Robert Kurz

O FIM DA POLÍTICA

Teses sobre a crise do sistema de regulação da forma da mercadoria1.

A autoconsciência da modernidade desenvolvida no Ocidente sistematicamente deshistoricizou e ontologizou desde o Iluminismo as formas próprias de socialização e seus conceitos. Isso vale para todas as correntes na história da modernização, incluindo a esquerda e o marxismo. A falsa ontologização refere-se não em último lugar aos conceitos básicos de "economia" e "política". Em vez de reconhecer esse par de conceitos como específico da modernidade baseada na produção de mercadorias, impinge-o a todas sociedades pré-modernas (e futuras) como cego pressuposto e imputa-o à existência humana como tal. A ciência histórica indaga então como terá sido a "economia" ou a "política" entre os sumérios, no Egipto antigo ou na chamada Idade Média. Assim, não só se perde basicamente a compreensão das sociedades pré-modernas, mas também a compreensão da própria sociedade moderna.

As sociedades pré-modernas tinham um "processo de metabolismo com a natureza" (Marx), mas não "economia"; tinham conflitos internos e externos, mas não "política". Na própria tradição e história ocidentais, das quais provêm tais conceitos, eles significam originalmente algo em tudo diverso do que hoje, talvez até mesmo o contrário. Não havia uma esfera "económica" socialmente diferenciada, muito menos na condição de dominante; e não havia também, portanto, critérios "económicos": diferenciá-los analiticamente e considerá-los determinantes é tarefa post festum da consciência moderna, com o que se dificulta a compreensão da natureza das formações históricas investigadas. Logicamente, não havia nenhuma esfera "política" diferenciada, muito menos como complementar à "economia", e não havia também, portanto, nenhum critério "político" próprio. As questões comuns seguiam critérios inteiramente diversos. Essas relações tampouco podem ser descritas com os conceitos modernos de espaço "público" e "privado"; muito do suposto "espaço público" pré-moderno era "privado" no nosso sentido e vice-versa.

O problema é solucionável dizendo o que temos de fazer com formas de universalidade social substancialmente distintas. A "universalidade abstracta" das sociedades pré-modernas, ou seja, das culturas agrárias avançadas, era determinada essencialmente por um sistema fetichista, cujos vestígios são qualificados hoje como "religião". No sentido moderno, porém, este conceito já se refere a uma esfera diferenciada (marginalmente complementar às esferas da "economia" e da "política"), ao passo que o momento religioso nas sociedades pré-modernas abarcava a reprodução da própria vida. Ainda que soe como puro paradoxo para uma consciência moderna, é preciso dizer que a religião encerrava em si a "economia" e a "política", e não podia, portanto, ser "religião" no sentido moderno (diferenciado). A religião não era uma "super-estrutura ideológica", mas a forma básica de mediação e de reprodução, tanto na relação com a natureza como nas relações sociais. Isso não significa, é claro, que as pessoas vivessem do maná celestial. Enquanto a sociedade não toma consciência de si mesma, o processo de apropriação da natureza, enquanto processo humano e social, tem de passar por um sistema cegamente pressuposto de codificação simbólica. Na situação de inconsciência de si mesmo, o homem, em grande parte desligado das codificações genéticas, necessita de uma forma social de universalidade abstracta para poder agir como sujeito. A constituição inconsciente de tal universalidade abstracta pode (com Marx) ser chamada de fetichismo.

Mas as constituições históricas fetichistas são numerosas; a sua sucessão (se é possível falar assim) constitui uma meta-história e não pode ser explicada pelo esquema de base e super-estrutura, nem pela oposição materialismo-idealismo. O próprio "materialismo histórico" de Marx cai aqui numa falsa ontologização das problemáticas especificamente modernas. Conceitos económicos como "sobre-produto" ou "modo agrário de produção" não podem ser postos como a base ou a causa da universalidade abstracta e pré-moderna que tem a forma da religião; do mesmo modo, aliás, que a universalidade abstracta específica da modernidade não pode ser deduzida da pura e simples materialidade das forças produtivas industriais. Em ambos os casos, estamos perante distintas codificações simbólicas fetichistas, que não é possível determinar directamente em termos "materiais", mas que representam sempre uma relação com a natureza em que emergem tanto momentos "materiais" como "ideais".

Ao contrário da forma religiosa na pré-modernidade, a universalidade abstracta nas sociedades modernas é determinada pela forma da mercadoria. A moderna constituição fetichista não é mais a constituição religiosa da sociedade, mas algo totalmente diverso: é mercadoria e dinheiro, dinheiro que é capitalizado "produtivamente", fundando assim uma nova forma da universalidade social. Esta novidade não é diminuída pelo facto de mercadoria e dinheiro também existirem em sociedades pré-modernas, ou, mais precisamente, pelo facto de nessas formas serem reconhecíveis relações de troca similares. Mas não foi só no aspecto destas formas hoje definidas como "económicas" que ocorreu uma mudança fundamental na modernidade, por meio da capitalização "produtiva" do dinheiro (englobando aí a relação com a natureza): o próprio peso dessas formas na codificação simbólica da reprodução social se modificou de modo decisivo. Se nas sociedades pré-modernas a mercadoria e o dinheiro permaneciam um momento marginal no interior da universalidade social determinada pela religião, na modernidade, pelo contrário, é a religião que constitui um momento marginal na universalidade social determinada pelo dinheiro e pela mercadoria - universalidade esta que se mostra portanto comparativamente "secularizada". As etapas do processo de transformação de uma situação fetichista noutra podem ser reconstituídas historicamente.

Todas as formações sociais constituídas fetichisticamente, isto é, baseadas na própria inconsciência e nas "leis de reprodução" social produzidas cegamente de uma "segunda natureza", contêm necessariamente um traço de dualismo absurdo e de "esquizofrenia estrutural". De facto, a cisão da consciência humana em, por um lado, consciência relativa a respeito da "primeira natureza" e, por outro, inconsciência quanto à constituição da própria "segunda natureza" social e histórica tem de manifestar-se nas expressões, atitudes, instituições, reflexões etc. do "sujeito" que tem sua origem nessa contradição. A esquizofrenia estrutural é, porém, muito mais pronunciada na modernidade baseada na produção de mercadorias (e só assim ela pode ser reconhecida) do que nas culturas avançadas pré-modernas. A razão para tanto reside na qualidade especifica da forma social da mercadoria, que cria uma diferenciação muito mais forte do que a constituição religiosa das sociedades fetichistas pré-modernas.

A antiga constituição religiosa perpassava directamente todos os aspectos da vida e unia a sociedade através de um conjunto de tradições fixas, só a custo e lentamente alteráveis. A religião estava presente em tudo de maneira imediata, pelo facto de determinar pela raiz o código social (diferentemente da "religião" actual); tratava-se de uma forma difusa de universalidade abstracta que jazia como uma névoa sobre a consciência social. Todas as coisas deviam ser fundadas directamente na religião. Essa imediatidade difusa da religião, contudo, fazia com que ela se manifestasse também numa variedade superficial; o invólucro superficial da universalidade abstracta era por assim dizer mais largo (por exemplo, nas formações para-estatais), o que de maneira alguma contradiz o carácter firmemente enraizado da "segunda natureza" como tal.

Por sua vez, a constituição moderna em forma de mercadoria não parece imediatamente uma totalidade, mas é mediada por "esferas" diferenciadas e aparentemente autónomas entre si (um campo dilecto de análise descritiva para a teoria dos sistemas funcionalista e historicamente cega, tipo Luhmann). A forma da totalidade (mercadoria e dinheiro) aparece ao mesmo tempo como "esfera funcional" particular da chamada economia; ou seja, a totalidade sob a forma de mercadoria tem primeiro de mediar-se consigo mesma através de seu "tornar-se outro" (o verdadeiro fundamento social para toda a construção hegeliana). Por isso, a esquizofrenia estrutural não pode mais estar difusamente dispersa como na constituição religiosa pré-moderna, mas tem de manifestar-se como separação de esferas funcional ( "economia" e "política"), e daí como separação institucional.

A universalidade abstracta tendencialmente imediata, difusa e relaxada, que resultava da estrutura religiosa profunda e comportava uma totalidade pouco diferenciada do processo vital e social, cinde-se portanto com a transformação moderna da constituição fetichista num sistema de esferas separadas, em que a forma da mercadoria total se medeia consigo mesma. A esquizofrenia estrutural agora institucionalizada faz aparecer as esferas separadas na forma de pares antagónicos lógicos e institucionais, nos quais o nexo mediador se manifesta à superfície, sem deixar traço de sua génese. Do mesmo modo que a totalidade na forma de mercadoria se dissocia no antagonismo estrutural "indivíduo-sociedade", o espaço social no antagonismo "público-privado" e a vida quotidiana no antagonismo "trabalho-tempo livre", assim também o nexo funcional dessa totalidade se cinde no antagonismo "economia-política".

Ao contrário das sociedades pré-modernas, o "processo de metabolismo com a natureza" não é mais codificado por tradições de tipo religioso, mas pelo processo de abstracção da forma da mercadoria: transformação do conteúdo material e sensível da reprodução em "'coisas abstractas", cuja forma fenoménica é o dinheiro indiferente àquele conteúdo. A universalidade social não se apresenta mais directamente, através da constituição religiosa e das tradições que daí nascem (a única forma possível de mediação, nesse caso, é a força directa), mas mediada pelo mecanismo de mercado, que abarca progressivamente toda a relação com a natureza. O nexo social não mais representado e codificado directamente pela tradição e pela força, mas só indirectamente pela mediação do mercado, é incapaz, porém, de substituir completamente o nexo fundado na tradição e na força.

Paradoxalmente, pela própria separação recíproca típica da forma da mercadoria, os homens dependem muito mais das relações sociais no "processo de metabolismo com a natureza" do que na sociedade pré-moderna, neste aspecto caracterizada por pequenas unidades autárquicas de reprodução. A sociedade da mercadoria, que pela sua lógica tende a uma especialização sempre crescente na relação com a natureza, apenas indirectamente representa uma socialização superior, ou seja, de modo invertido, na própria forma fenoménica da "des-socialização", por meio do mecanismo cego e sem sujeito do mercado. Como as mercadorias não podem por si ser "sujeitos" e como portanto na relação das mercadorias os indivíduos dessa "socialização a-social" (em si absurda) têm, no entanto, de relacionar-se entre si secundariamente de modo directo, teve de formar-se o subsistema da "política" onde são tratadas tais relações directas secundárias. Pelo próprio grau mais elevado de socialização - todavia determinado por uma forte separação e desconexão das pessoas, agora apenas indirectamente mediadas entre si nas relações com a natureza - surge uma necessidade de regulamentação muito superior à da sociedade pré-moderna, necessidade que é transferida para a esfera funcional separada da "política".

O espaço institucional da esfera funcional (primária, indirecta) da "economia" é o mercado; o espaço institucional da esfera funcional (secundária, directa) da "política" é o Estado. Na moderna constituição fetichista baseada na forma da mercadoria o Estado é assim algo inteiramente diverso das sociedades pré-modernas, tal como as demais categorias sociais falsamente ontologizadas. O aparelho estatal assume as funções de regulação da produção totalizada de mercadorias (direito, logística e infra-estruturas, relações externas etc.), sendo que as decisões a tal respeito têm de passar dum modo ou doutro pelo "processo político" e pela respectiva esfera. No conjunto, pode dizer-se que a universalidade abstracta já não se estende enquanto totalidade imediata como uma névoa sobre a sociedade, mas, sendo totalidade mediada, cinde-se na base em privado e público, mercado e Estado, dinheiro e poder (ou direito), economia e política.

