A
VITÓRIA DA ECONOMIA SOBRE A VIDA
Como
o mundo está a ser destruído pela eficiência da economia empresarial
Já
faz quase um quarto de século que o cientista norte-americano Dennis Meadows e
seus colaboradores apresentaram o famoso relatório do Clube de Roma sobre
"os limites do crescimento". Nele se mostra que o crescimento
exponencial da economia moderna acarreta como conseqüência necessária, num
espaço de tempo historicamente curto, uma catástrofe dos fundamentos naturais
da vida. O consumo voraz de recursos e a emissão desenfreada de poluentes,
afirma Meadows, põem em xeque a sobrevivência da humanidade.
Em
termos empíricos, o resultado é inequívoco e só pode ser contestado por
ignorantes. As condições elementares da vida, como a água, o ar e a terra,
estão expostas a um crescente processo de envenenamento. A camada protetora de
ozônio na atmosfera é corroída. No Sul da Argentina e na Austrália, uma
infinidade de ovelhas já pasta com cancros à mostra, e também para os homens
o banho de sol torna-se perigoso. A água potável, além de sofrer contaminação,
está cada vez mais escassa. Os desertos avançam dia a dia, e há prognósticos
de que a guerra do século 21 terá como estopim o controle de mananciais hídricos.
Com uma rapidez inquietante, são extintas espécies da flora e da fauna. As
florestas tropicais, a maior reserva natural da Terra, desaparecem num piscar de
olhos. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial até hoje, a destruição foi maior
do que em toda a história da humanidade. Com a ingestão excessiva de
ingredientes tóxicos, o sistema imunológico humano ameaça entrar em colapso
(sobretudo nas crianças). Os médicos profetizam o surgimento de novas
epidemias, contra às quais não haverá remédio.
A
lista das destruições e das catástrofes iminentes poderia ser prolongada
infinitamente. A própria beleza do mundo desaparece. A economia de mercado
desfigura o semblante da natureza. Quando visitei São Paulo, mostraram-me
antigas fotos de um rio no qual se podia banhar, em cujas margens passeavam os
habitantes e que constituía um espaço popular de lazer. Tive oportunidade de
ver esse rio hoje em dia: uma espécie de esgoto a céu aberto, com águas
turvas e malcheirosas, em cujas margens só os ratos fazem seu passeio. Lamentáveis
comparações como esta podem ser feitas em todos os países. Tudo indica que a
economia trabalha com grande eficiência para transformar todo o planeta num
fedorento depósito de lixo e finalmente extinguir a vida humana.
Desde
o estudo de Meadows, pelo menos, o problema do "meio ambiente"
tornou-se em todos os países objeto de debates políticos. Mas tais debates não
são dignos de confiança. O lema é: "Sair à chuva e não se
molhar". Os políticos, como mentirosos profissionais, exortam a humanidade
a uma conversão e prodigalizam adágios morais como a indústria prodigaliza
lixo. Gastam milhões de litros de querosene para promover reuniões nas quais
nada é decidido. Em 1992, reuniram-se no Rio de Janeiro eminências políticas
e chefes de Estado de todo o mundo, a fim de deliberar sobre a proteção da
natureza, do meio ambiente, da atmosfera e da água. Armou-se um grande aparato
para a perfumaria política. Mas o resultado final foi equivalente a zero.
Os
próprios homens de bem e dignitários do Clube de Roma e iniciativas afins
clamam a plenos pulmões a necessidade de uma "revolução global"
para salvar a natureza e a humanidade. Mas desde quando as revoluções são
feitas por dignitários e homens de bem? Na verdade, as propostas do Clube de
Roma são tudo menos revolucionárias. Como todos valorosos burgueses e cristãos,
esses honoráveis cientistas gostariam de conciliar o lobo e o cordeiro.
"Crescimento qualitativo" e "desenvolvimento sustentado" (sustainability)
devem pôr em consonância dinheiro e natureza, sobre o pano de fundo de um
mercado global pautado pela "eficiência econômica" e pelo
"desafio ecológico". Será esse um objetivo realista ou uma tentativa
ingênua de fazer a quadratura do círculo?
