O
DESENCANTAMENTO DOS E.U.A.
Estará
a locomotiva da conjuntura mundial a perder o fôlego?
Quando
os EUA tossem, é o que se diz, o resto do mundo fica com pneumonia. Pois os EUA
são a última potência mundial não só na esfera política e militar mas também
na econômica. Nos anos 80, o Japão ainda era considerado o grande concorrente,
que talvez viesse a açambarcar os EUA. Depois do ocaso da União Soviética,
eram os "mercados do Oriente" que iriam dar à luz um novo milagre
econômico. Mais tarde, os tigres asiáticos fizeram com que se falasse deles, e
foi proclamado o "século do Pacífico". O Chile e a Argentina, alunos
exemplares do neoliberalismo na América Latina, também iriam ser celebrados
como portadores da esperança de uma nova era de crescimento. De todos esses
mitos do otimismo capitalista não sobrou nada além de um montinho de cinzas.
Na realidade, não houve senão um único "milagre" econômico, do
qual todos os outros dependiam: o boom
extraordinário dos anos 80 e sobretudo dos 90 nos EUA.
Mas
já não se travava mais de uma conjuntura interna da economia nacional. Os EUA
não constituíam absolutamente um modelo de economia política que, em virtude
de seu sucesso, todos os outros procuravam imitar em suas próprias quatro
paredes, como a propaganda oficial quis fazer crer. Pelo contrário, antes
auto-suficiente apenas em razão de sua grandeza, a economia norte-americana
acabou desenvolvendo sobre a economia mundial inteira um efeito de sucção
real, não meramente ideológico. O processo de globalização foi, no
essencial, idêntico a uma "americanização" dos fluxos globais de
dinheiro e de mercadorias.
No
passado, os ciclos conjunturais haviam decorrido de maneira assincrônica nas
diversas regiões do mundo, principalmente nos três grandes centros, Japão,
EUA e Europa Ocidental: a uma melhora aqui se contrapunha, na maioria das vezes,
uma piora ali, de sorte que pôde ser gerado um equilíbrio de longo prazo por
conta do fortalecimento das exportações para a respectiva região próspera e
por conta da inversão cíclica desse processo. Em contrapartida, nos anos 80 e
mais ainda nos 90, a economia mundial entrou num circuito conjuntural sincrônico,
já que a assim chamada globalização não foi nada mais que um ajuste global
crescente à economia norte-americana. Desde então um número cada vez maior de
países passou a enviar excedentes cada vez maiores de mercadorias para os EUA
pela estrada de mão única da exportação. Uma parte cada vez maior dos lucros
assim obtidos também refluía prontamente, como exportação de capital monetário,
para as instituições financeiras dos EUA. E cada vez mais os investimentos
diretos de todo o mundo iam para lá, servindo, diretamente in
loco, o mercado norte-americano aparentemente inesgotável.
A
exploração empresarial do declínio dos custos em todo o globo e o entrelaçamento
transnacional ligado a isso são elementos constitutivos dessa evolução. O que
aparece formalmente como fluxos de exportação e importação de mercadorias
entre as diversas economias nacionais (e que, na realidade, é a expressão de
uma dispersão global de diversos componentes da economia empresarial) é
mediado essencialmente pelo direcionamento generalizado e unilateral aos EUA.
Uma parte considerável das exportações entre as várias regiões do mundo,
sobretudo da Europa para a Ásia e vice-versa, mas também dentro da própria Ásia
e da própria Europa, não é consumida no país de destino; trata-se de importações
de máquinas, know-how, produtos primários e intermediários etc., cujo fim último
é, por sua vez, a própria exportação do respectivo país para os EUA. O
efeito global de sucção exercido pela economia norte-americana é, portanto,
muito maior do que mostra a participação direta das importações
norte-americanas no comércio mundial. Para conhecer a dimensão verdadeira, é
preciso pôr na conta a parte do comércio mundial determinada indiretamente
pelo fluxo global de exportação para os EUA.
Portanto
não admira que a economia norte-americana tenha se tornado a locomotiva econômica
do mundo. O prodígio é como ela pôde vir a sê-lo. Há muito tempo não é
mais segredo para ninguém que esse boom
foi em essência uma conjuntura definida por bolhas financeiras e que a rápida
globalização dessa era foi em essência uma globalização de bolhas
financeiras. O capitalismo industrial esbarrou nos limites internos de seu
desenvolvimento. A nova tecnologia da microeletrônica não cria postos de
trabalho adicionais e nenhuma nova base para uma ampliação da acumulação
real do capital; pelo contrário, torna o trabalho cada vez mais supérfluo e as
capacidades produtivas cada vez menos rentáveis. Por isso, pela primeira vez na
história moderna, a bolha especulativa, resultante do esgotamento da velha indústria
(a "fordista"), não estourou a tempo com a instalação social de uma
nova tecnologia de base (a microeletrônica), de modo que se passasse a uma nova
era de acumulação real, mas, ao contrário, ela foi inchada cada vez mais.
