A
“JUVENTUDE DOURADA” DA GLOBALIZAÇÃO
Ideologias
sociais de crise nos países ocidentais
Por
muito tempo as declarações contraditórias dos intelectuais sobre o caráter
da globalização pareciam manter a balança em equilíbrio: são maiores os
riscos ou as chances? Temos de lidar com um limite objetivo do desenvolvimento
capitalista ou com uma nova era de acumulação do capital? A pobreza global
aumenta ou diminui? Levantava-se teoria contra teoria, análise contra análise,
estatística contra estatística, interpretação contra interpretação. Na
verdade, todo esse debate foi definido por uma intelligentsia
que nos centros ocidentais observava de camarote o processo. O raciocínio era
platônico; não estava em jogo a própria pele social. Era o jogo das contas de
vidro de uma virtualidade que não devia mostrar seu núcleo social duro.
Nos
últimos anos isso se alterou por completo. Desde o colapso da new
economy no começo do ano de
Mas,
sobretudo, a crise econômico-social atingiu fundo justamente aquela parcela das
sociedades ocidentais que menos esperava por isso, a saber: a pretensa
"geração fundadora" do ramo da Internet e tecnologias de informação,
no sentido mais amplo, as camadas competentes da chamada sociedade da informação
ou do conhecimento, que antes foram tratadas como as grandes ganhadoras com a
globalização. Ainda há pouco o sociólogo liberal Ralf Dahrendorf falou da
"classe global" nesse sentido, a qual lhe parecia ser o novo paradigma
da dominação social. Essa "classe", segundo Dahrendorf, começou a
"dar o tom", a generalizar seus valores, a fazer de suas inclinações
específicas os sonhos de muitos.
Sem
dúvida alguma, isso é correto. E é preciso até mesmo ampliar o círculo
social dessa "classe global". A ela se ligam não apenas a indústria
de software e as empresas de prestação de serviços pela Internet, como a
Amazon etc., mas também as tecnologias "duras" de alguns setores da
produção e das prestações de serviços industriais que ascenderam no curso
da globalização, como a indústria aeronáutica e as empresas aéreas, para não
contar os produtores de hardware. Além disso, há os serviços comerciais como
a indústria de turismo e de publicidade, que, embora já tivessem tido sua
primeira florescência nos tempos do fordismo, passaram a vivenciar um novo
surto na sequência da terceira revolução industrial e da globalização. Não
em último lugar, trata-se também da "produção ideológica" em
sentido amplo, isto é, de um campo de atividades da indústria cultural que se
expandiu particularmente nos anos 90. Nesse campo se desenvolveu uma larga
camada de novos trabalhadores da mídia, a qual criou o slogan "sociedade do conhecimento", divulgando-o de
maneira folhetinesca a fim de celebrar a si mesma.
São precisamente esses pretensos "campos do futuro", especialmente forçados pelo processo de globalização, que foram arrasados mais violentamente pelo ciclone da crise e transformados em campo de destroços econômicos. Como se sabe, verificou-se que essa magnificência toda se baseava apenas em uma conjuntura global de bolhas financeiras. Nem todas as Bolsas estouraram, mas já uma parte suficientemente grande para causar o revés violento na economia global, o qual derrubou em primeiro lugar os setores de inovação. As novas tecnologias e as novas mídias não desaparecem naturalmente por causa disso; tampouco a globalização é anulada. Mas é mais do que claro que a terceira revolução industrial e a globalização não podem trazer uma nova era de crescimento capitalista. As potências tecnológicas e a socialização planetária do século 21 são completamente incompatíveis com as formas econômico-sociais anteriores da modernidade. O Ocidente e os centros asiáticos vivenciam agora o mesmo processo de dissolução social e de barbárie que já se propagara pelas regiões do Terceiro Mundo, fracassadas com a "modernização atrasada". A ambivalência das interpretações desapareceu; o assunto é decidido negativamente.
