A ASCENSÃO DO DINHEIRO AOS CÉUS
Os limites estruturais da valorização do capital, o capitalismo de casino e a crise financeira global
1. Capital real e capital que rende juros
A relação contraditória entre trabalho e dinheiro é uma das muitas estruturas esquizóides do mundo moderno. O trabalho, como dispêndio abstracto de energia humana no processo da racionalidade empresarial, e o dinheiro, como forma fenoménica do "valor" económico assim produzido (ou seja, duma fantasmagoria fetichista da consciência social objectivada) são as duas faces da mesma moeda. O dinheiro representa ou "é" nada mais que "trabalho morto", tornado realmente abstracto na forma duma coisa, no fim-em-si-mesmo capitalista, que consiste numa acumulação sempre acrescida de tal meio fetichista. O humano "processo de metabolismo com a natureza" (Marx) tornou-se um
abstracto e em si insensato dispêndio de força de trabalho, justamente porque o dinheiro se autonomizou do agente humano, na forma fetichista potenciada do capital: não é a necessidade humana que guia o dispêndio de energia; pelo contrário, a forma "morta" dessa energia, autonomizada como coisa, subordinou a si a satisfação das necessidades humanas. A relação com a natureza, tal como as relações sociais, tornaram-se meros processos de passagem para a "valorização do dinheiro".
Porém, este processo de valorização, em que o meio fetichista se tornou fim-em-si-mesmo, não se desenvolve sem atritos. Como o trabalho e o dinheiro constituem fases diferentes do desenvolvimento da valorização como fim-em-si-mesmo, estes dois momentos também podem separar-se em situações de crise, deixando assim de coincidir. Tal falta de coincidência manifesta-se como uma desvinculação entre o dinheiro e a substância abstracta do trabalho: a multiplicação do dinheiro ocorre então mais rapidamente que a acumulação de "trabalho morto" abstractizado, destacando-se assim da sua própria base. Mas como os dois fenómenos do trabalho e do dinheiro se formaram num
processo histórico cego, nas costas dos sujeitos humanos, o seu nexo intrínseco escapa à consciência, tanto no "bom senso" comum, como no pensamento científico. Trabalho e dinheiro podem surgir opostos um ao outro nas diversas ideologias, assim como na concepção do processo económico.
É verdade que a sociedade moderna é considerada em geral uma "sociedade do trabalho" ou uma "sociedade do ganho", e é incontestável que trabalho e receita monetária são, afinal de contas, idênticos. Mas este nexo lógico só é compreendido numa acepção sociológica banal ou apresentado como uma espécie de postulado moral - por exemplo, nas ideologias do "trabalho honesto" - , ao passo que a necessidade económica duma coincidência destas duas formas fenoménicas do processo de valorização não é considerada plausível. Através das formas de mediação entre trabalho e dinheiro, nada fáceis de reconhecer e sempre mais complexas no decurso da modernização, nasce a ilusão de
que o dinheiro pode desenvolver-se independentemente da sua substância abstracta, constituída pelo trabalho.
Como se sabe, a teoria económica burguesa ignora a equivalência entre trabalho abstracto e dinheiro, necessária segundo a lógica do capitalismo: de facto, a economia política burguesa, após a teoria marginalista, abandonou totalmente o conceito de valor, diferentemente dos clássicos (Adam Smith e David Ricardo), ou identificou-o superficialmente com os preços realizáveis, subjectivando-o, enquanto se considerava refutada a existência duma substância objectiva do valor, e a teoria do valor-trabalho era tida como um simples fóssil. Neste ponto concordam no plano teórico ambas as doutrinas económicas opostas do pós-guerra, o keynesianismo e o monetarismo, mas nenhuma
delas pode ignorar completamente o verdadeiro nexo entre trabalho e dinheiro. O keynesianismo não deixa de ter em conta, ao menos superficialmente, a lógica do trabalho abstracto - embora negando-a em principio -, quando estabelece o nexo entre "emprego" e "receita monetária". Também no monetarismo de Milton Friedman o problema se apresenta, intuitiva mas não conceptualmente, quando se identifica como mal fundamental a desvinculação entre massa monetária e massa de produção (para o mercado). Mas nem o conceito keynesiano de "emprego"‘ (factor procura), nem o conceito monetarista de produção (factor oferta) implicam qualquer relação intrínseca, substancial, entre massa de trabalho e massa monetária, de modo a superar a ilusão de
que o dinheiro possui um movimento autónomo. O problema só se manifesta indirectamente.
Na prática do processo capitalista, esta ilusão nasce da natureza particular do capital monetário concentrado no sistema bancário. A bem dizer, o dinheiro transforma-se em capital quando é gasto directamente para a valorização do trabalho abstracto, tornando-se assim "de um valor dado, um valor que valoriza, que se aumenta a si mesmo" (Das Kapital, t. 3, p. 350): os meios de produção adquiridos inclusive a força de trabalho humana transformam-se, segundo a lógica da racionalidade empresarial em mercadorias para venda no mercado, com o respectivo excedente na forma abstracta do "dinheiro". Esta lógica, resumida por Marx na fórmula D-M-D’, só pode ser mediada
pelo trabalho abstracto encarnado nas mercadorias. A empresa produtora de mercadorias, se o próprio capital monetário não basta, pode tomar de empréstimo (total ou parcialmente) a massa inicial "D" de dinheiro, que actua como capital. Para este fim servem as poupanças da sociedade, concentradas no sistema bancário: dinheiro que seus proprietários não utilizam, nem para o consumo nem para investimentos empresariais, sendo antes depositado como o osso que um cachorro enterra para roer mais tarde.
Entretanto, mesmo esse dinheiro é capital - capital na forma de crédito: temporariamente, o sistema bancário empresta capital empresarial "actuante". O dinheiro não serve aqui para a mediação de mercadorias, nem é directamente capital monetário empresarial, que emprega trabalho abstracto no seu processo de valorização mas torna-se paradoxalmente uma mercadoria com cotação em mercados especiais (os mercados financeiros) e cujo preço são os juros (1). O dinheiro como mercadoria nos mercados financeiros é portanto capital que rende juros,
diferentemente do capital empresarial "real’, que organiza a efectiva valorização substancial. Do ponto de vista deste capital que rende juros, a fórmula da valorização reduz-se a D-D’; ou seja, o dinheiro, aparentemente sem intervenção da produção real de "M", ganha imediatamente, como mercadoria, a "qualidade oculta" (Marx) de gerar - pretensamente de si mesmo – "mais dinheiro": "O movimento característico do capital em geral [...] o retorno do capital ao seu ponto de partida, assume, no capital que rende juros, uma figura totalmente separada, distinta do movimento real de que ela é forma [...] Dar, emprestar dinheiro por um certo tempo e receber de volta o mesmo com juros (valor acrescentado) é a forma completa do movimento
que cabe ao capital que rende juros como tal. O movimento efectivo do dinheiro emprestado como capital é uma operação que se situa além da transacção entre quem dá e quem recebe empréstimos. Nestas mesmas operações, essa mediação é cancelada, tornada invisível, não directamente compreendida [...] Aqui, o retorno não se exprime, portanto, como consequência e resultado duma série determinada de processos económicos, mas como consequência duma estipulação jurídica particular entre compradores e vendedores." (Das Kapital. t. 3, p. 360 s.).
Por um lado, não se pode obviamente negar com seriedade que o dinheiro sem mercadoria (ou o dinheiro por si só como mercadoria) é um absurdo social; por outro, segundo o preconceito comum que vê no dinheiro o capital, a "verdadeira" forma de capital não é tanto o capital empresarial produtor de mercadorias, mas antes o capital que rende juros. A única fonte efectiva de "dinheiro que gera dinheiro" (Marx), o consumo de trabalho abstracto na produção real de mercadorias, desaparece assim na "forma sem conteúdo" (Marx) do próprio movimento. No capital que rende juros, a produção de "mais dinheiro" não aparece, de facto, como expressão social (fetichista) da
produção capitalista de mercadorias, mas antes como uma produção de mercadorias entre outras, assim como a produção de meias, velas ou viagens de aventura. Sem mais, o próprio trabalho abstracto do sistema bancário é equiparado (inclusive no conceito de "criação de valor", típico da teoria económica burguesa) ao trabalho desenvolvido nas empresas produtivas e terciárias - fala-se mesmo duma "indústria financeira" (2). A duplicação espectral dos produtos, no sistema de produção de mercadorias, em mercadorias e dinheiro é escamoteada através duma tosca identificação do dinheiro com a mercadoria.
À primeira vista, poderia parecer que se trata aqui apenas duma ilusão subjectiva, isto é, da simples ideologia do capital monetário que rende juros, cujos agentes não têm consciência do efectivo movimento substancial. Enquanto o processo real de valorização funciona sobre as suas próprias bases, as coisas podem ocorrer de facto assim. Com efeito, para o proprietário do dinheiro emprestado pode ser indiferente donde provêm os juros, que frutificam o seu miraculoso "dinheiro que gera dinheiro". Porém, o caso torna-se problemático quando o dinheiro emprestado não é realmente empregue para o efectivo consumo empresarial de trabalho abstracto. Este emprego malogrado,
se ocorre em grande escala, faz com que o capital que rende juros se destaque cada vez mais do processo real de valorização e se torne "capital fictício" (Marx) (3).
O caso mais simples é naturalmente aquele em que o real capital empresarial, que tomara de empréstimo o dinheiro, não tem êxito com as suas mercadorias no mercado e abre falência. A não-coincidência entre trabalho e dinheiro (o trabalho da empresa produtora de mercadorias foi declarado inválido pelo mercado) tem então uma repercussão imediata sobre o capital que rende juros: os créditos concedidos tornam-se "não recuperáveis" (4). O mesmo efeito se produz quando o dinheiro emprestado à partida não se destina à real produção de mercadorias, mas ao luxo e ao prestígio por exemplo; foi este o caso de inúmeros créditos, a partir dos anos 70, concedidos pelo sistema
financeiro internacional a diversos potentados e regimes assassinos do Terceiro Mundo considerados amigos.
O aparente movimento directo D-D’ só se torna "fictício" em sentido estrito quando o malogro do processo substancial de valorização é maquilhado, pagando-se créditos que se tornaram malparados com novos créditos. É o que acontece hoje em grande escala, não só com créditos do Terceiro Mundo, mas também com uma grande massa de créditos às empresas e ao consumo. Desse modo o sistema financeiro empurra uma montanha sempre crescente de dinheiro creditício "sem substância", tratado "como se" passasse por um processo real de valorização, embora seja apenas simulado por metacréditos. Desta forma, o nexo entre trabalho abstracto e dinheiro prolonga-se, de sorte que a
não-coincidência das duas formas fenoménicas não se torna de imediato operativa, mas é de algum modo "adiada". Contudo, a cadeia fictícia de prolongamentos acabará por romper-se, pois alcançará os seus limites a meta-remuneração de juros do movimento D-D’, crescido para além de seu conteúdo substancial (5).
Um grau ainda mais alto de desvinculação entre trabalho e dinheiro é atingido quando o dinheiro creditício serve como ponto de partida dum movimento especulativo, no qual já não há sequer a aparência duma produção real de mercadorias. O comércio com os simples títulos de propriedade de acções e imóveis produz assim aumentos fictícios de valor, que não têm mais nada a ver nem formalmente com os ganhos reais provenientes do consumo empresarial do trabalho abstracto. Um tal movimento especulativo põe-se em marcha sempre que a real acumulação empresarial do capital atinge os seus limites e os ganhos dos períodos passados de produção não podem ser investidos, em
medida suficiente, num aumento da produção real de mercadorias, mas têm de ser aplicados exclusivamente no sistema financeiro. Assim, a pressão para um movimento imediato D-D’ cresce tão fortemente que perante o aumento especulativo do valor das acções os dividendos reais são "peanuts"; a relação entre cotações e lucros ultrapassa todas as medidas. Essas bolhas especulativas, fruto do aumento fictício de valor dos títulos de propriedade, verificadas inúmeras vezes na história capitalista, sempre terminaram inevitavelmente com uma grande quebra financeira.
2. A dependência crescente do capital real em relação ao crédito
A "condição de possibilidade" de o dinheiro se desligar da sua real substância de trabalho é tanto mais forte, quanto maior se torna na reprodução geral a parte que se refere ao capital que rende juros. Quanto a isso, pode de facto constatar-se a longo prazo um desequilíbrio a favor do crédito. A extensão gradual da racionalidade empresarial a toda produção, a sua cientificização e o consequente aumento, em escala secular, da intensidade do capital (ou seja, custos prévios sempre mais altos para uma produção competitiva de mercadorias), além da extensão concomitante do capital accionista anónimo, exigem massas sempre maiores de dinheiro creditício, para poder
manter em curso a produção capitalista.
Para o capital privado do século XIX, arcaico do ponto de vista de hoje, com os seus proprietários pessoais patriarcais e respectivos clãs familiares (6), vigoravam ainda os princípios da respeitabilidade e da "solvência", à luz dos quais o recurso crescente ao crédito parecia quase obsceno, quase o "princípio do fim"; a literatura ligeira da época está cheia de histórias em que "grandes casas" caem por terra devido à sua dependência do crédito, e Thomas Mann, nalgumas passagens do seu Os Buddenbrook,
fez desse um tema laureado com o prémio Nobel. Naturalmente, o capital que rende juros era desde o princípio indispensável como tal ao sistema que se formava, mas não detinha ainda uma parcela decisiva no conjunto da reprodução capitalista; e sobretudo os negócios de "capital fictício" eram considerados, por assim dizer, típicos do ambiente de charlatanice de vigaristas e "gente desonesta ", à margem do capitalismo autêntico (mas a que já então se juntava a honorável burguesia em tempos de ondas especulativas). Até Henry Ford se recusou por muito tempo a recorrer ao crédito bancário para a sua empresa, pretendendo financiar os seus investimentos apenas com capital próprio.
O conceito patriarcal de solvência dissipou-se completamente ao longo do século XX, simplesmente porque já não era possível mantê-lo em vigor, nem sequer na vida económica capitalista normal. As teorias marxistas sobre o novo poder do "capital financeiro" (Hilferding, Lenine e outros) no início do século já eram o reflexo dum processo que via o capital empresarial real começar a destacar-se estruturalmente da sua própria base, isto é, do trabalho abstracto; contudo, os marxistas do antigo movimento operário não deram grande importância ao autêntico conteúdo económico (isto é, ao aparecimento dos limites da própria economia baseada no valor), mas apenas às mudanças
na superfície do capitalismo e nas relações sociológicas de poder.
Esse destaque do sistema creditício pode ser descrito como uma crescente desproporção estrutural, entre o capital fixo cientificizado e a massa de trabalho que ainda é possível utilizar rentavelmente; o aumento à escala secular da intensidade do capital (que, em Marx, figura como "incremento da composição orgânica" do capital) exige um emprego cada vez maior de capital monetário, que todavia pode mobilizar cada vez menos trabalho por cada unidade de capital. Este facto exprime-se também no plano monetário: trata-se da crescente importância já descrita do capital que rende juros. Por outras palavras: o real capital empresarial "actuante", que utiliza trabalho
abstracto na efectiva produção de mercadorias, deve recorrer cada vez mais ao capital monetário, tomado de empréstimo ao sistema bancário, para poder continuar a valorizar o valor. Dessa forma, a chamada quota do capital social caiu drasticamente a longo prazo; hoje, com algumas excepções, ela é sempre inferior a 50% (7). Isso significa simplesmente que o real capital empresarial, para poder continuar a produzir na situação actual, tem de hipotecar antecipadamente quantidades cada vez maiores de trabalho a utilizar no futuro (ou seja, futuros ganhos).
O capital realmente produtor de mercadorias suga por assim dizer o seu próprio futuro (fictício), prolongando assim num metanível a sua vida, para lá do limite interno já visível. Este mecanismo só funciona enquanto o modo de produção continua a expandir-se (como foi o caso até ao último terço do século XX) e apenas na medida em que a massa de valor futuro ficticiamente antecipada se realizar efectivamente, ao menos em escala suficiente para pagar os juros dos créditos. O facto de os investimentos de capital, em contínuo aumento, já não poderem ser financiados integralmente com os próprios meios, isto é, através da massa real de lucros – pelo menos como norma e na
maior parte dos casos - é um claro indício do carácter cada vez mais precário de todo o processo. Este adiamento estrutural em beneficio do capital que rende juros não é ainda a mesma coisa que pagar directamente os juros com outros créditos; mas o movimento real de acumulação acaba por depender indirectamente das poupanças concentradas da sociedade.
A fim de atrair esses dinheiros para o financiamento antecipado do processo de acumulação, é preciso oferecer um incentivo aos seus proprietários, ou seja, a taxa de juros tem que subir, não só aguda e ciclicamente no caso de escassez passageira de capital monetário (como consequência da dissimulação, através de créditos, duma crise na produção real de mercadorias), mas também estruturalmente e a nível secular, o que, ao menos depois da Segunda Guerra Mundial, é possível efectivamente observar como tendência de longo prazo, para além das fortes oscilações cíclicas. Este aumento secular só é contrabalançado por meio duma desenfreada criação de liquidez por parte dos
bancos centrais, o que acelera, por sua vez, o processo de desvinculação do dinheiro face à base produtiva de capital, enquanto o nível dos juros baixa apenas temporariamente. Nesse plano já se torna evidente, portanto, que o processo cíclico é pouco a pouco estrangulado por um esgotamento estrutural (8). O limite estrutural do processo de valorização no seu todo foi protelado, mas cedo ou tarde há-de manifestar-se novamente no plano do capital monetário, travando a produção real através do encarecimento (e, por fim, da crise) do dinheiro. Ao mesmo tempo, os capitais da produção real de mercadorias ressentem-se grandemente das flutuações dos mercados monetários; graças à crescente importância social do capital que rende juros,
melhoram as condições para os movimentos especulativos que superam todos os antecedentes históricos. Numa palavra: devido ao seu crescimento interno, o capitalismo industrial torna-se cada vez mais "pouco sério" segundo os seus próprios critérios.
3. A revolução terciária
A argumentação desenvolvida até agora refere-se exclusivamente ao desenvolvimento do capital industrial ou à relação entre real produção industrial de mercadorias e capital monetário que rende juros. Porém, sobre essa estrutura básica ergueu-se no século XX (e com velocidade maior após a Segunda Guerra Mundial) o "sector terciário" dos chamados serviços em contínua expansão. Alguns economistas e sociólogos deduziram daí a formação gradual de um capitalismo "pós-industrial" dos serviços (Jean Fourastié, Daniel Bell e outros). Do mesmo modo que o sector primário da agricultura perdeu a sua importância em beneficio do "sector secundário" da indústria, assim também a
indústria passaria agora o testemunho dos sectores reprodutivos ao "sector terciário" dos serviços.
No entanto, esta consideração superficial ignora completamente o facto de que a primeira dessas mudanças na estrutura reprodutiva não constituiu, de forma alguma, um desenvolvimento interno do capitalismo, mas antes coincidiu com a própria história da formação e ascensão do capitalismo. Não só a técnica e o conteúdo material da produção se modificaram nesse processo, mas também as formas elementares das relações sociais foram sacudidas por uma transformação longa, dolorosa e turbulenta. A sociedade agrária pré-industrial, é verdade, conhecia como forma marginal o capital comercial e o que rende juros, mas não a valorização produtiva de capital; havia mercados, mas
não a economia de mercado; existia o dinheiro, mas não a economia monetária. O nexo entre mercadorias e dinheiro, como sistema fechado de reprodução, só nasceu com a transformação dos meios de produção e da força de trabalho humana em capital industrial.