O indivíduo sociabilizado a-socialmente (que por isso se sente a si mesmo como pólo abstracto oposto à "sociedade") torna-se assim um ponto de intersecção de duas séries opostas - privado-mercado-dinheiro-economia, por um lado, e público-estado-poder/direito-política, por outro. Tal oposição não é somente complementar, mas francamente antagónica, já que a partir de ambas as séries se desenvolvem interesses opostos. O que no plano privado surge como positivo, como virtude e motivação, revela-se no plano público como negativo, como vício e desmotivação. O interesse no ganho constante de dinheiro é antagónico ao direito ou a determinados aspectos do direito, ao passo que o interesse do mesmo sujeito na maior segurança jurídica possível é antagónico ao ganho ilimitado de dinheiro. Da mesma maneira, o interesse por dinheiro é em si internacional e sem fronteiras, ao passo que, no interesse da própria auto-afirmação, tem de submeter-se ao mesmo tempo ao interesse nacional do Estado etc.

A redução do "conceito de política" a um antagonismo amigo-inimigo elaborada por Carl Schmitt ganha, assim, foros de verdade, embora sem dúvida não no sentido do seu inventor. A definição última da "política" como distinção amigo-inimigo é somente a exteriorização de uma contradição estrutural, que pulsa no íntimo do próprio sujeito determinado pela mercadoria. Os indivíduos, tal como os sujeitos institucionais da sociedade da mercadoria, são para si mesmos ao mesmo tempo amigo e inimigo, duas almas digladiam-se ininterruptamente no seu peito. A esquizofrenia estrutural característica de todas as sociedades fetichistas só se agravou, diferenciou e institucionalizou na constituição da modernidade sob a forma da mercadoria. Assim, ela encaminha-se para uma prova histórica decisiva: quanto mais se desenvolve no seu próprio terreno o sistema produtor de mercadorias, tanto mais se cinde interiormente o sujeito humano que lhe serve de suporte, revelando-se como espantosa duplicidade de "homo oeconomicus" e "homo politicus".

2.

A cisão estrutural do sistema produtor de mercadorias nas esferas funcionais da "economia" e da "política" tornou-se uma das fontes principais das lutas e antagonismos ideológicos na modernidade. Ambos os pólos da oposição interna vinham na sua complementaridade antagónica dotados cada um da sua identidade. Contudo, a oposição ideológica entre "liberalismo económico" e "estatismo" manteve-se por muito tempo encoberta pelos conflitos no interior do pólo "estatista" ou "politicista". Este facto explica-se sobretudo historicamente. Com efeito, não estamos apenas perante um antagonismo estrutural no interior do sistema produtor de mercadorias, mas ao mesmo tempo perante o antagonismo deste sistema como tal com a antiga constituição pré-moderna e suas tradições, seus poderes e suas forças. Do Renascimento até bem dentro do século XX, a história do sistema produtor de mercadorias foi também a história da sua afirmação; só a partir do final da Segunda Guerra Mundial (ou, em sentido estrito, a partir dos anos 80) podemos tomar como definitivamente eliminados os últimos restos e escórias, ou mesmo simples recordações, da constituição pré-moderna.

Nesta história, a contradição interna foi necessariamente recoberta e deformada pelas contradições da afirmação, isto é, pelo modo como o moderno sistema fetichista se constituiu e formulou o seu conflito interno como conflito externo com o antigo sistema. Nesta perspectiva histórica, o pólo estatista e politicista pôde prevalecer, pois tinha dupla função: por um lado, como uma das duas polaridades internas do sistema capitalista; por outro, como oposição externa do sistema à constituição pré-moderna da sociedade agrária estamental. A esfera funcional directa da "política", do ponto de vista imanente ao sistema meramente secundária, recebeu assim um papel adicional com as revoluções burguesas, que foram essencialmente "políticas", pois tinha de impor directamente e em conflito institucional com o antigo sistema uma nova forma de inconsciência, ao passo que no lado da "economia" o processo de transformação se efectuava com espontaneidade e, por assim dizer, por osmose.

A partir desta situação histórica nasceu a ênfase da política. O carácter secundário desta esfera foi ignorado ou até invertido em seu contrário: o "primado da política" e suas diversas proclamações surgem como reflexo do desenvolvimento histórico e recorrentemente como reflexo do nível de desenvolvimento desigual nas diversas regiões, países e continentes. Por outras palavras, a "política" tornou-se um modo de afirmação do sistema produtor de mercadorias contra as resistências e atrasos pré-modernos; só assim pôde ela assumir a sua ênfase característica, de todo injustificada no seu papel imanente ao sistema. Por isso, durante muito tempo a oposição polar verdadeiramente interna ao sistema não foi o padrão de formulação dos conflitos; antes, o problema interno da contradição e o problema externo da modernização reproduziram-se e amalgamaram-se no interior do pólo "político"' como antagonismo entre direita e esquerda, numa metáfora da ordem de assento tomada de empréstimo à Convenção revolucionária de Paris.

O predomínio do pólo político e o seu modo de manifestar-se prevalecentemente como alternativa esquerda- direita no interior da esfera política alimentava-se por sua vez de duas fontes. Por um lado, os poderes da antiga constituição decadente e as figuras de difusão temporárias ainda imaturas, a serem superadas a cada turno (ou mais precisamente, múltiplas combinações e amálgamas, sempre de novo liquefeitas da antiga e da nova formação fetichista), eram obrigados a firmar-se, para sua defesa, no terreno próprio do novo e em suas configurações funcionais. O resultado era inevitável, o que não impediu a recorrência de conflitos muitas vezes longos e tenazes. Por outras palavras: os antigos poderes a serem desmantelados foram obrigados a surgir na arena como "partidos políticos" (ou como sua forma embrionária, sucedâneo, arremedo etc. ) e contribuíram assim involuntariamente para a criação da esfera funcional moderna da "política", bem como da forma antagónica típica da automediação do moderno sistema produtor de mercadorias.

A oposição esquerda-direita interna à política reproduzia deste modo, em termos típicos ou ideais (na empiria histórica, é claro, sempre "impuros" e atravessados por vectores contraditórios entrelaçados, incluindo os da própria constituição inovadora) a oposição externa do sistema em desenvolvimento à sociedade pré-moderna ou até aos seus predecessores. A "esquerda" era então a vanguarda radical do novo sistema, e portanto da revolução burguesa; a "direita", por sua vez, o partido da tradição e do respectivo establishment; os "moderados" eram relativamente "de esquerda" face ao establishment e relativamente "de direita" perante o partido da modernização radical. Na bagunça ideológica desta constelação, a oposição ao novo sistema, que pressentia suas próprias deficiências e catástrofes, pôde ser ambiguamente de "direita", sem prejuízo de aparecer noutro (posterior) ponto de vista como de esquerda, caso de Balzac e sobretudo dos românticos, que foram utilizados para fins de autolegitimação pelos mais diversos críticos posteriores. Institucionalmente, a esta constelação correspondia a um sistema partidário ainda não desenvolvido, na medida em que através dos "partidos" refulgiam os velhos estamentos e suas corporações representativas, por vezes em posição dominante.

A segunda fonte da ênfase da política (e do antagonismo interno à política) veio da contenda acerca das formas de modernização dos elementos funcionais do próprio sistema moderno. Aqui se defrontavam posições que podem ser decifradas como reacções polarizadas a um sistema de referências idêntico, cujos elementos se formaram de modo não contemporâneo e contraditório. Para poder desenvolver-se, o sistema produtor de mercadorias teve de romper as fronteiras da antiga sociedade em duas direcções: por um lado, como superação da multifacetada obtusidade local, através da constituição de economias e Estados nacionais; por outro, como superação da estupidez social, por meio da constituição da democracia e do Estado social. Ambos os momentos se condicionaram mutuamente, mas no decurso do seu desenvolvimento aconteceu que se distribuíram diversamente ou até mesmo antagonicamente no interior do esquema esquerda-direita.

A direita ganhou preponderância no referente à nação, à medida que, no interior da esfera política nascente, a oposição esquerda-direita deixava de representar a luta entre a nova e a velha constituição e era reformulada no próprio terreno do novo sistema. Se a ênfase na formação nacional no período entre a Revolução Francesa e 1848 ainda era modulada pela "esquerda" e carregada de conteúdos liberais ou socialistas, como ápice da luta contra a frente de "direita" dos sequazes de Metternich e seu absolutismo, o centro de gravidade do nacionalismo deslocou-se dali em diante cada vez mais para a direita, à medida que a sociedade mercantil burguesa evoluía e criava a sua própria direita (agora sim, verdadeiramente "política"). O nacionalismo de direita por sua vez não pôde entusiasmar-se tão facilmente pela constituição da democracia e do Estado social. Isso não significa de forma alguma que tais instituições não fossem também integradas pela direita; da legislação social de Bismarck até aos programas sociais de fascistas e nacional-socialistas, porém, a direita política conservou sempre uma tendência estamental básica, enriquecida por uma ideologia elitista, corrente esta que jamais pôde ver-se inteiramente livre das escórias reaccionárias, disfuncionais face ao moderno sistema fetichista produtor de mercadorias.

A esquerda, pelo contrário, ganhou preponderância no campo da democracia e do Estado social, que assim envolveu numa aura metafísica (como fez a direita com a nação). A ênfase na "democratização" surgiu como marca registada da esquerda, que adoptou o pathos da revolução burguesa, saturando-o com a "questão social". Nem a democracia nem o socialismo de esquerda puderam entretanto desposar sem reservas a ideologia nacional, pois o conflito gerido pela "esquerda", que acompanhava a "democratização" e a "socialização", sendo essencialmente um conflito interno à sociedade nacional da mercadoria em formação, parecia pôr em questão parcialmente a nação e o estado nacional como elementos unificadores. Ao passo que a gestão da ideologia nacional pela "direita" estilizava a vontade de auto-afirmação externa (contra outras nações e contra outros "interesses nacionais") e tinha de orientar-se, portanto, mais para a "unidade interna" (ainda que coerciva). Mas tal como a direita política não estava privada do seu momento social e democrático (ou, em termos irónicos, social-democrata), também à esquerda não faltou o momento nacional e ideologicamente nacionalista, como se comprovaria no entusiasmo social-democrata com a Primeira Guerra Mundial e nos elementos nacionais nas revoluções burguesas dos retardatários históricos (União Soviética e Terceiro Mundo). Contudo o elemento nacional sempre encontrou uma reserva na esquerda - ainda que por vezes quase inefável - em virtude da orientação básica de teor democrático e socialista. Por causa desta reserva, a ideologia nacional nunca pôde ser mobilizada com tanta força e repercussão na esquerda como na direita.

No conjunto desta constelação, que correspondeu a um estágio avançado da ascensão do sistema produtor de mercadorias (a partir de fins do século XIX), afirmou-se ainda um sistema partidário mais desenvolvido, que duraria até meados do século XX. O esquema esquerda-direita só então ganhou seus contornos próprios no contexto da nova constituição. Pode-se falar a este propósito de uma "era da ideologia" e de uma "ideologização das massas", que foram então arrancadas aos seus laços estamentais e da economia de subsistência pela ascensão da forma da mercadoria total. Os partidos ainda de base estamental foram substituídos por partidos ideológicoas que representavam interesses agora completamente traduzíveis na forma da mercadoria; só nestes partidos a "política" atingiu a sua própria essência, como modo de imposição da nova constituição; só com eles foi elaborada uma verdadeira esfera política de toda a sociedade.