A
raiz da economia moderna é o dinheiro. Mas o dinheiro é uma abstração
social, pois abstrai de todo conteúdo sensível e qualitativo: Mil dólares são
uma grandeza abstrata, puramente quantitativa. Já o filósofo Hegel sabia que o
dinheiro representa trabalho social; mas trabalho em forma abstrata, purificado
de sua determinação material concreta. Na relação com o dinheiro, o trabalho
aparece como puro consumo de energia humana abstrata. Hegel falava assim de
"trabalho abstrato", uma expressão que foi adotada por Marx. Mas
Hegel disse também: "Fazer valer as abstrações no mundo real significa
destruir a realidade". À medida que o dinheiro põe-se a meio caminho
entre homem e natureza, esta última é destruída. O dinheiro, portanto, também
é a raiz da força destrutiva da economia moderna.
Não
há dúvida de que o dinheiro é muito mais antigo do que a sociedade industrial
moderna. Mas seu papel foi apenas marginal antes do século 18 (e, em muitos países,
até o século 20). A grande maioria dos alimentos era produzida numa economia
natural, sem troca de mercadorias. Na medida em que houve produção de
mercadorias, o dinheiro restringiu-se ao papel de intermediário: ela figurava
entre duas mercadorias qualitativamente diversas como simples meio de troca. A
economia moderna, por sua vez, não é fruto apenas do progresso técnico, como
nos querem fazer crer. Muito mais decisiva foi a transformação do dinheiro,
que de um meio passou a ser um fim em si mesmo.
Qual
o significado disso? Na economia moderna, inverteu-se a relação entre
mercadoria e dinheiro. Não é mais o dinheiro que figura entre duas mercadorias
qualitativamente diversas, mas justamente o contrário: a mercadoria figura no
meio de dois modos de manifestação da mesma forma abstrata chamada
"dinheiro". Essa operação só faz sentido, obviamente, se ao final
resultar uma soma de dinheiro maior que no início. O dinheiro tornou-se um
"capital produtivo" que multiplica a si mesmo. Ao contrário dos
antigos produtores não-comerciais, o objetivo não é a reprodução material
da própria vida, mas o acúmulo de ganhos em forma de dinheiro.
Somente
por meio dessa nova lógica econômica pôde nascer um mercado total, no qual
empresários voltados ao lucro concorrem entre si e no qual todos dependem de
sua capacidade de "ganhar dinheiro". O dinheiro agora está preso a um
circuito cibernético fechado sobre si mesmo. Ela se torna independente em seu
movimento absurdo como fim último e começa a levar uma vida fantasmagórica.
Assim, o historiador Karl Polanyi chamou a economia de mercado moderna de uma
"economia desvinculada" dos contextos da vida. O próprio socialismo
de Estado do Leste e do Sul, com seus "mercados planificados", não
foi mais do que um derivado histórico da mesma lógica econômica.
Não
se pode negar que essa economia historicamente nova acelerou de modo vertiginoso
o desenvolvimento das forças produtivas. Mas todos os progressos científicos e
tecnológicos têm de submeter-se à forma monetária e são por ela
impregnados. Isso significa que o conteúdo sensível da produção é submetido
a um processo econômico puramente quantitativo com uma aparência de lei física.
O dinheiro trabalha como um robô social que não é capaz de diferenciar entre
saudável e nocivo, feio e bonito, moral e amoral.
Sob
a pressão da concorrência no mercado, o empresário é obrigado a obedecer, em
todas as decisões, à racionalidade do dinheiro. Quando se fala de "redução
dos custos" e "eficiência", o que está em jogo é apenas o
"interesse" abstrato do dinheiro. Como um neurótico que, possuído
por uma idéia fixa, toma sempre o caminho mais curto entre dois pontos, sem
levar em conta o prazer ou a dor, assim também o cálculo empresarial exige a
abstrata "redução dos custos", sem levar em consideração o conteúdo
sensível e as conseqüências naturais.
Embora
os empresários falem com insistência de uma melhoria na qualidade, isso se
refere sempre ao design do produto
isolado, mas nunca ao mundo exterior à empresa. O resultado são
"belos" produtos num "meio ambiente" degradado. O próprio
conteúdo do produto é muitas vezes mera fachada, a começar pelos alimentos. A
indústria alimentar é diligente com os compradores, com uma suave coerção,
de modo a modificar-lhes o olfato e o paladar. No interesse da "eficiência"
econômica e da "simplificação" lucrativa para grandes mercados, já
desapareceram em todo mundo milhares de tipos de frutas, legumes e carnes. Nos
laboratórios, são cultivados alimentos que podem ser embalados com facilidade
e não apodrecem, mas cujo "sabor" é injetado quimicamente. A força
da oferta oprime toda crítica da procura.