Se agora estiver iminente uma transição histórica semelhante, da sociedade industrial para a dos serviços, será de crer que ela não se limitará a um mero reagrupamento sectorial interno das formas existentes de relações sociais, legadas pela economia de mercado e pelo dinheiro. Por outras palavras: a perda de importância social dos "sectores" industriais poderá ser idêntica a uma crise e a uma perda de importância do mercado e do dinheiro, na forma capitalista enquanto forma geral de reprodução; do mesmo modo que no seu tempo a redução do "sector" agrário foi idêntica a uma crise e a uma atrofia da economia de subsistência não-capitalista e das relações feudais.
Deste ponto de vista, que vai ao cerne da mudança estrutural, o modo de produção capitalista aparece como idêntico à ascensão do sistema industrial; e a "revolução terciária " aparece em consequência como a derrocada e o fim do próprio capitalismo, que é tão pouco eterno quanto o era a velha sociedade agrária.
Semelhante tese só pode ser ilustrada através do carácter histórico diverso das actividades em questão nos diferentes sectores. O decisivo para a reprodução capitalista é o conceito de "trabalho produtivo", que implica logicamente o seu contrário, ou seja o "trabalho improdutivo". Olhando o passado, no mundo feudal e na economia de subsistência, todo o trabalho é "improdutivo" do ponto de vista capitalista, pois (ainda) não serve para a valorização do capital; em rigor, não se trata de "trabalho", já que essa abstracção da actividade reprodutiva nasceu apenas com o moderno sistema produtor de mercadorias (9). Ora, no interior deste sistema, toda a actividade
realizada em troca de dinheiro ou que esteja num contexto de valorização do dinheiro é formalmente um trabalho abstracto. Mas isso não significa que o seja também num sentido substancial.
Num sentido substancial, trabalho abstracto, isto é, trabalho cujo dispêndio de energia impulsiona realmente a reprodução capitalista, é apenas aquele trabalho "produtivo" (produtivo de capital), que cria efectivamente mais-valia (10).
À primeira vista, parece difícil imaginar como esta distinção possa ser mantida de modo analiticamente claro, sem cair em suposições arbitrárias. A este respeito, a teoria de Marx não tem à disposição instrumentos capazes duma afirmação unívoca; de maneira que o debate marxista sobre o "trabalho produtivo e improdutivo", escasso no seu conjunto, também não chegou a uma conclusão ( 11). É preciso, pois, indicar os critérios que tornem possível distinguir entre o dispêndio de força de trabalho humana formal e substancial, no sistema produtor de mercadorias. Convém primeiro distinguir entre trabalho produtivo e improdutivo num sentido absoluto e num sentido
relativo.
Improdutivo em sentido absoluto é o trabalho no sistema produtor de mercadorias quando, embora realizado em troca de remuneração monetária e no contexto da reprodução centrada no dinheiro, não produz por si próprio mercadorias (ou seja, não entra, como tal, na produção de mercadorias), ou quando os quase-produtos criados por ele assumem um carácter de mercadoria apenas formal e não substancial. Seria uma pseudo-solução, com apego exagerado ao empirismo, querer individuar o carácter substancial da mercadoria na tangibilidade "material" do produto, declarando "produtivo" por exemplo o trabalho para a produção de máquinas de lavar ou automóveis e "improdutivo" o
trabalho do cabeleireiro, do funcionário dos correios ou do polícia, porque os "produtos" "corte de cabelo", "expedição de cartas" ou "segurança" não são materiais em sentido estrito. Semelhante definição teórica - cujo pano de fundo ainda é, de forma bastante clara, o materialismo vulgar produtivista do antigo movimento operário (industrial), com o seu falso orgulho pelo produto industrial - constitui quando muito uma primeira e vaga aproximação ao problema.
De facto, é impossível esclarecer a questão com uma definição positivista do caso singular e imediato. Pelo contrário, o carácter do trabalho "em si" improdutivo só pode ser deduzido do processo de reprodução do capital, em que o trabalho abstracto passa por diversas formas de transformação e de representação. Não é preciso que o carácter improdutivo de certos trabalhos seja determinado externamente por definições arbitrárias; antes, ele deve aparecer no próprio cálculo como "custo". As massas de trabalho improdutivo e o seu pagamento aparecem na perspectiva capitalista como "faux-frais"
(Marx), como custos falsos. Porém, deve distinguir-se o nível de capital singular e o de capital conjunto. No plano do capital singular, isto é, da empresa, o trabalho improdutivo mas necessário pode facilmente ser indicado na forma de "despesas gerais", por exemplo, despesas com a gestão do pessoal, a contabilidade, a limpeza etc. Estas actividades são indispensáveis, num sentido técnico-organizativo, para o funcionamento geral da empresa; mas não entram na sua efectiva produção de mercadorias (a produção de automóveis ou de piaçabas, por exemplo), ainda que devam naturalmente ser remuneradas, tal como o trabalho da própria produção empresarial das mercadorias.
No plano do capital singular, o carácter improdutivo destes trabalhos não se manifesta absolutamente ("em si"), mas apenas relativamente, na medida que as "despesas gerais" duma empresa podem aparecer como produção substancial de mercadorias ou serviços da parte duma segunda empresa, que se especializou em fornecê-los a outras (por exemplo, uma firma que emprega pessoal de limpeza e oferece este "produto limpeza" a outras firmas). Do ponto de vista da economia empresarial, o trabalho de limpeza, improdutivo numa empresa automobilística, constitui por sua vez o trabalho produtivo da empresa de serviços, e ingressa portanto na sua produção substancial de mercadorias;
ao passo que o trabalho dos contabilistas da empresa de limpeza faz parte de suas "despesas gerais" improdutivas. É possível, porém, que uma terceira firma efectue a contabilidade para cada tipo de empresa, tornando esta a sua especial mercadoria-serviço para oferta: nesse caso, para os fornecedores destes serviços especiais, até a própria contabilidade se torna um trabalho produtivo em sentido empresarial. Pode-se imaginar toda uma cadeia desse género e, com efeito, a externalização de trabalhos considerados como "despesas gerais" para empresas de serviços constitui uma das grandes tendências da terceirização: graças à sua especialização, os fornecedores de serviços podem racionalizar os procedimentos operativos e, assim, fazer
ofertas tais que a organização destes trabalhos no interior da empresa se torna antieconómica (12).
A terceirização no sentido referido até aqui transforma, portanto, ao que parece, trabalho improdutivo em trabalho produtivo, através da simples autonomização formal em empresa própria ( 13). Mas as coisas são diferentes no plano do capital conjunto, que como é óbvio não aparece imediatamente no cálculo dos chamados sujeitos económicos, mas que pode todavia ser reconstruído teórica e analiticamente. Em primeiro lugar, é preciso dizer que as "despesas gerais" improdutivas reaparecem no plano do capital conjunto, ou seja, as externalizações operadas pelas empresas singulares e os reagrupamentos no interior da reprodução conjunta reaparecem nos cálculos. As
"despesas gerais" improdutivas podem ser reduzidas, pelos motivos indicados, externalizando-as em empresas autónomas, mas, no plano do conjunto da sociedade, elas são sempre uma subtracção da mais-valia conjunta. A representação dos "custos" (da empresa que cria mais-valia) como "ganhos" (da empresa que fornece serviços) desaparece no plano do capital conjunto. Marx demonstrou isso exemplarmente para os custos das transações puramente comerciais (compra e venda, intermediação monetária etc.): uma grande parte do trabalho no comércio a retalho e todo o trabalho no sistema dos bancos, dos créditos e dos seguros, assim como o da "superestrutura" jurídica, é "em si" improdutivo, porque não faz mais que "mediar" as relações
mercadoria-dinheiro, sem ser ele mesmo uma produção substancial de mercadorias. É verdade que os assalariados destes sectores criam um ganho empresarial, mas a sua actividade, efectivamente, limita-se a mediar a redistribuição entre os capitais singulares da mais-valia gerada exclusivamente nos sectores produtivos: por meio desse trabalho improdutivo de mediação, o capital comercial apropria-se duma parte da mais-valia conjunta (explicação detalhada nos volumes 2 e 3 de O Capital)
Qual é então o critério económico decisivo que permite determinar conceptualmente no plano do capital conjunto (isto é, depois de eliminar a distorção típica do capital singular), se um trabalho é produtivo ou não? A distinção entre a "verdadeira" criação de valor e a actividade de "simples mediação" (no sentido comercial, monetário ou jurídico) não é suficiente, pois ainda se apega à definição imediata de cada dispêndio de trabalho. Esta definição só pode indicar o motivo exterior pelo qual uma actividade é considerada um trabalho improdutivo, mas não chega a esclarecer o conceito económico subjacente. Uma definição do trabalho produtivo, referida ao processo de
mediação da reprodução capitalista no seu todo, só pode ser avançada em última instância em termos de teoria da circulação. Quer dizer: em termos da teoria da circulação, só é produtivo de capital aquele trabalho cujos produtos (e também cujos custos de reprodução) refluem no processo de acumulação do capital; ou seja, aquele cujo consumo é recuperado de novo na reprodução ampliada. Só este consumo é um "consumo produtivo", não apenas imediatamente, mas também em referência à reprodução (14). Isso ocorre quando os bens de consumo são consumidos por trabalhadores que são por sua vez produtores de capital, cujo consumo não se esgota em si, mas retorna na forma de energia produtiva de capital, num novo ciclo de produção
de mais-valia. Inversamente, todos os bens de consumo que são consumidos por trabalhadores improdutivos ou por não-trabalhadores (crianças, reformados, doentes etc.,) não retornam, como energia renovada, na criação de mais-valia: no plano do conjunto da sociedade, trata-se apenas de um consumo que desaparece sem deixar rastos e sem impulsionar a reprodução capitalista. O mesmo vale também para a produção de bens de investimento: em termos de teoria da circulação, este trabalho só é produtivo se o consumo de seus produtos se dá no contexto da criação de mais-valia, isto é, se retorna ao ciclo de produção da mais-valia. Pelo contrário, todos os bens de investimento cujo consumo ocorre fora da produção de mais-valia, integram, no
plano do conjunto da sociedade, o mero consumo que "cai fora" da reprodução do capital global e do seu movimento de acumulação.
Conceber o trabalho produtivo em termos de teoria da circulação pode parecer estranho ao pensamento definidor, infestado de positivismo, mas é uma abordagem que permite resolver o problema para lá da tosca "materialidade" da mercadoria produzida. Nesta perspectiva, o trabalho do funcionário público ou do polícia é rigorosamente improdutivo, pois o consumo dos seus "produtos" (não importa se organizados pelo Estado ou comercialmente) desde o início não entra, de modo algum, no "consumo produtivo". Mas também a produção de carros de combate é improdutiva, embora se trate duma mercadoria mais que tangível; de facto, o consumo de carros de combate (da energia de
"nervo, músculo, cérebro" gasta para tanto) não pode, nem com a melhor boa vontade do mundo, reaparecer no ciclo da criação de mais-valia, mas "cai fora" dele. Improdutiva é ainda construção de estradas, pois o consumo de estradas não é "consumo produtivo" na criação de mais-valia e em regra igualmente "cai fora" dela. Produtivo seria o trabalho do barbeiro, no caso de cortar o cabelo a trabalhadores produtivos (o que entra nos custos para renovar sua energia produtiva de capital); o mesmo serviço seria então improdutivo se prestado a trabalhadores improdutivos. Mesmo a produção de automóveis, frigoríficos e máquinas de lavar é improdutiva em todos os casos em que tais produtos são consumidos por trabalhadores improdutivos; a
energia gasta para tanto novamente "cai fora" do processo reprodutivo do capital conjunto.
Por outras palavras: o capitalismo só é substancialmente possível se parte suficientemente crescente (e que aumenta com a acumulação de capital) do "emprego" é capaz de produzir, no contexto das relações mercadoria-dinheiro, uma identidade em si mediata de "consumo produtivo", na qual a produção e o consumo do "valor" interagem, de modo a fazer coincidir em amplitude suficiente forma-fetiche e substância-fetiche. Rosa Luxemburgo aflorou esta problemática, mas não pôde desenvolvê-la, pois a sua argumentação restringia-se ao plano superficial da "realização" (circulativa) da mais-valia, em vez de analisar o problema a partir do ciclo interno de reprodução do próprio
capital (que no plano do mercado só "aparece" indirectamente), ou seja, a partir das categorias de trabalho produtivo e improdutivo. No entanto, a sua tese duma dependência crescente da acumulação do capital em relação à renda monetária de "terceiros" (que se acham fora da verdadeira reprodução produtiva do capital) aproxima-se do nó do problema. Certamente Rosa Luxemburgo, filha do seu tempo, ainda via estes "terceiros" no contexto duma produção de mercadorias pré-capitalista ou não-capitalista (camponeses, artesãos, colónias), cujo poder de compra devia alimentar o mercado capitalista que se tornara demasiado reduzido, devido ao "subconsumo" estrutural do proletariado industrial. Assim, o capitalismo parece depender, no plano da
realização do mercado, dos sectores não-capitalistas da produção e das zonas não-capitalistas da Terra; em consequência, ele deveria atingir o seu limite absoluto à medida que absorvesse e assimilasse estas zonas e sectores. É verdade que Rosa Luxemburgo menciona de passagem, entre os "terceiros", os próprios funcionários públicos; mas ainda não lhe passa pela cabeça que, exactamente ao contrário da sua argumentação, o limite estrutural do capital poderia consistir no próprio facto de que a sua dinâmica cria um número crescente de sectores improdutivos e de "terceiros", cujos réditos e cujo consumo se tornam um ónus crescente, por fim insuportável para a reprodução do capital (15).
Com efeito, o problema que Rosa Luxemburgo reconheceu, embora por assim dizer às avessas, apresenta-se justamente desta forma: a parcela de dispêndio de força de trabalho que não retorna mais à circulação ampliada do capital cresce estruturalmente, até por fim superar o limiar crítico. Ironicamente, poder-se-ia dizer que os "custos empresariais" ou as "despesas gerais" da maravilhosa economia de mercado crescem tão desproporcionadamente, que por fim ela própria se torna não rentável, segundo os seus próprios critérios. A maior parte do trabalho terciário, estruturalmente em contínuo crescimento, não pode retornar à produção de mais-valia como "consumo produtivo", e
isso por diversos motivos; em parte estão na natureza ou no carácter destes mesmos trabalhos, em parte trata-se de limitações externas.
No caso dos trabalhos de transação puramente comercial, jurídica ou monetária, o que os impede de entrar ou retornar à produção substancial de mais-valia é o carácter de simples mediação lembrado por Marx (embora os "produtos" que eles fornecem apareçam no mercado); outros produtos não podem sequer assumir à partida a forma de mercadoria, uma vez que o seu consumo não é privatizável (por exemplo, medidas necessárias para a manutenção da qualidade do ar); contudo, numa economia total do dinheiro, também estes trabalhos devem ser pagos e aparecer no mercado de trabalho. Com outros produtos (estradas, canalizações, escolas, hospitais etc.) é possível, em princípio,
uma privatização do consumo (de modo mais ou menos penoso); mas seria preciso reservar este consumo a uma minoria capaz de pagar, o que entraria em contradição com o carácter ubíquo duma infra-estrutura social. A maior parte da infra-estrutura não pode ser, portanto, organizada como produção empresarial para o mercado (nesse caso, o volume das rendas de massa deveria ser o dobro ou o triplo do alcançável na economia de mercado). Diferente é ainda o caso de sectores comerciais como o turismo: poder-se-ia discutir se se trata de um improdutivo consumo de luxo de poucos países ricos, mediado apenas pela singular potência na apropriação e na redistribuição da mais-valia mundial (três quartos da humanidade não fazem turismo), ou
se este consumo entra parcialmente (na medida que é desfrutado por trabalhadores produtivos) nas despesas produtivas de reprodução, regressando novamente à produção de mais-valia (16).
O problema que surge aqui é porém muito mais complicado do que parece nos diversos discursos sobre a "Justiça", os quais muitas vezes supõem que aos países pobres seja subtraída uma parte da "sua" produção de valor, através talvez de pressões políticas, etc. Na verdade, é a própria "igualdade" do parâmetro de valor que faz com que os países capitalistas com pouco capital possam apropriar-se duma massa relativamente menor de valor em relação a países com muito capital. O sistema de coordenadas não é constituído por processos autónomos "nacionais" de criação de valor, mas pela criação de valor por parte do capital conjunto global, cujo parâmetro é o nível de
produtividade válido no mercado mundial. Do mesmo modo que um capital singular empresarial obtém no mercado, não um valor "individual" de acordo com a medida do seu tempo de trabalho efectivamente gasto, mas, através do preço realizável no mercado, apenas uma parte da criação conjunta do valor, de acordo com o nível de produtividade socialmente válido, assim também uma economia nacional não pode obter no mercado mundial uma massa de valor correspondente ao seu dispêndio nacional de trabalho, mas sempre apenas a parte da produção global de valor que corresponde à sua produtividade; e esta é, de facto, relativamente mais baixa nos países com pouco capital. Tanto na relação entre capital singular e capital conjunto, como na relação
entre economia nacional e mercado mundial, o paradoxo está no facto de que aquelas empresas e aqueles países que, graças à sua produtividade relativamente mais alta, criam menos valor (ou seja, menos "trabalho coagulado" fictício) - sendo suficiente menos trabalho por cada produto, ou seja, por cada emprego de capital - podem apropriar-se, na concorrência do mercado, da maior parcela de valor real (válido) produzido pelo capital conjunto mundial. Porém no seu estágio terminal, duma globalização imediata do capital, esta concorrência demonstra o absurdo da produção de valor e de mais-valia como tal, como se verá a seguir.
Seja como for, é certo que a "indústria " do turismo, pelo menos a do turismo de massas, constitui no contexto da apropriação global da mais-valia uma zona cinzenta na distinção entre trabalho produtivo e improdutivo. Embora seguramente ainda existam outros casos-limite, outras zonas cinzentas e formas "mistas" de actividade, o certo é que, no conjunto, aumenta incessantemente a parcela dos trabalhadores improdutivos que (do ponto de vista da produção de mais-valia) nada mais representam que consumo social, ou seja, "despesas gerais". As causas últimas são, por um lado, o processo de cientificização promovido pela concorrência e, por outro, os crescentes "custos de
reparação" do homem e da natureza, provocados por "danos sistémicos". Por meio da externalização empresarial e da conexa racionalização das "despesas gerais" empresariais, pode-se lograr diminuir os custos do trabalho improdutivo, mas esta diminuição é sobrecompesada pela expansão estrutural destes sectores, que são "tecnicamente" necessários, embora não criem em substância a mais-valia. Os custos das transacções comerciais, monetárias ou jurídicas, os custos secundários do consumo improdutivo de luxo, os custos administrativos, os custos das infra-estruturas e dos danos sócio-ecológicos, os custos das condições gerais e da logística da produção real de mais-valia crescem de tal maneira que esta última começa a sufocar.
4. Terceirização, capital que rende juros e crédito estatal
Para evitar este sufoco é necessária nova intervenção do crédito, ou seja do capital que rende juros, cuja parcela na reprodução aumenta mais uma vez de forma vertiginosa. Aos custos do crédito para a produção industrial de mais-valia, que aumentam em escala secular por causa da crescente parcela de capital constante, somam-se agora os custos do crédito, também em aumento secular, para as condições gerais e de infra-estrutura do mercado total. Desse modo, porém, o problema agrava-se enormemente. De facto, se no primeiro caso os créditos sempre crescentes ainda são pelo menos utilizados na efectiva produção da mais-valia (embora pouco a pouco surja o risco duma
desproporção entre os custos do crédito e a mais-valia dele resultante), no segundo caso o crédito tem de ser completamente pulverizado num consumo improdutivo. Enquanto se trata de sectores comerciais improdutivos, estes pressionam indirectamente a taxa de juros do conjunto social; quando se trata de sectores da infra-estrutura mediados pelo Estado, pelos custos sócioecológicos etc., o resultado é uma pressão tributária directa sobre os salários e lucros, ou então o próprio Estado tem de recorrer ao crédito, não lhe bastando mais as suas receitas reais ( 17). A parcela crescente de trabalho improdutivo verifica-se ainda numa forma modificada no cálculo dos sujeitos económicos, como custos crescentes (da parte das "despesas
gerais" sociais mediadas pelo Estado, por exemplo sob a forma de "encargos salariais"), que não só são pretexto para jeremiadas segundo o lema empresarial "aprenda a gemer sem sofrer", mas também se tornaram, de facto, um problema para a reprodução social.
