EXISTE
UM CAPITALISMO CONFUCIANO?
Notas
sobre um mal-entendido asiático
Há
muito que a influência recíproca entre economia e cultura no sentido mais
amplo é um tema das ciências sociais. Quanto a isso, pode-se observar
essencialmente duas vertentes de idéias: uma que parte das leis gerais do
capitalismo e mostra como as culturas tradicionais são destruídas pela
economia moderna, e outra que parte inversamente da diversidade das culturas e
mostra como o capitalismo é culturalmente determinado e de seus amplos círculos
culturais resultam versões inteiramente diversas de sua lógica geral. Esse vínculo
entre economia e história cultural, particularmente acalentado na Alemanha
desde Werner Sombart e Max Weber, produziu o conceito de "estilo econômico"
(Bertram Schefold). Tal princípio tem hoje grande consideração no Ocidente. O
sociólogo francês Pierre Bourdieu alude a um "capital cultural", e o
historiador americano Samuel Huntington, após o colapso do socialismo de
Estado, vê mesmo o alvorecer de uma "guerra das culturas". Ao mesmo
tempo, a nova autoconsciência do capitalismo asiático reporta-se a uma
"identidade cultural" própria, que seria superior à do
"Ocidente decadente".
Max
Weber, que de bom grado é tratado como precursor desse pensamento econômico em
categorias culturais, sem dúvida não dispunha da idéia de um capitalismo
culturalmente plural quando passou a redigir sua sociologia das religiões e
investigar a relação entre as culturas definidas religiosamente e o
capitalismo moderno. Interessava-lhe antes o surgimento histórico do próprio
capitalismo e o problema da transição para a modernidade. De fato, em todas as
sociedades pré-modernas, inclusive na Europa, os motivos sociais e econômicos
eram definidos pela religião, sendo assim incompatíveis com o cálculo
abstrato do homo economicus. A teoria
trataria de explicar por que apenas no norte da Europa Ocidental ocorrera um autêntico
nascimento do capitalismo, ao passo que tal modo de produção fora impingido
nas demais regiões do planeta. Como todos sabem, Weber chegou à conclusão de
que a ideologia religiosa do protestantismo era a única transição adequada a
uma mentalidade capitalista, ao passo que as outras culturas religiosas,
inclusive o budismo e o confucionismo, revelavam-se incapazes de constituir um
conveniente pano de fundo cultural para o desenvolvimento do capitalismo.
O
interessante é como Weber fundamentou essa tese. Ele tinha consciência de que
tanto o protestantismo puritano quanto a ética confuciana favoreciam uma sólida
moral do trabalho e um pensamento racionalista. Por que então o confucionismo não
seria igualmente indicado como o protestantismo para o advento capitalista? Para
Weber, como se lê em sua Ética Econômica
das Religiões Mundiais, a diferença fundamental era a importância das
relações sociais no exterior do sistema econômico em sentido estrito: "A
ética confuciana, de forma absolutamente deliberada, deixava os indivíduos à
mercê de suas relações naturais ou pessoais, sendo estas determinadas por vínculos
sociais hierárquicos. Ela transfigurava eticamente estas últimas, e apenas
estas, e por fim desconhecia todas as obrigações sociais que não os deveres
de piedade humana criados por tais relações pessoais de indivíduo para indivíduo,
de príncipe para criado, de funcionário de hierarquia superior para o
inferior, de pai para filho, de irmão para irmão, de professor para aluno e de
amigo para amigo. Para a ética puritana, ao contrário, essas relações
puramente pessoais – embora, é claro, ela as deixasse existir, se não fossem
contrárias a Deus, e as regulasse eticamente – eram levemente suspeitas, pois
que valiam para as criaturas. A relação com Deus lhe era sob todas circunstâncias
precedente. Puras relações humanas como tais, demasiadamente intensivas e idólatras
da criatura, deviam ser evitadas por completo. De fato, a confiança nos homens,
mesmo nos vizinhos de sangue mais próximos, seria perigosa à alma... Seguem-se
daí importantíssimas diferenças práticas das duas concepções éticas,
embora designemos ambas como 'racionalistas' em sua aplicação prática e
embora ambas deduzam consequências 'utilitárias'".
Caso
substituamos o "Deus" puritano pelo valor econômico ou simplesmente
pelo dinheiro, logo salta à vista a concepção ocidental e liberal do homem
como um egoísta isolado, que sacrifica todos os vínculos pessoais e sociais no
altar da racionalidade econômica abstrata e do puro sucesso individual. E, uma
vez que o confucionismo resiste fundamentalmente a tal impulso, Max Weber o toma
como inapto ao capitalismo, à diferença do ideário protestante. É
controverso se a específica religiosidade protestante secularizou-se e com isto
originou o capitalismo, ou se antes o capitalismo nascente aproveitou-se da
ideologia protestante e talhou-a segundo sua própria imagem mundana. O certo é
que apenas esse amálgama europeu de protestantismo e capitalismo deu luz ao
mundo moderno do mercado total, ao passo que nas culturas muito mais antigas da
China, do Japão e do resto da Ásia o capitalismo foi importado com as idéias
européias e não se desenvolveu a partir de dentro.
