O
FANTASMA DAS BELAS ARTES
Porque
já não pode a sociedade reflectir sobre si mesma na modernidade
A
separação entre vida e arte é um velho trauma da modernidade. Todos os
artistas que querem dar expressão a uma verdade e que se consomem em suas criações
sempre sofreram com tal separação. Pouco importa se a arte, em suas várias
manifestações, revela a beleza bem-proporcionada ou, ao inverso, a estética
do feio, se faz crítica social ou busca redescobrir a riqueza das formas
naturais, se adota uma orientação realista ou fantástica: ela sempre
permanece separada do cotidiano, da realidade social, como que por uma parede de
vidro intransponível. As criações artísticas ou são ignoradas ou tornam-se
mundialmente famosas como objetos de museu, já mortos antes mesmo de nascer. O
artista assemelha-se, desse modo, a uma figura da tragédia antiga: tal como a
água e as frutas esquivam-se ao sedento Tântalo, assim também a vida se
esquiva a ele; tal como o rei Midas, que morreu de fome porque todos os objetos
em que tocava transformavam-se em ouro, assim também o artista, como ser
social, morrerá de fome, pois todos os objetos em que toca transformam-se em
puros objetos de exposição; e tal como Sísifo, ele sempre empurra sua rocha
inutilmente sua obra permanece sem mediação com o mundo.
Todas
as tentativas da arte para romper seu gueto de vidro foram frustradas.
Esculturas expostas em fábricas e quadros pendurados nas paredes de escritórios
permaneceram corpos estranhos; preleções literárias em igrejas ou escolas
nunca superaram o caráter de eventos obrigatórios. Quando os dadaístas, por
desespero, recorreram aos meios da provocação e transpuseram mictórios ou
canos enferrujados para os átrios sagrados da arte, a fim de zombar da
burguesia, essa oferta foi tomada com profunda seriedade e catalogada tal como
as esculturas de Miguel Ângelo ou os quadros de Picasso. Eis a definição
tautológica: arte é tudo aquilo que a sociedade percebe a priori num espaço
separado, numa área reservada chamada "arte" e que, por isso, nessa
sua impregnada objetividade artística, pode ser colecionada com independência
de todo conteúdo, a exemplo de selos ou coleópteros. Pouco importa o que a própria
arte quer e como ela o representa, seus efeitos são desde sempre entorpecentes
e inofensivos.
Só
se "permite" que a arte faça seu retorno à realidade social se
desistir de si própria e capitular incondicionalmente; como design de
mercadorias ou como indústria cultural para uso doméstico do homem
capitalista, ela não pode mais ser arte, pois deixa de representar uma reflexão
estética da sociedade e da relação humana com o mundo. Porque design e
indústria cultural são por si só tão pouco reflexivos quanto a economia
empresarial: a forma estética da mercadoria não se relaciona mais com o
conjunto da natureza e da sociedade, mas basta a si mesma. Mas quando a estética
da produção isolada não contém mais uma reflexão "sobre" a posição
do objeto num contexto mais abrangente, quando ela não é mais parte de um
"cosmos" estético, é absolutamente impossível que preserve seu caráter
artístico. De fato, a essência da arte consiste justamente na reflexão estética
de um "cosmos" cultural em que o objeto artístico isolado, de forma
peculiar, sempre reflete o todo.
Assim
é que a arte moderna tem como alternativa única deixar-se apreender como
objeto econômico ordinário da indústria cultural ou levar uma
"elevada" existência ilusória, ao lado da vida real, na condição
de corpo estranho e despido de realidade. Ela será então sistematicamente
impedida de cumprir sua tarefa de apreender a reflexão estética do todo como
momento integral do processo social da vida. E, a exemplo do que fez com todos
os seus problemas específicos, a modernidade elevou também esse dilema da arte
a um plano supra-histórico e universal. Quando algo dá claros sinais de corrupção
na maravilhosa modernidade, nunca se trata de um problema histórico a ser
superado pela crítica, mas sempre de uma condição incontornável da existência,
à qual a humanidade lamentavelmente terá de resignar-se. Por meio dessas
lentes de uma falsa ontologização, a modernidade incorpora como um dado o
dilema da separação entre vida e arte. É como se, na Antiguidade grega, o
artista tivesse sido conforme o exemplo atual um vendedor de suas
potencialidades, como se os próprios egípcios houvessem exposto as imagens de
seus ídolos em galerias e museus ou as tivessem dotado de etiquetas com preço
em leilões de arte.