Além disso, é preciso considerar um outro fenómeno, pouco observado pela teoria. Na mesma medida em que aumenta a parcela dos sectores improdutivos na reprodução conjunta, outra parte crescente da mesma produção industrial torna-se estruturalmente improdutiva. Esse simples facto já resulta - como demonstrámos - duma consideração em termos de teoria da circulação. A massa de trabalhadores improdutivos - que aumenta inexoravelmente e que é paga apenas com o dinheiro creditício, renovado com créditos sempre novos - tem, naturalmente, de comer, beber e habitar, além de guiar carros, consumir televisores, frigoríficos etc. Como porém este consumo, no seu caso, não é
produtivo e não retorna, portanto, à produção de mais-valia, isso significa apenas que, de forma indirecta, uma parte crescente da produção industrial depende, paradoxalmente, dos sectores improdutivos financiados com créditos.
O paradoxo está no facto de que, por um lado os sectores improdutivos devem ser alimentados em última instância (não importa quais sejam as mediações) pela produção real de mais-valia, ao passo que, por outro lado, a produção industrial, como agente principal da criação de mais-valia, torna-se ela mesma, devido ao crescente consumo de trabalhadores improdutivos, cada vez menos (ou, hoje em dia, apenas aparentemente) uma produção real de mais-valia, sendo alimentada pelas rendas improdutivas. A base efectiva, assim, é muito mais restrita do que parece. A distinção decisiva entre trabalho produtivo e improdutivo não coincide com as relações absolutas de grandeza
entre a produção industrial nominal e o "sector terciário", mas - considerada em termos de teoria da circulação - é transversal a elas. Na verdade, a produção industrial de base depende do crédito não só à primeira potência, isto é, devido ao financiamento do próprio capital fixo, mas também à segunda potência, porque depende de mercados de bens de consumo financiados com créditos (18). Se o consumo estatal e o crédito estatal, avolumados como numa avalanche, desempenham aqui um papel central, isto também depende, está claro, do facto de que o Estado (diversamente duma entidade privada que toma créditos) é tido como um "devedor infalível": o que significa, porém, que, no caso duma grande crise monetária e creditícia, o Estado não
abrirá falência, mas simplesmente expropriará os seus cidadãos-credores (19).
5. Globalização e indústrias fantasmas
Até agora, tratou-se apenas do conceito de trabalho improdutivo em sentido absoluto ("em si"), no plano do capital conjunto, da maneira como ele pode ser analisado, no seu aspecto multifacetado, nos termos da teoria da circulação. Mas não menos relevante é a ascensão dentro do sistema industrial da parcela de trabalho que só é improdutivo num sentido relativo. Como se sabe, uma actividade produtora de mercadorias é improdutiva em sentido relativo, independentemente de suas demais características, quando a sua produtividade (a relação entre trabalho gasto e resultado da produção) cai abaixo do nível social dado, isto é, abaixo da produtividade média social.
Obviamente, é decisivo o campo de acção desse nível, isto é, a questão se este campo é a região, a economia nacional ou o mercado mundial. Habitualmete, uma produção de mercadorias limitada regionalmente ainda não se organiza de todo segundo a racionalidade empresarial e só se vincula indirectamente à valorização do capital (a chamada pequena produção de mercadorias, artesanato, oficinas de reparação etc.). Neste plano, a pressão de um standard social sempre mais elevado ainda não actua, ou só o faz em pequena medida. Só no plano das economias nacionais tornadas coesas no decurso da história, se afirma também, a par da "taxa média de lucro", uma produtividade social média nos diversos sectores, que se torna um ditame para as
empresas.
Diverso por sua vez é o caso do mercado mundial. Aqui não há algo como uma média mundial, mas prevalece o nível de produtividade dos países mais desenvolvidos. A causa é simples: uma média social só pode desenvolver-se na base duma contemporaneidade histórica, ou seja, no âmbito de economias nacionais historicamente maduras, cujos sectores produtivos se originaram num nível comum e podem, assim, no processo constante de cientificização, aumento de intensidade de capital etc. elaborar um parâmetro comum de produtividade. A situação é diversa quando sistemas industriais com diversos níveis históricos de desenvolvimento entram em contacto sem filtros. Em vez da
formação de um novo nível médio (como supõe erradamente Paul Mattick), o que abaixaria rapidamente o nível das economias nacionais mais desenvolvidas (mais desenvolvidas porque primeiras a "ingressar" na industrialização e na capitalização), o que ocorre é a aniquilação e a liquidação da produção não-contemporânea e pouco produtiva (20).
De novo é o Estado que deve intervir, tanto para boa parte das "despesas gerais" internas do sistema produtor de mercadorias, quanto no que se refere às pressões externas da concorrência. O meio mais simples com que se filtra a desigualdade - ou não-contemporaneidade - é um meio puramente administrativo: erguer barreiras alfandegárias. Porém tal meio só funciona quando a integração no mercado mundial é relativamente baixa, com o consequente isolamento em relação aos progressos tecnológicos alcançados no mundo e com a rápida queda da produtividade. Logo que a mediação com o mercado mundial atinge um grau mais elevado, torna-se subitamente claro que o isolamento
alfandegário comporta custos notáveis, já que tudo o que não se pode deixar de importar deve ser adquirido aos preços de mercado mundial, e para tanto é necessário primeiro obter divisas com as próprias exportações. Com as barreiras alfandegárias, pode-se proteger a própria indústria subprodutiva da concorrência estrangeira mais competitiva, mas quando é preciso exportar os próprios produtos para obter divisas estes só podem ser vendidos a preços do mercado mundial, ou seja de acordo com o nível de produtividade dos países mais desenvolvidos que dominam o mercado mundial. Em consequência, delineia-se rapidamente uma dicotomia nos terms of trade, isto é, quantidades sempre maiores do próprio trabalho devem ser trocadas por
quantidades sempre menores de trabalho alheio (21). Tal circunstância suscitou a temática ilusória da troca "justa" ou "injusta".
A situação agrava-se pelo facto de os impostos elevados sobre a importação provocarem como contrapartida impostos igualmente altos para as próprias mercadorias exportadas para outros países, tornando o problema das divisas ainda mais grave. No fim das contas, nada mais resta ao Estado senão subvencionar as próprias indústrias, seja para salvá-las no mercado interno, mesmo no caso duma redução das tarifas aduaneiras, seja para torná-las artificialmente competitivas nos mercados de exportação (subvenções às exportações). Ora, essas subvenções devoram tanto mais créditos, quanto maiores são as partes da indústria atrasadas quanto ao nível global de produtividade,
definido pelos primeiros na classificação. No caso de indústrias isoladas (mineração, siderurgia, indústria naval, têxtil e calçado, móveis etc.), isso também se aplica aos próprios líderes do mercado mundial.
A tão evocada globalização dos mercados financeiros e de produtos, a decomposição internacional dos processos produtivos e a concorrência global para oferecer os mais convenientes locais de produção começam hoje a desintegrar a própria coesão das economias nacionais. No fundo, uns poucos centros de produção altamente produtivos, distribuídos pelo globo segundo o critério dos custos mais baixos (o "factor oferta" dos monetaristas), poderiam inundar de mercadorias o mundo inteiro, aniquilando a maior parte das indústrias existentes. O resultado seria naturalmente o colapso do já precário poder de compra global; o sistema produtor de mercadorias demonstraria com isso
o próprio absurdo, não somente em termos estruturais e de economia interna, mas também no plano do mercado mundial. Mais uma vez, portanto, o crédito estatal tem de ser dilatado até ao infinito, e as despesas com as subvenções ultrapassam todos os limites conhecidos até agora. Para muitos países, este factor já constitui a parte mais importante de todo o crédito. A alternativa seria o franco colapso destas economias nacionais; a reprodução capitalista tornar-se-ia então extremamente minoritária, restrita a poucas "ilhas de produtividade" para o mercado mundial, mercado este que, generalizando-se este estado de coisas deixaria de existir. Actualmente, apesar das declarações ideológicas em sentido contrário, os custos do crédito
para as subvenções continuam necessariamente a crescer à escala mundial. Na verdade, cresce a parte do sistema industrial global que já depende directamente ( ou seja, não só através do consumo dos crescentes sectores improdutivos) da simulação creditícia; do ponto de vista da lógica do sistema, trata-se de meras indústrias-fantasmas, geradas e mantidas em vida artificialmente (22). Depois dos crescentes custos creditícios para a produção verdadeira e própria de mais-valia, e da crescente parcela de trabalho estruturalmente improdutivo e financiado através de créditos, vemo-nos aqui perante a terceira figura da dependência do conjunto da sociedade em relação ao crédito.
6. Dessubstancialização do dinheiro e inflação estrutural
Somando as três figuras da dependência estrutural do crédito, fica claro que a distância inexoravelmente crescente entre dinheiro creditício e substância abstracta do trabalho do sistema deve conduzir ao colapso. Isso significa que, durante um período de incubação, que durou várias décadas, as cadeias creditícias se prolongaram cada vez mais, antecipando um futuro sempre mais distante. As instituições financeiras cresceram então em escala secular (23), acompanhadas pela explosão do crédito estatal. O novo estágio de desenvolvimento do capitalismo, que anuncia não só o seu apogeu, mas também o seu limite absoluto, foi alcançado com a Primeira Guerra Mundial.
Teóricos do movimento operário tão diversos como Lenine e Rosa Luxemburgo (como vimos, esta última chegou a aflorar o problema, e num nível de reflexão muito mais alto que o "politicista" Lenine) adivinharam algo de verdadeiro quando falavam do "estágio derradeiro e supremo" (Lenine) e até mesmo do "colapso" (Luxemburgo); só que este "estágio" não terminaria o seu curso senão ao fim deste século, e o limite histórico efectivo já não pode ser apreendido adequadamente com os conceitos de então, pois isso ultrapassa o próprio horizonte teórico do antigo movimento operário como tal.
Antes da Primeira Guerra Mundial, o capitalismo era apenas um segmento (ainda que em contínua expansão) da reprodução social, e ainda não havia invadido todos os sectores produtivos; o Estado não havia ainda assumido uma função determinante no processo de reprodução e financiava-se principalmente por meio de impostos (um Orçamento próximo do equilíbrio entre despesas e receitas era considerado o pressuposto fundamental para uma política séria); dinheiro em sentido próprio era o metal precioso (sobretudo o ouro), o que equivale a dizer que os papéis-moeda em circulação eram sempre convertíveis em ouro. Estes três elementos dissolveram-se com a Primeira Guerra
Mundial que, como a Segunda apenas duas década mais tarde, se revelaria um gigantesco acelerador do desenvolvimento capitalista. A guerra industrializada não só escancarou a porta para a sucessiva vitória das indústrias fordistas e para uma penetração capilar do capital na sociedade como um todo, mas também obrigou o Estado a assumir o papel (obviamente há muito já preparado) de responsabilidade pela logística e pelas "despesas gerais" deste processo.
Os contemporâneos não se deram conta disso; de início a maior parte via no novo curso apenas uma interrupção da suposta normalidade pela guerra. Mas logo se tornou evidente que não podia haver um retorno às estruturas do pré-guerra. A "crise financeira do Estado tributário" torna-se o grande tema que, até depois de meados do século, deu causa a inúmeras discussões acesas (Rudolf Goldscheid e Joseph Schumpeter em 1917/18, James O’ Connor em 1973, Klaus-Martin Groth em 1978 etc.). De 1914/15 até hoje, isto é, ao longo de 80 anos, foram revolvidas todas as bases da economia estatal, da teoria monetária, da política económica e financeira. Durante todo este tempo, o
crédito estatal cresceu quase ininterruptamente, e a teoria não fez senão reagir a este processo desconcertante; primeiro assombrada, depois cada vez mais destemida e à vontade. Se a perigosa expansão das finanças estatais para além de todas as receitas reais ainda era considerada, no fim da Primeira Guerra Mundial, como um fenómeno passageiro, uma crise a ser superada, Keynes e o keynesianismo tiveram de elevar à pressa os novos fenómenos ao status duma nova normalidade que, como Schumpeter havia precocemente observado, não implicava um colapso global imediato. A pouco e pouco, concluíu-se que jamais aconteceria o colapso estrutural, induzido pela expansão do sistema creditício.
Quase os mesmos temores e quase o mesmo alívio pelo fim do alarme se repetiram no final dos anos 70, quando novamente se impuseram à atenção os limites do endividamento não só dos Estados Unidos com o seu consumo de potência mundial, mas do "Estado tributário " em geral (na Alemanha, o apogeu da crise foi marcado pelo conturbado fim da coligação entre liberais e social-democratas). Não se verificando nem então o big bang, todos se tranquilizaram de novo e desenvolveu-se um estado de espírito de desenvoltura sem igual desde o início da desproporção estrutural entre trabalho (produtor de capital) e dinheiro. Quanto mais o sistema de crédito se autonomizava,
mais as notícias temíveis e as crises de outrora se transformavam em "contradições secundárias" inócuas e em princípio fáceis de resolver (24). Um argumento interessado e historicamente cego, que aparece muitas vezes nesse contexto, é a afirmação de que o problema não seria propriamente novo; em todos os séculos a partir do Renascimento, e até mesmo na famosa Roma antiga, teria existido uma alto endividamento estatal sem conduzir ao colapso.
Quem argumenta assim não sabe do que fala. Não é possível, de facto, nem em sentido absoluto nem relativo, comparar os exemplos do passado com o desenvolvimento havido após a Primeira Guerra Mundial. O endividamento excessivo dos Estados ou dinastias não era estrutural no sentido do século XX; ele era ou vinculado ao financiamento (temporário) de guerras ou (caso fosse mais duradouro) às despesas da Corte etc., mas nunca se estendeu à reprodução social como tal, tornando-se a sua alma. A "lei da quota crescente do Estado" (sobre o produto interno), já enunciada em 1863 por Adolph Wagner, economista e "socialista de cátedra" alemão, e cabalmente confirmada em pleno
desenvolvimento real, aponta para a nova qualidade do endividamento estatal, sob as condições da reprodução totalmente capitalista e cientificizada (25). Criou-se, assim, uma situação completamente nova: o problema das finanças estatais e portanto do "capital fictício" na forma do crédito estatal, já não diz respeito só ao aparelho estatal, mas dele depende a própria vida social organizada segundo a forma-mercadoria.
Num nível elevado de cientificização e de intensificação do capital, as despesas gerais e as condições infra-estruturais do processo de criação do valor começam a sufocar a própria criação do valor, o que se torna evidente numa paradoxal inversão da relação entre Estado e sociedade: já não é a sociedade que nutre o Estado, para que este cuide dos "assuntos gerais", mas pelo contrário é o Estado que deve alimentar a sociedade com o "capital fictício", para que esta possa manter-se na sua forma tornada obsoleta de sistema produtor de mercadorias. O processo em que massas cada vez maiores de trabalho futuro são hipotecadas e "capitalizadas", o nutrir-se
vampirescamente do futuro, abarca agora tanto a reprodução do capital quanto a reprodução do Estado e as duas formas de dependência do crédito interligam-se. Mas assim a procura monetária de crédito estatal entra em concorrência com a procura monetária de crédito empresarial, elevando definitivamente às alturas a taxa de juros, independentemente dos movimentos cíclicos. Assim o Estado, logo após tê-lo assumido, perde o controle da política económica e financeira, uma vez que a sua própria procura insaciável nos mercados do crédito impede uma política coerente, no sentido da diminuição da taxa de juros (26).
Naturalmente, a necessidade desenfreada de crédito não podia permitir que o dinheiro conservasse a forma que mantivera até então. Teria de cair por terra a convertibilidade em ouro e, portanto, a real substância-valor dos sistema monetários. Já a fase inicial do conflito mundial havia demonstrado que não era mais possível financiar uma guerra industrializada com dinheiro baseado em ouro; o desenvolvimento ulterior mostrou que a mobilização e a capitalização totais fordistas, desencadeadas pela guerra mundial, tornaram irreversível mesmo nos sectores civis o incremento do consumo estatal financiado com créditos. Embora Keynes ainda visse o consumo estatal como uma
medida temporária de emergência para "pôr em movimento" a conjuntura, e portanto como uma intervenção sobretudo externa, tratava-se na verdade - como se tornou evidente após a Segunda Guerra Mundial - duma mudança estrutural duradoura, fruto das necessidades internas do sistema. O programa keynesiano suposto para fazer frente às crises (deficit Spending) transformou-se num forno sempre aceso, para queimar o futuro hipotecado. Naturalmente assim se tornou de todo impossível um regresso ao gold standard, pois as massas de dinheiro creditício agora necessárias não podiam de forma alguma ser relacionadas com uma autêntica substância-valor do dinheiro (27).
Por outras palavras: a dessubstancialização do próprio dinheiro tornou-se uma realidade. Para o ponto de vista superficial da teoria económica burguesa - que nunca conseguiu compreender as supostas implicações "filosóficas" do conceito económico de valor e que há muito se limitou, no plano prático, a produzir manipulações de técnica financeira ou a formular, no plano teórico, platónicos modelos matematizados - isso naturalmente não era uma catástrofe. Assim, a partir de Keynes as pessoas esforçaram-se por assegurar que o ouro era somente um "metal bárbaro", sem mais nenhum significado monetário. É claro que ninguém se perguntou se a mediação social monetária e o
automovimento fetichista do "valor" não seriam eles próprios um primitivismo bárbaro, que no fim de contas não fica atrás do "bárbaro metal". A dessubstancialização do dinheiro significa nada menos que a sua desvalorização efectiva, e portanto a perda duma função monetária essencial: a de meio de conservação do valor.
Por outras palavras: a conservação do valor através do dinheiro repousa, após a perda da convertibilidade em ouro, apenas sobre a convenção e a aceitação subjectiva, mas não mais sobre um fundamento objectivo. Isso significa que a conservação do valor por parte do dinheiro se acha indissoluvelmente ligada aos tempos de bonança económica, mas que ela não superaria uma crise mais profunda da reprodução. Assim, o sistema desactivou o seu próprio dispositivo interno de segurança. Já se vislumbra aqui a quarta figura da desvinculação entre "trabalho" e dinheiro, sem a qual na verdade as outras não teriam podido desenvolver-se: esta situa-se no plano e na forma do
próprio dinheiro. A consequência lógica desta desssubstancialização estrutural do dinheiro é necessariamente a inflação estrutural.
Ainda nesta perspectiva, são muito precipitadas as declarações tranquilizadoras dos economistas keynesianos (e também de grande parte dos marxistas). Não constitui nem meia verdade a afirmação segundo a qual a rápida e alta inflação dos preços, por ocasião da diminuição explícita ou velada do conteúdo de metais preciosos através do cerceamento da moeda na Baixa Idade Média, ou por ocasião da supressão da convertibilidade dos papéis-moeda em ouro ou prata (por exemplo, o famigerado papel-moeda de Law na época do absolutismo na França, as ordens de pagamento do governo revolucionário francês ou o dólar-papel na guerra civil americana) seriam apenas uma
consequência da falta de hábito e de técnica financeira. De facto a desvalorização temporária da moeda no passado não foi superada através do uso habitual do dinheiro dessubstancializado, mas pelo contrário através da imposição generalizada do gold standard. Além disso, as economias de guerra de ambos conflitos mundiais foram seguidas por uma drástica desvalorização monetária, a começar obviamente pela Alemanha vencida: em 1923 como hiperinflacção e em 1945-48 como choque deflaccionário (invalidação dos depósitos e papéis-moeda).