A fase ascendente, ainda longe de terminada e superada, já não dizia respeito só à moldura institucional externa, mas à própria forma do sujeito enquanto tal; e não somente a uma elite na acepção antiga, mas às massas em formação. Se a universalidade social na constituição religiosa pré-moderna era encarnada exclusivamente pela respectiva elite, enquanto que a massa lhe permanecia submetida de modo secundário, na configuração moderna da forma da mercadoria, porém, a massa tinha de ser directamente abarcada. Ao carácter naturalmente imediato da relação pré-moderna com a natureza correspondia a uma existência secundária, mediada e personificada da universalidade social; inversamente, à moderna relação com a natureza, já não directa mas mediada pela forma da mercadoria, tinha de corresponder o carácter imediato da universalidade fetichista da sociedade na forma do sujeito agora comum a todos, sem qualquer particularidade social. Pois uma vez desvinculados os produtores da relação imediata com a natureza e uma vez estes transformados em unidades de dispêndio de quantidades de trabalho abstracto, também a universalidade abstracta se transformou, de uma névoa omnipresente mas difusa da consciência típica da constituição religiosa, numa totalidade também omnipresente mas rígida do dinheiro e da sua autovalorização.

Mas como a autovalorização do dinheiro - como "forma de representação" fetichista do trabalho abstracto convertido em cego objectivo tautológico da sociedade - só é possível com a mediação do mercado, isto é, só pode "realizar-se" em actos de compra e venda em massa, incluindo todas as pessoas sem excepção, foi preciso, assim, em contraste radical com a sociedade pré-moderna, impor também uma forma de sujeito sem excepção para todas as pessoas, forma esta homogénea, "igualitária" e ditatorialmente presa ao dinheiro. A realização da autovalorização fetichista do dinheiro, de facto, só é possível por meio do acto "livre" de vontade dos homens como sujeitos totais da compra e venda. Tal necessidade não se coaduna nem com os laços tradicionais nem com uma restrição a uma elite do "sujeito depositário" da forma fetichista da universalidade. A ascensão da nova constituição, dominada pelo fetichismo da mercadoria, surge assim, em retrospectiva, como libertação das coacções da constituição religiosa, como ênfase do igualitarismo e do "livre arbítrio"; no entanto, da perspectiva futura, tal revela-se como ofuscamento ideológico, pois este novo igualitarismo da forma do dinheiro total gera não só novas diferenças sociais e novos fenómenos tanto mais brutais de pobreza e de despojamento de todos os meios de produção, mas também novas e não menos brutais coerções. O "livre arbítrio" não é de modo algum "livre" em relação à sua própria forma - a forma da mercadoria e a forma do dinheiro - nem em relação às suas leis compulsórias, às quais as potencialidades e carências humanas não são menos sacrificadas que na constituição fetichista pré-moderna. A antiga submissão à tradição religiosa e às suas personificações é simplesmente substituída pela submissão (ainda mais desesperadora) ao poder impessoal e coisificado do dinheiro e das suas "leis", que, a exemplo das tradições religiosas da pré-modernidade, são cegamente aceites como leis naturais.

Durante a ascensão do moderno sistema fetichista e produtor de mercadorias, a cada grau do seu desenvolvimento, estas correlações incompreendidas suscitavam novas produções ideológicas e uma nova transformação da esfera política que se formava. A substituição da política do século XIX ainda impregnada pelos estamentos e do respectivo sistema partidário ainda imaturo pela ideologização das massas e sua enfática inserção na política - a social-democracia marxista fora a precursora e protagonista dessa tendência, que passou a ser então cada vez mais incorporada pela "direita" - correspondia, portanto, não só à lógica interna do moderno sistema fetichista, mas também à sua específica problemática de ascensão desde fins do século XIX. A transição "fordista" para a produção em massa, concluída na Europa com a Primeira Guerra Mundial (no fim do conflito o continente podia dizer-se motorizado) exigia como consequência lógica a passagem ao consumo de massas de mercadorias produzidas capitalisticamente e, com isso, à democracia política de massas, fosse qual fosse a sua forma fenoménica. Talvez escandalize os fetichistas da democracia, mas dessa "democratização" e consequente politização das massas fizeram parte também os regimes fascista, nacional-socialista e estalinista, na medida que promoveram a mobilização técnica, ideológica e "destradicionalizante" das massas, que é o pressuposto da forma da mercadoria total e da democracia consumada.

Democratização nada mais é que a completa submissão à lógica sem sujeito do dinheiro. Tendo as massas atingido esse estágio, que aos poucos foi sendo concluído globalmente depois da Segunda Guerra Mundial, a esfera da "política" foi obrigada, mais uma vez, a alterar os seus modos de agregação. A mobilização politicista das massas, que nas regiões mais atrasadas do mundo ainda celebrava algumas vitórias ("movimentos de libertação" do Terceiro Mundo), começou a tornar-se disfuncional nas sociedades mercantis mais avançadas. As massas já haviam atingido em nível pleno o estágio de "ganhadoras de dinheiro" e não precisavam mais ser compulsoriamente mobilizadas ou espicaçadas ideologicamente para tal. Assim, logo que o sistema fetichista moderno completou quase por inteiro a sua história de ascensão após a Segunda Guerra Mundial e se tornou idêntico a si mesmo, o próprio furor ideológico teve de desaparecer e por força das coisas paralisar-se a ênfase politicista. Nestes termos, o movimento de 1968 pode ser entendido também (embora não se resolva nisso) como o último frémito superficial do impulso democratizante e politicista. A lógica profunda do sistema há muito apontava para a "desideologização" e para a "despolitização" (pelo menos no sentido tradicional do conceito enfático de política).

O próprio sistema partidário seguiu necessariamente essa mudança. Os partidos perderam o aspecto ideológico recém-adquirido e transformaram-se nos chamados "partidos populares", ou seja, conglomerados de interesses e clientelas pautados pela forma da mercadoria, nos quais os sedimentos dos antigos estamentos, das classes sociais e das ideologias da finada fase ascendente do sistema são agora visíveis somente em contornos esbatidos. Assim veio a moda da ideologia da ausência de ideologia, cujo conteúdo é o consentimento mudo, cego e sem reservas aos critérios agora maduros do fetichismo da modernidade. Com o colapso do socialismo de Estado, com o fim da descolonização (cujo último acto foi provavelmente a África do Sul) e com a unificação negativa do sistema produtor de mercadorias no "one world" total, foi concluída definitivamente a transformação da esfera da política em esfera "não-ideológica".

Talvez os politicistas tradicionais, tanto de esquerda como de direita, lamentem este facto cada um a seu modo, mas obviamente não se pode voltar atrás. Enquanto os "de esquerda" choram de nostalgia pela democratização que lhes foi incutida ideologicamente, os "de direita" não perdem a oportunidade de desdenhar o árido "espírito de merceeiro" e lembram com saudades os tempos em que a política ainda era um monstro marcial de bandeira em riste, em marcha contra os canhões. Por sua vez, os "realistas" sem cor nem pátria julgam-se em sintonia com o tempo, com o mundo e com a modernidade realizada, quando rendem homenagem ao árido "carácter de concertação" de uma "política" agora desencantada, reclamando-o como o melhor legado e a conclusão lógica da racionalidade ocidental.

3.

Com a conclusão histórica do sistema que se tornou sistema mundial total, contudo, não se volatizou apenas o momento enfático da "política", exaurido porque amarrado à ascensão do sistema e a partir de agora rebaixado a mera função imanente. Desse modo, ao desaparecer assim a dupla função da esfera política, pela primeira vez salta à vista o antagonismo polar das esferas funcionais "economia" e "política", em que o sistema produtor de mercadorias deve mediar-se consigo mesmo. Quanto mais se esvaía o excedente ideológico da fase de ascensão e aparecia em sua nudez obscena o árido fim em si mesmo da valorização do valor, despido de sua brilhante roupagem ideológica, tanto mais se patenteava o carácter dependente e secundário da esfera funcional política. A "política", tende a reduzir-se de forma cada vez mais aberta e unidimensional a política económica. Do mesmo modo que nas sociedades pré-modernas tudo tinha de ser fundamentado religiosamente, assim também tudo deve hoje ser fundamentado economicamente. Basta ouvir como o termo "economia de mercado" adquire um tom litúrgico na boca de todos os idiotas históricos desde 1989, do presidente norte-americano aos ex-comunistas russos, passando pelo Partido Verde alemão. Algo é bom porque ajuda e é útil "à economia de mercado", e é louvável utilizar todas as coisas mortas e vivas para a economia de mercado.

E, do mesmo modo que nos anteriores estágios de formação do sistema o antagonismo esquerda-direita fora representado por legitimistas e republicanos ou por socialistas e fascistas, assim também ele é agora representado por keynesianos e monetaristas, por radicais do mercado e intervencionistas. O antagonismo esquerda-direita interno à política, que antes parecia autónomo e primário em face da economia e que obscurecia o antagonismo entre as esferas da "economia" e da "política", é agora inteiramente "economificado"; ambos os lados se orientam em termos de "política económica". Esta situação só foi plenamente realizada após de 1989. Obviamente ela não caiu do céu, pois o processo social já rumava nessa direcção, com velocidade crescente, desde o fim da Segunda Guerra Mundial e fora notado muito antes. Saber como criar novos "postos de trabalho" e fomentar o crescimento, saber se a conjuntura deve ser impulsionada pela oferta ou pela procura inflama agora as cabeças na mesma medida em que antes a questão de saber se somente os contribuintes ou também os despossuidos tinham direito de voto, se uma guerra era justa ou injusta ou qual seria a melhor maneira de servir à "pátria". É claro que os antigos antagonismos político-ideológicos continuam presentes, mas apenas como invólucros vazios, gastos e desbotados. Mesmo o neonazi já não fundamenta as suas exigências económicas em nome da raça, mas, pelo contrário, baseia o seu racismo em interesses económicos.

A veemência político-económica explica também por que a esfera política como tal não pôde desaparecer com o fim histórico da fase ascendente do sistema produtor de mercadorias e dar lugar a uma "concertação" sócio-económica directa de interesses na forma da mercadoria. Não é a "política" como tal que desaparece com a conclusão da afirmação do sistema, mas só a sua dupla função e a ênfase aparentemente autonomizada, as suas vestes ideológicas etc. O que permanece, porque inevitável e ineliminável na base do sistema, é a "política" como função secundária no processo contínuo de automediação da forma da mercadoria agora incontestada, ubíqua e total. O facto de que a política fique como um resíduo resulta do carácter fetichista deste processo. A universalidade abstracta da modernidade - duplicada nas formas (primária) de dinheiro e (secundária) de Estado - ou seja, a "Volonté Générale" como "deus" sem sujeito da socialização inconsciente, exige aquela esfera de automediação. Justamente porque o deus da forma da mercadoria total não é um efectivo sujeito exteriorizado, mas um produto histórico nas cabeças das pessoas, o qual no entanto lhes impõe todas as acções históricas, justamente por isso elas têm de executar a automediação do sistema sem sujeito, ainda que através da esquizofrenia do seu próprio pensamento e acção; elas têm de dar uma mãozinha ao deus quimérico e agir como o outro de si mesmas. A "política ", agora totalmente despida e desencantada, continua portanto ainda uma esfera funcional imprescindível no campo do sistema.

