O
HOMEM FLEXÍVEL
O
novo carácter social da sociedade de crise global
Há
muito não é mais segredo que o mundo altamente industrializado ou mesmo
"pós-industrial" do Ocidente assume cada vez mais traços do chamado
Terceiro Mundo. Não foram os países da periferia capitalista que se acercaram
do nível social das democracias ocidentais do bem-estar social, mas justamente
ao contrário, a depravação social dissemina-se como um vírus nos antigos
centros capitalistas. Porém não se trata somente do progressivo
desmantelamento dos sistemas de segurança social, nem se trata somente do
aumento do desemprego estrutural de massas. Além disso, entre o emprego formal
e o desemprego também cresce um setor difuso, que já é velho conhecido dos países
do Terceiro Mundo e que, nas sociedades marcadas pelo "apartheid"
social de uma minoria que toma parte no mercado globalizado, ganhou o rótulo de
"economia informal" dos excluídos, os quais vegetam abaixo do nível
de miséria. Os vendedores ambulantes à beira da estrada, os garotos que limpam
pára-brisas nos cruzamentos, a prostituição infantil ou o sistema semilegal
de reaproveitamento de sucata e lixo compõem essa categoria.
Em
menores proporções, esses fenômenos também passaram a integrar o dia-a-dia
do mundo ocidental, sendo mais evidentes nos países anglo-saxões, com o seu
radical liberalismo econômico “clássico”. Mas ainda se desenvolvem novas
formas híbridas entre o emprego formal e as relações de trabalho precárias.
Como há 20 anos o nível do salário real diminui de forma contínua (com
particular virulência nos Estados Unidos), a renda do salário oficial não
basta mais para financiar um padrão de vida "normal" com moradia,
carro e seguro de saúde. É preciso, assim, buscar relações de emprego
suplementares. Dois ou três empregos por pessoa são quase a regra. O operário
de uma fábrica, após o expediente, dá um pulo em casa para um rápido jantar
e em seguida entra de serviço como vigilante noturno em outra empresa; de sono
restam só poucas horas. No fim-de-semana ele trabalha ainda de garçom num
restaurante sem salário fixo, contando apenas com as gorjetas. Com esforço
sempre maior e à custa da ruína de sua saúde, mantém-se a fachada da
normalidade.
Outro
fato que multiplica essa nova espécie de biografia do rendimento incerto é
serem as pessoas obrigadas, em número cada vez maior, a trabalhar abaixo de sua
qualificação. Para as atividades que efetivamente exercem, elas são
"superqualificadas", sua proficiência não é mais absorvida pelo
mercado. Desde o início dos anos 80, com o advento da revolução microeletrônica
e com a crescente crise das finanças estatais, uma formação acadêmica não
é mais garantia de um posto de trabalho correspondente. Muitos cargos
qualificados no âmbito estatal foram extintos, por falta de financiamento. No
mercado livre, por outro lado, as qualificações caducam com uma rapidez
vertiginosa e, como "fogo de palha" que são, logo perdem seu valor. O
ciclo acelerado das conjunturas, das inovações, dos produtos e da moda abarca
não somente a esfera técnica, mas também a cultura, as ciências humanas e a
prestação de serviços.
Nesse
processo social, uma parte crescente da intelectualidade acadêmica foi
degradada. O "eterno estudante", o estudante de matrícula trancada
que tira seu sustento fazendo bicos em atividades menores, a estudante de
literatura inglesa aos 30 anos desempregada, com seu inútil diploma de doutora,
esses casos não são mais raridade. Em todo o mundo ocidental, o taxista
graduado em filosofia tornou-se o emblema de uma carreira social negativa.
Formou-se um novo círculo, bem mais abrangente do que a antiga boêmia.
Historiadores diplomados trabalham em fábricas de pão de mel, professoras
desempregadas tentam a vida como babysitter, juristas supérfluos vendem produtos culturais indianos.
Muitas pessoas com passado intelectual arrastam-se vida afora, com seus 30, 40
anos de idade, em projetos intelectuais difusos, semi-estudantis, e flutuam em
suas atividades entre o emprego de entregador de mercadorias, o jornalismo de
ocasião e experiências artísticas improdutivas. A questão profissional gera
um progressivo embaraço. Já em 1985, dois jovens autores alemães, Georg
Heizen e Uwe Koch, publicaram um romance de culto, cujo herói assim descreve
esse novo sentimento de precariedade: "Não sou pai, nem marido, nem membro
do Automóvel Clube. Não sou pessoa de mando nem autoridade, não disponho de
conta bancária. Sou versado em assuntos intelectuais, dos quais hoje se faz
cada vez menos uso. Estou excluído do circuito das ofertas…".