É também na época da expansão keynesiana do crédito (sobretudo do crédito estatal), depois da Segunda Guerra Mundial, que a inflação se tornou omnipresente; é justamente nesse período que ela passou de oscilação temporária a condição estrutural estável. Nesta inflação estrutural estável - que pôde ser ocasionalmente reduzida com intervenções de política monetária dos bancos emissores e dos legisladores, mas nunca inteiramente eliminada - a massa oculta do trabalho improdutivo surge à superfície monetária e no cálculo dos sujeitos económicos, tal como no crescente aumento dos custos salariais e do pagamento de juros sobre créditos das empresas, do Estado e dos
consumidores. Se esta inflação estrutural se move num plano relativamente baixo, pelo menos nos países da OCDE, isto deve-se por um lado à conjuntura que ainda "avança" (embora já se percebam profundos fenómenos recessivos), e por outro também à parcial externalização do problema para as regiões perdedoras do mercado mundial (28).
Graças à sua vantagem na produtividade e na intensidade de capital, as metrópoles industriais puderam durante muito tempo sugar a maior parte da mais-valia global e manter acesso ao crédito internacional, para além dos mercados financeiros nacionais; ao passo que a periferia e os retardatários históricos, para manter um mínimo de reprodução, tiveram de recorrer cada vez mais à criação estatal de dinheiro sem substância, ou seja à inflação do papel-moeda. Contudo, em virtude do processo de globalização a partir dos anos 80, também os velhos centros capitalistas se acham cada vez mais próximos desta situação. O financiamento temporário através de emissões de
papel-moeda, típico da economia de guerra durante os conflitos mundiais, não só se repete hoje em grande parte do mundo, mas tornou-se já a condição duradoura da reprodução social como tal. Este fenómeno deveria ser considerado como a quinta figura da desvinculação entre "trabalho" e dinheiro, pois, aqui, o dinheiro dessubstancializado não passa mais nem pelos mercados financeiros regulares; antes, a reprodução social sob a forma-mercadoria é alimentada directamente com volumes de moeda criados do nada, com base na simples decisão estatal.
Na América Latina, na África, em muitas áreas da Ásia e no próprio leste Europeu, estamos perante o fenómeno totalmente novo dos ciclos hiperinflaccionários, isto é, de um movimento da economia que não segue mais o ciclo "regular" da acumulação do capital, mas sim o ritmo da emissão de papel-moeda, numa cadeia ininterrupta de desvalorização e recomposição da moeda. De facto, não é exagero falar hoje do colapso global da economia monetária (e portanto da moderna "sociedade do trabalho" e do respectivo sistema de mercado). Só o velho eurocentrismo - que a este respeito curiosamente é bem pouco criticado - impede uma avaliação adequada da real evolução mundial.
Enquanto o Ocidente por ora ainda se acha na fase da inflação estrutural a baixos índices do pós-guerra, a maioria esmagadora da humanidade já tem de conviver com uma inflação de dois ou três dígitos ou com a hiperinflacção a taxas entre mil e um milhão por cento. A taxa global de inflação por cabeça já deve ter entretanto atingido os três dígitos. Esse facto demonstra que o trabalho improdutivo global superou um limiar histórico crítico, tanto no sentido absoluto quanto no sentido relativo, e que a sociedade mundial centificizada está agora demasiado crescida para caber nas formas do sistema produtor de mercadorias.
7. Da expansão fordista à revolução microeletrónica
No período que vai do fim da Primeira Guerra Mundial a finais dos anos 70, a crise estrutural das "despesas gerais" sistémicas através do trabalho improdutivo, das finanças estatais e da inflação apresentava-se somente como um problema colateral, ou seja, limitava-se a crises temporárias ou de níveis estruturalmente baixos. A causa desta aparente superação do problema, que faz dessa época apenas o período de incubação do verdadeiro e absoluto desastre sistémico, deve ser buscada nas características da expansão fordista. A expansão das novas indústrias, com a produção automobilística em posição de destaque - ela própria um resultado da Primeira Guerra Mundial -
encobriu por mais de meio século a crise estrutural nascida da expansão contemporânea do trabalho improdutivo.
Melhor dizendo, estamos aqui diante duma encruzilhada paradoxal, já que houve a expansão simultânea do trabalho produtivo e improdutivo. Por um lado, o fordismo mobilizou novas massas de trabalho produtivo em dimensões até então inconcebíveis; por outro, este mesmo desenvolvimento só foi possível com a repentina extensão da logística social, das condições infra-estruturais e assim por diante; ou seja, com o incremento do trabalho improdutivo. A desproporção na expansão dos dois factores opostos pôs várias vezes na ordem do dia o problema da crise estrutural (sobretudo no plano das finanças estatais); mas no fim de contas a expansão do trabalho improdutivo ainda
podia ser "alimentada" a longo prazo com a expansão simultânea do trabalho produtivo nas indústrias fordistas, ou seja, o crescimento absoluto da substância real de valor compensava o aumento absoluto e relativo dos sectores improdutivos.
Em termos fenomenológicos, a expansão fordista do trabalho produtivo e da substância real do valor pode ser descrita em diversos planos que se sobrepõem. A extensão interna e externa da valorização do capital, e portanto da racionalidade empresarial, abriu novos campos da produção real de mais-valia. Quanto ao exterior, tal extensão traduz-se na contínua inserção na forma capitalista de reprodução - já referida no Manifesto Comunista - de regiões da Terra até então não-capitalistas, bem como na conexa exportação de capitais (um elemento importante na teoria de Lenine, embora concebido de forma redutora); internamente, o mesmo efeito foi obtido com a
transformação das formas de reprodução até então não-capitalistas (camponeses, artesãos e economia de subsistência) em sectores de valorização do capital, tornada possível pelos novos métodos fordistas. Ao contrário do que julgava Rosa Luxemburgo, a transformação de ex-"terceiras pessoas" em assalariados capitalistas aumentou inicialmente a criação de mais-valia no plano da produção, em vez de representar um limite no plano do mercado e portanto da realização. De facto, junto com a expansão da criação real de valor, eram geradas mais rendas monetárias capitalistas reais.
Mas a verdadeira expansão devia-se à combinação de novas indústrias e de novas necessidades de massas. A mera expansão em sectores produtivos já existentes jamais possibilitaria o secular boom fordista, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial. Na base energética, nos combustíveis fósseis, a passagem das máquinas a vapor alimentadas a carvão para os motores de combustão alimentados a petróleo tornou possível, em conjunto com a racionalização fordista ("organização cientifica do trabalho", linha de montagem), um salto no desenvolvimento social, que fez entrar no grande consumo de massas produtos até a Primeira Guerra Mundial reservados às camadas superiores
da sociedade. Nasceram novos produtos como o rádio e a televisão, que desde o princípio existiram sob a forma de produção em massa para o consumo das massas. Os produtos de massa fordistas, todos criados directa ou indirectamente com base no petróleo, levaram ao capitalismo fordista, com o seu consumo energético monstruoso e expandido até o desvario, e mais tarde após a Segunda Guerra Mundial, à democracia baseada no consumo energético, que, não obstante o seu carácter historicamente efémero, ainda hoje é vista como a normalidade nos países centrais da OCDE (e entre as classes médias de todo o mundo).
Decisiva para a reprodução sob a forma-mercadoria é, porém, a expansão da substância real de valor e das suas formas sociais de mediação, ocultas atrás da fenomenologia do fordismo. Aqui obviamente possui a sua importância o problema da famosa "queda tendencial das taxas de lucro" que o debate marxista, hoje já quase esquecido, sempre ruminou em vão. A "composição orgânica do capital" (Marx), que historicamente aumenta com a crescente cientificização e que, no cálculo capitalista, aparece como aumento da intensidade de capital, isto é, como aumento dos capitais necessários para cada emprego, aponta para um movimento em sentido contrário no interior do processo de
criação de valor (e, portanto, de produção da mais-valia).
O rápido aumento da cientificização, tecnicização e racionalização tornara-se necessário apenas após a expansão da "mais-valia absoluta" através da ampliação ilimitada da jornada de trabalho e do ilimitado desgaste da força de trabalho ter encontrado no curso do século XIX limites naturais e sociais (movimento operário, intervenções estatais). Em vez da "mais-valia absoluta" como principal meio de acumulação surgiu a "mais-valia relativa", ou seja, a redução dos custos de reprodução da força de trabalho - redução esta que tornava mais económicos os meios de subsistência, o que, por sua vez, era possibilitado pelas ciências naturais aplicadas; só o fordismo acelerou
e generalizou esta tendência (29).
Porém, a produção da mais-valia relativa conduz a uma contradição lógica. Ela aumenta a parcela de mais-valia por cada força de trabalho, mas ao mesmo tempo por causa dos efeitos da racionalização produzidos pelo mesmo desenvolvimento, pode-se empregar cada vez menos força de trabalho para cada soma de capital (o que faz aumentar, como vimos, os custos preliminares para cada emprego, ou seja, a intensidade de capital ou a parcela de capital fixo na "composição orgânica"). Este segundo efeito de tendência contrária, compensa o primeiro efeito a longo prazo. Isto significa que o aumento da taxa conjunta de mais-valia relativa para cada força de trabalho é obtido ao
preço duma queda concomitante da taxa de lucro para cada soma de capital investido. Tal efeito só pode ser compensado se crescer a massa absoluta de força de trabalho (produtiva!) utilizada, e portanto se juntamente com a massa absoluta de mais-valia crescer a massa absoluta de lucro; mas isto só é possível com uma extensão permanente do modo de produção como tal. Tal extensão foi efectivamente conseguida em certa medida no modo de expansão fordista.
Mas já na dinâmica da expansão fordista da massa absoluta de mais-valia/lucro (30) há um sério problema: tal expansão só era possível através da concomitante expansão das condições infra-estruturais improdutivas em termos capitalistas. Uma parte cada vez maior dos produtos industriais fordistas suplementares era consumida por trabalhadores improdutivos, o que pressupunha uma alteração fundamental do regime de acumulação. Justamente por esse motivo, desde o início o deficit spending keynesiano não foi uma simples medida de preparação ou de transição, mas antes a condição estrutural de existência e o instrumento político de regulação da expansão fordista, que
só começou à escala global depois da Segunda Guerra Mundial. Ora isso significa que a expansão fordista, com o seu "milagre económico", já não era em princípio um grande avanço secular da acumulação autónoma de capital, antes já devia ser alimentada com a hipoteca de massas futuras de valor. O verdadeiramente "autónomo" na era fordista e no seu "modelo de acumulação" era apenas o pagamento regular dos juros da massa creditícia cada vez maior, através duma efectiva ampliação da massa absoluta de lucro. Porém, tal extensão da massa absoluta de lucro já era menor que a concomitante e inevitável ampliação das "despesas gerais" improdutivas do sistema de mercado em vias de totalização.
Segue-se que a expansão fordista nada mais podia ser desde o início do que um processo histórico circunscrito. Mais: como o capitalismo e a sua racionalidade empresarial constituíam no fim da Primeira Guerra Mundial apenas um segmento da reprodução social, há-de considerar-se a era da acumulação fordista um estágio irrepetível de transição na história interna do capitalismo, em vez de apresentá-la como uma "condição estrutural" abstracta. O capitalismo é um processo histórico de generalização dos próprios critérios, que deve prosseguir em níveis cada vez mais elevados, sem jamais poder voltar atrás. Por isso é errado conceber a sua história como uma simples
sucessão de estruturas, sem levar em conta a dinâmica autodestrutiva do processo no seu conjunto. Poder-se-ia dizer também: na medida que o capitalismo "triunfa", tornando-se a forma omnipresente de reprodução social (e por fim da sociedade mundial) - fenómeno este inaugurado apenas pelo fordismo -, demonstra também a sua própria impossibilidade lógica. A sua vitória absoluta deve portanto coincidir historicamente com o seu limite absoluto, ainda que a própria esquerda marxista não queira ouvir falar disso, pois ela jamais analisou a fundo o problema dos sectores da reprodução (nem portanto o problema da "revolução terciária"), auto-convencendo-se cada vez mais da capacidade imanente de o modo de produção capitalista se perpertuar
(31).
A expansão do modo de produção capitalista, como pressuposto da expansão fordista da massa de lucro e portanto da compensação da diminuição da taxa de lucro, implica a necessidade de ampliar permanentemente a produção e consequentemente os mercados. Mas isso só funcionou enquanto os investimentos para o desenvolvimento de novos produtos e para a ampliação superaram em medida suficiente os investimentos destinados ao desenvolvimento de novos procedimentos e à racionalização: de facto, só desse modo se empregou uma massa em termos absolutos crescente de força de trabalho industrial, e foram criadas crescentes rendas monetárias "baseadas na produção", apesar da
racionalização. Só enquanto esta relação foi mantida pelo menos até certo ponto, foi possível manter viva a expansão fordista "em bola de neve", apesar da presença duma parcela desproporcional de sectores improdutivos, e pagar com uma massa real de valor os juros da montanha de créditos que crescia em simultâneo.
Essa decisiva distinção está ausente da maioria dos discursos, tanto burgueses como marxistas, relativos à "teoria do crescimento": quase sempre, o "aumento da produtividade" ou o crescimento da produtividade são identificados directamente com o crescimento dos mercados, com a criação de valor e logo com a acumulação de capital (32). No entanto isso só é válido em condições bem determinadas e bastante precárias, a saber: que o aumento da produtividade seja menor do que a ampliação dos mercados internos e externos por ele possibilitado. O salto de produtividade na indústria automobilística organizado por Henry Ford fez com que para cada automóvel se empregasse muito
menos força de trabalho; mas a consequente transformação do automóvel num produto de consumo de massas desenvolveu a produção automobilística de tal forma que, no conjunto, apesar da racionalização e do aumento de produtividade, muito mais força de trabalho pudesse ser empregada produtivamente na indústria automobilística, aumentando assim a própria produção real de valor. É evidente, porém, que esta condição não existe automaticamente, e que não pode perdurar ad infinitum. É inevitável chegar a um ponto em que a relação se inverte: perante mercados relativamente saturados, novos saltos no crescimento da produtividade têm o efeito inverso, isto é, superam a ampliação dos mercados de trabalho e das mercadorias por eles
proporcionada.
Todo este mecanismo de compensação iria então parar à medida que a força da expansão fordista decrescia. No que toca à expansão externa, esse ponto critico fora já atingido pouco depois da Segunda Guerra Mundial; a balança das exportações de capitais indicava um saldo não mais positivo, quando não negativo; tratava-se sempre menos do aumento da produção e sempre mais do simples deslocamento da produção por motivos de custos. Hoje, graças à globalização da produção, este processo entra na sua fase madura (o que já seria possível compreender há tempo, pelo facto de o comércio mundial crescer mais rapidamente do que a produção mundial). Neste sentido, a teoria da
crise de Rosa Luxemburgo demonstrava (e demonstra) um acerto substancial, já que a qualidade compensatória da expansão externa diminui e torna mais uma vez visível a sua imediata qualidade de crise como limite do modo de produção.
Essencial foi no entanto o colapso do mecanismo de compensação no plano da expansão interna, que atingiu a fase crítica com a revolução microeletrónica. No final dos anos 60, a expansão fordista exaurira-se no próprio interior dos países mais desenvolvidos. A agricultura, a pequena distribuição e produção de mercadorias etc., agora estavam completamente integradas na racionalidade empresarial e industrializadas fordisticamente; além disso, as inovações fordistas de produtos, assim como os mercados de consumo de massa, já não tão novos assim, estavam à beira da saturação. Dali em diante, as inovações (a substituição do disco de vinil pelo CD e novos produtos
semelhantes, por exemplo) não podiam mais suscitar avanços significativos no plano da criação real de valor; para os antigos produtos fordistas (automóveis, eletrodomésticos, aparelhos audiovisuais etc.) havia apenas as substituições (aceleradas quando muito pela "usura artificial", isto é, pelo rápido desgaste do material conscientemente planeado e portanto pela degradação da qualidade), e não mais novos e vastos mercados de consumidores.
A estagnação do fordismo plenamente evoluído ainda podia ser prolongada por um certo tempo mediante a expansão da indústria de bens de investimento. Internamente contudo estes investimentos já eram cada vez mais simples investimentos de racionalização, que começavam a solapar o potencial real conjunto da criação de valor. Externamente, eram os retardatários fordistas na periferia capitalista e no Terceiro Mundo a oferecer um certo potencial suplementar à exportação. Mas logo se constatou que a expansão fordista não era universalizável, antes ficaria circunscrita a poucos países. Tanto os custos preliminares de capital quanto os custos da infra-estrutura social
necessária subiram a partir da Segunda Guerra Mundial a níveis tão astronómicos que se tornaram proibitivos para a esmagadora maioria dos países já no início dos anos 70. Portanto, em muitos casos a expansão fordista interrompeu-se no início ou a meio caminho. As importações de bens de investimento empresariais ou infra-estruturais deviam ser antecipadamente financiadas por créditos e os processos produtivos desenvolvidos não conseguiam sequer pagar os juros destes créditos. O resultado foi a famigerada crise das dívidas do Terceiro Mundo, que persiste até hoje e que atinge agora um volume de 1,8 biliões de dólares. Em muitos casos tratava-se de projectos à partida totalmente insensatos (barragens, centrais nucleares etc.), fruto
exclusivo da colaboração entre políticos corruptos e empresas internacionais (como por exemplo a Siemens) para obter ganhos fáceis (33).
A estagnação, em geral catastrófica, da expansão fordista na periferia capitalista anunciou a crise final também nos países centrais. Já a crise petrolífera, em meados dos anos 70, demonstrou que a estagnante criação real de valor das indústrias fordistas suportava agora mal os custos adicionais. Começou então um movimento em sentido contrário, cujo fenómeno mais visível é o desemprego estrutural de massas em todos os sectores fordistas; um desemprego que cresce de ciclo para ciclo. A partir do início dos anos 80, o motor central deste processo foi a revolução microeletrónica, que fez derreter como neve ao sol o núcleo de empregos na indústria. O emprego industrial
diminuiu em vários milhões só na Alemanha Ocidental, em vagas sucessivas de 1980 a 1995. O mesmo vale para os demais países industrializados. Essa diminuição não foi compensada, e muito menos sobrecompensada, pela expansão fordista na Ásia e noutros países, como acredita um certo discurso de proveniência marxista, totalmente ingénuo no campo da teoria da acumulação (34). O elenco das cifras, à primeira vista impressionantes, sobre a expansão industrial na Índia, na China ou nos "pequenos tigres" do sudeste asiático ignora porém duas coisas. Em primeiro lugar, no caso dos grandes Estados como a China, trata-se ainda em grande parte do antigo modelo de indústrias-fantasmas (do ponto de vista do mercado mundial) subvencionadas pelo
Estado, um modelo que se torna mais precário de ano para ano e que não será possível preservar em caso duma abertura crescente ao mercado mundial, imposta pela nova industrialização voltada para a exportação. Feitas as contas, nos sectores industriais orientais voltados para a exportação são criados muito menos empregos adicionais do que se perdem a médio prazo nesse mesmo processo nas velhas indústrias estatais.
Em segundo lugar, mais empregos industriais em alguns (relativamente poucos) países fordisticamente retardatários não significa de maneira nenhuma maior criação real de valor, cujo standard, com a crescente globalização, é ditado pelo nível produtivo do mercado mundial, isto é, pelos sistemas industriais mais desenvolvidos. Como tais standards empresariais e infra-estruturais são inacessíveis em larga escala até para os newcomers asiáticos, estes últimos procuram compensar a própria desvantagem sobretudo com salários baixos, péssimas condições de trabalho e destruição desenfreada do meio ambiente. A longo prazo, isto é insustentável mesmo no
plano empresarial, ainda que a curto prazo possa compensar parcialmente a superioridade que têm os países industriais no plano da disponibilidade de capital. Nas condições da globalização, são sempre as mesmas empresas ocidentais que lucram com o desnível nos salários e nas leis, através de investimentos flexibilizados por todo o mundo. Mas tudo isto ocorre somente no âmbito empresarial e na superfície do mercado. A real criação de valor por parte do capital mundial não é de modo algum ampliada. Medido com base no standard global de produtividade, é bem possível que 100 ou 1.000 operários de salários baixos e com relativamente pouco capital fixo produzam menos valor do que um único operário dotado de alta tecnologia e
elevado capital fixo no mesmo sector. O que se apresenta como vantajoso para o cálculo particular do capital singular - que pela sua própria natureza deve ser cego em relação ao processo conjunto da valorização - não tem nada a ver com a criação substancial de valor no plano da sociedade (hoje da sociedade mundial) (35). Obviamente, o problema da substância real do valor acabará por fazer-se notar na superfície do mercado, com limitações aparentemente externas (e inesperadas) para o cálculo empresarial.
