A
VOZ DO SANGUE
O
Ocidente bombardeia na Sérvia os monstros da sua própria lógica
Quando
falam as armas, se cala a razão. Com a mesma exaltação histérica que já
acompanhara as bombas lançadas no Iraque, a opinião pública ocidental festeja
o tiro ao alvo eletrônico na Sérvia, comandado “com um clique de mouse”,
como ultima ratio da luta pelos
direitos humanos, pela paz e pela liberdade. De um lado, como ouvimos repetidas
vezes, está a "comunidade das nações democráticas"; de outro, um
dos “Estados patifes” terroristas com um ditador enraivecido à frente, a
quem só mesmo uma saraivada de mísseis e bombas poderia impedir o massacre de
civis inocentes. Se as armas democráticas, por seu turno, atingirem civis
inocentes por engano, isso infelizmente fará parte dos riscos e custos inevitáveis
de uma intervenção militar que, embora não tenha sido legitimada desta vez
pela ONU, não seria uma guerra propriamente dita, mas somente uma espécie de
operação de emergência. Essa lógica, por mais arrevesada que seja, não
deixa de especular com o fato de que não pode haver nem simpatia nem
solidariedade com carniceiros do tipo de Saddam Hussein ou Slobodan Milosevic. A
antiga esquerda e os pacifistas nos governos europeus, que agora saltitam de lá
para cá ao lado dos Estados Unidos, na condição de “democratas em uniforme
de campanha” verde-azeitona, cacarejam que “não há alternativa”. Resta
apenas uma perguntinha: de onde vêm, afinal, todos esses “Estados patifes”
e ditadores desmiolados, que de súbito parecem povoar o mundo em número cada
vez maior e se atravessam tão brutalmente no consenso democrático desde 1989?
Salta
aos olhos que o mundo democrático da economia de mercado do Ocidente não é
capaz de explicar racionalmente esse fenômeno nem reconhecer a sua quota-parte
nele. Em vez disso, os Saddam Hussein e os Milosevic são mitologizados
negativamente como encarnações de um mal exterior e estranho, que paira acima
da história. Nisso o Ocidente adota tintim por tintim o padrão intelectual
maniqueísta dos fanáticos fundamentalistas, cujos efeitos devastadores ele diz
combater. Essa notável identidade lógica da legitimação de ambos os lados
aponta para um recalque de nexos históricos e econômicos essenciais, porque
desvendá-los seria embaraçoso para a consciência ocidental.
Desde
o princípio, a opinião pública ocidental esfumou completamenteo o fundo econômico
da crise iugoslava. Segundo a voz corrente, era como se, depois da morte de
Tito, o patriarca do Estado que servia de figura integradora, houvessem
prorrompido “instintos balcânicos” atávicos das profundezas da história.
Na verdade, a guerra civil iugoslava teve motivos fundamentalmente sociais e
econômicos. A exemplo de inúmeras outras sociedades de “modernização
tardia” no século 20, o modelo iugoslavo estava falido ao término dos anos
80, uma vez que o acirramento da concorrência no mercado mundial cortou-lhe a
respiração.
Crise
e colapso seguiram o mesmo padrão de muitas economias nacionais em estertor na
periferia do capitalismo. O estoque de capital foi incapaz de armar-se para as
exigências da terceira revolução industrial por falta de capital monetário;
juntamente com o aumento das importações, caíram os preços dos produtos
exportados, o que fez explodir o endividamento externo. O colapso da Iugoslávia
foi encoberto historicamente pelo colapso da União Soviética. Sem se preocupar
muito com diferenciações, o Ocidente interpretou a crise mundial dos anos 80,
de modo perfeitamente unilateral, como o fracasso do contramodelo marxista do
socialismo de Estado, cujo término faria luzir com tanto mais brilho a glória
do capitalismo. Essa interpretação, que no essencial tornou-se “common
sense”, contribuiu para reforçar o consenso neoliberal no mundo, embora
seja marcada por uma ignorância boçal. O Ocidente não queria pensar no fato
de que o fim do suposto “contramodelo” era também o início do fim de um
sistema de referência política e econômica comum.
Há
dez anos já se podia vislumbrar facilmente que o colapso desse modelo não era
um resultado específico de uma ideologia marxista "falsa", mas parte
integrante de uma crise muito mais geral do sistema global produtivo, creditício
e monetário, que primeiro se abateu com toda virulência na periferia do
mercado mundial. Não foi absolutamente apenas em regimes de inspiração
marxista que os fundamentos econômicos começaram a ruir. Também Estados que
contavam com a proteção do Ocidente, no continente africano, na América
Latina e em partes da Ásia, experimentaram uma derrocada econômica semelhante.