Nas
civilizações antigas, porém, não havia uma divisão social em separado
denominada "arte" ou "cultura", no sentido que as entendemos
hoje. Isso porque a estrutura moderna de esferas separadas e autônomas entre
si, que também define nossa linguagem e nosso pensamento, era absolutamente
estranha a todas as sociedades anteriores. Quaisquer que fossem seus problemas
políticos e suas relações de poder social, elas não decompunham sua existência
em âmbitos funcionais compartimentados. Uma tal divisão da vida social
desenvolveu-se apenas quando a chamada economia moderna foi destacada do resto
da vida; uma alteração elementar, que nunca será demais sublinhar. A recente
teoria dos sistemas considera isso como um "progresso" e a situação
anterior da humanidade como uma falta de "diferenciação", supondo
assim, de maneira axiomática, um critério de primitividade: quanto mais
integrada uma sociedade por meio de um contexto cultural abrangente, mais
primitivos são os seus fundamentos; e, ao contrário, quanto mais
"diferenciada" uma sociedade, quanto mais ela se divide em esferas
separadas (partindo da autonomização da economia capitalista), mais
"desenvolvida" ela se revela, mais "oportunidades" oferece a
seus membros. Essa idéia tornou-se tão natural que não parece mais um absurdo
enxergar as maiores conquistas da evolução social precisamente no fato de o
homem, reduzido a papéis funcionais, representar somente um ponto de intersecção
de estruturas sistémicas.
Na
realidade, contudo, as civilizações pré-modernas não eram primitivas, mas
altamente diferenciadas, só que esse tipo de diferenciação não corresponde
ao conceito moderno hoje aceito. As sociedades antigas, essencialmente agrárias,
não tinham uma cultura, do modo como
se "tem" um objeto externo e casual, antes eram
uma cultura. Isso se evidencia em nosso próprio vocabulário científico,
embora na maioria das vezes de forma inconsciente: falamos da
"cultura" do antigo Egito, da Antiguidade, da Idade Média etc. e, via
de regra, indicamos desse modo tanto os artefatos especiais e as representações
artísticas da escultura, da pintura ou da literatura quanto, por outro lado, a
respectiva civilização, acompanhada de sua estrutura social e de sua relação
com o mundo em geral. Quando se trata da "cultura moderna", ao contrário,
faz-se referência somente àquele aspecto específico das formas de expressão
artística proscritas em uma esfera separada, e nunca ao contexto social como um
todo. "Sabemos" inconscientemente, portanto, que outrora a cultura era
um todo único, e não uma esfera funcional apartada, cujo propósito é
edificar o homem de mercado em seus passeios dominicais ao museu.
De
fato, o termo latino cultus, a que
remonta nosso conceito de cultura, significa tanto "cultivo" e
“agricultura” quanto "serviço religioso", "forma de
vida", "sociabilidade", "formação" e até mesmo
"moda" (em determinados contextos). Esse conceito de múltiplas faces
aponta para o caráter cultural integrado das antigas civilizações agrárias.
As formas e os conteúdos diferenciados do "metabolismo com a
natureza" (Marx), bem como as relações sociais e a estética, não se
decompunham em "subsistemas" com "lógicas próprias", antes
eram sempre aspectos diversos de uma única e mesma vivência cultural coerente.
Em termos modernos, a descrição dessa existência culturalmente integrada deve
soar desconcertante: a produção era estética; a estética, religiosa; a
religião, política; a política, cultural; e a cultura, social. Em outras
palavras, os aspectos sociais distintos estavam imbricados uns nos outros, cada
esfera da vida estava de certa maneira contida em todas as outras.
Podemos
talvez ser tentados a falar de uma constituição religiosa dessas culturas agrárias,
pois a religião era aparentemente o aspecto integrador mais forte de uma tal
"sociedade como cultura". Como se sabe, não apenas toda sorte de
artefato artístico, mas também o teatro e as competições esportivas
originaram-se de ações de culto, ou melhor, eles eram
ações cultuais de determinada espécie. Mas também todos os afazeres
habituais do cotidiano possuíam um caráter de fundo cultual e a própria
ironia e as piadas eram vinculadas ao culto. Seria contudo um erro salientar
"a religião" como o aspecto sistémico determinante de tais
sociedades, pois com isso recairíamos em nosso conceito funcional de esferas
separadas. Ora, a própria religião não era uma religião no sentido moderno,
não era uma "crença", uma ocasião limitada para o pensamento
transcende e muito menos um "assunto privado".