Em suma, pode dizer-se que com a revolução microeletrónica, cujo potencial está longe do esgotamento, a partir de inícios dos anos 80, juntamente com a expansão fordista estagnou também a ampliação do trabalho produtivo e, portanto, da criação real de valor; assim, a partir de agora o trabalho produtivo retrocede à escala global. Isto significa que hoje já não existe o mecanismo histórico de compensação, que sustentou a expansão simultânea do trabalho improdutivo em termos capitalistas. Na verdade, a base da reprodução capitalista já alcançou o seu limite absoluto, ainda que o seu colapso (no sentido substancial) não se tenha realizado no plano fenoménico formal.
Mas tal realização já não se apresenta apenas como diminuição acentuada da taxa de lucro. Esta expressão indica, de facto, somente o modo como aparece o limite relativo da reprodução capitalista nas condições duma massa absoluta de lucro ainda em crescimento (ampliação do modo de produção) (36). Quanto a isso, mais uma vez tem razão Rosa Luxemburgo na sua Anticrítica, ainda que essa limitação relativa não se estenda "até ao dia em que o sol se apagar". O limite absoluto não aparecerá sob a forma duma simples aceleração linear da "queda tendencial", de modo que o capitalismo seja abandonado com resignação pelo management, por falta de rentabilidade. Antes, atingido o limite absoluto, finda também a acumulação
absoluta de "valor" em geral. Em termos substanciais: a taxa de lucros não "diminui", mas deixa totalmente de existir, com o desaparecimento de massas suplementares de valor. O conceito torna-se sem sentido (37). Ao mesmo tempo, o processo de acumulação continua ainda formalmente por um certo período ( e assim são auferidos lucros em termos formais), mas já sem nenhum vínculo com a substância real do valor (em queda), guiado apenas pela agora incontrolada criação de "capital fictício" e de dinheiro sem substância, nas suas diversas formas fenoménicas.
Nos anos 80, as instituições capitalistas não deixaram de reagir a esta evolução. Por um lado na esteira da onda ideológica neoliberal triunfante em todo mundo, os mercados financeiros foram "desregulamentados" de forma nunca vista (ou seja, "libertados" de todos os dispositivos de segurança ainda existentes), a fim de criar suficiente liquidez global para a acumulação-fantasma sem base real. Por outro lado, lançou-se uma ofensiva contra o consumo estatal (sobretudo contra o Estado social), a fim de baixar a parcela estatal e repristinar condições supostamente "regulares"; nisto o monetarismo deve ser considerado, por assim dizer, uma espécie de sombrio
pressentimento e reacção instintiva por parte das instituições capitalistas. A esperança de um regresso à acumulação "regular" do capital é porém vã, uma vez que no lugar do consumo estatal não surge um segmento de capitalismo privado com a mesma dimensão, mas vem à luz somente o vazio substancial da reprodução, ou seja, o facto de que uma grande parte da reprodução capitalista depende há tempos do "capital fictício" do consumo estatal e não poderia sobreviver a um Estado realmente "enxuto". Eis por que a ofensiva "reaganómica" ou "thatcheriana" contra o consumo estatal fracassou mesmo nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. O nó da grande crise, que também empiricamente se torna mais presente do que nunca, manifesta-se
inevitavelmente no plano dos mercados financeiros desregulamentados.
8. As estruturas globais do déficit e o curto Verão do capitalismo de casino
Para a memória notoriamente breve dos homens socializados pelo mercado (onde se incluem há muito tempo os próprios teóricos da esquerda e ex-esquerda), tudo isso pode soar fantasioso, já que eles só hão-de "crer" na crise absoluta quando tiverem que procurar a comida no lixo ou quando estiverem sob o fogo da artilharia; e como são especialistas do recalque, talvez nem assim. Onde está o colapso por estes lados? - perguntam eles com um sorriso mais ou menos acentuado. Ora, é verdade que se trata de processos históricos; mas, no sentido histórico são processos bastante breves, se bem que possam parecer longos para a consciência formada pelo mercado e pela política.
Se o Verão siberiano do boom fordista no pós-guerra já foi curto, a época seguinte do "capitalismo de casino" será ainda mais breve. Após meados dos anos 80, a acumulação fictícia converteu-se num boom puramente especulativo, que nos anos 90 mantém um nível elevado, embora o "estouro da bolha" já se tenha feito anunciar diversas vezes.
Quais serão as consequências, se estourar a bolha global? Os espíritos ingénuos crêem que mínimas ou nenhumas e alguns citam até mesmo Marx, que escreveu, de facto: "Uma vez que a diminuição ou o aumento de valor destes títulos sejam independentes do movimento de valor do capital que eles representam, a riqueza duma nação não varia em consequência de tal diminuição ou aumento" (Das Kapital, t. 3, p. 486). Mas isso, obviamente, só vale na medida em que o "capital fictício" se move exclusivamente na superestrutura financeira e creditícia, sem feedback na reprodução real. Por isso, Marx já fazia certas reservas: "Enquanto a sua desvalorização não
expressava uma efectiva estagnação da produção e do tráfego nas ferrovias e canais, nem a interrupção de empreendimentos em curso, ou o desperdício de capital em empresas absolutamente sem valor, a nação não ficava mais pobre nem um centavo com o estouro dessas bolhas de sabão de capital monetário nominal" (ibidem).
Mas quão rica será verdadeiramente a "nação", se ela se enriqueceu "à base de títulos" e financiou ficticiamente a produção e as rendas, ou se pelo contrário o colapso só se desenrola no Olimpo financeiro, empobrecendo somente "os especuladores" – esta é que é a questão. Já nos tempos de Marx, os choques de desvalorização do "capital fictício" não deixaram de impor ferimentos mais ou menos graves à produção industrial; por exemplo, no grande crash da especulação ferroviária na Alemanha nos anos 70 do século passado, seguido de um período de estagnação que durou quase 20 anos (38). Mas no século XIX, quando o capitalismo ainda era apenas um segmento da sociedade e
quando sua reprodução dependia muito menos do sistema creditício, o movimento do "capital fictício" era, de facto, relativamente limitado, tanto pelo volume como pelos reflexos sobre a produção real. Pelo contrário, a situação actual provavelmente nem mesmo Marx a poderia imaginar. De facto, após o fim da expansão fordista, a relação inverteu-se: a reprodução real tornou-se o apêndice duma gigantesca bolha de "capital fictício" nas suas diversas formas fenoménicas e nos seus diversos estados de agregação, em vez de produzir ela essa bolha como mera emanação do seu interior.
Qual é, precisamente, a situação? O crédito estatal e o capital monetário especulativo entrelaçaram-se em muitos aspectos, e uma desvalorização dramática da superestrutura financeira arruinaria consigo, de um modo ou de outro, os títulos do Estado, destruindo a capacidade estatal de refinanciar-se. Nesse caso, a subvenção de sectores inteiros da indústria e da agricultura, hoje já arruinados em muitos países do antigo Terceiro Mundo, deveria cessar também em outros países: na Rússia, na Índia e na China, bem como nos próprios países da OCDE. A massa de subvenções, ainda relevante à escala global, nada mais é de facto para a lógica do mercado que "desperdício de
capital em empresas absolutamente sem valor"; e é claro que hoje este factor tem um peso bem maior que no tempo de Marx, quando era um tanto quanto negligenciável ou restrito a uma parte relativamente pequena dos investimentos privados.
Hoje em dia, o capital especulativo privado, nas suas fantasiosas criações derivadas, supera de longe o crédito estatal. Isso significa que, desde o início do capitalismo de casino, uma massa cada vez maior de capital monetário fordista não mais reinvestível em actividades reais desaguou na superestrutura financeira (a "super-acumulação" das indústrias fordistas a partir dos anos 70), e que ali, na sua acumulação fictícia (D-D’), reuniu uma massa sem precedentes de valores fictícios, que são registados e tratados como rendas monetárias reais. Claro que uma determinada parte deste dinheiro comercial fictício retorna, directamente ou por meio de empréstimos (facto
que obviamente enche ainda mais a bolha), à reprodução como procura aparentemente real. Assim são alimentados os processos que já não possuem qualquer base substancial e que terão de ser interrompidos no caso duma grande desvalorização. Também esse factor é muito mais relevante hoje que no tempo de Marx.
A parte da massa total do "capital fictício" comercial que repercute sobre a produção real, sob a forma de procura sem substância real de valor, é até agora mínima, contrariamente ao que acontece com o consumo estatal. Se hoje toda a montanha dos valores comerciais fictícios se pusesse em movimento como procura real, isso significaria a hiperinflação imediata também no Ocidente (39). Porém mesmo essa parte principal dos valores fictícios, que actualmente não é incluída como procura na reprodução real, mas permanece na superestrutura especulativa, pode indirectamente servir de base a grandes sectores da reprodução real e aparentemente produtiva. Os balanços têm a
solução para este enigma. Nunca se deve esquecer que um balanço é sempre algo intrincado, que precisa ser primeiro decifrado. Contudo, para um balanço positivo, ou pelo menos em equilíbrio, é sempre necessário um "haver" efectivo ("efectivo" no sentido de activos sob uma forma qualquer), se não se quer proceder a uma falsificação pura e simples (o facto de também estas crescerem rapidamente é mais um indício da proximidade do limite da acumulação fictícia). Mas donde vem este "haver" e de que forma é agregado, isso é outra questão.
Como se apresenta, no plano dos balanços, a transição do capitalismo industrial real para o capitalismo de casino especulativo? A resposta é: com o predomínio, nos ganhos e nas poupanças, das rendas derivadas da superestrutura financeira especulativa (D-D’) relativamente às rendas derivadas da acumulação industrial real (D-M-D’). Por outras palavras: o factor decisivo já não é constituído pela produção real e pelos seus êxitos no mercado, mas por uma manhosa contabilidade capaz de equilibrar o balanço através de operações especulativas. Ou por outra: hoje a defesa das quotas do mercado só é possível, total ou parcialmente, através de ganhos especulativos.
Obviamente, isso não se dá em todos os casos, mas é decisivo o peso balanceador que o "capital fictício" possui no conjunto da sociedade. Ainda sem aparecer como procura real de investimentos ou de consumo, estes activos podem sustentar uma parte notável da reprodução real e manter vivas empresas, produção e empregos, simplesmente equilibrando o balanço. Se o "capital fictício" sofresse uma desvalorização em larga escala, isso acarretaria a rápida falência de um número surpreendente de empresas aparentemente "salutaríssimas".
Não se trata de simples hipóteses, como demonstram nos últimos anos os escândalos, as megafalências e as "acções de recuperação" repentinamente necessárias, que representam só a ponta do iceberg. Quer se trate da Metallgesellschaft de Frankfurt, da bancarrota rnilionária do rei da construção Schneider ou da falência do tradicional banco londrino Barings: em todos estes casos houve uma passagem aparentemente imediata dos balanços prósperos à insolvência, porque a contabilidade tinha entrado em especulações que se revelaram erradas na esfera dos imóveis, divisas, operações a prazo e outras formas derivadas de especulação. Os bancos tornaram-se o centro não já
das reais operações capitalistas de crédito, mas das especulações globais; e parece bastante plausível quando Schneider, a foragido ex-estrela dos empreendedores alemães, acusa o Deutsche Bank de ter favorecido consciente e esforçadamente a perigosa deriva de seus negócios. Também sintomático é o caso Barings. Em 4 de Fevereiro de 1995, um artigo lisonjeiro do "Frankfurter Allgemeine Zeitung" elogiava o banco como uma empresa excepcional e "um dos mais fortes na Ásia", com 54% de lucros em 1994. E citavam-se as palavras de seu chefe, Peter Baring: "Não precisamos seguir a moda. Sabemos pensar a longo prazo". Verdadeiramente um caso do qual os "guardiões" do capitalismo da esquerda se podem servir para demonstrar como está boa a
saúde do "capital". Menos duma semana depois, o Barings abria falência, devido a especulações equívocas realizadas na Bolsa de Tóquio por um broker de 29 anos. Um tal êxito não teria sido possível se o capitalismo fosse, segundo os seus próprios critérios, um capitalismo "real", em que o sistema bancário serve verdadeiramente para financiar a produção real para o mercado.
Mas não são apenas os bancos e os departamentos de contabilidade das empresas os vigaristas de colarinho branco a arriscar apostas no casino global. Também os fundos de pensões, o erário público, os tesoureiros municipais de Tóquio até aos confins do mundo, os caixas de partidos, associações e sociedades civis se lançam em "apostas" cada vez mais desenvoltas; em parte impelidos pela necessidade, já que as rendas reais deixam de ser suficientes. Tal situação assemelha-se à dos balanços das empresas: condições financeiras mais ou menos desastrosas são "ajustadas" especulando com formas derivadas. Há certos casos em que são os diversos responsáveis financeiros que não
resistem à tentação e querem fazer algo de bom pelas suas instituições, sendo aparentemente tão fácil, com apostas suficientemente altas, criar do nada grandes reservas financeiras. Que com isso se pode ir a pique, experimentou-o por exemplo, em 1994, um tesoureiro do Partido do Socialismo Democrático (PDS) alemão, que jogara na Bolsa, com as melhores intenções, um fundo regional do seu partido. Quando, em 1994, o distrito californiano de Orange County se declarou falido graças às especulações malfadadas da sua administração financeira, os secretários de finanças dos Estados federados alemães e os porta-vozes das administrações apressaram-se a assegurar que nada de semelhante poderia ocorrer na Alemanha. Uma afirmação digna de
pouquíssimo crédito, uma vez que precisamente agora tornou-se do conhecimento público que às administrações financeiras é permitido fazer "investimentos " de tipo derivado.
Nas formações de "capital fictício" consideradas até agora e nas suas repercussões sobre a produção, manifesta-se a condição geral da global "superacumulação estrutural", que de forma mais ou menos evidente fez nascer em todas as economias nacionais, inclusive naquelas à beira do colapso, o "capitalismo de casino", privado duma solidez real baseada nas respectivas moedas nacionais (40). Enquanto a absurda criação global de liquidez por parte do "capital fictício" continua a expandir-se (e hoje se expande de maneira mais desenfreada que nunca), as catástrofes de desvalorização podem limitar-se a significativos casos isolados, que se generalizam apenas em ocasiões de
inevitável contracção. As ordens de grandeza saíram dos eixos, como se pode observar pelas estimativas dos analistas financeiros, que só para as novas formas derivadas da especulação supõem um volume entre 10 e 50 biliões de dólares. As oscilações explicam-se pelo facto de que ninguém tem mais uma visão sinóptica e que a abolição das válvulas de segurança internacionais aniquilou o próprio controle estatístico. Dessa forma, é claro que tais grandezas fazem com que o "mísero" 1,8 biliões de dólares das dívidas do Terceiro Mundo apareça quase como uma quantia negligenciável. Só com esta criação desmesurada de liquidez, não garantida pela economia real, era possível declarar resolvidas as diversas crises de débito – "resolvidas" por
meio da acumulação infinita de novos materiais explosivos (ao passo que já quase ninguém fala das consequências da crise das dívidas, que continuam a aumentar).
Porém, a partir dos anos 80 o "capitalismo de casino" não apenas se tornou uma condição estrutural no interior das economias nacionais isoladas, mas essa estrutura internacionalizou-se num plano superior; não somente como globalização dos mercados financeiros especulativos, mas também como criação de
circuitos deficitários internacionais entre as diversas economias nacionais que a globalização vem dissolvendo. Um tal circuito deficitário pode ocorrer em dois planos, e em ambos os casos a economia real é alimentada com capital monetário introduzido do exterior. Por um lado, não se financia mais a dívida pública com a poupança interna (ou com a inflação interna do papel-moeda), mas com capital monetário externo; o mesmo também acontece no plano do endividamento das empresas. A crise das dívidas do Terceiro Mundo é apenas um caso especial, hoje já precário, deste endividamento externo. O aspecto candente da questão está no facto de que o contínuo recurso ao capital externo deve ser pago em divisas, ou seja, somente por
meio de contínuos excedentes nas exportações, o que por sua vez conduziria a déficits noutros sectores (41). Este endividamento externo age do seguinte modo sobre a economia real: o dinheiro tomado de empréstimo algures reaparece no interior como procura estatal ou privada, para depois ser pulverizado no consumo ou desbaratado em "investimentos" (armamentos, empréstimos a fundo perdido, subvenção de sectores não rentáveis etc.).
Trata-se por outro lado de um modo de financiar os saldos comerciais negativos através de dívidas, isto é, de os excedentes mais ou menos elevados das importações serem pagos não com a poupança interna, mas com capital monetário estrangeiro. Na verdade um tal projecto representa do ponto de vista económico uma impossibilidade lógica: ou se toma emprestado dinheiro no exterior, e então é preciso restituí-lo através de excedentes nas exportações, ou há excedentes na importação, e então é preciso pagá-los com reservas financeiras internas e depósitos em divisas anteriormente obtidas; as duas coisas excluem-se mutuamente. Contudo, se endividamento externo e balança
comercial negativa coincidem, trata-se à partida de um projecto precário no contexto do "capital fictício" e/ou do resultado de estratégias políticas que tentam esquivar-se irregularmente ao sistema económico e às suas leis. Em todo caso, tal impossibilidade económica não pode ser mantida por muito tempo.
Naturalmente, não é a primeira vez que se verificam déficits nas balanças tanto comercial como de capital, mas aqui vale o mesmo já afirmado sobre o endividamento estatal e a expansão do crédito em geral: em épocas passadas, os déficits eram comparativamente modestos, não sendo acumulados por períodos prolongados, podendo ser rapidamente extintos (o que também era facilmente possibilitado pela simultânea expansão capitalista). Hoje, pelo contrário, estamos às voltas não somente com dimensões muito maiores de endividamento externo, mas também com verdadeiros circuitos deficitários estruturalmente solidificados, que crescem há 10 ou 20 anos e que não estão mais sob o
signo da expansão económica real, limitando-se apenas a simulá-la.
Existem diversos circuitos deficitários dispersos por todo o globo, mas os dois mais importantes são o europeu e o asiático. Na Europa, é o capital financeiro da Alemanha Ocidental, acumulado nos tempos da expansão fordista após a Segunda Guerra Mundial, que está no centro dos circuitos deficitários a todos os níveis. Os países da União Europeia, todos mais ou menos deficitários nas suas trocas com a Alemanha, tomam emprestado desta última o capital monetário, a juros de mercado; através dos vários fundos de compensação da U.E. ( de que a Alemanha paga a maior parte), as economias nacionais mais combalidas recebem também continuamente fundos estruturais; em
terceiro lugar, a Alemanha tem de emprestar massas crescentes de capital monetário em grande parte a fundo perdido aos países da Europa Oriental e sobretudo à Rússia (que agita a clava atómica tornada incontrolável) para retardar o inevitável segundo colapso, que desta vez será devido estritamente à economia de mercado; em quarto lugar, tornou-se necessária uma transferência de capital líquido para a ex-Alemanha Oriental da ordem 150 a 200 mil milhões de marcos por ano, para fazer respirar artificialmente por tempo indeterminado a economia oriental, clinicamente morta depois da unificação (42). A superestrutura financeira da Alemanha, que segundo a opinião corrente ainda é um país relativamente sério em termos capitalistas,
encontra-se por isso muito mais periclitante do que parece à primeira vista. Não só graças à estrutura interna, que também na Alemanha é agora caracterizada pelo "capitalismo de casino", mas também por causa da sólida integração no complexo dos circuitos deficitários europeus.
