Porque a União Européia pode se tornar uma 'ruína` nova em folha
Vê-se hoje em muitos países a desintegração estatal e monetária
A linguagem política utiliza
muitas vezes conceitos que, como na utopia negativa ''1984'', de
George Orwell, significam exatamente o contrário daquilo que
parecem indicar.
Em toda a Europa, fala-se há muito sobre a integração
européia. O antigo processo de autodilaceramento nacionalista do
velho continente deve ser finalmente solucionado pela unidade
européia, com a qual já sonhavam os filósofos do Iluminismo.
Isso soa como música aos ouvidos. E há, de fato, a União
Européia (UE), a Comissão Européia em Bruxelas, o Tribunal
Europeu em Luxemburgo e outras instituições unitárias.
Estamos, enfim, a caminho da integração?
Na verdade, o entusiasmo com a União Européia diminuiu ao sabor
da conjuntura. O mais recente relatório da Comissão Européia
demonstra que, nas últimas duas décadas, o crescimento médio
na UE caiu de 4% para 2,5%, enquanto que os investimentos
sofreram um decréscimo de 5%. Contra o pano de fundo da
fragilidade econômica, as contradições da edificação
européia tornam-se cada vez mais claras.
Os arquitetos da integração construíram uma ''ruína nova em
folha''. Não há na Europa um poder político capaz de
implementar sequer um único de seus planos. O resultado dos
inúmeros compromissos assumiu a forma de um ser híbrido, que
não é nem um sistema de relações bilaterais nem um verdadeiro
Estado pan-europeu. A Comissão Européia não foi investida do
status de governo, mas atua como uma espécie de governo
paralelo, enquanto os ministros dos governos nacionais ainda
existentes reúnem-se em conselho e raramente chegam a um acordo
ou a decisões inequívocas.
Encontramos o mesmo problema ao nível da economia. De um lado,
as antigas economias nacionais continuam vivas; de outro, porém,
devem ser criadas instituições econômicas e
político-financeiras comuns que ultrapassem a simples zona de
livre comércio, como o Nafta ou o Mercosul. Isso vale sobretudo
para a planejada instalação de uma moeda européia unitária.
''Ecu'' ou ''Euro''?
Em 10 de dezembro de 1991, foi assinado em Maastricht o acordo
para criar uma união econômica e monetária européia. Esse
acordo prevê que as moedas nacionais sejam substituídas pela
moeda européia em três etapas, até no máximo 1º de janeiro
de 1999. Mas, enquanto o desenhista rabisca os primeiros esboços
da nova cédula, e ainda é questão controversa se o nome da
moeda será ''Ecu'' ou ''Euro'', o projeto como um todo é posto
em dúvida, sob todos os aspectos. O transtorno é grande;
ninguém mais sabe ao certo quem é de fato contra ou a favor da
empreitada.
Essa confusão foi causada pelos próprios autores do projeto. É
uma contradição em termos um Banco Central ser criado como
instituição político-financeira sem que os contornos de um
poder político correspondente estejam delineados. A moeda
européia seria a primeira moeda na história a não estar
vinculada a um verdadeiro poder estatal.
A união política permanece fraca e ineficaz como fator de
poder, mas mesmo assim deseja-se criar uma moeda comum. Isso é
mais ou menos tão promissor quanto começar a construção de
uma casa não pelas fundações, mas pelo telhado. A falta de um
fundamento político indica a ausência correspondente de
embasamento econômico.
As diferentes formas estatais de moeda como o dólar, o marco
alemão etc. não são mais que ''nomes'' para designar um
determinado nível da capacidade econômica nacional. Uma moeda
representa, tanto em termos internos quanto externos, a potência
real da economia de uma certa região delimitada pelo Estado.
Isso só é possível quando os indicadores econômicos da
região demarcada pela respectiva moeda situam-se aproximadamente
no mesmo nível. Tais indicadores são sobretudo a produtividade,
a provisão de capitais e o patamar salarial.
Em todo Estado onde se desenvolve uma desigualdade econômica
muito acentuada, mais cedo ou mais tarde a base da economia
nacional, a unidade do Estado e por fim a própria moeda
comunitária são necessariamente postas em questão. A
Iugoslávia é um exemplo clássico para ilustrar esse problema.
Quando a disparidade econômica entre as repúblicas do Norte
(Eslovênia e Croácia) e as repúblicas do Sul (Sérvia, Bósnia
e Macedônia) tornaram-se muito grandes, o movimento separatista
teve seu primeiro impulso e o Estado como um todo foi posto em
xeque.