Se
talvez dez ou 15 anos atrás essa forma de existência equívoca ainda soava
algo exótica, hoje ela se transformou em fenômeno de massas. O sociólogo alemão
Ulrich Beck apurou que "o sistema padronizado de emprego começa a
esmorecer". As fronteiras entre emprego e desemprego tornam-se lábeis. As
palavras de ordem do novo sistema de emprego, um sistema disperso e confuso, são
"flexibilização" e "subemprego múltiplo". Há muito não
se encontra mais apenas uma inteligência acadêmica, excluída e supérflua,
nesses meios de emprego flexibilizado. Antigos carpinteiros, cozinheiras,
desenhistas técnicos, cabeleireiros, costureiras ou enfermeiros também se
transformaram em subempregados de função múltipla e sem emprego fixo.
Todos
fazem algo diverso daquilo que estudaram. Qualificações, profissões,
carreiras, currículos e status social precisos e inequívocos fazem parte do
passado. Isso é mais do que a simples oscilação constante entre emprego
remunerado e desemprego, como hoje é natural para vários milhões de pessoas
nos Estados industrializados do Ocidente. Trata-se também da permanente alternância
entre qualificações, atividades e funções já conhecidas, uma espécie de
vaivém entre os ramos sociais do trabalho, que se modificam com rapidez cada
dia maior sob a pressão dos mercados.
Ainda
havia esperanças, nos anos 80, de que a nova tendência de flexibilização das
relações de trabalho talvez pudesse ser dobrada para fins emancipatórios,
permitindo que não se seguissem mais padrões esclerosados, que se
descobrissem, apesar das pressões sociais, novas possibilidades e novos modos
de vida. O indivíduo flexível deveria ser o protótipo daquele que não se
submete mais incondicionalmente às injunções do trabalho e do mercado,
daquele que, por conquistar um tempo livre para a ação independente e autônoma,
é capaz de definir livremente seus objetivos. Falava-se de "pioneiros do
tempo", que ganhariam a "soberania do tempo" para usá-lo em
benefício próprio, criando formas de vida alternativas à polarização mecânica
entre o "trabalho" imposto por outrem e o "lazer" orientado
para o consumo.
Tais
idéias lembram um pouco os escritos de juventude de Karl Marx, que, numa
passagem famosa, previu para o futuro comunista o fim da opressiva divisão do
trabalho: "A divisão do trabalho nos oferece o exemplo de que, enquanto
existir a cisão entre o interesse particular e o comum, a própria ação do
homem torna-se para ele um poder alheio e adverso, que o subjuga. É que, tão
logo o trabalho começa a ser dividido, cada um tem um determinado círculo
exclusivo de atividades, do qual não pode sair, ao passo que, no comunismo, a
sociedade regula a produção geral e justamente por isso permite-me fazer hoje
isso, amanhã aquilo, de manhã caçar, à tarde pescar, à noite pastorear o
gado, depois do jantar fazer crítica, com bem me aprouver, sem jamais ter de
tornar-me caçador, pescador, pastor ou crítico…".
A
velha imagem romântica do jovem Marx, completando exatos 150 anos de existência,
infelizmente não tem mais nada a ver com a nossa nova realidade flexibilizada.
Afinal não vivemos mais numa sociedade com veleidades comunistas, que, para além
do capitalismo burocrático de Estado, hoje em franco declínio, partiria em
busca de novos horizontes de emancipação social. Otimistas da flexibilização
como Ulrich Beck ou o filósofo social francês André Gorz tomaram o bonde
errado, pois quiseram desenvolver os potenciais de uma nova "soberania do
tempo" individual em coexistência pacífica com o modo de produção
capitalista. Depois de toda a crítica radical da ordem reinante ter sido
abandonada, não existia mais nenhuma possibilidade de utilizar a tendência
social imanente para fins emancipatórios. Em razão disso, a luta para dar à
flexibilização contornos sociais já estava decidida antes mesmo de começar.
As
idéias esperançosas de uma suposta determinação autônoma do fluxo temporal
em nichos sociais referiam-se, em todo caso, apenas a certas formas de trabalho
de jornada parcial, que além do mais, segundo a teoria de Gorz, deveriam ser
patrocinadas socialmente pelo Estado, para afiançar uma segura "receita básica"
na forma do dinheiro e possibilitar com isso as atividades paralelas, estas sim
de livre escolha. Essa teoria, bem intencionada mas banguela, sempre fez pouco
da realidade das pessoas que, sob a pressão do crescente dumping
social, são forçadas a trabalhar em dois ou três empregos quase 24 horas por
dia. Como hoje, a exemplo de antes, ainda existe aquela "cisão entre o
interesse particular e o comum" – leia-se: concorrência cega nos
mercados anônimos, que teóricos como Beck e Gorz não põem mais em questão
–, o potencial da produtividade incrementada também não pode mais ser
utilizado em proveito da "soberania do tempo" dos indivíduos. Em vez
disso, o capitalismo neoliberal desembestado impôs ditatorialmente a
flexibilização, viabilizando de forma exclusiva sua filosofia econômica da
redução de custos a todo preço.