Se o caráter universal da crise ainda pôde ser abafado por algum tempo pelo
aparente sucesso dos tigres asiáticos e outros alunos exemplares do capitalismo
nos "mercados emergentes", o colapso inglório desse próprio modelo tão
aclamado tornou definitivamente claro, desde 1997, que a percepção ocidental
dos acontecimentos históricos da crise sofria de uma distorção ideológica
desde 1989, em razão de sua superficialidade. Constatou-se, nesse meio tempo,
que as chamadas reformas da economia de mercado em boa parte da Europa Oriental
já conviviam com o fracasso. Só uma continuada ignorância obstinada ainda é
capaz de se recusar a ver que o capitalismo e as relações globais de mercado não
representam a solução, mas uma parte do problema.
E
justamente o caso iugoslavo foi o primeiro a tornar patente essa correlação.
Isso porque a Iugoslávia afastou-se do bloco soviético logo depois da Segunda
Guerra Mundial, recebendo em recompensa clamorosos aplausos do Ocidente. O
elogio cresceu de tom quando, nos anos 70 e 80, a economia iugoslava submeteu-se
a uma austera reforma econômica e o país foi até mesmo aceite na OCDE. Nesse
sentido, o desastre econômico e social da Iugoslávia no final dos anos 80
representou, ironicamente, o caso exemplar do malogro das transformações em
economia de mercado de antigos países de capitalismo de Estado.
Porém
a dimensão econômica desse caso mal foi percebida, já que o colapso da
economia nacional iugoslava assumiu a forma de conflitos étnicos com mais
rapidez do que em outros lugares: primeiro, cindiram-se da liga de Estados
iugoslavos, com auxílio ocidental (sobretudo alemão), as regiões
setentrionais da Eslovênia e da Croácia, tradicionalmente mais desenvolvidas;
depois rebentou na Bósnia a guerra civil entre sérvios, "muçulmanos"
e croatas, enquanto no Kosovo grupos étnicos albaneses e sérvios
defrontavam-se com ódio cada vez mais aberto. A Sérvia, república com maior
contingente populacional da ex-Iugoslávia, foi privada de importantes recursos
industriais com as diversas secessões e teve de pagar os custos da crise econômica
quase sozinha. Isso gerou um enorme rancor, que pôde ser insuflado sem esforço
pelo nacionalismo sérvio de Milosevic.
O
fracasso das reformas econômicas e o apoio ocidental aos movimentos
separatistas foram originalmente responsáveis pela eclosão dos excessos
nacionalistas. Os Bálcãs, dessa perspectiva, há muito não são mais um caso
isolado: em todos os cantos do mundo, as consequências catastróficas da ruína
econômica são culpadas pelo fato de pessoas de convivência relativamente pacífica
definirem-se como "etnias" ou comunidades religiosas antagônicas,
entregando-se com voracidade à carnificina. Também na Indonésia, ainda há
pouco a mimada criança prodígio da globalização capitalista, pessoas lançadas
à pobreza desfilam com as cabeças de seus vizinhos dependuradas numa vara;
para não falar do Ruanda e de outras regiões em guerra civil. A história
verdadeira de todas essas atrocidades ainda não foi escrita, pois sempre se
trata de uma "continuação da concorrência por outros meios", sob as
condições de colapso econômico.
O
retorno de desavenças aparentemente arcaicas, sejam étnicas ou religiosas,
segue com exatidão a lógica do mercado. Os "caídos fora" nos
repentinos surtos de crise buscam refúgio social e emocional numa comunidade
irracional que, ao mesmo tempo, volta-se com fúria contra o
"exterior". Como não há nenhuma alternativa econômica e social, tem
início um processo de asselvejamento da consciência de massas capitalista.
Identidades de luta étnicas e religiosas muitas vezes não são mais do que o
pretexto para a formação de bandos armados irregulares, que funcionam como uma
espécie de "empresa comercial" na economia de pilhagem reinante.
Esse, aliás, não é um motivo menor para que, também no Kosovo, as milícias
sérvia e albanesa pilhem até as roupas de baixo de seus antigos vizinhos.
Mesmo
a ideologia étnico-nacionalista, porém, não é tão arcaica quanto parece,
mas foi igualmente importada do glorioso Ocidente. O conceito burguês de nação,
a exemplo do capitalismo, foi difundido para todo o mundo a partir da Europa e
impingido a outras relações sociais. Em várias regiões do mundo, a construção
sintética de nações plantou bombas-relógio que sempre explodem em situações
de crise. Isso se aplica sobretudo para a variante de formação do Estado-nação
de origem alemã. Enquanto os países anglo-saxões e a França haviam definido
a nação capitalista nascente em termos puramente políticos (quem nasceu na
França ou foi assimilado à comunidade política francesa, é francês), na
Alemanha historicamente atrasada desenvolveu-se uma ideologia concorrente, na
qual a nação aparece como entidade cultural exclusivamente étnica.
Esta
idéia "étnica" elaborada pelos filósofos Johann Gottfried Herder
(1744-1803) e Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), reduziu contextos culturais ao
conceito abstrato e irracional da nação moderna, que nessa forma, à semelhança
do conceito de nação liberal
ocidental, serviu a ideologização da concorrência capitalista incipiente e,
no curso do século 19, foi enriquecido com elementos de racismo biológico.