As repúblicas mais desenvolvidas do Norte não concordavam mais
em compensar a disparidade e arcar com o ônus da perpétua
repartição de rendas. Hoje, na região da antiga Iugoslávia,
não há somente Estados diferentes, mas também diferentes
moedas. O grande descompasso do nível econômico encontrou sua
expressão política e monetária. A moeda não pode ostentar o
mesmo nome para as diversas regiões economicamente devastadas;
cada Estado possui agora um nome específico para sua própria
moeda. E, evidentemente, o nome da moeda nas regiões com maior
produtividade é (relativamente) ''melhor'', como por exemplo o
tolar esloveno; o dinar sérvio, ao contrário, designa agora o
nome ''ruim'' de uma moeda pobre e inflacionária.
Esse fenômeno da desintegração estatal e monetária é
verificado hoje em muitos países. A razão é simples: o
processo de racionalização e globalização, além de excluir e
''alijar'' um número cada vez maior de pessoas, faz com que essa
questão seja traduzida também em termos de conflito regional.
De forma análoga à Iugoslávia, em muitos Estados já existe
uma desigualdade econômica tradicional entre regiões
contrastantes que só tende a aumentar com a recente evolução
do mercado mundial. Na Itália, por exemplo, a Lega Nord
representa o esforço de separação entre as regiões
industriais do Norte e o modo de produção agrário do Sul;
dizem até que o líder do movimento chegou a proclamar, em tom
peremptório: ''A partir de Roma, para mim começa a África''.
Na China, do mesmo modo, há a ameaça de um conflito entre as
províncias costeiras, nas quais se concentra a maior parte da
indústria de bens para exportação, e as províncias do
interior, cada vez mais atrasadas economicamente. Há um núcleo
de racionalidade econômica nos movimentos ''étnicos'' e
separatistas de cunho irracional que inundam atualmente o globo;
o resultado não são apenas Estados cada vez menores, mas
também um número cada vez maior de moedas, das quais grande
parte é extremamente fraca.
A diferença das moedas constitui uma espécie de amortecedor ou
válvula de segurança para compensar (ao menos em parte) a
diferença de nível econômico. A moeda de um país com baixa
produtividade diminui em seu valor quando contraposta à moeda de
um país com alta produtividade e maior volume de capital.
Através da taxa de câmbio, portanto, as exportações do país
economicamente mais forte têm seus preços elevados, e as do
país economicamente mais fraco seus preços reduzidos.
Isso permite que o país mais fraco, apesar da desigualdade
econômica, mantenha-se apto à concorrência na exportação de
produtos industriais. Ao mesmo tempo, seu mercado interno é
parcialmente protegido contra a importação de mercadorias de
países mais fortes. Tanto na produção para a exportação
quanto na produção para o próprio mercado interno, a válvula
de segurança da taxa de câmbio pode garantir os empregos nos
países com baixa produtividade.
Mas também no sentido inverso a taxa de câmbio assume a
função de uma válvula compensatória. Os salários nos países
economicamente fracos são muito baixos. Surge então para os
empresários de países com grande importe de capital e nível
elevado de salários o estímulo de transferir os setores de
produção cuja mão-de-obra é intensiva para os países onde os
salários são menores.
Essa tendência é refreada, contudo, pelo fato de as moedas dos
países com baixos salários sofrerem sucessivas
desvalorizações em relação às moedas dos países
economicamente mais fortes e com salários elevados. Para as
empresas multinacionais, isso significa que o ganho com salários
pode ser anulado com a perda na taxa de câmbio. Desse modo, a
válvula da taxa de câmbio protege também uma parte dos
empregos nos países com altos salários.
Tudo isso, obviamente, tem validade apenas relativa. A pressão
da globalização é forte o bastante para ameaçar o
funcionamento da taxa de câmbio. Mas pior ainda é quando essa
válvula de segurança é destruída de caso pensado. Esse é
justamente o caso da união monetária européia.
Dentro da UE, a disparidade econômica é grande. O produto
interno bruto per capita, expresso em mil unidades da hipotética
moeda européia, atingiu em 1994 a cifra de 21,2 na Alemanha,
19,6 na França, 14,7 na Itália e na Inglaterra, 7,7 na Grécia
e 7,5 em Portugal.
Se países do Leste europeu como a Polônia, a República Tcheca
e a Hungria vierem no futuro a se juntar ao grupo, a disparidade
será ainda mais gritante. É um absurdo: ao passo que em várias
partes do mundo o desequilíbrio econômico conduz ao
esfacelamento de Estados e sua desintegração em diversas
regiões monetárias, a UE _cuja existência política é uma
incógnita_ quer justamente impingir uma moeda comum a mais de
uma dúzia de países com níveis de desenvolvimento econômico
absolutamente diversos!
