O Miserável Sujeito Imperial
Por que o belicismo da Jungle World é indiscutível
Existem putativos debates em que apenas podemos participar no condicional. Certamente seriam mais que suficientes os argumentos que poderiam ser invocados contra a propaganda pró-imperial de guerra que desde o 11 de Setembro vai empestando, sob um ténue manto democrático, as colunas da Jungle World e que nem sequer chega a ser arrogante, revelando-se no máximo pachorrenta, o que apenas a torna mais abjecta. Assim poderia ser demonstrada a gritante falta de lógica de um raciocínio capaz de se convencer de que do carácter sem qualquer dúvida pouco apetitoso do regime de Saddam ou do monstro chamado Al-Quaeda resulta forçosamente um carácter bastante apetitoso do aparelho de poderio mundial dos EUA. Para mais, qualquer aula prática do primeiro ano de História encontraria os meios de refutar a afirmação segundo a qual um ditador do terceiro mundo em finais de carreira constituiria um "perigo para o mundo" comparável ao que Hitler representava na sua época e que, por isso, seria uma bênção antifascista se o Harris dos bombardeiros agora se dedicasse um pouco a tratar da saúde a Bagdade.
Mas qual seria, de todo, a utilidade de se desperdiçar energias com a crítica de um belicismo tagarela digno de um exercício escolar de redacção que tão evidentemente não se preocupa minimamente com a coerência da sua própria argumentação? Como ainda se pode reagir, sem se expor ao ridículo, ao ridículo de um "radicalismo de esquerda" que, por entre as dúzias de estados torturadores em vias de desagregação (a maioria dos quais são estreitos aliados do Ocidente), apenas acaba de identificar como inimigos da emancipação precisamente aqueles que também acabam de entrar na linha de mira da polícia mundial capitalista? O que ainda se pode responder a um discurso que está seriamente convencido de que após o fracasso global de toda e qualquer modernização a posteriori o que está na ordem do dia histórica, no ano de 2002, para os países árabes é uma "revolução burguesa" como deve ser, com a desinteressada ajuda dos caças-bombardeiros dos EUA, tendo assim descido abaixo do nível, digamos, da Filosofia histórica mecanicista do marxismo-leninismo?
É pouco recomendável importunar com argumentos sérios gente que deixou de se levar a sério a si própria ao invocar, enquanto bitola de uma crítica radical, a constituição dos EUA. A vontade de, ao fim de mais de cem anos de crítica ideológica, jurar fidelidade ao lixo fraseológico mais podre que maduro dos "valores ocidentais" pode unicamente ser explicado como sinal de um desejo consciente de ignorância. É que é impossível que os participantes na discussão da Jungle World já tenham sido anteriormente tão dupla e triplamente estúpidos como se fazem neste momento ao discutirem, cheios de preocupação, se um tiro ao alvo electrónico ao Iraque seria capaz de criar "mais democracia" por aquelas bandas. Ou será que tivemos este tempo todo a duvidosa honra de tratar com uma agência disfarçada do centro federal para a formação política que agora está a deixar cair o disfarce?
Este "debate" não pode ser reconhecido como tal porque é evidente que a maior parte da redacção da Jungle World há muito que em termos ideológicos assentou arraiais no acampamento militar da NATO. A necessária crítica consequente da ideologia alemã, do antisemitismo de esquerda (antisionismo) e do anti-imperialismo nacionalista é desvalorizada por completo se se apresentar como uma tomada de partido em favor de uma "civilização capitalista" que não o é. Quem se deixa arrebatar pelo capitalismo do vale-tudo e pelas suas maquinarias assassinas de alta tecnologia coloca-se fora de qualquer debate emancipatório. Nem vale a pena querer criar uma derradeira aparência de uma consciência crítica ao esconder-se por detrás da construção risível, anacrónica e totalmente contrária à verdade dos factos de que o pano de fundo das guerras de ordenamento mundial seria uma alegada concorrência imperial, à escala mundial, entre os EUA e a UE, "conduzida pela Alemanha", ao passo que, na realidade, há muito tempo que ao capital transnacional corresponde um "imperialismo global ideal" sob a égide única e irreversível dos EUA.