É
claro que não se trata meramente de um processo objetivo. A consciência social
precisa elaborar de algum modo a crise que irrompe. Isso concerne sobretudo àquelas
novas camadas sociais que, segundo Dahrendorf, haviam começado a "dar o
tom" em termos simbólicos-culturais e cujos campos agora são soterrados.
Com que mentalidade e com que ideologia nós temos de lidar nesse contexto?
Dahrendorf ilustra a "classe global" com aquelas conhecidas figuras
que "passam muito tempo nos saguões dos aeroportos internacionais",
tagarelando sem parar em seus celulares. São pessoas que levaram Tony Blair ao
poder e assinam sua doutrina do new labour.
Na Alemanha, a etiqueta se chama "novo centro". Não é uma classe de
grandes magnatas capitalistas, ainda que Bill Gates conste dela; mas tampouco é
uma "classe trabalhadora" claramente definida. Poderíamos designá-la
como "empresários de seu capital humano", não importando de que
forma eles investem em si mesmos. Muitas vezes são prestadores de serviço móveis,
do excêntrico da computação aos animadores do “Club Méditerranée".
Este
tipo se encontra em todo o mundo, mas naturalmente, como a globalização, em
densidade diferente. Se no Terceiro Mundo é uma camada urbana diminuta, nós
encontramos nos países ocidentais uma ampla base de grupos sociais, com um
determinado projeto de vida, que se sentiram como parte da "classe
global", pelo menos segundo a possibilidade. Também aqueles cuja posição
econômica na verdade já era precária desde o início puderam imaginar para
si, com o auxílio das redes sociais (ou do suporte familiar dado pelas gerações
mais velhas do "milagre econômico", há muito tempo transcorrido), um
futuro no "novo centro", participando de certo modo do "capital
cultural" (Bourdieu) dos novos setores aparentemente promissores.
Mas
é indiferente se se trata dos que ascenderam socialmente na curta era da nova
economia ou meramente dos sonhadores ideológicos da "sociedade do
conhecimento", dos pequenos empresários da indústria cultural ou dos
trabalhadores baratos das mídias: é uma classe de ilusionistas econômicos e
políticos. Até mesmo a competência e o profissionalismo ostentados são amiúde
meros produtos da simulação. O culto ideológico pós-moderno da virtualidade
tem seus fundamentos tecnológicos nos mundos ilusórios das novas mídias e no
espaço de comunicação "desrealizado" da internet. Em termos econômicos,
corresponde a isso a arquitetura vaporosa do capitalismo das bolhas financeiras
que hoje chega ao fim; em termos políticos, a encenação de figuras imaginárias
preparadas pela mídia e de vocábulos-design conforme o padrão da propaganda
comercial. Essa virtualidade determina a consciência da juventude socializada
nos anos
Por
um lado, essa "classe global" jovem não tem passado nem futuro; ela
sucumbiu à ausência de história do mercado total. Apesar disso ela é, por
outro lado, o produto de uma experiência histórica determinada. Seu grau zero
foi o fim do socialismo, o colapso dos movimentos de libertação e dos regimes
desenvolvimentistas no Terceiro Mundo, o ocaso do velho paradigma marxista, o
emudecimento da crítica social emancipatória e a decadência da reflexão teórica
A
"classe global" em sentido amplo é ainda jovem, mas seu futuro já
passou. Isso é perceptível não apenas pelos parâmetros econômicos. Muitos não
puderam nem sequer assimilar o desastre social em que se dissolveram seus sonhos
e suas fantasias. Mas o choque da realidade vai além da experiência de não
poder pagar mais o aluguel e de se ver de repente, após as esperanças
ambiciosas da nova economia, fazendo bicos deploráveis. Foi também o abalo de
11 de setembro que quebrou o pescoço da pós-modernidade. O simbólico desse
ataque terrorista salta aos olhos quando se lê a descrição que Dahrendorf faz
da "classe global": "Os que chegaram ao arranha-céu das
possibilidades não podem alcançar o topo; hoje em dia o topo está muito longe
para a maioria... Mas, enquanto uns elevadores só sobem até o décimo andar e
outros só começam no 50º, há para todos uma subida. Mas há ainda aqueles
que nem sequer alcançam o andar térreo do edifício das possibilidades".