Um modelo negativo desse experimento foi a unificação das duas
Alemanhas. A economia mais fraca da antiga República
Democrática Alemã foi incorporada da noite para o dia ao marco
alemão. Todos os custos e preços tiveram de ser designados pelo
nome da moeda vinculada a um nível de produtividade
essencialmente mais alto. Em poucos meses, toda a produção do
setor oriental perdeu cerca de 80% de seu poder de concorrência,
tanto na exportação quanto no próprio mercado interno.
Milhões de empregos foram extintos.
Empresários ocidentais, por outro lado, transferiram parte da
produção para a Alemanha Oriental, a fim de aproveitar os
baixos salários e a subvenção do governo alemão. No cômputo
final, ambos os países perderam receita e empregos, sendo a
parte oriental a mais prejudicada. Para evitar uma catástrofe
econômica, o governo foi obrigado a transferir desde então 150
bilhões de marcos por ano à Alemanha Oriental e onerar com esse
saldo os mercados nacional e internacional.
E agora querem transpor esse modelo para toda a Europa! A moeda
européia deve ser pelo menos tão estável quanto o marco
alemão. Isso significa que a nova moeda terá de refletir um
nível econômico que a maioria dos países membros não possui.
Qual seria a consequência? O mesmo problema que surgiu na moeda
alemã com a incorporação da economia do Leste seria repetido
ao nível da União Européia como um todo. A questão seria
ainda mais delicada, pois a capacidade econômica de, por
exemplo, Irlanda, Portugal ou Grécia está abaixo do nível da
antiga Alemanha Oriental. Grande parte da economia européia
teria sua existência ameaçada.
Para evitar revoltas nas várias regiões em apuros, a Comissão
Européia teria de distribuir verbas numa proporção
inimaginável. A emissão de créditos, além de sobrecarregar os
mercados financeiros do mundo, desestabilizaria a própria
política monetária de um Banco Central europeu e enfraqueceria
rapidamente a nova moeda. Mesmo na Alemanha, uma política que
quer implementar a estabilidade das finanças e ao mesmo tempo
promover a integração de duas regiões com níveis econômicos
inteiramente diversos, só pode conduzir ao absurdo.
Só Luxemburgo Ambos intentos, simultaneamente, são
impossíveis. Prova disso é que nem mesmo a Alemanha, graças
aos custos de sua unificação, preenche mais os ''critérios de
estabilidade'' exigidos pela moeda européia. Tais critérios
restringem a contração anual de dívidas a 3% e o total das
dívidas a 60% do PIB. Em 1995, com um montante de dívidas de
3,6%, a Alemanha não cumpriu nem cumprirá o acordo nos
próximos anos. Eis aqui a ironia: com exceção do minúsculo
grão-ducado de Luxemburgo, nenhum país é capaz de preencher
hoje em dia os quesitos de estabilidade impostos pela UE.
Quem se interessa por um experimento tão arriscado quanto a
união monetária européia? Em primeiro lugar, a casta política
que, como o chanceler alemão, é economicamente ignorante, mas
tem pretensões históricas e espalha aos quatro ventos que os
números comprovam sua tese.
Em segundo lugar, os ''global players'' das grandes empresas, que
esperam talvez, com ajuda da moeda européia, aproveitar todas as
vantagens de custo sem o empecilho da taxa de câmbio, a fim de
somar esforços contra a concorrência do mercado mundial. Sua
opção portanto seria nada menos que uma ''fortaleza Europa''
_nova etapa da ''globalização voltada para dentro'', à custa
de uma segregação econômica e social ainda maior nos limites
da UE.
Evidentemente, não está claro ao empresariado que seria
necessária uma ditadura militar européia para fazer valer essa
opção. A instância politicamente fraca da Comissão Européia
jamais estará em condições de manobrar uma grave crise
econômica, social ou financeira como a que será desencadeada
pela moeda européia. Os governos nacionais, porém, têm de
afirmar sua presença diante dos eleitores. Como reação das
massas a uma crise européia, é de se temer uma nova onda
irracional do antigo nacionalismo. O sonho da integração
européia ou bem permanece estéril no solo da economia de
mercado ou então transforma-se em pesadelo.
E agora entendemos por que a linguagem política da união
econômica e monetária européia só pode ser uma linguagem
orwelliana: ''estabilidade'' significa desestabilização e
''integração'' significa desintegração. Como nesse meio tempo
muitos darão por conta do perigo, tudo indica que o nascimento
da moeda européia será na verdade um aborto.
Folha de São Paulo, 1996
Tradução de José Marcos Macedo
Original Alemão - http://www.exit-online.org/