Porém, o máximo de ousadia e falta de proporções económicas encontra-se provavelmente no circuito deficitário do Pacífico, que envolve o Leste asiático e os Estados Unidos. Aqui estamos perante uma engrenagem particularmente delicada. Do ponto de vista do Japão e dos diversos "pequenos tigres", o circuito deficitário do Pacífico apresenta-se do seguinte modo: primeiro a constituição específica dos mercados financeiros japoneses e da sua relação paternalista e em boa parte informal com a indústria de exportação tornou possível nos anos 80 uma performance financeira sem igual. O Japão financiou todo o equipamento (doutro modo certamente inacessível) da sua
indústria de exportação de alta tecnologia quase sem dispêndio (pelo menos aparentemente): ele foi o único país industrializado que transformou boa parte do gigantesco aumento fictício de valor da era especulativa em procura real de bens de investimento extremamente custosos; aqui, efectivamente, ocorreu o feedback imediato do "capital fictício" à produção real, e isso sem um efeito inflacionário igualmente imediato sobre a economia interna japonesa, pois tal feedback
assumiu a forma de um fluxo de exportação, voltada sobretudo para os Estados Unidos (43).
Os "pequenos tigres" atrelaram-se de forma precária ao rolo compressor das exportações japonesas. Obviamente, nenhum "pequeno tigre" podia financiar a sua industrialização voltada para a exportação com a poupança interna, mas somente com um endividamento crescente face ao Japão. É no Japão que se emprestava e se empresta o dinheiro para os investimentos necessários, é lá que se compra grande parte dos bens de investimento (em certa medida, trata-se directamente de exportações de capital por parte de empresas japonesas e numa parcela muito menor ocidentais). De certo modo, pode-se falar portanto de um circuito deficitário inter-asiático: o Japão empresta aos
"pequenos tigres" o dinheiro para que estes possam comprar bens de investimento no Japão. Isto só funciona porque tais países, assim como o próprio Japão, exportam a mais não poder, e sobretudo para os Estados Unidos, que cumpre o papel de esponja. Pode-se reconhecer esta dinâmica, fadada ao desastre, pelo facto de os "pequenos tigres" terem saldos comerciais muito positivos em relação à Europa (embora já decrescentes) e aos Estados Unidos, ao passo que seus balanços comerciais e de capital são altamente deficitários em relação ao Japão (e na maior parte até em termos absolutos!).
O pequeno circuito deficitário inter-asiático alimenta-se por sua vez do grande circuito deficitário do Pacífico, que se evidencia do lado dos Estados Unidos. Sob a pressão do consumo improdutivo da potência mundial, de longe superior ao de outros países industrializados fordistas, a força económica relativa dos Estados Unidos, que após a Segunda Guerra Mundial dominava sem concorrência em todos os sectores, diminuiu a olhos vistos a partir dos anos 60. A base industrial diluiu-se quase por completo, de modo mais radical do que noutros lugares: não tanto na forma duma queda do emprego industrial causado pela racionalização tecnológica, mas como abandono total de
sectores industriais inteiros, cujo produto foi substituído pelas importações (44). Como ao mesmo tempo decresceu cada vez mais a taxa de poupança dos cidadãos norte-americanos, mais propensos ao consumo, até se tornar hoje uma das mais baixas do mundo, foi preciso, além do exorbitante endividamento interno, lançar mão do capital monetário estrangeiro em proporções cada vez maiores (45).
Os Estados Unidos conseguiram e conseguem - embora este facto devesse ser economicamente impossível - endividar-se no exterior e de ter ao mesmo tempo elevados déficits na balança comercial, pelo simples motivo de que o dólar possuía, e em parte ainda possui actualmente (de forma diluída), a função de moeda mundial. Isso significa que os Estados Unidos podem pagar a sua dívida externa com a própria moeda, em vez de primeiro ganhar divisas através de excedentes comerciais para poder pagar os juros sobre a divida externa e amortizá-la. Na verdade, eles fazem pagar no exterior uma parte da sua dívida com as altas e baixas no câmbio do dólar, ainda que tal
método pareça hoje ter perdido grande parte de sua eficácia e acabe por conduzir mais cedo ou mais tarde a uma fuga generalizada do dólar, que terá como resultado uma queda drástica desta moeda e a crise do comércio mundial. A decadência do dólar e a crise do sistema monetário internacional ao longo dos últimos anos demonstraram claramente que a evolução caminha neste sentido.
Através do duplo déficit do endividamento externo e da balança comercial negativa, os Estados Unidos tornaram-se também, nos últimos 15 anos, a esponja de dupla face da economia mundial: por um lado, eles sugam o capital monetário estrangeiro e, por outro, pagam com este dinheiro tomado emprestado os seus gigantescos excedentes nas importações, sugando uma massa enorme de produtos industriais externos. Esta desproporção grotesca concentra-se quase inteiramente na região do Pacifico. Todo o palavreado sobre o suposto "século do Pacífico" que nos aguarda se desfaz no ar, já que é fundado no circuito deficitário entre a Ásia oriental e os Estados Unidos. Os japoneses
emprestam aos Estados Unidos o dinheiro para poder realizar os excedentes comerciais nas trocas com os Estados Unidos, e com os excedentes comerciais obtêm os fundos que podem emprestar aos Estados Unidos. É evidente que esta situação económica paradoxal, da qual hoje participa todo o sudeste asiático, em poucos anos terá de cair por terra.
A industrialização asiática voltada para a exportação, em cuja base estão os salários baixos e o emprego selvagem de todos os recursos, estimula apenas uma reduzida criação suplementar de valor e condena à morte as indústrias estatais nacionais, que floresceram na antiga "modernização retardatária"; além disso, milhões de empregos assim criados dependem do déficit externo dos Estados Unidos. A industrialização asiática voltada para a exportação, além de ser muito pequena em termos absolutos para poder produzir outra expansão fordista, é também desde o princípio pouco digna de crédito nos próprios parâmetros capitalistas. Trata-se apenas duma expansão fordista
simulada por meio do megacircuito deficitário do Pacífico; sem poder repetir o desenvolvimento ocidental, ela precipita-se antes numa catástrofe inesperada.
9. A caminho do choque da desvalorização
Se procurarmos a verdadeira e real produção de mais-valia e a respectiva necessidade de aumentá-la, é forçoso concluir que o coração do capital mundial já parou de bater. Há pelo menos uma década, não se faz mais que simular a acumulação capitalista com expedientes monetários, de modo que o capital depende do pulmão de aço dos processos fictícios de criação do valor: no plano das economias nacionais, por intermédio do endividamento estatal e do "capitalismo de casino"; no plano da economia mundial, com a ampliação do "capitalismo de casino" aos mercados financeiros, que se tornaram incontroláveis, e com os grandes circuitos deficitários internacionais. Mais cedo ou
mais tarde, é lógico que a reprodução capitalista será reconduzida à sua base real, através duma violenta contracção das massas de dinheiro sem substância; ou seja, então se verificará que o capitalismo é na verdade um cadáver ambulante. Por outras palavras, a liquidez fictícia, criada sem um fundamento na produção de capital, será desvalorizada duma forma ou doutra, mais cedo ou mais tarde.
Não se podem prever os detalhes operacionais deste processo de desvalorização; se ocorrerá em tempos diferenciados em vários níveis, ou se abarcará todos os níveis ao mesmo tempo; se durará um longo período ou se adoptará a forma dum grande crash de desvalorização global, por assim dizer duma explosão atómica monetária. A "massa crítica" já está acumulada há muito, e a faísca que desencadeará o processo pode saltar a qualquer momento, através de crises económicas ou políticas. Sem dúvida, uma causa indiciada é o circuito deficitário do Pacífico e um ponto nevrálgico é o mercado financeiro japonês (46). O facto de o Japão ter sido, nos anos 80, o único país a
utilizar a gigantesca bolha especulativa para fazer investimentos reais igualmente gigantescos, acabou por conferir ao "capitalismo de casino" no Japão uma particular forma de evolução.
Enquanto o grande crash da Bolsa em 1987 e a queda da especulação imobiliária no final dos anos 80 representaram nos Estados Unidos e na Europa apenas um acidente de percurso na acumulação de valores fictícios (que de facto continua desenfreada, aquecida com nova liquidez), o Japão por sua vez esteve à beira da grande catástrofe financeira. No Ocidente, a mediação dos valores especulativos fictícios com a economia real permaneceu em grande parte indirecta, e as enormes perdas na contabilidade foram compensadas, após um período critico de transição, por meio de novos vôos especulativos, ou foram mesmo superadas com reiterados aumentos fictícios de valor (o índice
Dow Jones, o barómetro de Wall Street, mais que duplicou desde então o seu valor). No Japão, pelo contrário, os valores fictícios foram investidos em grande parte na economia real, de modo que o crash cavou um abismo não mais colmatável. A bolha teve de rebentar, e a cotação das acções e o preço dos imóveis japoneses não recuperaram até hoje (o índice Nikkei, o barómetro da Bolsa de Tóquio, caiu mais da metade desde então).
Por que não se deu ainda uma catástrofe financeira aberta no Japão? A resposta deve ser procurada mais uma vez na estrutura paternalista específica da economia japonesa, nos seus traços arcaicos. A união informal entre governo, bancos e grandes empresas conseguiu fundar uma sociedade nacional de compensação, à qual foram cedidos os créditos malparados, evitando assim as megafalências então iminentes. Algo semelhante não teria sido possível em nenhum país ocidental. Mas naturalmente nem os japoneses são tão espertos que consigam ludibriar as leis do dinheiro à força de astúcia paternalista. Nenhum truque pode fazer desaparecer a massa de crédito malparado, e ela
cresce pelo simples facto do pagamento dos juros, muito embora a Nippon S.A. tente desesperadamente redimensioná-la por meio de amortizações em pequenas doses, que o sistema bancário é capaz de suportar. De vez em quando, sacrifica-se um parceiro de média dimensão para aliviar um pouco a pressão: por exemplo, a cooperativa japonesa de crédito Cosmos Credit Corp., uma das maiores do país, teve de ser intervencionada em Agosto de 1995, e os depositantes acorreram ao banco em cenas dramáticas para retirar o dinheiro.
Segundo dados do ministério das finanças japonês, datados no Verão de 1995, o volume dos créditos malparados ascende a cerca de 650 mil milhões de dólares. Levando em conta a linguagem habitual da diplomacia financeira podemos deduzir duas coisas: primeiro, a massa real deve ser ainda muito maior; segundo, é iminente o rompimento da barragem, anunciada com sorrisos plenos de discrição e cortesia. O vórtice criado pela maré de falências poderia ser suficientemente grande para arrastar a montanha do déficit norte-americano e sufocar o circuito deficitário do Pacífico. Já hoje o Japão é forçado a suportar os custos necessários para conter a enxurrada de créditos
malparados internos, e ao mesmo tempo tem de continuar a comprar Títulos do Tesouro norte-americano para não pôr em perigo suas exportações para os Estados Unidos. Contudo, não se podem manter para sempre excedentes comerciais de tais dimensões; o aumento permanente do câmbio do iene em relação ao dólar indica a correcção inevitável, sendo que as exportações japonesas já se reduziram. Num futuro próximo, todas as amarras serão rompidas, e por trás da constante disputa comercial entre os Estados Unidos e o Japão, mutuamente amarrados pelo déficit, está na verdade a questão de saber quem há-de pagar a parte maior no iminente choque de desvalorização na frente do Pacífico.
Tal choque já não poderá ser limitado a uma região do mundo; ele constituirá o sinal para o processo de desvalorização não só de todo "capitalismo de casino", mas também provavelmente do "capital fictício", há muito amadurecido sob a forma de créditos estatais, nos quais o trabalho abstracto foi hipotecado até um futuro remoto. Uma tal contracção global nada mais significaria que a anulação de todo o dinheiro e de todas as formas monetárias que não derivam do processo originário D-M-D’, mas do processo fictício de criação de valor D-D’. Esta anulação pode assumir a forma de inflação ou de deflação (ou mais provavelmante de um híbrido de ambas).
Para compreender esta lógica, é necessário abstrair das formas fenoménicas, puramente exteriores, do forte aumento ou da forte diminuição dos preços, como normalmente são indicadas a inflação e a deflação. Na verdade, não se trata de um movimento dos preços das mercadorias causado pelo desenvolvimento imanente dos próprios mercados de bens, que como se sabe são regulados na superfície pelo movimento da oferta e da procura, mas de um desenvolvimento autónomo no plano do dinheiro, isto é, da desvalorização deste. Como desvalorização do dinheiro, inflação e deflação são idênticas e distinguem-se apenas na forma em que se dá a desvalorização. No caso da inflação, o
dinheiro continua a circular; a sua desvalorização manifesta-se como um aumento imprevisto dos preços das mercadorias até dimensões astronómicas, independentemente da oferta e da procura. No caso da deflação, pelo contrário, grandes massas de dinheiro ou certas formas monetárias como tais são anuladas e desaparecem da circulação; a desvalorização surge, então, como redução imprevista do poder de compra ou da solvência sociais, o que pode (mas nem sempre deve) assumir o aspecto duma redução geral dos preços.
Se a dimensão do processo de desvalorização for suficientemente grande, é lícito imaginar que inflação e deflação se apresentem em vários planos: por exemplo, inflação dos preços dos bens de consumo e dos bens de investimento, simultânea à deflação dos depósitos bancários, títulos da dívida pública, acções e imóveis. Uma tal combinação de ambas as formas de desvalorização do dinheiro é possível quando a especulação cai por terra e o Estado cancela com um acto de força o débito que contraíra perante os seus credores, enquanto o governo continua a emitir papel-moeda para não interromper o consumo de massa e evitar rebeliões (os contornos de tal situação tornaram-se
visíveis por exemplo na Jugoslávia e depois na Sérvia-Montenegro).
Mas seja como for nos detalhes a desvalorização global do dinheiro, cujos preâmbulos já se deixam entrever em grande parte do mundo como ciclo hiperinflacionário, ela constitui o final da história do modo de produção baseado no dinheiro. É ilusório crer que, depois do grande choque de desvalorização e/ou do ciclo de desvalorização do dinheiro global, o jogo capitalista possa recomeçar do princípio, sobre um terreno "purificado" (47). Diversamente do passado, a actual desvalorização já não é uma simples interrupção momentânea da ascensão do trabalho abstracto no capitalismo industrial, mas indica um estágio irreversível da cientificização do processo de "metabolismo
com a natureza": por um lado, o rápido declínio na criação de valor no capitalismo industrial, graças à racionalização e à globalização com a microeletrónica; por outro lado, a ampliação igualmente rápida do trabalho improdutivo em termos capitalistas (que, da perspectiva do sistema, só intermedia o consumo para as condições infra-estruturais): a combinação destes dois processos representa um estágio em que o capitalismo não pode mais obedecer aos seus próprios critérios. A sua contradição lógica ingressou historicamente na maturidade.
Nestas novas condições, os processos de desvalorização do capital já não preparam o terreno para uma nova fase de acumulação, como faria crer a teoria de Joseph Schumpeter. A desvalorização de "antigas" formas do capital só possibilita a formação de novas formas de capital, quando estas últimas abrem a possibilidade duma posterior utilização de trabalho abstracto à altura do nível vigente de produtividade; o único caso desse género foi a expansão fordista. Mas se esta ampliação potencial já não é dada, pois o nível de produtividade torna-se demasiado elevado e a racionalização cresce mais rapidamente do que a expansão dos mercados, então a simples desvalorização de
dinheiro, máquinas ou edifícios não serve para nada. Nenhuma desvalorização reconduz a um estágio anterior (isto é, inferior) da cientificização, já que o nível de produtividade está armazenado, em última instância, no saber da sociedade e nas cabeças das pessoas, e não nas suas formas exteriores, tais como máquinas, aparelhos etc. Uma simples desvalorização ou uma destruição bélica destes agregados não bastaria para criar um novo ponto de partida para uma fase secular de acumulação.
A concepção primitiva segundo a qual o capital se queima periodicamente a si mesmo, para depois ressurgir qual Fénix das cinzas, passando assim da eterna destruição à eterna auto-renovação, faz parte do pensamento mitológico, não do pensamento histórico e analítico. Uma desvalorização em si, à qual não se siga uma produção real e majorada de valor e de alta intensidade de trabalho (que não é exclusivamente produção de bens, mas também utilização de quantidade de trabalho abstracto), não passa duma simples desvalorização; uma retomada da reprodução capitalista sobre a suposta nova base repetiria portanto em rápida progressão a crise e o colapso. Nos ciclos de
hiperinflacção e colapso periódico dos sistemas financeiros já se pode reconhecer em muitas regiões do mundo uma tal situação.
O velho marxismo sempre ligou todas as suas ideias de crítica e de emancipação às formas imanentes da reprodução capitalista (lutas redistributivas na forma monetária, regulação ou "planificação" dentro dos horizontes da forma-mercadoria etc.), redimensionando a semi-digerida teoria de Marx da crise, segundo estas necessidades imanentes. Ele é tão incapaz de fornecer uma resposta aos novos desenvolvimentos da crise quanto a teoria económica burguesa há muito tempo inconsistente. A crise da produção de mercadorias como absurdo fim em si mesmo, implicada no carácter fetichista de um "modo de produção baseado no valor" (Marx), não pode mais ser resolvida no seu
próprio terreno.
O choque da desvalorização do dinheiro, porém, não é só um choque de desvalorização do pensamento científico (sob a forma-mercadoria) que existiu até hoje, mas também um choque de desvalorização da consciência social em geral. No final definitivo duma fase paranóica de desenvolvimento na forma irracional do valor, que durou mais de 200 anos, chegou-se a uma prova decisiva para a sociedade humana: será ela capaz de ir além estruturas fetichistas das relações dinheiro-mercadoria que a impregnam, sem enlouquecer completamente, ou será que vai regressar à "barbárie"? Porém uma coisa é certa: ela não pode continuar na sua forma actual.
NOTAS
(1) Os intermediários do dinheiro como mercadoria são os bancos, que dividem os juros com os aforradores. Mas é um exagero dizer "dividir", já que pelo menos os aforradores privados (não institucionais) e sobretudo os chamados "pequenos aforradores", como principais idiotas do dinheiro, devem geralmente contentar-se com as migalhas; uma fonte permanente de ressentimento filisteu de "pequenos" sujeitos monetários e tensos trabalhadores compulsivos. A força do sistema bancário reside no seu poder concentrado de mediação em relação ao dinheiro como mercadoria. Daí o dito: "o banco ganha sempre".
(2) Esta expressão absurda surgiu, pelo menos na Alemanha, apenas nos anos 80, quando o capital monetário internacional, sob a pressão especulativa, induziu os bancos e demais serviços financeiros a inventar sempre novas formas derivadas do movimento monetário, que à semelhança do processos industriais são designadas "inovações de produtos" financeiros por parte duma "produção financeira".
(3) As implicações para uma teoria da crise que podem ser derivadas deste conceito do terceiro volume de O Capital foram parcamente discutidas no marxismo, quando não vistas com maus olhos. Um tal facto revela o quanto os marxismos tradicionais ainda se apegam a uma suposta "seriedade" e estabilidade capitalista; uma postura que certamente guarda laços subterrâneos com a idolatria do trabalho abstracto. Num texto recente, Kurt Hübner, da Prokla, deixa entrever que prefere tratar o problema do "capital fictício" sob o título "formas de dinheiro e de crédito que aumentam a elasticidade", em vez de tomar verdadeiramente em consideração algo tão pouco
digno de crédito quanto um "processo fictício da acumulação global" (Kurt Hübner , "Für die Eröffnung der Debatte", in Konkret
7/95).