A necessidade da esfera funcional da "política", descrita aqui em termos teóricos, pode também ser exposta da perspectiva da acção imanente. Primeiro, os vários interesses que têm a forma da mercadoria não podem por si mesmos, ser directamente "concertados" até assumir formas aceitáveis. Isso significaria que sujeitos de facto capazes de entender e de querer, conscientes da sua sociabilidade, se relacionam comunicativamente e decidem directamente sobre a utilização de recursos sensíveis e materiais; porém nesse caso não se trataria mais de sujeitos formatados pela forma da mercadoria. Da perspectiva do interesse constituído, pelo contrário, nenhuma decisão é possível quando faltam as condições marginais e a "terceira" instância. Se a sociabilidade se resolvesse numa unilateral instituição socio-económica e todos os portadores de funções na forma da mercadoria se encontrassem apenas imediatamente enquanto "sindicados" nos seus interesses especiais, então nada mais poderia ser concertado, já que não haveria uma instância para o critério comum (da Volonté Générale). Isso seria o regresso à força bruta e, assim, à pronta dissolução de toda a estrutura. A "concertação" tem de ocorrer num sistema de regras imperativas (direito), cuja fixação não pode dar-se no mesmo plano em que se desenvolve o conflito de interesses na forma da mercadoria; pelo contrário, deve passar através da esfera funcional oposta da "política".

Segundo, a esfera político-estatal não é necessária somente como "árbitro" dos interesses em conflito e por si não mediados, mas também como portadora daqueles recursos que, como infra-estruturas, se tornaram condições gerais de todo o processo de valorização, sem poder valorizar directamente o dinheiro. Tais agregados não podem, assim, ser abandonados às fúrias do interesse particular, pois nenhuma instância particular de valorização poria à disposição voluntariamente dinheiro suficiente para os "faux frais" de todo o sistema, e os recursos obtidos numa simples "concertação" entre os interesses particulares jamais poderiam ser angariados em quantidade suficiente. Tanto como "árbitro" do conflito de interesses e depositário da forma jurídica, quanto como administrador das infra-estruturas, o Estado permanece assim imprescindível para o sistema como "capitalista colectivo ideal". E nesse sentido a esfera da "política", como forma de automediação do sistema, não pode desaparecer .

Depois da desmistificação histórica da "política", hoje revela-se o seu carácter secundário e dependente, embora ela continue necessária. A política é uma simples forma de mediação de algo que a transcende, sobre o qual ela, "como política", não tem poder autónomo; assim, a forma da mercadoria como tal e a sua lei de movimento ficam fora do "livre-arbítrio" dos sujeitos da mercadoria como também, logicamente, da forma "política" da vontade, que é apenas uma forma derivada. O Estado é a síntese dos interesses particulares e, portanto, um "capitalista colectivo ideal", mas não no sentido de que possa alçar-se a uma meta-vontade, que teria a "economia" como "base", sobre a qual poderia efectivamente agir de forma "livre", limitado somente pela quantidade e pela qualidade de seus "meios de poder". Esta foi a ilusão politicista e estatista alimentada durante a história da ascensão hoje concluída. Se nesta fase a "economia" pôde aparecer como "politizada", hoje pelo contrário é a "política" que aparece forçosamente como "economicizada" Com isso se restabelece a verdadeira relação no campo do sistema produtor de mercadorias.

Nesta conjuntura vivemos também a derrocada histórica do aparentemente incorruptível paradigma de esquerda sobre o "economicismo". Seu fundamento conceptual é um sofisma elementar: a forma da mercadoria como forma da totalidade é confundida com a superficial esfera funcional da "economia", na qual mercadoria e dinheiro agem e aparecem imediatamente de modo empírico; a forma da mercadoria, na verdade total, aparece então reduzida como mera "economia", sobre a qual a "política" teria capacidade de intervenção autónoma e decisiva. A bem da verdade, deixa de haver então um conceito do todo, ou seja, a totalidade mediada dissocia-se conceptualmente em "economia" e "política", que não podem (pelo menos de forma coerente) ser reconhecidas como esferas funcionais derivadas de algo idêntico e superior; ou ainda o próprio conceito do todo é distorcido no sentido politicista ("capitalismo" como falso conceito do "poder" entendido subjectivamente). Ironicamente. a usual "critica ao economicismo" da esquerda argumenta ela própria em termos "economicistas", uma vez que imputa simplesmente a forma da mercadoria à esfera funcional visível da "economia", em vez de reconhecê-la como forma da totalidade que encerra também a esfera da "política". A oposição entre a "economia" e a "política" não pode mais, então, ser compreendida como o conflito inerente à forma da mercadoria e à sua constituição fetichista, que resulta do problema da sua automediação, mas apenas como oposição exterior e não mediada, que abre caminho à (igualmente usual) hipostasiação da política por parte da esquerda.

O verdadeiro segredo dessa hipostasiação é a total incapacidade de todas as tradicionais formas da "esquerda" chegarem sequer a abordar o problema de uma superação da forma da mercadoria. No fundo, a "crítica do economicismo" sempre foi uma fuga a esse problema; assim se saltava rapidamente para a "política". Em vez da superação da forma da mercadoria, que nem sequer podia ser pensada, surgiu uma variante qualquer de regulação "política", que deveria exercer o controle político sobre a forma da mercadoria ontologizada e reduzida à esfera funcional da "economia". A hipostasiação do conceito de democracia faz parte, geralmente, desta concepção. O capitalismo, entendido em termos absolutamente reduzidos, devia ser ultrapassado não por meio da superação da forma fetichista moderna, mas pela sua "democratização" e "politização". Esta campanha politicista da esquerda, totalmente ideológica e inconsciente em relação à verdadeira constituição do sistema, era complementada, por uma hipostasiação inversa também politicista do poder estatal capitalista, considerado capaz de uma autonomia em relação à sua "base económica", de uma relação instrumental com esta última e de uma posição geral de comando. A esquerda, assim como queria absurdamente superar o capitalismo de forma "política", ignorando o carácter sistémico imanente da esfera funcional política, assim também ela inflou o adversário, o Estado capitalista e seus depositários políticos, como meta-sujeito e pretenso demiurgo de todo o processo. Esta imagem dum inimigo "superior" não ia além da superfície funcional, pois a crítica não descia ao núcleo do modo de produção capitalista.

A ideia do comando político-estatal sobre a "economia" (não superada e ainda na forma da mercadoria), seja como um poder revolucionário ou reformista do "trabalho", seja como um centro "imperialista" de comando, vagueou sempre com novas variantes nas teorias do movimento operário, do marxismo e da esquerda. Essa concepção englobou ambos os campos do cisma entre social-democratas e comunistas; encontra-se tanto em Lenine como em Hilferding, ainda que sob formas diversas. Na teoria de Adorno e Horkheimer sobre o "Estado autoritário", flanqueada em termos de economia vulgar pelas investigações de Friedrich Pollock, essa ideia alcançou um novo apogeu, embora com uma tónica pessimista. Julgou-se que o Estado tinha posto definitivamente sob seu controle o processo de valorização e o mecanismo de mercado, dum modo negativo, "equivocado" e autoritário, e os tinha transformado num sistema planeado e hierarquicamente estruturado.

Por mais que essa concepção seja compreensível sob o influxo directo do nacional-socialismo, ela não deixa de contituir um erro teórico fundamental. O modo estatal e politicista de afirmação do sistema, entre cujos depositários estava o próprio nacional-socialismo, foi confundido com a lógica estrutural do sistema e com o seu acabamento. O mesmo erro acha-se também no "operaísmo" da estrema esquerda (Negri e outros), onde já é, historicamente, menos perdoável; e, por fim, esse mesmo equívoco surge ainda no esforço de Habermas e dos teóricos pós-modernos (Baudrillard), nos quais a "teoria do valor" de Marx ou mesmo o "valor" em geral é dado como "superado". Estas posições não reconhecem o potencial de crise do processo de valorização ou acreditam piamente nos simulacros fantasmagóricos do "capital fictício". Todo o novo radicalismo de esquerda mais recente está profundamente enredado nesse paradigma teórico grosseiramente erróneo, cujas raízes históricas, em grande parte, já é incapaz de reconhecer.

A crítica de esquerda ao "economicismo", portanto, só se explica pelo excedente politicista da história da fase ascendente burguesa; e com isso a própria esquerda (e o "esquerdismo" em geral) revela-se um mero elemento dessa fase, como um polo no interior da constituição moderna, e não como sua crítica. Tal crítica ainda está por fazer e não se pode formulá-la do ponto de vista da esquerda tradicional. A angústia burguesa da crítica ao "economicismo" explicita-se a partir do nexo funcional imanente. A suposta autonomia da "política " é desmentida já pelo facto de a esfera política não dispor de nenhum meio próprio de influência. Tudo o que Estado faz por intermédio da política, tem de fazê-lo por meio do "mercado", isto é, na forma do dinheiro. De facto, cada medida e cada instituição têm de ser "financiadas" O problema do "financiamento" faz naufragar toda a autonomia da "política", inclusive a chamada autonomia "relativa", tão evocada pela esquerda (mesmo essa frase feita foi, a maioria das vezes, uma simples profissão de fé na irresolvida crítica da economia de Marx; de facto, a esquerda sempre tratou a suposta autonomia da "política" como absoluta).

A dependência da "política" do financiamento das suas medidas e, dessa maneira, da forma do dinheiro do mercado é absoluta, já que a esfera política e estatal não pode criar dinheiro autonomamente. Sempre que o Estado tenta chamar imediatamente a si a competência para a emissão de moeda, isso já constitui um momento de colapso do sistema: a rodagem das prensas da Casa da Moeda e a produção de "dinheiro sem substância", ou seja, a emissão estatal improdutiva de dinheiro, é sempre punida com a hiperinflacção ruinosa para o sistema. O absurdo é apresentar essa suposta intervenção da pseudo-emissão estatal de dinheiro como "medida saneadora", como tenta casualmente o radicalismo politicista de esquerda. Pelo contrário, a inflação é o próprio termo de rendição da esfera política no terreno para ela inatingível da forma de representação do "valor". A falência definitiva da "política", neste campo facto recorrente na história, nunca foi, nesse sentido, superada ou protelada através de medidas políticas, mas sempre e apenas através dum ulterior avanço histórico da valorização do dinheiro, independentemente de toda a "política".

Essa limitação elementar do Estado revela a verdadeira impotência da esfera política; com efeito, este seria o ponto decisivo em que a autonomia da "política" e da capacidade de comando do Estado deviam pôr-se à prova. O Estado, portanto, só pode angariar recursos para financiar todas as suas medidas através de processos bem sucedidos de valorização que o mercado medeia. Sua função de recolher os tributos e o conexo autoritarismo fazem-no parecer, ao olho histórica e estruturalmente desarmado, como o comandante de todo o processo, ao passo que, na verdade, ele é literalmente apenas o "ministro" (servidor) do fim em si mesmo fetichista, a cujo cego movimento permanece irremediavelmente entregue. Todas as suas deliberações, decisões e leis, por cuja "configuração" se digladia o processo político, mantêm-se ridiculamente ineficazes quando o seu financiamento não é "ganho" regularmente no processo de mercado.

