem ocorrer formas de movimento derivadas, por isso mesmo, no entanto, empiricamente detectáveis. Com isto não é simples explicar aos/às teóricos/as de um capitalismo financeiramente induzido que eles não tiveram em consideração a teoria do valor ou não a entenderam. Asim também Wendl diz que o dinheiro já seria valor em si: “A moeda nacional e, assim, as taxas de câmbio são fundamentais para a formação e estabelecimento do valor das mercadorias produzidas...” (S3/14: 43). Assim alinha ele com elegância no grande grupo daqueles que confundem constantemente os valores de uso (os corpos das mercadorias) e os seus preços alcançados na esfera da realização, ou seja, os resultados do trabalho concreto e sua forma equivalente, com os valores, isto é, com os resultados do trabalho abstracto! Também não é assim tão simples reconhecer, dadas as enormes montanhas de mercadorias sempre em repetido e rápido crescimento, que o número estatisticamente determinável destas quantidades de mercadorias não diz nada sobre a quantidade de valor que está nelas – na verdade, passa-se o contrário: quanto mais mercadorias são produzidas por unidade de tempo, devido ao aumento da produtividade do trabalho, tanto menos valor existe nelas, esse é que é o caso; e para a massa de valor social total só não valeria o mesmo se simultaneamente fossem aplicadas mais forças de trabalho produtivamente activas de forma capitalista, ou seja, valorizando o valor. No entanto, gostaríamos de acreditar que uma tal confusão deve ser a excepção no caso de marxistas exigentes. Não pode deixar de se mencionar neste ponto que Wendl também dispõe da capacidade de mudança, vulgo eclectismo, uma vez que é bastante claro que o seu conceito de valor é bastante esguio; Assim aponta ele afirmativamente para Marx: “Para Marx não se trata (...) da procura de mercadorias, mas de expor porque não pode ser criado qualquer valor na esfera da troca de mercadorias e porque se torna necessária para o efeito uma mercadoria especial, ou seja, a força de trabalho...” (Wendl, 2013: 40). Com estas definições contraditórias de um dos mais importantes conceitos da crítica da economia política, é um pouco penoso argumentar com sucesso contra representantes de posições não marxistas ou “neo”-marxistas.

 

Como resultado intermédio pode constatar-se que Wendl não vê o enquadramento conceptual da formação do valor a nível de todo o mundo, e que coloca a origem do valor no chamado plano da circulação, em vez de o localizar na produção. Assim se coloca ele muito perto dos pontos de vista por ele imensamente criticados, segundo os quais também estão em primeiro plano os interesses nacionais do capital e as análises e exigências que visam a esfera da circulação.

 

O velho problema das esquerdas: o estatismo!

 

Como já foi indicado acima, essas deficiências conceituais sem mais mediações têm com resultado a invocação dos poderes de controlo do Estado e das forças políticas próximas dos sindicatos, dado que apenas se toma em atenção a superfície das relações sociais, como se pode reconhecer bem claramente na terceira citação: “Se fizermos o balanço político dos tempos após a crise económica internacional de meados dos anos 1970 em termos políticos, encontramos em reacção à (...) estagflação (...) de então uma cadeia de decisões políticas que visaram a desregulamentação política dos mercados financeiros, a eliminação dos controlos dos movimentos de capitais, uma política monetária cada vez mais restritiva dos bancos centrais, em particular o Banco Federal Alemão, e uma política de redução de impostos directos, principalmente sobre as empresas, as quais também puderam ser aplicadas com sucesso na maioria dos casos. É uma cadeia e uma acumulação de decisões erradas do ponto de vista macro-económico na política económica em geral, na política fiscal, mas também na política monetária, e em particular na política salarial e na política social, mesmo que estes processos e seus resultados tivessem de ser distinguidos de forma muito precisa de nação para nação. Piketty, na situação actual, aponta novamente para a necessidade de intervenções de política fiscal, o que vem atrasado, porque estamos actualmente confrontados com os limites de uma política monetária expansionista dos bancos centrais. Esta necessidade de um novo intervencionismo estatal é no fundo afastada, quando se argumenta mais com o título da estagnação secular de forma bastante fundamentalista” (S6/14: 67). Também no seu novo livro Wendl não abandona esta posição estatista: “Na ordem do dia está a regulação política dos mercados financeiros e aqui especialmente dos bancos comerciais. A sua capacidade de criação de dinheiro de giro através da concessão de crédito tem de ser efectivamente restringida” (Wendl, 2013: 93). Com tais exigências, admita-se francamente, poderão certamente ser alcançadas a curto prazo melhorias na situação dos pequenos aforradores/as, contribuintes, e mesmo para os empregados/as assalariados/as. Além disso as actividades das instituições financeiras poderiam ser temporariamente mantidas sob controlo. Mas o que continuaria a não ter lugar sistematicamente seria o atingir das causas fundamentais da crise.