Mas
nem por isso podemos, é claro, imaginar o caráter religioso das antigas
culturas como uma simples coerção irracional: isso vale muito mais para a
economia capitalista "desvinculada" da modernidade. Nas antigas
civilizações, o aspecto religioso era ao mesmo tempo o aspecto público e a
forma dos debates, aquilo que hoje chamamos de "política". Não por
acaso o termo latino privatus possui
uma conotação um tanto negativa, depreciativa mesmo, que para nós se torna
ainda mais clara no conceito correspondente da Antiguidade grega: lá o
"homem privado", que não toma parte na vida cotidiana e na vida pública,
é simplesmente o "idiota". O fato de o aspecto religioso ao mesmo
tempo ser a forma da vida pública e abranger todo o cotidiano não constitui,
porém, um índice da limitação dessa sociedade, como afirma a ideologia da
autolegitimação moderna. Antes se pode dizer, ao contrário, que uma tal
civilização possuía mais debate e opinião pública do que o sistema moderno,
no qual grande parte das ocorrências sociais é resolvida automaticamente e sem
discussão pela mecânica da economia "desvinculada". Por mais que nos
empenhemos, não logramos compreender a existência de uma sociedade
culturalmente integrada a partir de nossa visão moderna. Não possuímos um
conceito para tanto.
Numa
"sociedade como cultura", que não conhecia esferas funcionais
separadas entre si, a "arte" sempre foi necessariamente uma parte
integrante da vida cotidiana; ela era totalmente impensável, portanto, como
objeto de exposição de uma esfera esterilizada e morta "em sua redoma de
vidro". Mas justamente por isso ela não era também uma arte como arte,
mas antes um determinado momento de um contexto social integrado. O
"artista" só podia ser reconhecido como artista no sentido de uma
capacidade técnica, mas não como representante social "da" arte,
para além do cotidiano. Na modernidade, desintegrada culturalmente por uma
economia automomizada, a estética dissociada assume uma forma absurda. Embora
todo fenômeno da vida sempre comporte um aspecto estético para o homem, o
mundo "economificado" da modernidade negou esse fato elementar. O
"trabalho" não é estético, a economia não é estética, a política
não é estética, a vida em geral não é estética, somente a estética é estética.
As "belas artes" transformaram-se num fantasma. É como se a estética
das coisas levasse uma existência abstrata, fantasmagórica, ao lado das
coisas, do mesmo modo, aliás, que a sociabilidade dos produtos, na forma
abstrata tornada fim em si do dinheiro reacoplado a si mesmo, leva uma existência
à parte desses próprios produtos e a lógica abstrata formal autonomiza-se
como o "dinheiro do espírito" (Marx), ao lado da lógica concreta dos
contextos reais.
A
prisão de vidro do artista moderno consiste precisamente nessa dissociação
estrutural do campo estético. A arte perambula de lá para cá dentro dessa
jaula, desamparada; ela não é mais a forma artística de um conteúdo social,
não é mais reflexão estética do todo, mas "formalidade"
dissociada, forma sem um conteúdo comum, socialmente definido; ela se torna, em
última análise, um fim em si mesmo e, como "l'art pour l'art", nada
mais é do que uma caricatura involuntária da economia
"desvinculada". Depois de ela, na sua miséria, ter-se apaixonado
perdidamente por si mesma, porém, a arte começa a recalcar seu dilema ao
"estetizar" como tal os rebentos da cisão funcionalista. Se a
estrutura da modernidade não é criticada, mas estetizada, então corpos destroçados
por granadas, mulheres violentadas, crianças famintas e as obscenidades do
poder surgem como simples objetos estéticos. Semelhante "estetização da
política", divorciada da crítica do sistema das cisões, conduz
diretamente à barbárie. Esse foi o segredo do fascismo, que encenou a
desintegração da sociedade como sangrenta obra de arte total, à maneira de
Nero.
Por
outro lado, também a "politização da estética" propalada pela
esquerda há muito provou ser um beco sem saída. Quando a arte, ainda que com
as melhores intenções, presta-se à agitação, à "agitprop", ela
capitula tão incondicionalmente quanto na sua transformação em design
e indústria cultural. Se a arte não quiser definhar e calar-se para sempre,
ela terá de fazer público o seu dilema, não mediante uma adaptação à política
tradicional, mas por meio de uma radical crítica
estética da ordem existente. Se a arte não é mais capaz de refletir positivamente
o todo cindido, que o faça negativamente,
ao elevar à consciência a precariedade estética do mundo
"economificado". A arte, de certa maneira, tem de tornar-se militante
com os seus próprios meios e pleitear a submissão da economia a um
"cosmos" cultural a ser reinventado (e não mais tradicionalmente
comprometido), fazendo triunfar a estética do todo sobre a chamada eficiência
da economia empresarial. Somente uma arte que se suplante a si mesma como crítica
da própria desestetização social pode renascer para a vida.
Original