Precisou-se da confiança mundial na força prodigiosa da última potência do
mundo para fazer com que essa improvável new
economy parecesse fiável. Por isso a bolha central só pôde surgir nos
EUA, enquanto no resto do mundo se formavam bolhas mais ou menos volumosas.
Nesse
desenvolvimento não foi algo novo a criação especulativa fictícia de valores
nas bolsas em si, mas sim o seu reacoplamento sistemático e extensivo à
economia real. No mundo todo houve crescimento, investimentos, emprego e consumo
que não foram pagos com lucros e salários da economia real, mas com a
multiplicação fictícia de dinheiro. A parte do leão cabia naturalmente aos
EUA, o centro de todo o mecanismo. A lógica desse pseudocrescimento é simples:
compra-se realmente sem que antes algo fosse realmente vendido. O dinheiro vem,
por assim dizer, do ar, sem trabalho, sem máquinas, sem mercadorias produzidas;
vem, de maneira totalmente "imaterial", das cotações em alta das
bolsas. E, com esse dinheiro "imaterialmente" incrementado, compram-se
depois trabalho, máquinas e mercadorias. O ponto de partida é irreal, como se
fosse construído um arranha-céu sem nenhum fundamento.
E
não apenas o consumo e os investimentos, mas também o aparato militar
imponente da última potência mundial foi financiado, em boa parte, por esse
ciclo global de "capital fictício", no qual os EUA formavam sempre o
ponto de partida e o de chegada. A consequência foi um aumento constante do dólar
e um crescimento igualmente constante do déficit na balança comercial e de
serviços dos EUA.
Apesar
de todos os antigos ressentimentos em relação aos EUA, o mundo da economia de
mercado, que veio a ser dependente do "capital fictício", sabe o que
lhe vale a última potência mundial. Isso se aplica, não por último, à
cultura pós-moderna, que representa teórica e artisticamente o capitalismo das
bolhas financeiras e que, por isso, encontrou seu verdadeiro lar nos EUA, embora
fosse na origem uma criação francesa. O culto pós-moderno da ambivalência,
da virtualidade e do "trabalho imaterial" se apaixonou pelo
imperialismo norte-americano. Após os atentados terroristas de 11 de setembro,
as ex-esquerdas radicais também descobriram seu amor pela bandeira estrelada e
pelos "valores ocidentais" representados pelos EUA, embora esses
valores não tenham substância em termos morais, assim como o capital de bolhas
financeiras em termos econômicos. Mesmo em suas variantes
pseudo-oposicionistas, a consciência virtualizada dos consumidores frenéticos
de mercadorias pressente que sua própria forma de sujeito tem a ver com a
pseudo-economia dos EUA.
Entrementes
uma série de bolhas secundárias rebentaram em vários países. Quem deu início
foi o Japão, já faz mais de dez anos; seguiram-no os tigres asiáticos, o México,
a Rússia, a Turquia e a Argentina. Em todas as vezes ocorreram graves colapsos
na conjuntura interna da economia real, que, no Japão, até hoje não voltou a
ficar de pé. Mas, apesar disso, tardava ainda a grande catástrofe econômica,
já que a bolha central, nos EUA, e a segunda maior bolha secundária, na
Europa, podiam se dilatar ainda mais. Desde meados de 2000 essa expansão já
era coisa do passado. As bolsas dos EUA e da União Européia foram apanhadas
pela maior baixa na história do pós-guerra. Nesse meio tempo, a Nasdaq sofreu
perdas de mais de 80%. O índice básico global, Dow Jones, desabou em uns bons
30%. Temida já há algum tempo, a fusão nuclear dos mercados financeiros
norte-americanos ameaça realizar-se. Escândalos nos balanços e megafalências
se amontoam, da Enron à insolvência da WorldCom, a maior até agora em toda a
história da economia. Ativos fictícios gigantescos são aniquilados, o afluxo
de capital monetário global para os EUA estanca, o dólar cai, o financiamento
do déficit da balança comercial e de serviços dos EUA, que não pára de
inchar, corre riscos.