Isso vale, não por último, para os próprios meios de poder. Também os tanques, aviões, e sistemas electrónicos militares têm, obviamente, de ser financiados, antes de serem utilizáveis; e vice-versa, o processo de valorização, as leis de mercado e os mercados financeiros não se deixam impressionar minimamente por unidades especiais ou especialistas em tortura, por porta-aviões ou exércitos em marcha. Assim se evidencia, também na relação empírica das duas esferas funcionais "economia" e "política", a verdadeira escala de pesos que nunca deixou de vigorar, embora tenha podido ser momentaneamente encoberta pela nuvem de pó levantada durante a ascensão do sistema. Somente por meio dos cegos surtos sistémicos de acumulação real é que se pôde criar um espaço de acção para a "política". O carácter de totalidade da forma da mercadoria relega a "política" a uma figura funcional subordinada e submissa, o que aparece como sua dependência da "economia". Não há um dualismo por resolver entre dinheiro e poder: o poder só pode ser o "ministro" do dinheiro. Com isso, de facto, o poder - e também a esfera funcional da política - é desmascarado como a forma fenoménica da totalidade fetichista, dominado pela forma da mercadoria social. A "política", pela sua essência, não pode organizar os recursos humanos e naturais, embora seja a esfera da comunicação social directa; tal comunicação, porém, não é "livre" nem aberta, mas enclausurada na codificação cega da forma da mercadoria e das suas "leis", que sempre se antepõem, como quase-leis naturais inconscientes da "segunda natureza", a todas as leis jurídicas conscientemente criadas da esfera estatal e política.

Essa lamentável circunstância faz sobretudo prevalecer uma corrente que, como "liberalismo" ou "liberalismo económico", acompanhou desde o princípio a história do moderno sistema fetichista. Seu credo é a "liberdade dos solventes"; "livre curso para cidadãos livres", por assim dizer. O liberalismo foi inicialmente, em correspondência com o nascimento revolucionário e "político" do sistema, uma avalanche contra os antigos poderes, em boa parte ainda pré-modernos. Porém, ao mesmo tempo, ele portava em si um impulso "antipolítico", visto que anti-estatal (daí também um certo parentesco do liberalismo radical com o anarquismo, ambos igualmente aferrados à forma da mercadoria); assim, ele provou ser o paradoxal depositário político do pólo contrário à "política" em geral, ou seja, da esfera funcional "económica" dissociada. Por isso o liberalismo, na fase ascendente com sua retórica politicista, teve de passar o leme aos politicistas de esquerda e de direita: aos socialistas e "comunistas", nacionalistas, "conservadores", fascistas etc. No interior da esfera política, que lhe era na verdade bastante suspeita, ele permaneceu um corpo estranho tão marginalizado quanto os antigos monárquicos e partidos da nobreza, ainda que por razões diametralmente opostas. Se estes últimos corporificavam os estertores do passado pré-moderno, o liberalismo, por sua vez, representava o núcleo "económico real" - de certa maneira, a totalidade oculta da forma da mercadoria social, que ainda devia afirmar-se historicamente na sociedade; na aparência superficial e na concepção ideológica, todavia, ele encarnava o automovimento da "economia" contra as instâncias de regulação da "política".

Nesta perspectiva, o liberalismo detém uma posição ideológica central, tanto no principio como no fim do processo de modernização - da "invisible hand" na teoria de Adam Smith até ao liberalismo tardio de hoje, que se infiltrou em todos os partidos. Se o antigo liberalismo era por força necessariamente ele próprio "político", hoje inverte-se o seu paradoxo: ele representa o critério "económico" na "política", e torna-se o fermento geral (já não limitado apenas aos partidos liberais) da economificação da "política". A "liberdade económica" por ele propagandeada é apenas, superficialmente, a liberdade subjectiva e destruidora dos "solventes"; na verdade, por trás dela espreita a "liberdade" à solta da forma fetichista desencadeada, monstruosa e sem sujeito, da qual o liberalismo é o agente directo na "política ". Seu credo completamente "economicista", no fundo já formulado por Adam Smith, aponta para a regulação total de todas as questões humanas através das cegas "forças do mercado", o que é idêntico à submissão cega de todos os recursos humanos e naturais ao "deus" fetichista da valorização do valor, ao tautológico automovimento do dinheiro.

Naturalmente, também o liberalismo se ramifica num vasto espectro ideológico. As posições clássicas deixavam à esfera político-estatal uma certa função regulativa externa ("Estado guardião") e a posição monetarista do neoliberalismo contemporâneo (Milton Friedman) quer sobretudo erigir o Estado como austero "guardião" da estabilidade monetária, sobre cuja base poderia actuar a "mão invisível" do mercado. O liberalismo extremista (Hayek, por exemplo) pretende até mesmo expor o dinheiro como tal às cegas "forças do mercado" e dissolver os bancos centrais; ele deseja, em última instância, eliminar a esfera político-estatal em geral, a fim de submeter directamente todas as funções e expressões vitais (até a "segurança") ao mecanismo de mercado. No seu conjunto, e, é claro, especialmente em suas posições mais radicais, o liberalismo ignora completamente a necessidade funcional e sistémica de uma esfera política. A diferenciação objectiva desta última, no cego processo histórico do sistema, parece-lhes apenas um "erro" subjectivo ou uma aberração viciosa.

O seu nítido carácter a-social vem também à tona com a capitulação incondicional aos critérios malucos do processo imediato de valorização. A afirmação ideológica de que o mecanismo de mercado é em si social e regula a "alocação de recursos" para o bem-estar de todos inverte-se rapidamente em cinismo aberto, quando se sabe que tal visivelmente não acontece na realidade. O liberalismo afirma, então, que a miséria crescente deve ser imputada à pouca vontade de trabalhar dos pobres e excluídos, à preguiça e à decadência moral; ou, num discurso seco, chega mesmo a dizer que a pobreza e a miséria sempre existiram e que tal destino deve ser aceite, quando o mercado e os seus critérios, concebidos como necessidade natural eterna, apesar de todas as expectativas, nada mais "permitem" a inúmeras pessoas.

Chegado a este ponto (documentado, por exemplo, nos discursos recentes da britânica Margaret Thatcher ou do alemão Otto Graf Lambsdorff), o liberalismo revela-se como o exacto contrário da liberdade humana em configurar a própria vida. Antes recursos improdutivos e arruinados (ou, inversamente, mobilizados de forma destrutiva), do que "permitir' que eles sejam postos em movimentos por critérios diversos dos do mercado. O liberalismo como força determinante conduz, assim, naturalmente, a qualquer forma de guerra civil. Por fim ele transforma-se paradoxalmente no seu contrário, pois não lhe resta outra alternativa senão pôr-se voluntariamente sob a curatela de um poder armado qualquer (seja um bando mercenários ou de gangsters), que ri à sua custa, sem que ele possa, é claro, aproximar-se da compreensão das leis de movimento da forma da mercadoria sem sujeito e da mediação do mercado. A inconsciência de todos os envolvidos a respeito dos verdadeiros motivos e resultados da sua própria acção é já sempre pressuposta.

O liberalismo é, abertamente, o contrário complementar do politicismo, seja de direita ou de esquerda. Contra a critica sempre infrasistémica de esquerda (e por vezes também de direita) do "economicismo", ele constitui a franca ideologia e propaganda de um "economicismo real". Nisso se revela um paradoxal enredo ideológico destas duas posições. A crítica de esquerda ao "economicismo" tem a sua razão relativa - ou melhor, o seu pretexto – quando combate uma concepção na verdade pouco sustentada, que defende uma dependência directa e mecânica da "política" relativamente ao processo económico empírico. Claro que mesmo hoje a "política" não é uma variável directamente dependente, por exemplo, do PIB, dos preços de importação e exportação etc. Mas, ao contrário da passada fase ascendente do sistema, esse processo económico empírico está hoje muito mais próximo da política, a ponto de quase paralisá-la. A dependência empírica directa da "política" em relação à "economia" jamais se manifesta, não há dúvida, de maneira que o curso do processo político reproduza mecanicamente o curso do processo económico ou o siga de forma directa. O maior peso da esfera funcional económica revela-se no facto de o seu processo restringir e estrangular as possibilidades de acção da "política", o que pode levar, na esfera política, por exemplo a explosões irracionais, acções desesperadas, correntes regressivas etc., que obviamente não são mero "reflexo" especular do "desenvolvimento económico" empírico.

Afora isso, no entanto, o verdadeiro erro da critica do "economicismo" é o que ela deixa de dizer, na sua ignorância acerca constituição fetichista estrutural da forma da mercadoria total. A crítica do "economicismo" acaba por excluir qualquer crítica à socialização na forma da mercadoria ou à forma da mercadoria social como tal e tenta compensar esta omissão através de fantasias politicistas. Nesta secreta aquiescência ao sistema, ela entra em contacto com o liberalismo, que de modo igualmente inconsciente faz a mesma afirmação de forma inversa. Os críticos do "economicismo" de esquerda ou de direita e os "economicistas reais" liberais unem as vozes na comum celebração do sistema produtor de mercadorias; os primeiros encontram-se com esta amante às escondidas, de maneira envergonhada e "crítica do economicismo"; os segundos abertamente e gabando o "economicismo real"

A crise de todo o campo de referência é hoje evidente, e tornou-se conhecida do público como "crise da política". À medida que a forma de totalidade da mercadoria se torna patente como princípio dominante no fim da sua fase ascendente e à medida que, em consequência, o "subsistema economia" impõe seu domínio estrutural sobre o "subsistema política", o céu político vem abaixo. A política vive a sua desmistificação económica como distorção de todos os seus parâmetros. Embora ainda existam e até surjam partidos explicitamente de direita (ou de estrema direita), todos os partidos (inclusive os de esquerda) pendem para a direita como reacção à crise; e embora o neoliberalismo se apresente como ideologia específica e os liberais como partido específico, a posição de liberalismo económico e de radicalismo mercadológico insinua-se relativamente em todos os partidos e em todas as ideologias, tanto na direita como na esquerda. O ponto decisivo é o crescente abandono da "política" aos critérios económicos autonomizados. Com isso, além de se extinguir a ênfase histórica da política, torna-se visível a crise existencial de todo o modo de socialização. A "crise da política" cresce com a "crise da economia" e da sua categoria nuclear, o "trabalho"; a crise dos "subsistemas" aponta para a crise de todo o sistema da mercadoria, o qual alcança seu limite histórico absoluto no preciso momento em que deixa para trás sua fase ascendente, logrando ser idêntico a si mesmo apenas num breve momento histórico.

4.

Como mostram cada vez mais claramente as suas circunstâncias e os seus desenvolvimentos, a "crise da política" não significa apenas da perda da sua ênfase e da sua hipostasiação históricas, de maneira que ela colabore agora, na mais perfeita paz, como subsistema reduzido e desmistificado, correspondendo assim à sua verdadeira aridez funcionalista. Tornam-se visíveis ou entram na consciência pública as estruturas que até agora haviam formado o tácito pano de fundo de todo o processo social como "condição de possibilidade" da política, e que hoje se fazem notar como distúrbios de funções elementares. Estes distúrbios, que indicam o colapso histórico do sistema, manifestam-se essencialmente como crise ecológica, como crise da sociedade do trabalho, como crise do Estado nacional e como crise da relação entre os sexos. E, justamente nesses campos, os tácitos panos de fundo da "política" vêm à luz e saem do silêncio. Os ruídos da catástrofe social, provocados pelo seu desmoronamento, transformam-se directamente nos gritos de dor da "política", cuja função reguladora se desintegra, juntamente com o mecanismo funcional económico. Na exacta medida em que as bases do sistema, inatingíveis pela "política", perdem a sua capacidade de funcionar, a esfera política começa necessariamente a rodar em falso.