Suprimem-se
as jornadas de trabalho padronizadas, mas não no interesse dos trabalhadores.
Amplia-se o "trabalho por chamada", conforme o volume das encomendas e
em turnos variáveis. Exige-se também maior mobilidade espacial da força de
trabalho, em prejuízo de seus próprios interesses vitais. Há tempos, centenas
de milhões de pessoas são forçadas a migrar para outros países e continentes
em busca de trabalho. Latinos saem à cata de emprego nos Estados Unidos, asiáticos,
nos emirados do Golfo, europeus do sul e do leste, na Europa central. Na China e
no Brasil há enormes migrações internas. Sob o ditado da globalização,
reforçou-se essa tendência à mobilidade espacial da força de trabalho,
atingindo até mesmo os centros ocidentais. Na Alemanha, por exemplo, as
delegacias de trabalho podem exigir de um desempregado que aceite um emprego a
100 km de sua residência e "visite" sua família só nos
fins-de-semana. No interesse de sua carreira, empregados laboriosos vêem-se
cada vez com mais frequência na obrigação de trocar de cidade, de país ou de
continente em que prestam seus serviços. As pessoas transformam-se em nómadas
do mercado, incapazes de criar raiz social.
Da
flexibilização também faz parte a constante alternância entre empregos
subordinados e "autônomos". As fronteiras entre o trabalho
assalariado e a livre iniciativa perdem a nitidez, mas isso também em
detrimento dos trabalhadores. Na esteira do outsourcing surgem cada vez mais pseudo-autônomos sem organização
empresarial própria, sem capital próprio, sem colaboradores e sem a célebre
"liberdade empresarial", já que dependem de um único cliente a
maioria das vezes sua antiga empresa, que desse modo poupa a contribuição
previdenciária e, em lugar do piso salarial, paga somente os "honorários"
daquilo que foi estritamente produzido, o que é sempre muito menos do que o
antigo salário.
Flexibilização,
em obediência ao mandamento de transferir o risco aos empregados autônomos e
delegar a responsabilidade aos mais fracos, significa: mais produção e mais
estresse por menos dinheiro. O liame empresarial se esgarça e os chamados
colegas de emprego cindem-se em dois, de um lado os de carteira assinada, espécie
em extinção cujos direitos trabalhistas são paulatinamente reduzidos ou
cortados de todo, e de outro os colaboradores que convivem na precariedade,
chamados por exemplo de "free-lancers" ou
"portfolio-workers". Entre os primeiros, por sua vez, cindem-se as
repartições em "profit-centers" concorrentes. A cultura da empresa
integrada faz parte do passado. Tomando como exemplo o multicartel da IBM, o
historiador social americano Richard Sennet, em seu livro "O Homem Flexível"
(1998), mostrou essa lógica da infidelidade: "Durante os anos de
reestruturação, ao enxugar os gastos, a IBM não dava mais confiança a seus
empregados. Foi-lhes comunicado, aos que restaram, que eles não eram mais os
filhos da grande empresa".
Os
indivíduos flexibilizados pelo capitalismo não são pessoas conscientes e
universais, mas pessoas universalmente exploradas e solitárias. A nova
responsabilidade pelo risco não é algo instigante, mas sim aterrador, pois o
que se arrisca é a própria vida. A desconfiança generalizada corre mundo. Do
clima de máfia e paranóia nasce uma cultura empresarial taciturna. Pessoas sem
assistência e espoliadas ficam doentes e perdem a motivação. E tornam-se cada
vez mais superficiais, dispersas e incompetentes. Isso porque a verdadeira
qualificação exige tempo, tempo de que o mercado não dispõe mais. Quanto
mais rapidamente mudam as exigências, mais irreal torna-se a qualificação,
mais o aprendizado transforma-se num puro consumo de conhecimentos, num mero
aterro de dados. A qualidade fica para as calendas. Afinal, quando sei que tudo
o que aprendo à custa de esforço perderá valor no momento seguinte, o fôlego
de minha atenção será obviamente mais curto, e isso na exata proporção de
meu desalento.
Mas
empregados manhosos e sem coesão social, que só sabem lograr seus superiores,
os clientes e seus demais colegas, tornam-se também contraproducentes para a
empresa. Com a total flexibilização o capitalismo não soluciona sua crise,
antes a conduz ao absurdo e demonstra que só é capaz de suscitar forças
autodestrutivas.
Original