 

O limite interno

 

Neste ponto, há que referir ainda com a necessária brevidade uma outra deficiência mais grave de Wendl, que tem ligação com a teoria da crise – que nele não aparece ou é apenas rudimentar. Tal teoria da crise suficientemente profunda e não se referindo apenas ao material empírico, no entanto, é uma conditio sine qua non para a compreensão das estratégias sociais dos vários grupos e facções na política, na economia etc. actualmente visíveis. Trata-se de dois conceitos centrais em Marx, por um lado, a “contradição em processo” e, intimamente ligado com ela, o “limite interno” do capital. Ambos os conceitos estão completamente ausentes em Wendl e assim ele fica impedido de ver os momentos fundamentais das manifestações de crise capitalistas. A famosa citação do Fragmento sobre as Máquinas dos Grundrisse “O próprio capital é a contradição em processo, [pelo facto] de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o trabalho como única medida e fonte da riqueza.” (MEW 42: 601) não aparece em Wendl nem formalmente de modo directo nem indiretamente em termos de conteúdo. Assim ele desiste da possibilidade de captar a crise de forma mais radical e, portanto, mais realista do que aqueles que criticou. Em complemento a isso, escreve Robert Kurz sobre o limite interno do capital: “A falta de ‘emprego’ global, por causa do nível de produtividade atingido na imanência, conduz à falta de “capacidade de exploração” do capital, e portanto à falta de produção de mais-valia real e com isso à falta de poder de compra no conjunto da sociedade. Para a reprodução sempre alargada do capital desenvolve-se assim aquele limite interno que, finalmente, após um período de incubação condicionado pelos ciclos de retorno (e pelos processos de simulação do capital financeiro), acaba por se manifestar na superfície do mercado como quebra das vendas. Situação em que a restrição do poder de compra social para lá de uma determinada medida, que o marxismo vulgar percebe como mera pobreza de massas a favor do capital, torna-se num problema da própria valorização.” (Kurz, 2013, EXIT 11: 70 sg). Wendl com o seu déficit sobre isto revela o “lugar vazio da teoria da crise” que “se [mostra] não apenas nas escolas do marxismo residual, como a que se agrupa em torno da revista Argument de Haug, do círculo em torno da Prokla mais academicamente plural ou da revista Sozialismus saída dos esforços de “reconstrução” da teoria de Marx, as quais ligaram amplamente a sua reflexão a interesses académicos, ideologias do movimento, conjunturas políticas ou tendências sindicais, mas também nas posições não imediatamente académicas ou redutoramente praxeológicas ou politicistas.” (Kurz, EXIT 10, 2012: 42).

 

Verifica-se que o teste ao teste de Wendl revela um ou outro ponto fraco da argumentação de Wendl. Que isso tenha podido ser aqui feito apenas rudimentar e fragmentariamente deve-se à brevidade exigida. Mas uma discussão mais alargada e aprofundada levaria a resultados semelhantes.

 

Seria desejável, se se chegasse a isso com a ajuda de uma discussão sobre os referidos conceitos de “limite interno” e “contradição em processo”, arriscar a tentativa de ampliar os pontos de acordo em todo o caso existentes com Wendl! Além disso todos/as os/as marxistas deveriam sentir-se chamados/as a participar num debate com o qual pudesse ser fundadamente rejeitado o seguinte (pre)conceito arrasador sobre si (e outros): “Presentemente os economistas modernos, uma vez que não entendem nada do seu objecto, causam em todos os lugares na sociedade civilizada, com grande dedicação, grande esforço e com as melhores intenções, tanto sofrimento e tanto mal que eles são involuntariamente os pensadores mais perniciosos em actividade em qualquer parte do mundo” (Owen, 1827/1988: 38). Vamos a isso – ou, como diria Robert Kurz: hic Rhodus, hic salta!

 

 

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Owen, Robert (1827): Das soziale System [O sistema social]; in: Owen, Robert: Das soziale System. Ausgewählte Schriften [O sistema social. Escritos selecionados]; Leipzig, 1988.

 

Piketty, Thomas (2013): Le capital au XXIe siècle [O capital no século XXI]; Paris.

 

Sandleben, Guenther / Schäfer, Jakob (2013): Apologie von links. Zur Kritik gängiger linker Krisentheorien [Apologia da esquerda. Para a crítica das teorias da crise habituais da esquerda]; Köln / Karlsruhe.

 

Scholz, Roswitha (2000/2011): Das Geschlecht des Kapitalismus. Feministische Theorien und die postmoderne Metamorphose des Kapitals [O sexo do capitalismo. Teorias feministas e a metamorfose pós-moderna do capital]; Bad Honnef.

 

Schumpeter, Joseph Alois (1950/1993): Kapitalismus, Sozialismus und Demokratie; Tübingen und Basel.

 

Wendl, Michael (2014): Ein Marxismus ohne Wert? Neomarxistische Kapitalismustheorien auf dem Prüfstand [um marxismo sem o valor? Teorias neo-marxistas do capitalismo em teste]; in: Sozialismus 3/2014; Hamburg.

 

Wendl, Michael (2014): Säkulare Stagnation oder Schieflage der Verteilungspolitik? Kritik zugrundeliegender Fehlannahmen [Estagnação secular ou desequilíbrio da política de distribuição? Crítica dos equívocos subjacentes]; in: Sozialismus 6/2014; Hamburg.

 

Wendl, Michael (2013): Machttheorie oder Werttheorie. Die Wiederkehr eines einfachen Marxismus [Teoria do poder ou teoria do valor. O retorno de um marxismo simples]; Hamburg.

 

 

Original Eine Kritik ohne Wert? Der Prüfstand des Michael Wendl in http://www.exit-online.org, 07/2014. Tradução de Boaventura Antunes

http://obeco-online.org/

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