Desde o início do sistema industrial sob a forma da mercadoria, foi lamentado o seu potencial destrutivo em relação à natureza biológica. Esta força destrutiva reside no próprio processo de abstracção operado pela forma da mercadoria, isto é, na indiferença do dinheiro a qualquer conteúdo sensível. Enquanto a forma da mercadoria possuía apenas uma existência periférica em nichos nas constituições pré-modernas, o carácter destrutivo dessa "abstracção real" (Sohn-Rethel) e do seu trato "não concreto" com a matéria concreta do mundo só pôde manifestar-se de maneira esparsa e casual. Mas à medida que a forma da mercadoria se tornava a forma social de totalidade na forma do capital, também tinha de vir a lume o seu carácter destrutivo da "primeira natureza". Num primeiro momento, a crise ecológica assim desencadeada ficou limitada a certos sectores e regiões; ela seguia o processo de industrialização na forma da mercadoria. Portanto é lógico que ela se tenha tornado uma ameaça directa à humanidade com a perfeição estrutural e global do sistema produtor de mercadorias após a Segunda Guerra Mundial. Afectados o solo, o ar, a água e o clima, o potencial destrutivo da forma da mercadoria total atinge os fundamentos mais elementares da vida, tornando-se assim, a partir dos anos 70, uma questão política permanente.

Mas, mesmo na chamada questão ecológica, o carácter não autónomo e estruturalmente dependente da "política" se torna evidente; mais de um quarto de século de debates ecológicos dão há muito a prova prática desse facto. Pela própria essência, a política só pode resolver problemas funcionais no interior da lógica do dinheiro, mas não problemas causados por essa lógica como tal. Como o Estado tem de financiar todas as suas medidas de regulação, isso vale também, é claro, para as medidas ecológicas. Os fundamentos naturais são destruídos pela lógica abstracta do dinheiro; mas a reparação dos fundamentos naturais, por sua vez, custa dinheiro, que primeiro tem de ser "ganho". Para poder reparar as destruições causadas pelo dinheiro, a sociedade, portanto, tem de "ganhar" mais dinheiro e provocar mais destruições. É fácil calcular que tal círculo se torna cada vez mais vicioso, para prejuízo da natureza e dos fundamentos da vida.

Assim, é impossível solucionar o problema ecológico a partir da lógica estrutural do sistema. E como a "política" não pode deter outro espaço funcional senão o Estado, em última instância ela tem de capitular perante o potencial de destruição ecológica. Ela passa, então, a concentrar-se em medidas secundárias, que custam o menos possível ao Estado, como as intervenções legais para a "internalização" dos "custos ecológicos" por parte das empresas; actualmente fala-se de "impostos ecológicos" (sobretudo a taxa sobre o consumo de energia). Essas medidas puramente legais, que chegam até a acenar ao Estado com uma renda suplementar, são porém postas a ridículo pela lógica do sistema. Em primeiro lugar, elas defrontam a concorrência internacional. Como o espaço de actuação do Estado e das suas leis é restrito à nação e como os Estados perdedores no mercado mundial não se vinculam a acordos ecológicos internacionais, o mercado mundial tem de punir os produtos mais caros em virtude dos impostos ecológicos com a perda da capacidade concorrencial, rapidamente demonstrando o absurdo desta medida.

Argumenta-se que este efeito poderia ser evitado se o Estado, para compensar os impostos ecológicos, reduzisse os custos do trabalho (despesas salariais, contribuições para a segurança social etc.) e, dessa forma, contornasse a elevação de preços dos produtos punidos pelo mecanismo de mercado. Porém isso significaria ser o próprio Estado a pagar o imposto ecológico, pois ele teria de reduzir noutro lado as suas receitas e subvencionar as medidas até agora custeadas por outrem (pelos "parceiros sociais"). Mas toda a construção mostra o seu carácter ilusório quando se argumenta que o Estado seria capaz de financiar medidas para a redução dos custos do trabalho com o imposto ecológico. Um discurso claramente absurdo, pois o imposto ecológico deve servir para, em beneficio da natureza, reduzir drasticamente o consumo de energia e forçar a indústria a investir em medidas de redução do consumo para poupar o imposto. Em suma, se a medida legal funcionar, o imposto ecológico não será arrecadado em abundância suficiente para poder financiar duradouramente providências para flanquear o imposto ecológico em termos sociais e de mercado.

Portanto, o efeito de um imposto ecológico sobre o consumo de energia é fácil de prever. A grande indústria investirá em medidas de poupança energética, mas os custos para tanto serão repercutidos nos preços, o que a ameaçará no que se refere à concorrência; ou então ela deixará de lado essa repercussão dos custos, por causa da concorrência, mas fará campanha junto do Estado contra a elevação de custos empresariais. O Estado, por sua vez, por a grande indústria reagir ao imposto ecológico com investimentos de poupança de energia, recolherá menos impostos do que o necessário para financiar a redução dos custos laborais, o que o porá numa situação de grande dificuldade e para financiar esta baixa cortará noutro lado, etc. Se a grande indústria, porém, preferir desembolsar o imposto ecológico a investir na poupança de energia, o Estado será capaz de financiar essa elevação de custos com a compensação com os custos laborais acrescidos, mas o conjunto recairá num mero jogo de soma zero, e o verdadeiro objectivo não será alcançado, pois a destruição da natureza continuará como antes, só que com imposto ecológico. A pequena indústria, por sua vez, já incapaz de assumir os custos de investimento para uma drástica redução no consumo de energia, ficará ainda mais entre dois fogos: por um lado sofrerá o imposto ecológico; por outro, o Estado só poderá financiar em pequena escala as medidas de compensação, precisamente em virtude dos investimentos da grande indústria na poupança energética.

Por mais que se torça e retorça, a alternativa é a mesma: ou o imposto ecológico sobre a energia tropeça no problema do financiamento, ou se reduz a um jogo de soma zero e não atinge o seu objectivo ecológico. Em hipótese alguma o sistema estrutural da valorização do dinheiro se deixa empulhar pelo subsistema da "política", que constitui sua função sistémica. Uma "política" ecológica é, portanto, uma contradição em si, já que a emenda é pior que o soneto. Em geral não se arrisca a defrontar o princípio da valorização do dinheiro, que constitui o verdadeiro problema. Essa contradição em si não é mais que a forma fenoménica da esquizofrenia estrutural dos sujeitos na forma da mercadoria; ela se manifesta, assim, no que se refere à questão ecológica, em cada indivíduo da forma da mercadoria, e não somente nas grandes instituições estruturadas na forma da mercadoria. Na crise ecológica cada indivíduo ganhador de dinheiro vê o horizonte dos seus interesses cindir-se dramaticamente. O interesse no dinheiro produzido pelo sistema obriga a que se tome parte na destruição sempre crescente da natureza, ao passo que o interesse elementar na vida e na sobrevivência impõe a superação da lógica do dinheiro. Ora, o último interesse é, por essência, transcendente ao sistema, e só se manifesta em evasivas hipócritas. A infeliz tentativa de contornar, por meio do dinheiro, os efeitos ecológicos do dinheiro leva ao absurdo, na medida que são destruídos aqueles recursos naturais que já nem os magnatas podem pagar com dinheiro. A "política ecológica", por outro lado, é o falso álibi de uma humanidade que, através da esquizofrenia da forma da mercadoria, se tornou a assassina de si mesma.

A crise ecológica pôde ser retardada, adiando cinicamente a catástrofe biológica final para os próprios filhos e netos, enquanto ainda afluía dinheiro para as medidas de reparação mais urgentes. Mas entretanto a "crise da sociedade do trabalho" sobrepôs-se à crise ecológica. O modo de produção capitalista (o sistema produtor de mercadorias) manifesta-se como valorização do dinheiro; dinheiro, porém, nada mais é que a representação de trabalho abstracto passado ("morto"). O capital como dinheiro que se autovaloriza - um fim em si mesmo absurdo - baseia-se, portanto, no tautológico e incessante dispêndio empresarial de quantidade abstracta de trabalho. O crescimento constante é necessário ao sistema, já que o trabalho vivo empregado tem de revalorizar a massa acumulada de trabalho morto, ou seja, trata-se de um processo de progressão geométrica. Ainda que interrompido periodicamente por "crises de desvalorização", estas são incapazes de repristinar o nível anterior de acumulação do capital. De facto, por causa do aumento de produtividade exigido pela concorrência, o nível de acumulação atingido antes da crise de desvalorização é alcançado novamente em períodos cada vez mais curtos.

O cerne do problema reside no facto de, graças ao aumento de produtividade, se produzir cada vez menos "valor" por produto e por capital empregue, já que "valor" é um conceito relativo, medido pelo respectivo nível de produtividade historicamente sempre crescente do sistema capitalista a que se refere. Essa tendência imanente para a crise só pode ser compensada com a ampliação absoluta do modo de produção como tal, a fim de possibilitar uma ulterior acumulação. Na medida em que o aumento de produtividade devido ao uso da ciência supera em termos absolutos a ampliação do modo de produção, esse mecanismo de compensação começa a falhar. Tal estágio foi hoje atingido pela sociedade mundial capitalista produtora de mercadorias. O que na linguagem da sociologia é chamado de "crise da sociedade do trabalho ", é, em última instância, o limite histórico absoluto da própria acumulação do capital. Todo o processo social, de vida e de reprodução é prolongado de forma cada vez mais penosa através substância-"trabalho" passada e em vias de perda de validade.

Mas a fonte da forma-fetiche capitalista esgota-se por obra do seu próprio mecanismo funcional interno. A contradição fundamental desta sociedade – que se baseia na transformação incessante de "trabalho" em dinheiro, embora pelo seu próprio desenvolvimento tenha chegado ao ponto em que é incapaz de mobilizar, de forma rentável, "trabalho" suficiente no padrão de produtividade por ela criado – já não se manifesta apenas ciclicamente, mas de modo permanente e visível à superfície e torna-se paralisia histórica. É aqui que se torna visível o absurdo do tradicional extremismo de esquerda, que nega uma crise terminal da acumulação do capital, pois é incapaz de transcender o paradigma do "trabalho", e aferra-se nessa base ao conceito burguês de sujeito; para ele, o capital tem de ser capaz de "explorar" a força de trabalho ad infinitum.

Esta questão explicita novamente a dependência estrutural e a impotência da "política", que não pode intervir sobre os mecanismos básicos de funcionamento do sistema. Quando seca a verdadeira fonte do dinheiro, a esfera política estiola, justamente porque não possui nenhum meio próprio de vida. Por um lado, consome-se a riqueza histórica restante, sendo que os retardatários históricos e os últimos a chegar são os primeiros atingidos pela crise do sistema e lançados à ruína. Já se viu em inúmeros casos que esta última não pode ser contida com meios estatais e políticos. As "velhas" nações do fetiche do capital podem resistir mais tempo, em virtude do seu maior volume histórico de substância, embora também elas sejam atingidas pelos fenómenos da decadência. Como "substância" aparece por sua vez o trabalho morto, acumulado sob a forma de dinheiro mais ou menos "sólido" e de reservas competitivas de capitais.