Não passa igualmente de um jogo de aparências a crítica do ressentimento anti-americano, degenerada em tópico afirmativo, que já se desvaloriza a si própria pelo facto de, em pleno capitalismo global de crise, querer atestar aos EUA, de beicinho democrático afiado, um "avanço civilizacional" face ao resto do mundo, o que é precisamente a razão pela qual não pode dar-se ao luxo de deixar falar a esquerda radical dos Estados Unidos que tem uma perspectiva bem diferente da situação; por exemplo, quando esta chama a atenção para o "complexo penal e industrial" que, entretanto, produziu uma taxa de internamento superior ao da União Soviética nos piores tempos do estalinismo. E o que chega a ser vergonhoso é a ruptura completa de toda e qualquer solidariedade para com a esquerda radical israelita que é sistematicamente achincalhada por alegadamente levar água aos moinhos dos antisemitas alemães. Que grande "contextualização" esta que, devido a necessidades de identificação próprias, nega qualquer legitimidade à crítica social noutra parte do globo! Mais alemão já não pode ser, quando a situação global é subsumida sob as questiúnculas domésticas e o mundo é suposto ser curado por obra e graça do espírito anti-alemão.
Acontece que o que se copiou dos procedimentos democráticos foi a tolerância repressiva, que constitui apenas o preciso oposto de um debate produtivo no seio de um espectro de esquerda onde uma atitude consequente não seja confundida com um dogmatismo fanático. A crítica do próprio belicismo que, salvo poucas excepções, de qualquer modo não deixa de ser mansinha e domesticada pela ideologia da burguesia e do esclarecimento, apenas é admitida sob pena de a mandar invariavelmente encerrar por alguma autoridade anti-alemã especialmente imbecil. O que se impõe é o pensamento de se uma coluna natalícia no jornal da caixa económica não seria ainda uma ocupação mais honrada e crítica que a participação num semelhante pseudo-debate que de aberto nada tem. Sob este prisma, também o cisma publicístico entre a Junge Welt ["Mundo Jovem"] e a Jungle World se apresenta a uma outra luz: a uma nostalgia dos velhos dias da luta de classes e ao "polinacionalismo" anti-imperialista de um dos lados corresponde a identificação ordinária com o imperialismo democrático ocidental do outro. Qual delas consegue ser a pior?
A quem permite que uma seita de assassinos intelectuais como a da Bahamas lhe dite a lei do debate, apenas resta pedinchar por receber desses candidatos a serventes de carrasco de uma charia capitalista uma quantidade de vergastadas reduzida em cerca de trinta por cento e agradecer por tanta benesse em vez de, de uma vez por todas, lhes acabar com o ofício. Mas isso ainda não explica tudo. A aridez intelectual deste discurso postiço obriga-nos a colocar a questão pelo pano de fundo social. O belicismo da Jungle World não corresponde unicamente ao sequestro moral por parte dos mulás ocidentais como igualmente ao estado de espírito, imbuído pelo espírito do tempo, de um meio geracional que dificilmente pode ser apreendido por uma crítica ideológica numa época que desgastou qualquer ideologia sem dó nem piedade, a tal ponto que esta se tornou transparente enquanto tal de forma imediata, pelo que já apenas pode actuar a um nível secundário: é como se adultos, há muito despojados de ilusões, de repente tomassem a sombria decisão de voltarem a acreditar no Pai Natal por esperarem desse acto uma última réstia de oportunidade de auto-comercialização.