Nisso ela se cruza com a ideologia ocidental e anglo-saxã, já que o próprio
patriarca do liberalismo, Thomas Hobbes (1588-1679), explica a concorrência de
todos contra todos como a essência "natural" do ser humano. O
darwinismo social liberal generalizado do século 19 continuou essa biologização
das relações sociais e fundiu-se, na Alemanha, com o conceito nacional "étnico"
de Herder e Fichte. A nação alemã foi definida, assim, como uma “comunidade
de ascendência” racial cultural e biológica, uma idéia que, no fascismo,
cometeu seus piores excessos com o Holocausto e a matança da "vida que não
merece viver".
Nos
Bálcãs e em grande parte da Europa Oriental, a classe dos modernizadores
intelectuais burgueses adotou, desde o final do século 19, o conceito germânico
“étnico”-racial de nação. Em vista do fato de que ali a população
reunira-se num espaço reduzido e, segundo os critérios "étnicos",
sem nenhuma homogeneidade, com a adoção da "ideologia alemã" foi
inoculado o germe de uma catástrofe humanitária: gentes de diversas religiões
(muçulmanos, ortodoxos e católicos), línguas e proveniências (albaneses, sérvios,
croatas), que por muito tempo haviam convivido pacificamente, foram definidos de
repente como nações de "raças" diversas, que assim passaram a
disputar palmo a palmo o território comum. As atrocidades atuais da
"limpeza étnica" remontam a essa história. E a ideologia que lhe
serve de base não é um arcaísmo balcânico, mas um fruto envenenado da própria
árvore da história de modernização ocidental. Sobretudo a Alemanha, que em
nome dos direitos humanos agora também lança suas bombas com valentia,
confronta-se duplamente consigo mesma nos Bálcãs. De um lado, lá ainda paira
o espectro da ideologia "étnica" da história alemã, ao mesmo tempo
que ressurgem as lembranças da agressão fascista na Segunda Guerra Mundial. De
outro, a nação alemã, a exemplo das nações catastróficas dos Bálcãs,
ainda hoje é definida como uma comunidade de ascendência "étnica":
o direito alemão em vigor concede automaticamente a cidadania a pessoas que não
falam uma palavra de alemão e cujos antepassados mudaram-se do país há séculos,
porque em suas veias supostamente corre "sangue alemão". O mesmo
"direito de sangue" discrimina política e juridicamente milhões de
pessoas de outras ascendências, que nasceram na Alemanha ou nela vivem há décadas.
E
ainda há pouco o novo governo verde-vermelho fracassou em reformar, aliás de
forma inconsequente, esse direito de cidadania "do sangue", pois os
conservadores protestaram contra isso e lograram mobilizar uma parcela considerável
da população alemã, de maneira quase "balcânica". Essa forma política
e jurídica de "apartheid étnico", num centro capitalista e no
contexto da "Fortaleza Europa", diferencia-se apenas em grau do mesmo
processo numa sociedade em colapso; e pode-se fazer idéia do que ocorreria na
Alemanha se, com uma inflação de 27.000%, os salários deixassem de ser pagos
durante meses.
Com
seu bombardeio contra a Sérvia, no entanto, o Ocidente deixou de merecer
qualquer crédito também por outras razões. De um lado, trata-se formalmente
de um precedente arriscado: sem mandato da ONU, a NATO se arroga o direito de
intervenção. O reconhecimento mútuo da "integridade territorial"
dos Estados-leviatã capitalistas, obtido a custo depois da Segunda Guerra
Mundial e sedimentado no direito internacional, virou letra morta; abriram-se de
par em par as portas ao asselvejamento das relações internacionais no século
21. De outro lado, a fundamentação humanitária para a intervenção é
moralmente ilegítima, enquanto ali perto, a Turquia, membro da NATO, tem
carta-branca para perpetrar contra a minoria curda massacres como os do Kosovo,
recebendo do Ocidente as armas para tanto. É evidente que há carniceiros
"bons" e "maus", conforme permitam ou não a instalação de
bases aéreas norte-americanas em seu território.
O
objetivo estratégico da NATO,
contudo, permanece obscuro. Afinal, o Ocidente detém a hegemonia mundial, de
uma forma ou de outra; só que talvez ele não saiba mais o que fazer com esse
mundo arruinado. As instituições criadas na Guerra Fria vagueiam em busca de
um inimigo e incubam planos patológicos, que só tornam as coisas ainda piores.
A "comunidade das nações democráticas", empurrada pela dinâmica própria
do complexo industrial militar, só pode lutar com os espectros sangrentos que são
seu produto mais autêntico.
Original
Die Stimme des Blutes em www.exit-online.org.
Publicado na Folha de São Paulo de 18.04.1999 com o título A
ideologia do sangue e tradução de José Marcos Macedo