BLACKOUT
Sobre os cortes de electricidade nos EUA
O maior corte de electricidade na história da electrificação foi uma peça didáctica em muitos aspectos. Em primeiro lugar, evidentemente, sobre a hybris da última potência mundial, os EUA, que na realidade tem pés de barro. Poucos dias antes de o abastecimento de energia vir abaixo e na sequência de uma visita ao Iraque, raciocinava o comentador chefe do New York Times, Thomas L. Friedman: "Como mostrar o nosso poder da melhor forma? Começaremos com o abastecimento de energia eléctrica". Engraçado, não é? Esta história, também divulgada pela Spiegel (1), foi propalada na Alemanha com muito gozo. Mas aí já estamos na segunda parte da peça didáctica. Pois a malícia não manifesta juízo económico, mas apenas sentimentos anti-americanos: o prazer secreto de ver o ostensor de poder fazer em casa uma figura tão má como no Iraque. Apesar de a essência económica da peça didáctica oferecer motivos mais do que suficientes para se pensar na própria situação deste lado do Atlântico.
É que o gigantesco Blackout (e com certeza não o último) foi o resultado directo de os EUA serem tão "modelares" e precisamente nas especiais disciplinas neo-liberais da "privatização" e da "redução de custos". Sabe-se que estes são os campos da política económica e da gestão, nos quais se procura há muito, e não só na Europa, imitar os EUA. O neo-liberalismo não é de modo algum um assunto específico dos EUA, mas sim um consenso mundial e inter-partidário do capitalismo de crise, com o qual neste país, como se sabe vermelho-verde e preto-amarelo, tentam sobrepujar-se uns aos outros com a política de privatização e de poupança. Para ver o que daí resulta não é necessário olhar com sorriso irónico para os EUA. Também cá em casa se encontram exemplos suficientes para a irracionalidade deste tipo de procedimento.
Já no que toca meramente à economia empresarial, a prática do radicalismo da redução de custos demonstra a auto-contradição intrínseca do capital. A exigência da maximização do lucro a favor do "investidor", custe o que custar, conduz a uma pressão abstracta de redução de custos, que afinal de contas tem um efeito completamente contra-produtivo. Enquanto daí resulta um acossamento agravado de produção para os empregados, tal ainda se encontra no âmbito da racionalidade anti-social do capital, se bem que com isso vêm perdas por atrito com a deterioração do ambiente de trabalho, o aumento de doenças, etc. Porém a loucura da redução de custos atinge cada vez mais também as necessidades organizativas, técnicas e materiais da produção. É que à lógica completamente imaterial do dinheiro é-lhe indiferente não só o conteúdo da sua "incarnação", mas também o real decurso da produção. Assim adiam-se as reparações, obtêm-se peças em quantidades insuficientes, relaxam-se as regras de segurança, arranja-se material inútil (mas barato), cortam-se prazos de organização necessários, etc. Os muitos pequenos desastres do admirável mundo novo da economia empresarial são visíveis em toda a parte e diariamente, e agravam o resultado global da crise económica.
Entretanto, o que leva a condições doidas já ao nível de uma empresa ou de uma secção, chega a ser verdadeiramente desastroso no âmbito de infra-estruturas sociais globais. Porque aqui as relações e assim as reacções em cadeia não se limitam ao âmbito restrito de uma empresa, mas abrangem a totalidade da reprodução do capital. Mesmo Adam Smith, o fundador da economia política e do liberalismo económico, compreendeu que as infra-estruturas não podem ser cedidas à "mão invisível" do mercado, porque estas constituem as condições quadro para todas as empresas de mercado, mas não são, elas próprias, empresas de mercado. No âmbito da política desenfreada de privatização, o neo-liberalismo desembaraçou-se deste ponto de vista, levado também pela necessidade da crise financeira estatal. Porém, ao tratar as infra-estruturas como empresas lucrativas privadas, estas tornar-se-ão então num factor de insegurança social, outrossim para o próprio capital; de modo agravado com a política de redução de custos a todo o transe induzida pela crise.
O abastecimento de energia privatizado nos EUA mostra um outro dilema da política de privatização. Porque apesar de tudo a infra-estrutura mudada para a maximização do lucro continua sujeita a uma regulação estatal: Não pode aumentar os preços da energia eléctrica. Isto por uma boa razão. Porque a já endividada conjuntura dos EUA só funciona com energia barata, à qual se habituaram os consumidores. Assim o lucro apenas é possível através da poupança nos investimentos necessários; e o abastecimento energético da última potência mundial encontra-se agora ao nível de um país do Terceiro Mundo. A alternativa seria o aumento dos preços de energia, que mandaria abaixo o motor da conjuntura, já de si fraco. O que é que preferem: o Blackout ou a energia impagável, ou as duas coisas ao mesmo tempo?
Esta é a alternativa que se coloca não só aos EUA e não só no que toca ao abastecimento de energia. O mesmo é válido para o abastecimento de água, o sistema de saúde e todas as outras infra-estruturas. Os caminhos de ferro ficam cada vez mais caros, em contrapartida os comboios cada vez mais ficam parados ou descarrilam. Os correios e as telecomunicações sofrem igualmente os seus Blackouts, enquanto os preços vão subindo. Por toda a parte estão em rotura as canalizações, que na maioria dos casos foram construídas no fim do século XIX, quando os municípios ainda conseguiam pagá-las. Agora estão apertadas, mas as empresas privadas ou as abandalharão completamente ou exigirão taxas impagáveis. Se isto assim continuar, não tarda também aqui a máfia vai vender água potável em garrafas, enquanto as cidades vão feder literalmente até ao céu e as luzes apagar-se cada vez com mais frequência. Cada dia um pequeno apocalipse para o uso caseiro da maravilhosa economia de mercado. E o que é que a política de todos os partidos aprende com isso? Ainda mais privatização, ainda mais redução de custos! O que também é uma peça didáctica.
(1) Revista semanal sobre assuntos políticos e sociais
(2) Cores partidárias do SPD (vermelho), Verdes (verde), CDU (preto) e FDP (amarelo)
(Notas da tradutora)
Original alemão BLACKOUT. Zu den Stromausfällen in den USA em www.krisis.org. Publicado originalmente em Neues Deutschland, Berlin, 22.08.2003
Tradução de Nikola Grabski -