Agora
a questão decisiva é saber em que medida a crise dos mercados financeiros
repercute sobre a economia real e em que medida esmorece a capacidade dos EUA de
sugar os fluxos de mercadorias "excedentes" do mundo. Os economistas e
políticos apologistas afirmam que não haverá repercussão, visto que a
economia norte-americana é extremamente "forte". O argumento é
paradoxal, pois, fosse assim, os EUA não apresentariam em sua balança externa
a estrutura deficitária de um país periférico. Atrás disso não se encontra
nenhuma substância econômica superior, mas uma economia real que demonstra, além
desse aspecto, muitos outros paralelos com as regiões em crise da periferia.
Como
na Grã-Bretanha, a infra-estrutura está envelhecida e degradada na maior
parte, a rede rodoviária, defeituosa, os meios de transporte, privatizados,
caindo aos pedaços. Até mesmo o abastecimento de energia, também privatizado,
está endividado e trabalha sob desconfiança; na Califórnia a eletricidade foi
interrompida, como se sabe, periodicamente. O sistema de ensino só é de
primeiro nível em algumas caras universidades de elite, mas, no geral, é também
tão miserável quanto na Grã-Bretanha. Os países anglo-saxões apresentam, de
longe, a taxa mais alta de analfabetos secundários no mundo desenvolvido. O
suposto prodígio de produtividade dos EUA, aclamado por muitos, se baseia
principalmente em grandes setores de baixo salário existentes em todos os domínios,
ao passo que a participação da robotização microeletrônica na indústria é
menor do que no Japão e na União Européia. Só em poucas áreas de ponta os
EUA são líderes, como na indústria de software (Microsoft) e, naturalmente,
nas forjas de armamentos high tech;
mas, no geral, o sistema industrial está envelhecido, e muitos produtos já não
são mais produzidos nos EUA. Em virtude da debilidade industrial real, a parte
do setor de prestação de serviços é maior do que em todos os outros países
industriais. Como no Terceiro Mundo, o quadro é definido por uma massa de
"empresários da miséria" e de serviçais desqualificados de todo o
tipo.
A
última potência mundial se caracteriza pela desproporção monstruosa de uma
cabeça-d'água superdimensionada, consistindo de aparatos militares
"high-tech" e indústrias armamentistas, com um corpo econômico
subdesenvolvido, que precisa ser nutrido com o afluxo externo permanente de
capital monetário e mercadorias. O armamento superior não constitui em última
instância uma economia superior, mas um fator de custo improdutivo em termos
capitalistas. O desencantamento dos EUA é inevitável, e ele parece já ter
começado.
A
queda é freada provisoriamente por vários fatores, mas que no todo não têm
efeito duradouro. Por exemplo, a administração Bush antecipou várias vezes os
prazos para a compra de armamentos, sobretudo no setor de veículos motorizados.
Isso embeleza a estatística da indústria automóvel bem como os grandes
descontos e créditos a tarifa zero, com os quais os grandes produtores
norte-americanos aumentam suas vendas apesar da crise, como já ocorrera no
final dos anos 80. Mas, diferentemente da situação daquela época, hoje se
alcançou o limite máximo de endividamento privado. A subvenção das vendas à
custa dos lucros não pode ser sustentada por muito tempo. E também o boom
armamentista da "reaganomics" não pode ser repetido. Após uma breve
pausa durante os anos da expansão das Bolsas até 1999, o déficit público
norte-americano voltou a níveis elevados; uma outra expansão do endividamento
público atingiria o limite absoluto muito mais rapidamente do que nos anos 80.
São
bem menos os restos da conjuntura armamentista e de desconto que retardam a
queda do que um deslocamento no capitalismo financeiro. Em direção contrária
ao crash dos mercados de ações, formou-se nos EUA uma bolha
especulativa de valores imobiliários, que agora são empenhados para o consumo
com tanto vigor como antes os valores acionários inflados. Porém a perda de
fortunas nas Bolsas não é ressarcida por meio disso; e a bolha imobiliária
também vai estourar. Atualmente os boêmios "star up" dos setores
declinantes da internet, das telecomunicações e da mídia, pessoas de 25 a 40
anos sofrendo de total perda de realidade, continuam a consumir nos EUA e no
mundo ocidental inteiro como se nada houvesse acontecido. Mas a "geração
bancarrota" depressa esgotará absolutamente suas linhas de crédito e
aterrissarão de maneira abrupta no chão duro dos fatos.
Se
a locomotiva econômica norte-americana pára, a economia mundial inteira pára.
O desencantamento dos EUA não desloca o centro do poder econômico e militar
para um outro lugar, senão que afunda o mercado mundial em uma nova dimensão
da crise, acelera a decomposição social global e torna palpável o obsoletismo
histórico do moderno sistema produtor de mercadorias.
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