Nesse
sentido histórico, Max Weber não pode mais ser refutado. Contudo, sua tese
sobre a escassa capacidade de integração capitalista do confucionismo (assim
como do budismo e de toda a mentalidade asiática) é tida como falsa, já que
hoje a China, o Japão e os "pequenos tigres" parecem criar um
capitalismo especificamente asiático, que no fundo se afasta da versão
ocidental, remonta a tradições culturais próprias e é tido como um
extraordinário sucesso. Será então o individualismo econômico socialmente
descompromissado e devotado apenas ao "Deus" do dinheiro inessencial
ao modo de produção capitalista? Será que hoje em dia somos testemunhas do
nascimento na Ásia de um capitalismo superior, que se reporta ao "capital
cultural" da lealdade pessoal e social? Tal foi a hipótese recentemente
defendida pelo politólogo norte-americano Francis Fukuyama, que se tornou célebre
com sua tese sobre o "fim da história".
Creio
que estamos às voltas aqui com uma grande ilusão que só poderá ser
esclarecida pela não-simultaneidade histórica do desenvolvimento. O
capitalismo asiático não criou um novo modelo, mas apenas percorreu uma etapa
do desenvolvimento capitalista, que no passado não foi estranha ao Ocidente.
Todas
as sociedades pré-modernas e no início da modernidade, inclusive na Europa,
foram impregnadas por uma estrutura de reverência autoritária, por um sistema
de lealdades e sujeições pessoais, assim como por uma rigorosa moral. Isso não
é uma especialidade asiática, mas um estigma universal da transição de
sociedades agrárias para o capitalismo. Ora, se só a ideologia individualista
do protestantismo pôde dar à luz um capitalismo próprio e autêntico, é difícil
aceitar que os países asiáticos, meros importadores do capitalismo, possam
conservar o teor de submissão autoritária e de lealdade pessoal por meio de
formas culturais que já no passado não demonstravam boa vontade com o
capitalismo. A nova autoconsciência da Ásia é uma auto-ilusão, pois a absorção
do capitalismo foi realizada a expensas de sua própria autonomia.
O
fato de as estruturas do capitalismo asiático serem historicamente atrasadas e
incapazes a médio prazo de resistir economicamente ao mercado mundial pode ser
dissimulado no presente pela concessão de vantagens concorrenciais de curto
prazo, que numa certa perspectiva constituem os (temporários) windfall
profits da não-simultaneidade histórica – mas isto somente para minorias
em alguns poucos países. O principal fator não são porém as formas
especificamente asiáticas do "capital cultural", mas os elevados índices
de crescimento a partir de bases reduzidas, como já se observara antes em
outros países recém-industrializados, a exemplo da União Soviética na década
de 30, sem que disso redundasse um novo "modelo de sucesso". Apenas
diante desse pano de fundo econômico é que as relações autoritárias de
lealdade podem desempenhar por algum tempo o papel de esteio do sucesso.
Se
neste respeito tanto a relação do cidadão com o Estado quanto a do
assalariado com o empregador são reinterpretadas quase como um vínculo pessoal
de lealdade de "príncipe para criado", isso não passa de uma máscara
para a reificação e anonimização capitalista de todas as estruturas sociais.
O pré-capitalismo europeu também foi testemunha de empreendimentos
patriarcais, nos quais a dependência social manifestava-se como relação do
"senhor" com seu "séquito". Da mesma forma, a intervenção
autoritária do Estado na economia e o patrocínio de associações corporativas
a serviço da "nação", desde o absolutismo até as ditaduras
modernizadoras do século 20, foram tão-somente uma "fase de crisálida"
da moderna democracia capitalista e seu individualismo abstrato, corruptor de
todo tipo de lealdade social. Na medida que favorece uma forte mediação do
Estado na economia e um pesado gravame dos mercados internos, o capitalismo asiático
recria a época mercantilista do Ocidente e uma certa uniformização de todos
os cidadãos, o constante entoar dos hinos nacionais etc. constituem no máximo
uma música de fundo superficialmente cultural desse processo.