Por outro lado, tanto as economias em colapso quanto os países capitalistas centrais tentam prolongar a reprodução com base na forma da mercadoria através da criação de "moeda sem substância" (crédito e consumo estatal, emissão de dinheiro). O crédito para isso, isto é, o acesso a uma capitalização fictícia de "trabalho" futuro (mercados financeiros internacionais, formas derivadas de capital monetário) é dado pelo respectivo padrão de produtividade. Mas também as diversas formas de "capital fictício" (Marx) não podem mais ser sustentadas quando, do mecanismo básico de valorização da força de trabalho abstracta produtiva de capital, deixa de afluir a substância "real" suficiente. Mesmo este problema é iludido pelo velho extremismo de esquerda, fixado numa acepção burguesa de "exploração" no interior do sistema produtor de mercadorias. A "crise financeira do Estado tributário" – já discutida com a parcial desvinculação estrutural do "capital fictício" da substância real do trabalho, surgida com o financiamento da Primeira Guerra Mundial - entra hoje num estágio terminal, que fora considerado impossível pelos politicistas de todas as tendências. Na maioria dos Estados da actual sociedade mundial capitalista a hiperinflacção, o colapso das finanças estatais e o fim da própria autonomia monetária demonstram já os limites da capacidade de acção política no interior do meio autónomo do dinheiro. É somente uma questão de tempo (a médio ou mesmo a curto prazo) até que também nas supostas "moedas estáveis" centrais se manifeste fenomenicamente a perda real de substância já ocorrida e, assim, o colapso do sistema financeiro mundial.

Já aqui se mostra que na prática a "crise estrutural da sociedade do trabalho" conduz logicamente - por meio da perda de substância do dinheiro politicamente não influenciável -, à "crise estrutural da política". A perda básica de funções da "economia" reproduz-se como perda de funções da "política", que, no seu próprio terreno de acção estatal, está cada vez mais estrangulada monetariamente. Nada mais lhe resta senão sujeitar-se ao seu destino e seguir o curso turbulento ou abertamente catastrófico do distúrbio das suas funções básicas. De modo banal, o debate político sobre a distribuição de recursos torna-se o debate sobre a restrição de recursos. Conforme o posicionamento da economia nacional na crise planetária, chega-se à exclusão de sectores inteiros e de parcelas inteiras da população. O Estado social encolhe ou é liquidado, sectores estatais de infra-estruturas decaem, as medidas ecológicas são limitadas, a pretensão política de regulação torna-se cada vez mais fraca e finalmente ameaça apagar-se. O vacilar das últimas luzes de vida política segue, quanto a isso, o ciclo económico cada vez mais débil, a que há muito se sobrepõe a crise estrutural da valorização do dinheiro.

Como a crise ecológica e a crise do "trabalho" e da valorização do dinheiro se recobrem mutuamente e paralisam a "política", assim também a ambas as formas de crise sistémica se sobrepõe a globalização do capital, que rompe os moldes das economias nacionais habituais, abolindo ainda mais radicalmente o espaço de acção da esfera da política. As mesmas forças produtivas que destruem estruturalmente, por dentro, o mecanismo funcional estrutural do "trabalho" e da valorização do dinheiro dissolvem também, passo a passo, os moldes nacionais da "economia" a todos os níveis. À internacionalização e à globalização dos mercados financeiros seguiu-se a internacionalização e a globalização da própria produção e, também, dos mercados de trabalho. Estamos cada vez menos perante a importação e exportação de mercadorias e de capital entre as economias nacionais; antes, a importação e exportação de mercadorias e de capital são apenas formas fenoménicas de um capital total que se globaliza directamente.

O Estado deixa então de ser o nexo funcional de uma economia nacional coerente e seu "capitalista colectivo ideal". Como a perda de substância do dinheiro estrangula no plano monetário a acção estatal e política, também esta última perde a capacidade de controlar e influenciar a restante acumulação real do capital produtivo; escapa-lhe por fim também o próprio movimento do "capital fictício". Acumulação real residual e "capital fictício" - ambos buscam refúgio na "terra de ninguém" estrutural (G. Reimann) dos mercados, que agem fora dos quadros das economias nacionais, embora formalmente tudo seja território duma nação. O Estado torna-se refém da "questão conjuntural" e dos movimentos financeiros e especulativos internacionais. Essa perda de controle, que só a custo pode ser dissimulada, entorpece e debilita os últimos músculos da "política ". O céu político desaba também no sentido de que desaparece a distinção clara entre política externa e interna. Não há mais "exterior" e "interior" em termos de economia nacional, o que desorienta a política, pois ela é por natureza incapaz de seguir esta inversão do sistema de referências.

5.

A crise de todo o sistema político e económico, que atingiu os seus limites históricos, estende-se para lá das esferas funcionais visíveis, até às profundezas da "privacidade" - não somente no sentido de que crescem o desemprego estrutural em massa, a nova pobreza e a perda de norte político, mas também como declínio da própria forma de sujeito. Hoje é difícil reconhecer este facto, tal como a crise em geral e o seu conceito, porque a crítica social ("de esquerda") foi incapaz até agora de pensar para lá da forma da mercadoria, pelo simples facto de que confundiu a progressiva formação e "revelação" do sujeito sob a forma da mercadoria com o seu declínio. Um autêntico paradoxo. De modo que agora ela não consegue mais decifrar historicamente a efectiva crise terminal e a efectiva ruína do sujeito, mas apenas descobre nesta o já conhecido, ou seja, o eterno retorno dum capitalismo sempre igual.

Esta observação vale também para a mais avançada (e em muitos aspectos já transcendente ao sistema) teoria de esquerda de Horkheimer e sobretudo de Adorno. A redução decisiva e datada desta concepção pode resumir-se assim: o processo em que o indivíduo, o sujeito sob a forma da mercadoria se torna idêntico a si mesmo foi confundido com o seu progressivo declínio, pois a ascensão do sistema produtor de mercadorias foi confundida com o seu declínio. O ponto culminante, ou seja, o ponto de uma superação considerada como "perdida" ou fracassada teria então de ser marcado, erroneamente, nalgum ponto da curva ascendente da modernização, na verdade ainda não concluída, fosse 1848 ou 1918 (ou num ponto intermédio qualquer), em vez de conceber o nível só hoje alcançado (que para Adorno e Horkheimer era ainda futuro) da socia1ização mundial negativa, das forças produtivas, da forma da crise e da crise do sujeito como esse tal cume, após o qual o sistema produtor de mercadorias da modernidade ou será superado (o que só agora é possível) ou cai no abismo.

O que em Adorno era ainda uma tragédia teórica transforma-se em muitos adornianos - e gestores do espólio da Teoria Critica - em farsa teórica. Adorno pôde ainda, no tocante à superação supostamente negativa, estatal e "falsa" do capital, lançar a sua "mensagem na garrafa"; porém não existe mensagem na garrafa de uma mensagem na garrafa. Toda a actividade prática e teórica de uma critica social, que não alega mais para si uma razão histórica específica e só pode desembocar numa elaborada imprecação pública, é supérflua como uma papada, sendo, assim, pouco mais que um escapismo intelectual. Se, por confissão própria, tudo se encontra há muito substancialmente dito, então o insistir na conversa torna-se suspeito e talvez mais estreitamente familiar à ideologia criticada do que jamais será concedido. O "politicismo negativo" pseudo-radical - por assim dizer a resignação radicalizada (que ainda se orgulha de seu pretenso "realismo negativo") - é somente complementar ao "politicismo e realismo positivos", da maneira como eles se constituíram desde os socialistas académicos de esquerda, passando pela ala esquerda da social-democracia, até chegar aos membros do Partido Verde que integram o mainstream de esquerdistas e ex-esquerdistas. Os restos actuais do radicalismo adorniano de esquerda (além de outros) não se reconhecem a si próprios: eles não analisaram a sua própria posição histórica, pois, com o seu instrumental teórico tornado obtuso, não são sequer capazes de tomar conhecimento da evolução do sistema produtor de mercadoria nas últimas décadas.

A falhada superação teórica da forma da mercadoria social revela-se em Adorno, também pelo facto de que ele (embora não inequivocamente) não encontra a sua referência positiva na superação explícita da forma da mercadoria como tal, mas numa imagem utópica ou mesmo ideológica do passado, no agente da circulação (mais ou menos secretamente idealizado) com a subjectividade enfática da antiga burguesia culta; e, portanto, numa "razão circulante" idealizada e numa falsa hipostasiação da democracia. Desde a Revolução Francesa que a esquerda se arrasta atrás desse conceito ideológico da democracia, em que a lógica da circulação das mercadorias aparece como arquétipo da comunicação discursiva na esfera da política. Em última instância, trata-se do reino "ideal" da produção total de mercadorias, reduzido à circulação, em vez da sua vil realidade. Digamos abertamente e contra a sua iconização pela esquerda radical: "em última instância", Adorno permanece um democrata radical burguês, aferrado a um equivocado conceito de razão derivado da esfera da circulação, que não vai além da forma da mercadoria com coerência (embora ele vá mais longe que a maioria de seus posteriores discípulos). Habermas não "traiu" o nível de reflexão adorniano, antes, com a sua "razão comunicativa" (de que a forma da mercadoria é claramente a matriz), somente o pôs em evidência, com formulações menos crípticas que Adorno. Dessa maneira não se supera historicamente a mortífera "abstracção real".

Este dilema básico de Adorno e dos adornianos traz consigo dois outros. Primeiro, a individualidade e a subjectividade burguesas não são criticadas porque fetichistas, antes a sua evolução histórica é medida pelo seu ideal falso e ideologizado. Daí deriva aquela confusão entre "coincidir com o próprio conceito" e decadência, onde mesmo o conceito de "decadência" já deriva daquele padrão ideológico. Em vez de chegar à critica do carácter fetichista da subjectividade enquanto tal, a partir da análise do desenvolvimento histórico do sujeito, fica-se pela lamentação das possibilidades perdidas do sujeito, concebido de modo enfático e ideológico. O célebre descaramento de dizer "eu" [alusão a uma frase de Adorno em Minima Moralia, § 29 – N.T.] faz parte da estrutura do "eu" deduzida da forma da mercadoria em geral, e não apenas do seu "ocaso", como se concebe erroneamente aquilo que é na verdade o histórico "coincidir com o próprio conceito" deste "eu" fetichista.

Em segundo lugar, a razão para o suposto "declínio" é fundamentalmente mal-interpretada. Como o falso conceito enfático de sujeito está ligado à circulação, o desenvolvimento real aparece como crescente sujeição da esfera de circulação ao estatismo e, portanto, à esfera política. Justamente por isso a Teoria Crítica se ajusta tão perfeitamente à ênfase politicista da história da ascensão capitalista até meados do século XX (deslizes "economicistas" ocasionais não invalidam essa tendência básica na Teoria Crítica). A diferença em relação aos outros politicismos de esquerda e de direita está unicamente no carácter negativo do politicismo adorniano; juntamente com o reino idealizado da circulação, a também idealizada "democracia discursiva", enquanto "superestrutura política", é concebida como dominada e invalidada justamente por obra do pretenso comando estatal sobre a circulação, chegando à sua "supressão"! (Uma nova infusão desta análise "democrática" superficial, recebida com júbilo pelos radicais de esquerda, pode ser encontrada em Agnoli)

Como já foi dito, tal erro teórico nestes autores é compreensível historicamente à luz do impacto do nacional-socialismo (e também da União Soviética estalinista); mas o desenvolvimento pós-guerra rapidamente desmentiu este paradigma. Sob as asas da pax americana, estamos agora confrontados com o triunfo da circulação (concorrência) e da democracia, que se precipita de seu apogeu rumo à crise histórica terminal da forma da mercadoria social. Não admira que uma teoria ideológica (há muito trivializada, em comparação com Adorno), que mantém o conceito duma prevalência estatal latente ou manifesta sobre a circulação e a democracia, e que vê afastar-se cada vez mais o seu objectivo falso idealizado, não seja mais capaz de explicar essa realidade. Da mesma maneira que ela não cessa de suspirar pelas possibilidades do sujeito, em vez de criticá-lo radicalmente em seu carácter fetichista, assim também ela se preocupa com a "razão circulante" e a democracia, em vez de submetê-las a uma crítica radical como elementos da constituição baseada na forma da mercadoria.