Com um único golpe, a destruição brutal das torres gêmeas e a queimadura do
Marco Zero tornou evidente para a "classe global" e seus oportunistas
ideológicos que seu "arranha-céu das possibilidades" não é o mundo
inteiro e que a "fúria bárbara da destruição" não poupa nem mesmo
os centros.
O
fim das ilusões econômicas é também o fim da "segurança". Para
medir como a jeunesse dorée da pós-modernidade
decaída, agora não mais tão dourada, assimila sua própria crise, pode se
aduzir como indicador a geração correspondente dos radicais de esquerda. Sem dúvida
é uma pequena minoria ideológica, mas que passou, como parte integrante da
sociedade, pela mesma socialização e provém do mesmo meio e dos mesmos
setores sociais. Justamente porque ela precisa se legitimar no interior dessa
relação com a pretensão do pensamento refletido, ela pode servir de sismógrafo
para as tendências mais gerais. Essa esquerda virtualizou sua própria
radicalidade há muito tempo, conforme o padrão da sociedade circundante. A crítica
econômica dura foi substituída em grande parte por um culturalismo brando. Por
esse motivo, a minoria de esquerda se encontra tão despreparada diante das catástrofes
econômicas e políticas da pós-modernidade em colapso quanto a grande maioria
da "classe global".
Sob a pressão dos fenômenos reais que não se deixam mais desrealizar, dissolvem-se os paradigmas de qualquer modo já extenuados de uma crítica social cujos conceitos se tornaram completamente imprestáveis. Na presente crise mundial, o chão social comum das forças sociais concorrentes passa a tremer, as formas categoriais comuns se rompem, o sistema referencial comum choca em seus limites. A ala esquerda da "classe global" e de sua jeunesse dorée é completamente incapaz de se colocar esse problema.
Uma
parte refugia-se em reações regressivas. A reinterpretação culturalista da
crítica do capitalismo e do anti-imperialismo se aproxima de idéias reacionárias,
saturando-se de anti-semitismo e de concepções neonacionalistas. O conceito de
"povo", tal como deve ser mobilizado contra as consequências
negativas da globalização capitalista, revela sua qualidade anti-emancipatória
de estreiteza "étnica". O espectro da regressão ideológica vai da
nostalgia do keynesianismo nacional até o projeto folclórico, incluindo a
simpatia pelos terroristas suicidas. Uma outra parte da esquerda na "classe
global" gostaria de se refugiar atrás dos muros da fronteira imperial a
fim de barrar a barbárie lá fora no Terceiro Mundo. De súbito, essa esquerda
se torna tão estupidamente pró-americana quanto seus pais eram estupidamente
antiamericanos. Invocam irrefletidamente os "valores ocidentais", o
"mito de Nova York" e os deleites do consumo de mercadorias. A crítica
do capitalismo é abandonada; antes de tudo a máquina militar norte-americana
deve criar a "ordem".
Essas
alternativas são tão repugnantes que alguns jovens enojados da esquerda da
"classe global" decadente quiseram recorrer aos fósseis do marxismo
tradicional. Mas o mundo dos proletários das máquinas a vapor está tão
distante das condições sociais hodiernas da crise que essa espécie de
nostalgia é tomada a sério por muito poucos. A ala esquerda da jeunesse
dorée pós-moderna declinante mostra em suas reações ignorantes que a
"classe global" em seu todo está paralisada. Mas talvez essas pessoas
ainda biograficamente jovens, que não podem se desligar da socialização dos
anos 90, já sejam na verdade os velhos, e os de esquerda com 30 anos de idade
sejam como que "vovôs vermelhos". Nos protestos em massa no mundo
todo contra a Guerra do Iraque se manifesta uma nova geração, de pessoas de