Infelizmente a realidade é muitas vezes ainda mais ordinária que a ideologia. Quanto mais duramente se faz sentir a objectividade implacável da crise capitalista, mais absurda se torna a percepção da realidade do sujeito agrilhoado à forma do valor. E é, pelo menos, nesta perspectiva que a Jungle World constitui, lhe é permitido constituir, uma vanguarda. Com o belicismo combina optimamente uma conversa afirmativa, pontuada de piadinhas modernas de estilo pop ("Crise? Qual crise?") de quem se convence de poder esperar sentado pelo fim de uma mera recessão supostamente passageira. "Quem tem a mais bela quebra na sua biografia?" Não é apenas o jornal dominical da Frankfurter Allgemeine Zeitung [jornal diário conservador; N. d. Tr.] quem o pergunta. Em vez de uma crítica radical da forma, um pouco de Norbert Bolz e um brinde jocoso ao fracasso; em vez de indignação social, o olhar de esguelha para os potenciais no mercado mediático de uma existência como fracassados autocomplacentes. Por uma palavra: ainda o afundamento social enquanto auto-encenação; mas ao menos continua a ser no espaço interior do primeiro mundo, atrás da muralha de fronteira contra os "bárbaros". E, diga-se o que se disser, o "lender of last resort" de todas as ilusões do sujeito do valor ocidental é, hoje em dia, a máquina militar dos EUA.
Face ao belicismo da Jungle World, qualquer análise económica, politico-militar, histórica e de crítica ideológica faz aproximadamente o mesmo sentido como a tentativa de comprovar de forma empírica a um antisemita que afinal os judeus não dominam os media, ou explicar a um soldado da seita da Bahamas por que motivo uma criança palestiniana fanatizada de 12 anos que atira pedras afinal não é exactamente o mesmo como um homem dos SS na rampa de Auschwitz. Onde há uma esquerda assim, já não faz falta a direita. Mais de um ano após o 11 de Setembro vai-se tornando evidente, já nos preparativos do próximo massacre em prol do ordenamento mundial que com os belicistas já nada há a discutir. Desta vez, quando caírem as primeiras bombas, o campo de outrora do discurso da esquerda crítica, relacionado com Marx ou Adorno, também deverá ir pelos ares de forma definitiva.
Original
O Fim da Tolerância Repressiva
O adeus à "Jungle World"
A ideia que esteve na origem da polémica que se segue ("O Miserável Sujeito Imperial") foi a de servir de antídoto à linha geral oportunista da "Jungle World". Nessa publicação pontifica desde o 11 de Setembro um ferrenho discurso "pró-ocidental" que se esforça por vender o capitalismo democrático do vale-tudo como alternativa civilizatória ao barbarismo da periferia em vias de desmoronamento, evitando reflectir a concatenação intrínseca dos dois lados da socialização burguesa do mundo. Nesse sentido era encenado, de há alguns meses a esta parte, um pérfido "debate sobre a guerra" que tem denunciado de forma sistemática qualquer crítica consistente dos massacres perpetrados em prol do ordenamento mundial sob a égide da última potência mundial, dos EUA, ao passo que as posições contrárias apenas têm sido admitidas sob estreitas limitações, cumprindo essencialmente a função de alibi. Assim, por exemplo, Christian Stock (IZ3W) teve oportunidade de ensaiar uma reflexão desdentada sobre a questão se uma intervenção dos EUA seria capaz de "democratizar" o Iraque, do que acabaria por manifestar umas ténues dúvidas. Uma esquerda que tem "opositores à guerra" como este já não precisa de apologistas da mesma. O meu texto, pelo contrário, foi redondamente recusado pela redacção. Afinal a tolerância repressiva dos colaboracionistas de "esquerda" do imperialismo global democrático sempre não vai assim tão longe. Para mim, como é evidente, acabou definitivamente qualquer colaboração ulterior com a "Jungle World". Convém que quem optar por continuar a fazer caso da existência desse periódico o faça na plena consciência de doravante se encontrar a lidar com um mero órgão unilateral dos belicistas da pseudo-esquerda.
Robert Kurz, 8.12.02
Aviso : acaba de sair de Robert Kurz: "WELTORDNUNGSKRIEG. Das Ende der Souveränität und die Wandlungen des Imperialismus im Zeitalter der Globalisierung" [A GUERRA PELA ORDEM MUNDIAL: o fim da soberania e as mutações do imperialismo na era da globalização], Horlemann Verlag, Bad Honnef, ISBN 3-89502-149-0.
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