"A
REVOLUÇÃO DOS BICHOS" E "1984" APRIMORARAM AS
UTOPIAS NEGATIVAS REPRESENTADAS NOS ROMANCES DE SWIFT, KAFKA E
HUXLEY, MAS NÃO CONSEGUEM DAR CONTA DOS TOTALITARISMOS
CONTEMPORÂNEOS
QUEM É O BIG BROTHER?
George Orwell e a crítica da modernidade
por Robert Kurz
Sempre houve na história da literatura certos "livros
universais" ou "livros do século" que conferiram
a épocas inteiras uma figura exemplar, obtendo assim um grande
efeito, cujo eco perdura até hoje. Não por acaso, a forma
literária dessas obras é frequentemente a parábola. Essa forma
permite expor idéias filosóficas fundamentais de tal modo que
podem ser lidas ao mesmo tempo como histórias coloridas e
envolventes. Essa dupla natureza da exposição diz à pessoa
culta algo cognitivamente diferente do que à criança ou ao
jovem, e, no entanto, ambos podem devorar o mesmo livro com igual
voracidade. É justamente disso que se nutre a impressão
profunda que tais obras deixam na consciência do mundo,
penetrando os "topoi" do pensamento cotidiano e da
imaginação social.
No século 18, foram as grandes parábolas de Daniel Defoe e
Jonathan Swift que vieram a ser paradigmas literários do mundo
alvorecente da modernidade capitalista. O "Robinson" de
Defoe tornou-se o protótipo do homem branco burguês, diligente,
otimista e racional, que, como administrador de sua alma e de sua
existência na ilha "selvagem" do mundo terreno, cria
do nada um lugar confortável e, além disso, passa a purificar
os homens de cor "subdesenvolvidos" por meio do
"trabalho", dotando-os de modos de comportamento
magnificamente civilizados. Em contrapartida, o
"Gulliver" de Swift erra por mundos fabulosos, bizarros
e assustadores, nos quais a modernização capitalista se reflete
como sátira mordaz e paródia às "virtudes do homem
burguês" de Defoe.
Poderíamos entender o "Gulliver" de Swift como a
primeira utopia negativa da modernidade, repleta de
pressentimentos. Enquanto esse gênero sumiu de cena no século
19, positivista e crente no progresso, no século 20 ele
vivenciou uma florescência imprevista. Um primeiro precursor foi
o romance "A Máquina do Tempo", de H.G. Wells, já do
ano de 1895. Encontramos em Wells uma espécie de prolongamento
da sociedade de classes da era vitoriana até o estágio de sua
degeneração completa, no qual os descendentes dos capitalistas
de outrora vivem na superfície da terra como anões afáveis,
mas tolos e pueris, ao passo que os descendentes da classe
operária de outrora se transformaram em seres do mundo
subterrâneo, que se cevam canibalisticamente de seus antípodas.
Sob a impressão causada por guerras mundiais, grandes crises
econômicas e ditaduras industriais, o gênero da utopia negativa
não só se aprimora, mas também seu conteúdo acaba se
deslocando da sociologia das oposições de classe à visão de
um sistema totalitário homogêneo. As parábolas sombrias de
Franz Kafka pertencem a esse contexto tanto quanto as obras de
uma ficção científica negativa e popular. Tornaram-se
célebres os romances "Nós", de Ievguêni Zamiátin,
escrito em 1920 e só publicado em inglês cinco anos depois,
"Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley, do ano de
1932, mas sobretudo os dois livros correspondentes de George
Orwell, cujo centenário de nascimento se completa agora: "A
Revolução dos Bichos", de 1945, e "1984", talvez
a mais conhecida de todas as utopias negativas, publicado em
1949.
É fácil estimar de que modo a obra de Orwell será
"louvada" pelos encomiastas conformistas por ocasião
desse jubileu no mundo presente do capitalismo globalizado.
Reconhecer-se-á em Orwell um grande admonitor e um vigilante
democrático diante do horror totalitário, como o que se
manifestou nas ditaduras de Stálin e Hitler. E todos lhe serão
gratos, afirmando que suas famosas parábolas teriam contribuído
para conduzir a humanidade a um futuro de liberdade, de
democracia e de economia de mercado, hoje já quase alcançado.
Por fim se dirá que a obra de Orwell nos incita a estar alerta
contra as tentações do totalitarismo, que sempre podem irradiar
dos "maus" desse mundo e assolar a humanidade. E
haverá então referências ao fundamentalismo islâmico e a
Saddam Hussein ou a Slobodan Milosevic. Mas dificilmente algum
desses oradores democráticos, dedicados a reverenciar Orwell,
chegará a uma certa constatação, a saber: que sua utopia
negativa há muito tempo se tornou realidade e que vivemos hoje
no mais totalitário de todos os sistemas, cujo centro é formado
pelo próprio Ocidente democrático. Seguramente o próprio
Orwell não pensou desse modo. É óbvio que ele, da perspectiva
dos anos 40 do século passado, quando escreveu suas parábolas,
não tinha em vista realmente outra coisa que a experiência
imediata do nazismo e do stalinismo; aliás de maneira análoga
à filósofa Hannah Arendt, em suas principais obras do anos 50.