(4) Num sistema bancário desenvolvido, o proprietário singular privado ou institucional de dinheiro normalmente não se dá conta disso, porque o prejuízo é coberto com o fundo de garantia dos bancos. Somente quando a não-coincidência entre trabalho e dinheiro alcança uma dimensão social maior, a crise se estende da produção de mercadorias ao sistema financeiro como tal e se manifesta como crise do sistema bancário.
(5) Um aspecto desta questão é que os mercados financeiros estão sujeitos à habitual lei mercantil da oferta e da procura: pagar os juros sobre créditos através de novos créditos aumenta a procura de capital financeiro, o que empurra para cima o juro como preço do dinheiro. O resultado, quando as dimensões destes processos são suficientemente grandes, é a escassez de capital financeiro, que no fim conduz a um limite insuperável, apesar de todos os truques para obter liquidez.
(6) Em quase todas as grandes empresas que se converteram ao capital por acções, não somente o management empresarial "no activo" se encontra separado dos simples possuidores dos títulos de propriedade jurídica, que já não possuem quase nenhuma influência sobre as decisões reais da empresa, mas, entre os proprietários jurídicos, as "famílias fundadoras" (como os Siemens, os Krupp etc.) passam pouco a pouco ao segundo plano em relação aos bancos, e tornam-se um insignificante apêndice de luxo na história do capital; mesmo quando como "suporte do nome" ainda detenham uma avantajada carteira de acções. O mesmo processo, só que mais acelerado, tocou aos
patriarcas do segundo pós-guerra alemão (Grundig, Nixdorf etc.).
(7) Alguns exemplos, tomados ao acaso: com base nos balanços (que em geral são "arranjados" ou maquilhados), na Primavera de 1995 a quota de capital próprio da Daimler-Benz ainda era quase de 55%, da AEG de 17%, da Viag de 20%, da Baiersdorf-AG de 35%, da Krupp-Hoesch de 15% e da Klockner-Deutz de apenas 8%.
(8) Como resultado do aumento estrutural da taxa de juros, apesar de todas as medidas contrárias (um processo filtrado pela mediação do mercado mundial, de modo que em países isolados é possível ensaiar temporariamente desenvolvimentos de sinal oposto), não apenas crescem os custos preliminares para uma real produção rentável, mas esta última, no que respeita ao lucro, tem que enfrentar a concorrência das rendas dos meros investimentos financeiros.
(9) Tanto quanto podemos reconstruí-los, nos primeiros níveis de desenvolvimento e em muitas culturas não existe de facto um conceito abstracto de trabalho, mas somente diversos conceitos concretos e contextuais de actividade. É certo que nas culturas agrárias mais evoluídas nasceu um conceito abstracto de trabalho, embora não (como parece pressupor Marx) como conceito lógico superior da actividade social, como (suposta) "abstracção racional" do pensamento, mas antes como designação da actividade dos escravos ou dos menores ("o que faz aquele que é socialmente dependente, aquele que não pode "pedir satisfação"). Tratava-se, portanto, duma abstracção social
(negativa, pejorativa) e não duma abstracção lógica do tipo "casa", "árvore", "fruta " etc. Apenas no moderno sistema produtor de mercadorias e no seu contexto lógico e histórico nasce a categoria fetichista abstracta do trabalho, como conceito de universalidade social da actividade sob a forma-mercadoria.
(10) Nem sequer tal determinação superficial e puramente definidora de "trabalho produtivo", que não permite nenhuma delimitação analítica, é respeitada pelos economistas de origem marxista. O já citado Kurt Hübner, ao comentar as operações de "hedging" que oferecem protecção dos riscos típicos das flutuações de câmbio nas exportações, afirma: "Estas actividades concretas, embora não criem mais-valia, devem ser compreendidas no sentido do trabalho distributivo e produtivo de Marx, como parte integrante do processo laborativo que gera mais-valia, ou seja, como trabalhos produtivos" (Hübner, op. cit.). Esta definição não tem o menor sentido, pois nesse caso todos os
trabalhos seriam trabalhos produtivos, na medida em que o capitalismo não desperdiça trabalho e na sua esfera só ocorrem as actividades "necessárias" para a reprodução do capital. Tal necessidade pode subsistir também num sentido externo, técnico-organizativo, e portanto somente formal, sem ser essencialmente criadora de mais-valia nem produtora de capital (por exemplo, no que se refere às condições infra-estruturais da produção mercantil). No plano lógico, a actividade que cria mais-valia e o trabalho produtivo são idênticos, embora existam actividades que só ingressam indirectamente na produção de mais-valia (transportes e bens de construção, por exemplo). O "operário produtivo integral" de que fala Marx cobre a totalidade das
actividades que criam mais-valia e que entram na produção real de mercadorias; é preciso distingui-lo conceptualmente de todos os trabalhos, sejam eles parciais ou não (um operário também pode efectuar em parte trabalho produtivo, em parte trabalho improdutivo) que não entram de modo algum (e portanto nem indirectamente) na produção de mercadorias que cria mais-valia. Separando o conceito de trabalho criador de mais-valia do conceito de trabalho produtivo, Hübner anula toda diferença entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, já que assim não existe mais nenhum critério de distinção. Esta é naturalmente a solução mais banal do problema, que de resto coincide perfeitamente com o conceito de "criação de valor" típico da
economia política burguesa, que ignora igualmente a distinção conceptual aqui discutida.
(11) Este debate ou limitou-se a afirmar o produtivismo industrial normativo face à "inconfiabilidade" sócio-política de criados ainda semi-feudais (empregadas domésticas etc.), que além disso perdiam importância à medida que o seu número diminuía (assim ainda em Karl Kautsky); ou então só debateu a incipiente terceirização no terreno do próprio desenvolvimento capitalista (parcialmente baptizada como "novas classes médias"), discutindo-a de um ponto de vista puramente sociológico e estratégico, de olho nas "alianças" do "verdadeiro" movimento operário industrial. Pelo contrário, descurou sistematicamente as consequências para a reprodução capitalista, e portanto a
importância do problema para a teoria da crise.
(12) O que no plano empresarial significa uma diminuição de custos corresponde sempre, tal como noutras formas de racionalização, a um ónus para o trabalhador, uma vez que nas microempresas especializadas o trabalho terciário é intensificado, ao passo que o salário em geral é mais baixo em comparação com o recebido por quem trabalhava no interior das antigas empresas (o que resulta em parte das condições contratuais diversas fora dos sectores industriais bem organizados sindicalmente). Mesmo a precária pseudo-autonomia forçada sob a forma de frotas externalizadas (sistemas de subempreitada nos serviços de transporte) faz parte do demonismo deste tipo de
terceirização. Por norma, as empresas de serviços autónomos e externalizados são locais terríveis e com condições de trabalho brutais, nas mãos de pessoas arrivistas com ar de yuppies: um produto típico do neoliberalismo.
(13) Em muitas passagens Marx trata o problema deste modo, por exemplo nas "Teorias sobre a mais-valia" e nos "Resultados do processo produtivo imediato", sem que fique claro se ele se limita a adoptar o ponto de vista da lógica do capital isolado, ou se crê, de facto, reconhecer aqui uma mudança substancial. Seja como for, é certo que Marx não argumenta sempre deste modo, mas utiliza também o conceito de um trabalho absolutamente ("em si), ou seja em todos os casos improdutivo, referindo-se sobretudo aos sectores puramente comerciais que se ocupam de meras transações de dinheiro.
(14) Esta argumentação sob o ponto de vista da teoria da circulação foi elaborada já há seis anos por Ernst Lohoff, no n° 6 da nossa revista, num ensaio intitulado "Consumo estatal e falência estatal", ainda que se limitasse à actividade estatal em sentido estrito, já que sua temática era uma crítica do keynesianismo. Além disso, neste ensaio, a determinação em termos de teoria da circulação ainda se encontra dissociada do conceito de trabalho produtivo, de maneira que a força do argumento talvez tenha passado despercebida. Assim podemos ler no ensaio em questão: "Todos os produtos que [...] são gastos de maneira improdutiva, quer dizer, que não reaparecem nos
ciclos seguintes de produção como elementos de um capital, transformam-se para o capital social conjunto em faux frais, mesmo que o próprio trabalho despendido na sua produção deva classificar-se claramente como trabalho que gera valor". Aqui ainda se opera com um conceito abstracto e "definidor" do trabalho produtivo, que parece independente da teoria da circulação, de sorte que, paradoxalmente, um trabalho "claramente" produtivo e criador de valor (implicitamente situado no plano do capital isolado) subitamente apresenta-se como faux frais no plano do capital conjunto e é gasto "de maneira improdutiva". O "trabalho produtivo" e o "dispêndio improdutivo" separam-se conceptualmente. Além disso, o "dispêndio
produtivo" depende apenas do facto de os produtos aparecerem no ciclo produtivo seguinte como elementos de "um capital", isto é, não como consumo estatal. Assim, ainda não se vê que mesmo "um capital" (ou seja, um capital comercial isolado) pode por si só ser tão improdutivo quanto o consumo estatal. Porém, ambas as incongruências desaparecem se - como fizemos acima - o conceito de trabalho produtivo e criador de valor fôr deduzido como tal exclusivamente nos termos da teoria da circulação, descrevendo o problema num plano de abstracção mais elevado do que na mera distinção entre produção capitalista privada e consumo estatal. Se o conceito de trabalho produtivo se liga, nos termos da teoria da circulação, ao processo do "consumo
produtivo", todas actividades e todos produtos que não se esgotam nele tornam-se automaticamente um consumo social improdutivo, não importa se na sua forma exterior eles são mediados pelo Estado ou pelo capital privado. Só deste modo se obtém uma definição do trabalho produtivo transversal aos sectores de reprodução, por meio da qual pode ser decifrado o próprio carácter ocultamente improdutivo daquela parte da produção "material" e industrial, cujos produtos são consumidos de modo improdutivo.
(15) Assim, a crise estrutural como limite absoluto do capital agrava-se de início não na esfera dos mercados de mercadorias, mas na dos mercados financeiros. Ora Rosa Luxemburgo não inseriu sistematicamente, na sua teoria da crise, a questão do crédito e da crescente relevância do capital que rende juros, como também ignorou a questão conexa da "revolução terciária"‘ (então somente no início). Provavelmente teria considerado ambas suspeitas, por assim dizer, já que se via forçada, tal como os seus adversários, a assumir ideologicamente o ponto de vista do proletariado industrial. Para ela, era impensável que o capitalismo se pudesse afundar não pelo aumento mas
pela diminuição do proletariado industrial e pela simultânea expansão do sector terciário e do "capital fictício". É por isso que na sua teoria da crise se chega a uma consideração invertida duma problemática correcta; a crise não consiste no desaparecimento de um certo tipo de "terceira pessoa" (os restos dos modos de produção pré-capitalistas), mas no facto de que um tipo novo de "terceira pessoa" (resultado do processo de terceirização) se torna estruturalmente muito numeroso. Os inimigos de Rosa Luxemburgo, aliás, sempre tentaram refutá-la com argumentos que pressupunham a expansão do capital industrial a longo prazo.
(16) Estamos aqui perante um problema que Marx chamou de "factor moral" nos custos de reprodução dos trabalhadores. Com efeito, a força de trabalho humana não é uma mercadoria como outra qualquer - não só por sua potência produtiva de criar valor (que uma máquina de lavar possui tão pouco quanto uma furadeira, pois se trata apenas de coisas e não de seres com relações sociais), mas também porque os "custos de produção" e os custos de reprodução da mercadoria "força de trabalho" não podem ser objectivados da mesma maneira como é feito para as mercadorias, que são coisas mortas. Mesmo nas sociedades mais primitivas, os custos de reprodução de um ser humano não se
esgotam na mera capacidade física de sobreviver - e muito menos nas sociedades modernas evoluídas. O que ingressa na reprodução da força de trabalho como satisfação necessária das necessidades está, portanto, sujeito a mudanças históricas. No entanto, não se trata somente duma avaliação "moral" no sentido mais estrito, embora mesmo esta seja possível em certo sentido. Os níveis de satisfação das necessidades tornam-se agora extremos - mesmo nos países industriais ocidentais - no interior da força de trabalho conjunta: processos de empobrecimento devidos à redução dos salários abaixo do nível de reprodução, mesmo quando as necessidades são elementares, contrastam com um consumo fetichista destrutivo, que prevalece noutros segmentos
da força de trabalho (consumo irracional dos recursos e da paisagem, consumo directo da destruição etc.). Porém no plano económico não conta a avaliação qualitativa do nível de reprodução, mas sim a questão de quais os factores da satisfação das necessidades que vigoram quantitativamente num dado momento histórico, e quais não. No âmbito do "capital em geral", a teoria de Marx, como se sabe, abstrai a mediação do mercado mundial, o que pode contudo gerar distorções também sob este aspecto. Isso vale sobretudo quando certos factores no nível de reprodução da força de trabalho conjunta duma economia nacional se baseiam no facto de que, através da posição mais forte no mercado mundial, é apropriada e redistribuída uma parte
superdimensionada da real mais-valia mundial. Esta redistribuição, a título de mero consumo suplementar de luxo, vai além dos custos de reprodução da força de trabalho e é tão improdutiva quanto o consumo estatal, pago com quantidades de valor excedentes. Só num plano superficial esta situação faz lembrar o teorema de Lenine sobre a "aristocracia operária", já que em Lenine trata-se de facto apenas de um juízo político moral ("corrupção"), mas não do verdadeiro nível económico do sistema: nem em sonhos teria Lenine pensado em debater explicitamente essa questão do ponto de vista da crise, no contexto da diferença entre trabalho produtivo e improdutivo. Qual é em tudo isso o papel do turismo e da sua "indústria" devia ser objecto
duma pesquisa específica.
(17) Naturalmente que os juros do crédito estatal devem ser pagos, como os do crédito comercial. Porém, o pressuposto lógico do crédito é que só no caso dum real uso capitalista, com produção real de mais-valia, é possível "obter" os juros necessários para pagar. No crédito estatal, as coisas são diversas desde o início, porque ele desaparece por inteiro no mero consumo social. Ora, também as rendas provenientes do pagamento dos juros por parte do Estado são tratadas "como se" fossem consequência duma real produção de mais-valia. Por isso, entre os agregados do "capital fictício", Marx indica o crédito estatal, a especulação comercial com simples títulos de
propriedade e o volume "podre" de metacréditos que cobrem créditos já perdidos.
(18) Recorde-se ainda que também o consumo privado, tanto dos trabalhadores produtivos quanto dos improdutivos, é prolongado com créditos ao consumo. Com isso, os trabalhadores hipotecam antecipadamente os seus futuros salários do mesmo modo que os capitais hipotecam antecipadamente seus futuros ganhos. Esta dimensão suplementar do sistema creditício efectua um rompimento ainda mais pronunciado entre o dinheiro e sua substância real.
(19) Novamente, o já citado Kurt Hübner demonstra quão pouco esta circunstância estrutural é compreendida. Ele declara que "não se pode levar a sério a afirmação de que 40% a 60% dos assalariados são directa ou indirectamente funcionários públicos". Mas o que significa, afinal, se a chamada quota estatal chega justamente a 40% ou 60% do produto interno? Significa exactamente que o Estado agora não é apenas o mais importante "empregador", mas também que uma parte das ocupações não estatais têm de depender indirectamente do Estado, através dos diversos níveis de mediação. É claro que nem todo emprego que depende do Estado passa a ser financiado com o crédito, mas
apenas uma parcela (crescente); de contrário, o sistema já estaria em ruínas há muito tempo. O facto de Hübner se recusar a ver o problema talvez se deva à filiação naquela esquerda "politicista", que vê como decisiva a "intervenção política" no sistema produtor de mercadorias insuperado (porque em sua cabeça insuperável). Admita-o ou não, esta esquerda depende da expansão da capacidade financeira estatal e, assim, do alcance do crédito estatal.
(20) Marx demonstrou esta hipótese com base no exemplo da produção têxtil indiana do século passado, que foi cilindrada pela produção industrial inglesa - um processo que poderia repetir-se hoje entre a Índia e o Ocidente, ou entre a Índia e o Sudeste asiático, no caso duma abertura dos mercados indianos por imposição da reforma neoliberal. O mesmo princípio, aliás, foi a causa do súbito colapso da indústria da Alemanha Oriental depois de sua integração sem amortecedores na Alemanha Ocidental. A ladainha hoje já esmorecida da velha esquerda anti-imperialista sobre a "troca desigual" abordava o problema não com categorias económicas, mas com inadequadas categorias
morais; no fundo, tratava-se sempre da simples reivindicação de um standard mundial médio da produtividade, economicamente absurda para níveis produtivos não-simultâneos - reivindicação não menos ilusória que a do "Estado mundial". Isso demonstra apenas que a esquerda tradicional só conseguia pensar com os conceitos burgueses duma insuperada produção de mercadorias e com as categorias da economia nacional fantasmagoricamente extrapoladas para a sociedade mundial.
(21) Em rigor, mesmo a medida puramente administrativa das barreiras alfandegárias não é isenta de custos; de facto, é preciso empregar pessoal, surge o problema da vigilância, do contrabando etc. Como se sabe, até o protótipo moderno duma tal medida em grande estilo, o "bloqueio continental" de Napoleão contra a Inglaterra, fracassou estrondosamente.
(22) Com incrível ingenuidade económica, o que restou do antigo radicalismo politicístico de esquerda, na sua adoração negativa das glórias do capitalismo, simplesmente estima o número de empregos na China, na Índia etc.. sem nenhuma consciência do problema tratado aqui. Rainer Trampert e Thomas Ebermann, os ex-campeões da esquerda radical do Partido Verde alemão, acreditam poder refutar a prognose duma grande crise, "demonstrando" que ao capitalismo não falta trabalho e que globalmente a produção de mais-valia encontra-se de facto em ascensão. Porém estes empregos suplementares ou são directamente "sem substância ", isto é, simulados por meio do crédito estatal;
ou são empregos criados pela industrialização voltada para a exportação no quadro da reforma neoliberal, que implicam uma abertura forçada ao mercado mundial e portanto uma liquidação colossal de empregos, até agora "protegidos" (simulados) nas indústrias organizadas ou subvencionadas pelo Estado e pouco rentáveis do ponto de vista do mercado mundial. Para cada emprego a mais na industrialização "aberta" voltada para a exportação, calcula-se no respectivo país a perda de 10 a 100 empregos, na indústria interna (e na agricultura) antes simuladas através de créditos. Tal balanço negativo não foi ratificado com coerência em lado nenhum, mas a ruptura entre subvenção interna e abertura ao mercado mundial torna-se necessariamente um
tudo-ou-nada: as duas coisas não podem andar juntas. Tanto em relação aos empregos e à quantidade de trabalho, como em relação à criação de mais-valia à escala mundial, trata-se de um balanço em última instância negativo, que terá inevitavelmente de vir à luz.
(23) Nos anos 70 e 80 ocorreu um novo salto, que fez com que o sistema financeiro se tornasse um dos pilares mais importantes do crescimento, tanto no que respeita ao emprego quanto ao produto interno; um indício de quanto estavam obsoletas as categorias da economia política e de quanto se agravava a crise estrutural.
(24) Isso vale tanto para a teoria económica burguesa, se é que ela ainda existe, quanto para o debate marxista e seu apêndice na nova esquerda, hoje quase atrofiado. Já Rosa Luxemburgo se apressara a assegurar que o colapso obviamente jamais ocorreria de facto, pois antes disso o proletariado "tomaria o poder"; na resposta aos seus críticos, ela chegou a opor a sua teoria da crise às hipóteses de um fim do capitalismo através da queda da taxa de lucro, que a seu ver poderia prolongar-se "até ao dia em que o sol se apagar". O repúdio instintivo dum limite "objectivo" e absoluto do capitalismo varrido pela crise levou o marxismo a reconhecer tal limite interno,
apenas num sentido puramente lógico e não num sentido historicamente determinável. Nos epígonos e nos restos do marxismo, esta relação inverte-se com uma ironia sem igual: na medida em que o "limite interno" se torna de facto historicamente tangível, é considerado como inexistente também no seu sentido lógico. A restante esquerda e ex-esquerda participa com afinco cada vez maior na simulação a todos os níveis do sistema produtor de mercadorias.