Pondo
de parte a crescente destruição do prazer sensível e estético, a "redução
dos custos" é na verdade uma simples externalização dos custos na
natureza e no futuro. Do ponto de vista empresarial, a natureza e o futuro são
espaços economicamente vazios para além do cálculo de custos, nos quais os
"excrementos da produção" (Marx) desaparecem sem deixar vestígios.
Isso não se aplica apenas à emissão de poluentes pela produção mas também
ao transporte. Um mísero frango congelado nos EUA viaja em média 3.000 milhas
antes de ser consumido. Se a economia empresarial, em busca de menores custos,
menores taxas de câmbio, salários mais baixos e outras vantagens, aufere
ganhos no plano monetário, no plano dos recursos naturais ela promove uma orgia
de desperdício.
O
crescimento exponencial denunciado pelo Clube de Roma também não é um erro
casual, mas resultado necessário do sistema de mercado. O dinheiro, fechada num
circuito cibernético, exige o aumento constante da produção. A concorrência
exige o aumento permanente da produtividade. Como desse modo cada produto
representa cada vez menos dinheiro, a produção tem que crescer não
linearmente, mas em progressão geométrica. E como nessa dinâmica os
investimentos seguem os sinais abstratos da rentabilidade, a opção de um
"desenvolvimento sustentado" qualitativamente definido dentro da
economia de mercado é uma ilusão. A produção de bens qualitativamente
significativos ou mesmo de primeira necessidade é automaticamente posta de lado
quando deixa de ser rentável para o fim em si mesmo do dinheiro; por outro
lado, o capital flui rapidamente para projetos destrutivos, se estes acenam com
lucros generosos.
Desta
maneira, a vida social assume um caráter auto-destrutivo. Se é fato que o
aumento da produtividade expande o desemprego, é preciso que os mais ricos
consumam com uma avidez cada vez maior para permitir o funcionamento do sistema.
Por meio do "desgaste programado", a vida dos produtos é encurtada, e
simultaneamente a indústria inventa novas necessidades grotescas e pueris. De
um lado, crianças que pedem esmola; de outro, loucos que se consomem até a
morte enquanto fazem monólogos no celular.
A
indústria moderna matou mais crianças que o rei Herodes, mas sempre pôde
lavar as mãos e remeter-se às mudas leis do dinheiro. Tampouco os assalariados
questionam-se sobre o produto de seu trabalho, já que se encontram sob total
dependência de seus “postos de trabalho”. O sistema do dinheiro é responsável
por uma esquizofrenia estrutural: todos sabem que sua ação é destrutiva, mas
todos mantêm os olhos vidrados nos rendimentos, assim como o coelho na
serpente. Por que a opinião pública mostra-se tão indignada com os voluntários
suicidas do Hamas, se ela aceita de bom grado o programa suicida global da
economia de mercado?
Não
passa de um desejo devoto nutrir esperanças de que a política possa acorrentar
o lobo do dinheiro. Um imposto ecológico eficaz é improvável, pois o Estado
é nacional, mas a concorrência, internacional. Países com pequeno importe de
capital só conseguem concorrer sob as condições da globalização por meio de
dumping ecológico. Eis por que o
moralismo econômico de países ricos em relação ao Terceiro Mundo é uma
hipocrisia. O problema reside na própria economia moderna. A política é
sempre cúmplice do dinheiro, já que não possui renda própria. Mesmo o poder
precisa ser financiado. Eis por que as aparentes potências dependem do
crescimento exponencial da "economia desvinculada".
Ao
que tudo indica, há somente uma única solução radical: a humanidade deve
libertar-se do domínio do dinheiro que se tornou independente. Com certeza, um
retorno à sociedade agrária pré-moderna não é possível nem desejável. Mas
talvez outras formas de cooperação sejam viáveis para lá da “economia
desvinculada”. Podem as organizações sem fins lucrativos tomar o lugar da
economia empresarial? Os economistas dizem que isso é utópico e pouco
realista. Eles temem pela depreciação de sua absurda qualificação. Pois então
a própria sobrevivência da humanidade é utópica e pouco realista. Há
somente um consolo: tampouco os mandarins plutocratas serão poupados da destruição
da natureza. Já posso imaginar que, num futuro próximo, os últimos ricos
sentarão na varanda de suas luxuosas casas de campo, com máscaras de gás
encobrindo seus rostos diplomáticos, e sorverão de garrafas folheadas a ouro,
com auxílio de canudos, as últimas gotas de água potável.
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