As grandes obras filosóficas e as grandes parábolas literárias
se caracterizam por dizer muitas vezes mais que seus próprios
autores sabiam e por lançar uma luz surpreendente sobre as
condições posteriores, que na época do surgimento dessas obras
não podiam ainda ser levadas em conta. A primeira das parábolas
orwellianas, "A Revolução dos Bichos", já é
elucidativa sob esse aspecto. Vista superficialmente, trata-se de
uma fábula acerca da vaidade de todas as revoluções sociais,
já que a essência da dominação social, a estrutura do
"poder", permanece sempre igual. Esse motivo antecipa
uma idéia básica do pensamento pós-moderno de Foucault, o qual
pressupõe de maneira análoga uma espécie de "ontologia do
poder" positivista. Nesse sentido, Orwell é antes um
pessimista antropológico do que um ideólogo cheio de hurras à
ordem dominante, ainda que, como todos os pessimistas, ele tenha
defendido afinal a sociedade existente, em seu caso a
anglo-saxã, como a melhor de todas as possíveis. Não sem
razão, Orwell foi frequentemente comparado a Swift. Paródia
brilhante à história da Revolução Russa, com os porcos como a
elite burocrática e o porco supremo Napoleão no papel de
Stálin, "A Revolução dos Bichos" apresenta
naturalmente todos os clichês do pensamento burguês acerca da
inutilidade e do caráter criminoso da emancipação humana. Mas
a parábola contém também um subtexto bastante distinto, do
qual o próprio Orwell manifestamente não tinha consciência.
Por um lado, ela pode ser lida no sentido de que o problema não
reside na própria idéia de emancipação, mas sim na
"revolução traída" (Isaac Deutscher), uma vez que os
porcos, sob liderança de Napoleão, traem a igualdade dos
bichos. Por outro lado, esse subtexto contém mais uma vez um
outro subtexto, no qual não é essa "traição" dos
porcos à revolução dos bichos que faz fracassar a
emancipação, mas a falsa compreensão da própria repressão,
que não é derivada da forma como a revolução se organiza, mas
meramente da vontade subjetiva do fazendeiro humano, chamado
Jones, de explorar os bichos. Desse modo, as ovelhas sufocam
regularmente toda discussão sobre o sentido da ação coletiva,
balindo com veemência a cada quarto de hora o slogan
"Quadrúpede bom, bípede ruim!", o que no fim é
desmentido, visto que os próprios porcos se transformam em
"bípedes".
Coerção interna
Sem querer, Orwell chega assim em sua parábola à conclusão
implícita de que não é a troca sociológica do poder e de seus
detentores que constitui a emancipação, e sim a superação da
forma social, isto é, do sistema moderno produtor de
mercadorias, comum às classes sociais. Com isso transparece até
mesmo que o "trabalho" abstrato não é um princípio
ontológico e menos ainda um princípio de emancipação, mas,
pelo contrário, o princípio do poder repressivo, que submete os
animais ao fim em si mesmo irracional do "produzir por amor
de produzir", simbolizado na personagem um tanto estúpida
do cavalo de tração Boxer, uma espécie de operário padrão
que quer resolver todos os problemas com a divisa "Eu quero
e vou trabalhar ainda mais duro!" para acabar sendo vendido
por Napoleão aos abatedores de cavalos, depois de desgastado a
ponto de não poder mais trabalhar.
O problema da forma comum do nexo social sistêmico, que reside
além da "luta de classes" sociológica imanente,
torna-se ainda mais claro em "1984", um livro que
lembra muito o romance "Nós", de Zamiátin (e talvez
influenciado por ele). No primeiro plano, tanto em Zamiátin
quanto em Orwell, há a figura do líder todo-poderoso e
colossal, num caso denominado simplesmente de
"Benfeitor", no outro designado de "Grande
Irmão"; naturalmente ambos imitaram as ditaduras políticas
totalitárias do entreguerras.
Mas também aqui transparece um subtexto que vai bem além das
mensagens explícitas. Atrás do poder personificado, aparece o
caráter anônimo, "reificado", do totalitarismo: o
Benfeitor de Zamiátin se revela de fato uma máquina
inteligente, e também o Grande Irmão de Orwell pode ser lido
facilmente como metáfora de uma matriz anônima de controle
sistêmico, que no totalitarismo econômico atual funciona de
maneira muito mais coercitiva que nas ditaduras políticas da
primeira metade do século 20.