Se, deste modo, não podemos decifrar os limites históricos absolutos do sistema produtor de mercadorias no plano da ecologia, da "sociedade do trabalho" (acumulação de capital) e da globalização (dissolução das economias nacionais coesas), tampouco somos capazes de decifrar a verdadeira crise do sujeito, que só se torna manifesta com a crise da própria forma da mercadoria. Esta crise manifesta-se, por um lado como crise do sujeito político, pois a função reguladora da "política" começa a esgotar-se, e daí como crise e declínio da "esfera pública" burguesa; por outro lado, ela aparece também no reverso obscuro do sujeito, a saber, nos aposentos ocultos e íntimos da "privacidade" na forma da mercadoria. Não é por acaso que a identidade da crise da "esfera pública" e "privada" assume a forma de uma crise fundamental da relação entre os sexos. Do mesmo modo que os outros pressupostos até agora tácitos e óbvios do sistema produtor de mercadorias, como a natureza biológica, o "trabalho" e a nação, também o pressuposto da "feminilidade" começa a emitir ruídos estridentes de distúrbio, por causa do desenvolvimento do sistema.

Tais pressupostos, é claro, nunca foram absolutamente tácitos, pois a contradição interna do sistema produtor de mercadorias sempre esteve presente. Mas cum grano salis pode-se falar de pressupostos tácitos, na medida em que a formação do "trabalho" e da nação, assim como a domesticação da mulher e da natureza (de resto ideologicamente equiparadas) provocadas pela forma da mercadoria, apenas hoje se tornam em larga medida insustentáveis e começam a perder o fundamento da sua "obviedade" construída ao longo dos séculos. No que toca à relação entre os sexos, evidencia-se o carácter "estruturalmente masculino" da subjectividade na forma da mercadoria. Embora Horkheimer e Adorno, na Dialéctica do Esclarecimento, toquem nesse ponto (ainda que mais uma vez em formulações crípticas), em última instância não conseguem ir além da "masculinidade" construída sob a forma da mercadoria, precisamente porque não vão além do conceito fetichista de sujeito e da "razão circulante". Não espanta que os actuais adornianos da extrema esquerda ignorem de todo os trechos críticos correspondentes de seu mestre e pouco tenham a dizer, em termos teóricos, sobre a crise manifesta da relação entre os sexos - o que também é revelado numa relação um tanto sobranceira para com o feminismo (já que preferem apreender a dura realidade com luvas calçadas). A teoria feminista, pelo contrário, quando se refere a Adorno e Horkheimer, percebe muito bem este problema.

Não surpreende que a "razão circulante" e as conexas esferas "pública" e "privada" se revelem estruturalmente masculinas, desmentindo o seu carácter abstracto, universal e aparentemente assexuado. No sentido histórico e estrutural, a universalidade abstracta só o é, na verdade, como contexto de vida masculino. O sujeito masculino da mercadoria é privado enquanto sujeito circulante do dinheiro, que segue os seus interesses monetários; é "público" como sujeito político, que se refere discursivamente aos "assuntos gerais". Mas, por trás dessa fachada do "público" e do "privado" estruturalmente masculina, abre-se um espaço inteiramente diverso, no qual todos os momentos da reprodução não apreensíveis sob a forma da mercadoria são "dissociados" (Roswitha Scholz). Este espaço aparece como potência inteiramente diversa do "privado", e situa-se para além da "esfera privada" do sujeito monetário masculino. "Esfera privada I" é a esfera interna ao contexto de vida masculino; "esfera privada II", a esfera posterior do espaço sereno e acolchoado da "feminilidade", para além da concorrência e da esfera política. Da perspectiva do contexto de vida feminino, que está circunscrito a este espaço da "esfera privada II", a "esfera privada I" dos homens e a esfera política aparecem, inversamente, como o "externo": ambos são "esfera pública", em oposição ao recanto privado sexuado pelo qual "a mulher" é responsável.

A emancipação da mulher em termos burgueses e na forma da mercadoria, da maneira como ocorreu sobretudo nas duas últimas décadas, não desmente essa relação básica, antes a torna patente, lança-a em crise e revela-se, assim, como momento central da própria crise. Mais uma vez, as mesmas forças produtivas que, em sua forma determinada pela forma da mercadoria, destruem os fundamentos naturais, suprimem o "trabalho" como substância da acumulação do capital e dissolvem a coesão das economias nacionais, destruem também a relação entre os sexos centrada na forma da mercadoria, na medida em que conduzem ao distanciamento do papel feminino, à actividade remunerada para as mulheres e à "masculinização estrutural" da "identidade" feminina. Assim, involuntariamente, arranca-se uma pedra decisiva da constituição na forma da mercadoria, lamentando-se irracionalmente tal êxito como "decadência da família", da educação etc. A função até agora em boa parte tácita e dissociada da "esfera privada II" pára de funcionar. Nesse ponto, é indiferente se as mulheres se concentram como os homens, igualmente ávidas pelo "eu" e prontas para a concorrência, ao redor da "esfera privada I", para a qual elas afluem em quantidade cada vez maior, ou se elas "apenas" vergam sob o duplo fardo, em suma sob a contradição estrutural de uma existência dupla na "esfera privada I" e "esfera privada II". O resultado é o mesmo: o espaço dissociado de repouso e refestelo "por trás" da concorrência económica e política desfaz-se em ruínas.

A política pode agir sobre esse plano da crise tão pouco ou menos que sobre os mecanismos funcionais económicos. A emancipação da mulher pela via da forma da mercadoria não resolve o conceito ideal da igualdade circulante, mas explicita a sua contradição fundamental como crise sistémica. A dissolução em parte já manifesta do contexto de vida feminino põe indirectamente em questão o contexto conjunto da "esfera pública" estruturalmente masculina, tanto na esfera económica quanto na política. Por isso, ela não é somente combatida pelos representantes do sistema de forma aberta ou hesitante, e não se choca apenas com a linha de resistência de um comportamento diário masculino cada vez mais brutalizado, mas também não conta com favor algum por parte de alguns adornianos serôdios da extrema esquerda. Um projecto teórico que se mantém colado à "razão circulante" tem também de prender-se ao seu carácter estruturalmente masculino. Eis outro ponto em que o pseudo-radicalismo tentacular não logra a crítica radical da forma da mercadoria e de seu domínio estrutural masculino, mas sim uma queixa saudosa da família burguesa ideal (como já ensinava o apóstata "esquerdista" Claus Leggewie: são também perfeitamente possíveis, dessa perspectiva, variantes de esquerda de tintura ideológica "radical"). A imagem como que melíflua e distorcida da mãe, como surge esporadicamente em Horkheimer e Adorno, aponta nessa direcção. Na hora H, corre-se o risco de que os adornianos da extrema esquerda (e talvez mesmo algumas adornianas decididamente não-feministas) se revelem não apenas como democratas medíocres, mas também como medíocres "homenzinhos" e "mulherzinhas", e a "conciliação com a natureza" poderia, ao fim, encontrar guarida - a título de biologismo sexualmente fetichista - na elegante sala-de-estar de uma Teoria Crítica insuperada, prolongada além do seu tempo.

Os netos da Teoria Crítica, tal como o resto da esquerda, não conseguem transcender seu "estar à esquerda" imanente ao sistema e teimam cada vez mais, perante a (negada) crise do sistema e sua evolução, em proclamar o perigo da dissolução da democracia por meio de um novo fascismo ou de uma nova forma de "dominação total". Nem deixam de propor, como de costume, a versão adorniana do "mal menor": defesa da "razão circulante" e da democracia contra o suposto totalitarismo iminente, em vez de defrontar a democracia e a forma da mercadoria enquanto tais. O "politicismo negativo" poderá facilmente inverter-se em positivo e alinhar na "frente unitária de todos os democratas". Também neste sentido a tragédia do original regressa como a farsa da cópia. Dessa maneira, comprova-se definitivamente a ausência de história desse pensamento ultrapassado de "esquerda", que se esgota em princípios dualistas eternamente recorrentes, incapaz de estabelecer uma relação adequada entre estrutura e história.

A "dominação total" foi um estágio preparatório da democracia e não o seu contrário, nem uma constelação histórica destinada a regressar. Não será a "política" a efectuar de novo um pretenso controle sobre a "economia" ou uma pretensa suspensão totalitária da circulação, mas, precisamente ao contrário, estamos perante o fim catastrófico da "política". A perda progressiva da capacidade de regulação política indica a extinção da capacidade de reprodução económica, social e "dos géneros" do sistema produtor de mercadorias. No seu fim histórico não está a renovação da "dominação total", como retorno de uma forma passada da ascensão, mas antes a decomposição, após a barbárie secundária, da civilização baseada na dominação. A guerra caótica entre bandos e a efémera "economia de pilhagem" nas regiões perdedoras do globo são premonitórias duma forma qualitativamente diversa de barbárie, distinta da que era inerente à dominação civilizatória. As roupagens desta última não lhe servem de parâmetro. Ainda que do legítimo ponto de vista do sentimento moral imediato as atrocidades não difiram entre si, trata-se contudo de algo diverso, no contexto da economificação e estatização e no da inconsciente eliminação da economia e do Estado. Teoricamente, nada mais pode ser dito a respeito desta última, pois não há para ela um quadro social de referência.

Justamente por isso, todavia, não é o antifascismo que está a ordem do dia, produto ou não da reflexão adorniana, mas sim a crítica radical da democracia da economia de mercado. Não há uma "razão circulante" para defender, pois ela própria se converte em barbárie, e isso num sentido teórico mais profundo e coerente do que o apontado na Dialéctica do Esclarecimento. É por isso que a violência dos bandos não se contrapõe à democracia, mas se mescla com as acções do aparelho democrático, enquanto o palco aberto da "política" se converte no teatro pós-moderno da simulação. Berlusconi, tal como Reagan, Collor de Mello ou Tapie, não são arautos e muito menos portadores de uma nova ofensiva totalitária, mas sim um fenómeno "pós-político", como constataram com razão Paul Virilio e outros. O totalitarismo substancial da modernidade é o da forma da mercadoria e, portanto, o da própria democracia. Logo, o fim da civilização na forma da mercadoria e daí o fim da "política" são efectivamente a "superação falsa e negativa" do sistema, ainda que de modo algum estatista. Assim é que, no fim, Adorno tem parcialmente razão, se bem que num sentido totalmente diverso do que pretendem seus netos teóricos.

Original alemão Das Ende der Politik em www.exit-online.org. Publicado na Revsita Krisis nº 14, 1994. Versão italiana La fine della politica, in La fine della politica a l’apoteosi del denaro, Manifesto Libri, Roma, 1997. Versão portuguesa em http://planeta.clix.pt/obeco 15.09.2002.

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