A
transposição para o âmbito da economia empresarial no Japão de exercícios
rituais tais como o esporte matutino semimilitar praticado coletivamente pelos
empregados ou a entoação solene dos "hinos da empresa" foi
ridiculamente interpretada no ocidente como uma "nova arma secreta" da
filosofia administrativa asiática e macaqueada pelos projetos de corporate
identity, ao passo que se tratava na verdade de fenômenos de transição da
mentalidade feudal para a capitalista. Sob o influxo da globalização, em toda
a Ásia desmorona o corporativismo mediado pelo Estado, bem como a lealdade
patriarcal na economia da empresa. No mercado interno, impõe-se a lógica da
concorrência, e no lugar da corporate
identity asiática surge imparavelmente o princípio hipercapitalista do hire
and fire.
Com
o tempo, este também será o destino dos laços e deveres estritos de
consanguinidade, que não constituem igualmente uma especificidade asiática. Até
hoje, espalhadas por todo mundo, "grandes famílias" e clãs em número
considerável restam como fósseis da história da modernização – na Arábia,
África e América Latina, bem como na China ou em Cingapura –, sem
representarem porém um "modelo capitalista". Talvez o capitalismo
confuciano e familiar elaborado em miniatura na China seja hoje responsável por
uma parcela do crescimento, mas suas atividades restringem-se a serviços secundários,
e ele é incapaz de substituir a indústria estatal. Para a industrialização
voltada às exportações, segundo os critérios do mercado mundial, ele será
antes um obstáculo – e isso já a médio prazo. Os próprios imigrantes asiáticos
nos Estados Unidos, festejados como um exemplo de empreendimento bem-sucedido,
possuem muitas vezes meros nichos econômicos no comércio ou pequenas cantinas
que não refletem de forma alguma um capitalismo autônomo. O princípio desse
sucesso é simples: a exploração brutal da lealdade familiar, inclusive à
custa de trabalho infantil e não remunerado, para abaixar o preço do produto
final. Muitas vezes o mesmo princípio é seguido por migrantes vindos do sul da
Europa (Turquia, Grécia, Espanha) em suas pousadas e mercearias na Alemanha.
Quantas gerações suportará tal estrutura de escravatura familiar? Poucas,
decerto.
O
processo de individualização capitalista, destruidor de laços familiares,
como escreviam Marx e Engels já no "Manifesto Comunista", alcançou
agora também os grandes centros metropolitanos da Ásia e não será barrado
pelo código da polícia moral confuciana. Em Cingapura, como posso ler, cuspir
na rua e urinar em elevadores é punido a golpes de chibata. Pergunta-se: os
habitantes de Cingapura costumavam antes urinar em elevadores? Tais preceitos
fatalmente trazem à memória as ordens policiais alemãs do século 16, quando
o mundo europeu achava-se ainda a caminho do "processo (capitalista) da
civilização" (Norbert Elias) e até a vida íntima era regulada pela polícia.
Os indivíduos no capitalismo tardio não urinam em elevadores, mesmo sem a ameaça
policial; pelo fato, no entanto, de controlarem seus reflexos íntimos, eles
calculam também sua vida sexual para além da rígida moral do velho
patriarcado. Não foi o êxtase e o arrebatamento que surgiram no Ocidente em
seu lugar, mas a comercialização da sexualidade ou dos próprios sentimentos.
É absurdo supor que justamente estes países asiáticos – os quais como se
sabe não vivem só da exportação de seus carros e chips, mas também do
turismo sexual – queiram fundar um capitalismo sobre a base da moral
confuciana. Juntamente com o sujeito automático do dinheiro, do McDonalds e de
Hollywood, há muito que os asiáticos foram agarrados pelo próprio vírus da
"decadência ocidental".
A
Europa e principalmente os Estados Unidos nos revelam hoje que o estágio final
de todo capitalismo é a perfeita dissolução da sociedade em indivíduos
abstratos e autistas. Há mais de 150 anos, Alexis de Tocqueville já previra
que a sociedade moderna acabaria assim. Não é apenas Bob Dole, candidato
republicano à Presidência dos Estados Unidos, que evoca ideais pré-modernos
para conjurar tal perigo. Enquanto isso, Francis Fukuyama sai a campo em busca
de um socorro para o capitalismo sem peias, olhando de esguelha
"determinados aspectos da cultura tradicional" asiática. Seu sonho é
um capitalismo "imposto por tradições culturais, e de que brotam fontes não-liberais":
uma suavização do puro mercado por meio do "capital social" de
corporações civis beneficentes e de uma "confiança universal recíproca".
Palavras loucas, ouvidos moucos. Jamais veremos nascer um capitalismo
confuciano, piedoso e vegetariano, pois o deus puritano e secularizado do
dinheiro em cultura alguma tolera outros deuses ao seu redor. A tese de Weber
sobre a escassa compatibilidade capitalista do confucionismo e do budismo manterá
provavelmente um lugar de destaque não só na história, mas também no futuro.
Original