Em "1984", o sinistro já não é tanto a coerção
externa, mas muito mais a interiorização dessa coerção, que
acaba aparecendo afinal como imperativo do próprio Eu. O fim em
si mesmo irracional da "valorização interminável do
valor" por meio do "trabalho" abstrato quer o
homem auto-regulador, que reprime a si próprio em nome das leis
sistêmicas anônimas. O ideal é a auto-observação e o
autocontrole do "empresário individual de si mesmo"
por meio de seu superego capitalista: sou produtivo o suficiente,
ajustado o suficiente? Estou seguindo a tendência, sou capaz de
concorrer? A voz do Grande Irmão é a voz do mercado mundial
anônimo; e a "polícia do pensamento" das relações
democráticas de concorrência funciona de forma muito mais
refinada do que todas as polícias secretas.
Isso se aplica também à famosa "linguagem
orwelliana", a "novilíngua", com sua inversão de
significados, que é no fundo, há mais de 200 anos, a língua do
liberalismo econômico: quando se diz em nome do Grande Irmão
que "liberdade é escravidão", então isso significa
inversamente que "escravidão é liberdade", ou seja, a
auto-submissão alegre às pretensas "leis naturais" da
física social da economia de mercado. Isso se aplica também aos
outros lemas da "novilíngua": "Guerra significa
paz", ninguém sabe isso melhor que a Otan e a potência
mundial democrática EUA, autodesignada polícia mundial, e
"Ignorância é força" -quem em boa consciência
subscreveria melhor essa máxima que o consumidor democrático ou
o "manager" empresarial, cujo êxito depende da
ignorância social? Colocar em questão, ainda que só em
pensamento, os critérios desse sistema fechado e louco da
"liberdade" economicamente determinada significa já
estar "out" ou, como se diz em "1984",
"a crimidéia não acarreta a morte: a crimidéia é a
morte", ou seja, a morte social.
Pode-se sair de uma seita política e, no Estado totalitário,
pode-se partir para a "emigração interior"; mas o
homem capitalista que se tornou auto-regulador pode se retirar do
mercado totalitário tanto quanto pode sair de seu próprio Eu,
convertido em "capital humano". A consciência é
reinserida no mecanismo onipresente da concorrência,
incessantemente se calculando a si mesma como instrumento de
valorização e, ao mesmo tempo, enganando-se com as fórmulas da
"novilíngua" econômica neoliberal: "A loucura da
produtividade é auto-experiência", "auto-submissão
é auto-realização", "angústia social é
autolibertação" etc. ou, como a divisa da esquizofrenia do
homem moderno, formulada por Rimbaud de maneira insuperável já
há mais de cem anos: "Eu é um outro".
"Liberdade" não significa nesse mundo nada mais que
saber o que o Grande Irmão ou o Benfeitor, isto é, o mercado
totalitário, poderia querer dos homens, nada mais que saber
pressenti-lo e obedecê-lo às pressas e sem restrições ou
ficar a meio caminho, perder sua existência social e morrer
prematuramente. Para que essas sanções se apliquem aos
perdedores, não é mais preciso um sistema burocrático de
supervisão. Isso providencia por si só o poder anônimo
sinistro da máquina social do capital, convertido numa
condição do globo inteiro. Esse poder de leis sistêmicas
cegas, que violenta os recursos naturais e humanos, emancipou-se
de toda vontade social -inclusive da subjetividade do management.
De certo modo, o mundo todo se tornou uma única e gigantesca
fazenda de bichos, na qual é indiferente quem comanda, o
fazendeiro Jones ou o porco supremo Napoleão, visto que os
comandantes subjetivos são de qualquer jeito os órgãos
executivos de um mecanismo autonomizado, que não descansará
enquanto não fizer do mundo, por meio do trabalho, um deserto
sem vida. Nessa fazenda-mundo automática, toda questão crítica
acerca do sentido e da finalidade da organização demente
inteira é sufocada de imediato porque as ovelhas democráticas
prorrompem nos ouvidos o berro atordoante de lemas
"reificados": "Trabalho bom, falta de trabalho
ruim", "Concorrência bom, reivindicações sociais
ruim" etc. Se nós lermos as parábolas orwellianas um pouco
a contrapelo, poderemos nos reconhecer a nós mesmos como os
prisioneiros de um sistema amadurecido, cujo totalitarismo faz
"A Revolução dos Bichos" e "1984" parecerem
quase inocentes.
1 de Junho de 2003
Publicado na Folha de São Paulo com o titulo "Parábolas do Meio-Irmão"
Robert Kurz é sociólogo e
ensaísta alemão, autor de "Os Últimos Combates" (ed.
Vozes) e "O Colapso da Modernização" (ed. Paz e
Terra). Ele escreve mensalmente na seção "Autores",
do Mais!.
Tradução de Luiz Repa.