(25) Não se pode obviamente derivar daqui um socialismo vulgar de Estado, como supunha Wagner no seu tempo, mas apenas os limites da reprodução do sistema produtor de mercadorias.
(26) Esta circunstância é um dos motivos pelos quais os chamados juros básicos (taxas de desconto e de redesconto), fixados pelos bancos centrais, perderam em boa parte sua função reguladora; de facto, o peso da procura estatal nos mercados financeiros não é modificado pela taxa oficial de desconto. Diferentemente da procura privada o "devedor infalível" Estado não é travado nem estimulado pela taxa oficial de desconto, guiado como é por coerções e considerações de todo diversas, situadas para lá do cálculo monetário privado.
(27) O cordão umbilical do padrão-ouro durou mais tempo com o dólar, rompendo-se somente em 1973 e preservando até agora pelo menos um laço indirecto entre forma-valor e substância-valor, através do dólar como moeda mundial. Mas esta posição particular do dólar deveu-se exclusivamente à supremacia económica dos Estados Unidos no fim da Segunda Guerra Mundial e só pôde manter-se durante um quarto de século.
(28) Decisivo, porém, é o facto de que uma parte considerável do dinheiro dessubstancializado nos países capitalistas mais importantes não aparece agora como procura real, mas antes é "estacionada" sob a forma de dívida pública ou de especulação comercial nos mercados financeiros, onde continua a proliferar. É justamente por este motivo que a inflação está hoje mais baixa do que nos anos 70, embora a massa de "capital fictício" tenha crescido muito. O pressuposto desta constelação tão particular quanto passageira continua porém no sangramento da maioria inflacionada da população mundial. Mas assim que a exportação da inflação deixar de surtir efeito e/ou se
romperem no Ocidente os diques da super-estrutura financeira, tanto estatal como especulativa, o dinheiro será também aqui desvalorizado de um modo ou de outro.
(29) A mais-valia relativa aparece (como a categoria do valor em geral) não imediatamente no plano do cálculo do capital isolado, mas - como efeito do desenvolvimento cego do sistema - no plano do capital conjunto, reconstituível apenas teórica e analiticamente. Sob o ditame da concorrência, a produtividade aumenta cada vez mais em virtude da aplicação tecnológica das ciências naturais e assim baixa sensivelmente os preços de bens velhos e novos, o que, não obstante o aumento do consumo e dos salários, eleva a quota relativa da mais-valia sobre toda a criação de valor por parte de cada trabalhador; ou seja, os custos relativos para a reproducão da força de trabalho
diminuem, comparados com a sua criação absoluta de valor. Isto torna-se mais evidente na unidade de tempo: para o contravalor de um ovo, de um fato ou de um televisor, uma força de trabalho tem de trabalhar, numa comparação de longo prazo, cada vez menos minutos ou horas. Por outras palavras: com um tempo de trabalho igual (ou que só diminui lentamente), uma parte relativamente crescente de tempo de trabalho entra na produção de mais-valia, embora cresça concomitantemente o volume dos bens consumidos pela força de trabalho. A produção de mais-valia relativa através do aumento da produtividade tem porém um lado negativo, economicamente absurdo e ecologicamente desastroso a longo prazo: a necessidade de crescer, que aumenta com
igual rapidez. Como cada produto isolado contém sempre menos valor e, portanto, menos mais-valia, é preciso inundar o mundo com uma maré irresistível de produtos. Essa invasão histórica de produtos encontra não apenas os limites do que o consumo pode absorver, mas também os limites naturais absolutos.
(30) Não se confunda este conceito com o de "mais-valia absoluta". Este último refere-se à expansão da criação absoluta de valor para cada força de trabalho através do prolongamento e da intensificação da jornada de trabalho, ao contrário do já citado aumento da quota relativa de mais-valia, no caso duma criação absoluta de valor que continua igual ou decresce para cada força de trabalho. O conceito de "massa absoluta de mais-valia" indica por sua vez a soma da mais-valia social, que obviamente não depende só da taxa de mais-valia para cada força de trabalho, mas também da quantidade de força de trabalho utilizada. Como é óbvio, a medida do valor reconduzida à sua
verdadeira substância, o "tempo de trabalho", permanece sempre igual, pois uma hora de "dispêndio de nervos, músculos, cérebro" é em todo caso a mesma.
(31) Neste terreno, um achado histórico muito em voga é a chamada "teoria da regulação", da qual se fez, sobretudo na Alemanha e na França, uma verdadeira "escola" (basta mencionar Michel Aglietta, Régulation et crises du capitalisme, Paris, 1976; Joachim Hirsch e Roland Roth, Das neue Gesicht des Kapitalismus, Hamburgo, 1986; Rudolf Hickel, Ein neuer Typ der Akkumulation?, Hamburgo, 1987). O preceito original de Aglietta, embora argumentasse ainda em termos da teoria do valor e da acumulação, convertia o específico regime fordista da acumulação em possibilidade geral e supra-histórica de expandir quase à vontade os limites internos da
acumulação, através de intervenções reguladoras de cariz político. Nos discípulos alemães, esta motivação reduzida aos horizontes da teoria da acumulação quase desaparece, para dar lugar à especulação superficial acerca de "modelos regulativos". O que falta a essas abordagens é uma análise crítica da forma-valor e das suas transformações históricas, porque tanto a forma-valor como a ulterior acumulação de capital são axiomaticamente pressupostos. Em última instância, a teoria da regulação já não é uma teoria marxista da crise baseada na crítica da economia, mas uma teoria positivista que quer conter as crises fundada na economia política burguesa. A partir duma única experiência histórica - a expansão fordista depois da Segunda
Guerra Mundial -elabora-se sub-repticiamente a ideia de universalizar a "regulação em geral", como se, por intermédio de um regime de regulação, fosse possível gerar um novo modelo de acumulação do capital (sendo que, na verdade, o caso do fordismo era justamente o oposto). O argumento parece supor que o capitalismo já tem às costas centenas de "modelos" de acumulação e regulação, e que hoje é preciso apenas reconhecer os contornos do próximo. Na verdade, o fordismo, com a sua regulação keynesiana, foi o primeiro e também o último "modelo" duma reprodução capitalista integral da sociedade, ou seja, no fundo não era um "modelo", mas um fenómeno histórico único. Com o seu fim, esgota-se em geral a possibilidade duma reprodução sob a
forma-fetiche "valor" - uma ideia que talvez seja tão mal vista tanto pelos economistas de esquerda quanto por seus colegas da economia política, porque implica o descrédito total de suas profissões.
(32) Obviamente, aqui é de novo a velha esquerda radical que se revela especialmente obtusa, quando fala seriamente duma "mais-valia aumentada graças à automação", postulando uma causalidade francamente absurda: "Quanto mais produtivos se tornam os empregados, maior é o número de pessoas que, nos próximos tempos, não serão mais necessárias para a produção de mais-valia". Mas o aumento de output material através da produtividade aumentada não é, de facto, idêntico à produção de "mais valor". Aqui, identifica-se imediatamente o conceito de capital com o limitado ponto de vista empresarial, para o qual as coisas são exactamente assim (mas cujos representantes
pelo menos não nutrem a ambição de conceber a "teoria do valor"). Contudo, em contraste com esta consideração particularista, que não leva em conta os contextos de mediação, continua verdadeiro, no plano do capital conjunto, que a produção contínua de mais-valia significa também ampliação, e não diminuição, do emprego de trabalho abstracto. "Graças à automação" como tal, a mais-valia cresce tão pouco quanto de um par de tenazes podem crescer tomates. Pelo contrário, o que se precisa explicar é o motivo pelo qual, apesar do aumento da automação (ou ao menos da mecanização e da racionalização) na era fordista após a Segunda Guerra Mundial, a mais-valia pôde crescer - e não meramente pressupor esse facto, na verdade contraditório em
si mesmo.
(33) Apenas na Ásia se assistiu ainda a uma onda de expansão fordista, que entretanto só pôde envolver toda a sociedade em alguns países pequenos, com populações relativamente pouco numerosas, os quais conseguiram ocupar os "nichos de exportação" (os chamados "pequenos tigres" como Hong Kong, Singapura, Coreia do Sul e Taiwan). Nos grandes Estados asiáticos, a expansão fordista induzida pelas exportações limitou-se a sectores relativamente minúsculos, o que conduzirá a graves abalos sociais (sobretudo na China). No seu conjunto, o volume absoluto de mobilização do sudeste asiático é muito pequeno para poder construir outra locomotiva da criação mundial de valor. As
joint ventures da indústria automobilística alemã na China devem, segundo as previsões, produzir até finais do ano 2000 somente 60.000 unidades por ano: isso não é mais do que uma gota no oceano. A maior parte das importações asiáticas de bens de investimento acha-se solidamente em mãos japonesas. Mas mesmo esse volume é pequeno em termos absolutos. Até agora, as exportações da ofensiva asiática tardo-fordista não chegam sequer para financiar a manutenção da infra-estrutura existente, deteriorada e espoliada além dos seus limites. Segundo dados do Banco Asiático de Desenvolvimento, seria necessário mais de mil milhões de dólares apenas para os investimentos de manutenção nos próximos 5 anos. O que é celebrado como "milagre" do
sudeste asiático não passa dum "efeito de base" das altas taxas de crescimento, cujo ponto de partida era extremamente baixo. Este esgostar-se-á em poucos anos; a expansão dos "pequenos tigres" vergará sob o peso dos custos proibitivos implicados nos investimentos da infra-estrutura, na reparação dos danos catastróficos ao ambiente e na próxima fase de intensificação do capital. No mundo actual, porém, a esmagadora maioria dos países não poderá sequer chegar ao limiar do "efeito de base" fordista.
(34) Os campeões dessa visão são Rainer Trampert e Thomas Ebermann, que simplesmente somam números apanhados aqui e ali, e deles deduzem uma expansão supostamente irresistível da produção de mais-valia: "Na China, o emprego cresceu em 28% de 1983 a 1992, ou seja, 130 milhões de assalariados a mais. Em diversos países asiáticos, o emprego como que explodiu: na Tailândia cresceu em 35%, na Coreia do Sul em 30%, nas Filipinas em 26%, na Singapura e na Malásia em 23%, em Hong Kong em 13%, na Índia em 26% e no Paquistão em 19%" (Konkret 3/95, p. 36). Mas mesmo abstraindo do facto de que o ponto de partida era bastante baixo, com esta enumeração nada se diz sobre
o desenvolvimento da real substância do valor, já que não se criam mediações teóricas e empíricas no plano do valor. Não basta contentar-se superficialmente com dados sociológicos e uma "fenomenologia da exploração", interpretada, na melhor dos casos, em termos moralistas. O facto de, graças ao desenvolvimento capitalista, muitas pessoas viverem mal e predominarem condições miseráveis de trabalho ainda não diz nada sobre a verdadeira capacidade de acumulação do capital.
(35) Aqui é preciso mais uma vez fazer notar a obtusidade sociologística do antigo marxismo, cujos cálculos, para dizer pouco, são ingénuos em termos da teoria do valor: "Ao capitalismo como um todo não faltará o trabalho, se uma diminuição do trabalho industrial na Alemanha de cerca de 2 milhões de empregos for confrontada com 130 milhões de novos empregos na China" (Konkret, op. cit.). Semelhante argumentação desconhece que o "valor" é um conceito histórico relativo e não se presta a cálculos com base em cifras absolutas sobre o emprego, se os níveis forem não-simultâneos.
(36) Do ponto de vista do cálculo empresarial, isto significa que em escala secular se consegue obter sempre menos lucro para cada capital empregue - o que pode ser compensado com o aumento do investimento e assim também do lucro (em termos absolutos). Se um capital de um milhão rende somente o lucro de 50.000 em vez de 100.000 como antes, então esta diminuição há-de ser compensada em termos absolutos, empregando 2 milhões; e ao empregar 3 milhões os lucros aumentam sensivelmente. O pressuposto, naturalmente, é que os 3 milhões no lugar do milhão precedente podem ser investidos de modo rentável e produtivo no mercado. Do ponto de vista do capital isolado, isso
significa que o simples aumento do volume de negócios e a luta por fatias do mercado assumem uma importância historicamente cada vez maior. De facto, mesmo do ponto de vista do capital empresarial, é somente através da ampliação que se pode tanto compensar ou sobrecompensar a queda da taxa de lucro quanto dar conta dos crescentes custos de investimento para o capital fixo. Por isso, o discurso sobre o "redimensionamento sadio" é uma ilusão, não apenas para o conjunto da sociedade, mas também para as empresas. Para baixo dum patamar mínimo (certamente diverso de ramo para ramo e de ciclo para ciclo), o pretenso "redimensionamento sadio" há-de transformar-se rapidamente num cadáver.
(37) Talvez se possa formular tal estado de coisas do seguinte modo: trata-se, de certa forma, da diferença entre um ganho relativamente "muito pequeno", por um lado, e uma falência certa por falta de liquidez (e portanto insolvência), por outro lado. Só que aqui está em causa o modo de produção como tal e não as empresas.
(38) Desesperados, antigos marxistas como Trampert e Ebermann citam sabiamente apenas a segunda parte da frase de Marx, segundo a qual "a nação não sai empobrecida um centavo sequer com o estouro desta bolha de sabão", enquanto negligenciam a referência ao possível contragolpe do colapso financeiro sobre a acumulação real. O seu interesse é evidente: sugerir que o problema do "capital fictício" não tem, nem na época de Marx nem hoje, uma relação decisiva com a autêntica acumulação do capital e que é, em comparação com ela, uma grandeza de segunda ordem, um mero fenómeno colateral da poderosa exploração real, que continua a acumular vitórias. Os motivos para que
muitos ex-extremistas queiram a todo custo nutrir o capital "à base de títulos", celebrando-lhe a potência e a glória, não podem ser identificados no âmbito teórico ou analítico. A renitente evocação da seriedade da acumulação mundial do capital demonstra à evidência que a consciência do marxismo do movimento operário sente ela própria a necessidade de afirmar essa seriedade, para poder manter a imagem que faz de si mesma.
(39) Mostra-se um tanto ingénuo o banqueiro norte-americano Felix Rohatyn quando sugere, bem-intencionado, utilizar de algum modo o capital especulativo internacionalizado para pagar as infra-estruturas do Terceiro Mundo, das regiões emergentes do sudeste asiático e do antigo bloco da Europa oriental, para finalmente inflectir esse capital para canais produtivos. Rohatyn ignora totalmente o facto de ter sido a própria falta de financiamento e rentabilidade produtiva à escala global que induziu o capital monetário a lançar-se na estratosfera especulativa. Ele confunde assim causa e efeito. Além disso, é por demais ingénuo tomar o capital monetário ficticiamente
inflaccionado como algo real e tentar tratá-lo como se fosse capital gerado numa produção real. O Barão de Munchhausen alegrar-se-ia com tal proposta.
40) Obviamente, o mesmo facto assume formas diversas, de acordo com o nível de produtividade que um país consegue manter no plano da reprodução real, com a posição da sua moeda no sistema financeiro internacional e com a fase de crise socio-económica já alcançada. Todavia, a máfia financeira na Rússia ou o obscuro sistema de "bancos" de fundo-de-quintal na Ucrânia pertencem, num nível mais baixo, ao mesmo "capitalismo de casino" global, que reina olimpicamente no Japão ou nos Estados Unidos.
(41) Aqui é preciso fazer a distinção entre o capital estrangeiro que flui, por iniciativa própria, para um país a fim de realizar investimentos reais (o que significa que o "lugar" é atraente), e o capital estrangeiro que o Estado (ou o empresário) tomam emprestado ao exterior, levados pela necessidade, e sobre o qual é necessário pagar os juros e as amortizações. No último caso, surge um "circuito deficitário" e uma potencial "crise de endividamento"
(42) Naturalmente, nenhum destes circuitos deficitários pode ser conservado a longo prazo. Por isso, o governo alemão e as instituições europeias tentam manter o moral sempre elevado, anunciando continuamente uma certa recuperação, resultados positivos etc., devidos na melhor das hipóteses aos efeitos da criação improdutiva de liquidez. Ainda mais idiotas, é claro, são as lamúrias ao mesmo tempo nacionalistas e monetaristas, segundo as quais a Alemanha estaria a pagar para toda a gente e deveria finalmente cuidar dos próprios interesses. Na verdade, a Alemanha tem um interesse quase desesperado em que os circuitos deficitários europeus sejam alimentados com marcos,
pois a economia alemã depende maciçamente das exportações, das quais mais de 70% são para países europeus. Para ela, é uma questão de vida ou morte que os circuitos deficitários europeus perdurem.
(43) É totalmente equivocado reduzir, como fizeram alguns gurus ocidentais do management,
os sucessos japoneses à lean production e a outros "métodos japoneses inovadores", passíveis de serem imitados. Até ao início ou talvez mesmo até meados da década de 80, os êxitos japoneses eram limitados, e este não era tomado como o país por excelência dos milagres neocapitalistas. O Japão só se tornou campeão do mundo no decurso de seus super-investimentos, financiados de forma pouco séria com o pseudo-boom do "capitalismo de casino". É aqui que se esconde o pequeno segredinho sujo do grande sucesso japonês, e não primordialmente numa inovação tecnológica ou organizacional específica. Já por esse motivo a "supremacia japonesa" é em última instância uma grande bolha de sabão historicamente efémera.
(44) Pode ser considerado sintomático que a última fábrica produtora de televisores a cores nos Estados Unidos tenha sido recentemente comprada por uma empresa sul-coreana. É claro que isto não vale para todos os segmentos da produção, mas aplica-se a um amplo leque de produtos industriais de alto valor, num terreno em que os Estados Unidos não conseguem sequer defender seu próprio mercado interno; pelo contrário, a sua competitividade é tanto maior quanto mais os produtos estão ligados directa ou indirectamente ao sector dos armamentos, isto é, ao consumo estatal improdutivo.
(45) É comum recorrer-se ao argumento que a dívida pública nos Estados Unidos, comparada com o Produto Interno Bruto, até é menor do que noutros países ocidentais. Ora, com isso não se faz mais que mitigar o perigo da situação e "esquecer" que a dívida pública norte-americana, relativamente à de outros países industrializados, se encontra onerada com três factores negativos: uma quota de poupança extremamente baixa, um endividamento privado extremamente alto (famílias e empresas) e a consequente necessidade de o Estado se endividar no exterior em vez de junto dos seus cidadãos.
(46) O momento desencadeador pode ser um evento qualquer, em qualquer parte do mundo: um colapso financeiro na América Latina, o início duma guerra civil na Rússia ou na China, actividades espectaculares dos fundamentalistas nas zonas de crise islâmica ou uma catástrofe natural.
(47) Não surpreende que seja novamente o velho radicalismo de esquerda a compartilhar, com tónica moral negativa, tal ilusão do pensamento preso à forma-mercadoria total; para eles, constitui um artigo de fé que "cada crise do capitalismo… promove ao mesmo tempo o seu saneamento" e que, por isso, "depois do colapso do sistema de valores capitalista só poderá haver uma coisa: o próprio capitalismo, que ressurge das cinzas [...]" (Konkret, op. cit.).
Original Die Himmelfahrt des Geldes em www.exit-online.org. Publicado na Revista Krisis 16/17, 1995. Versão italiana L’apoteosi del denaro in La fine della politica a l’apoteosi del denaro, Manifesto Libri, Roma, 1997. Versão portuguesa em obeco.planetaclix.pt. Maio de 2002.
Deutsch
http://www.exit-online.org/link.php?tabelle=autoren&posnr=83